O narrador na obra de Tomás de Mattos: La

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Universidade Federal do Paraná
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes
Delmar Ferronato
O narrador na obra de Tomás de Mattos: La puerta
de la misericordia.
Monografia apresentada para a disciplina
orientação monográfica em espanhol II,
Curso de Letras, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná.
Professor: Rodrigo Vasconcelos Machado.
Curitiba
2006
2
Índice.
Página.
I – Introdução.
03
II – Enredo.
04
III – Conceitos operatórios.
06
IV – O narrador em La puerta de la misericordia.
09
V – O ponto de vista do narrador.
11
VI – A temática da primeira parte de La puerta de la misericorda:
Sobre tribulaciones.
13
A – A questão do pecado.
15
B – A questão sobre verdade bíblica.
18
C – A questão da morte.
20
VII – Vida de Jesus.
22
VIII – Maria, a mãe de Jesus.
25
IX – Conclusão.
27
X – Referências Bibliográficas.
29
Anexo I.
30
3
I – Introdução.
Pretendo desenvolver um estudo sobre a função que desempenha o narrador na
obra de Tomás de Mattos La puerta de la misericordia, que é de fundamental
importância para a consecução de um dos objetivos principais do romance, a saber,
conduzir o leitor a conhecer a vida de Jesus narrada nos Evangelhos. Para isso o autor
utiliza uma séria de artifícios literários, por meio dos quais consegue seduzir o leitor e
desviar sua atenção deste seu objetivo. Como por exemplo: a própria figura do
narrador, Nakdimón, um mestre da lei plenamente racional em seus juízos; a posição
do narrador referente ao tempo da narrativa, enganando o leitor em relação a sua
verdadeira opinião sobre os fatos; a problemática que o narrador expõe na primeira
parte da obra com uma falsa atitude de desapontamento em relação ao que esperava
de Jesus.
Todas essas características contribuem para captar a atenção do leitor. Este
acredita acompanhar o narrador em uma análise da vida de Jesus, com o propósito de
formar um juízo preciso a respeito da sua verdadeira identidade. Porém, no final da
obra, o leitor percebe que fora conduzido pelo narrador a realizar o mesmo caminho,
de adesão a Cristo, que ele já havia percorrido. Este recurso técnico deixa transparecer
uma clara posição do autor de dar testemunho da sua fé. Contudo, deixa aberta uma
interpretação alternativa para os eventos narrados, fornecendo sempre uma segunda
possível versão dos fatos. Consegue salvaguardar assim a liberdade do leitor de poder
adotar seu próprio ponto de vista.
Para demonstrar que tal interpretação é possível, pretendo realizar os seguintes
passos: fornecer um breve resumo da obra com o intuito de facilitar a compreensão
dos argumentos que utilizarei; depois, proceder a uma fundamentação teórica dos
conceitos chaves que vou usar na minha argumentação sobre o papel do narrador na
obra; apresentar uma análise temática, primeiro sobre a problemática levantada na
primeira parte mostrando que é um artifício para atrair a atenção do leitor, segundo
mostrar que o modo pendular como Nakdimón apresenta a vida de Jesus, contrapondo
sempre os aspectos positivos com negativos, colaboram para manter uma atitude de
diálogo com o leitor. E para finalizar, oferecer a conclusão a que chego com o
desenvolvimento deste trabalho.
4
II – Enredo.
A obra La puerta de la misericordia trata da vida de Nakdimón que é o
narrador do romance. Recuperando toda vida de Jesus para explicar seu processo de
conversão, até assumir que se tornou um dos discípulos de Cristo. Para isso, Tomás de
Mattos cria um complexo enredo que se desenvolve ao longo das mil páginas da
mencionada obra, que está dividida em 3 partes, com 18 capítulos e contendo 180
tópicos ao todo, divisão que colabora para tornar amena a leitura do livro.
Narra em primeira pessoa, usando quase todo tempo o pretérito perfeito, que
em espanhol assume uma conotação de algo que aconteceu, mas seu efeito continua
no presente. Mesmo na primeira parte, onde os eventos ocorreram dois anos a trás, são
narrados em pretérito perfeito, para enfatizar que todas estas coisas continuam muito
vivas na mente do narrador.
A primeira parte trata do encontro de Nakdimón com Jesus na casa de Lázaro
em Betânia em um jantar que se estende até o amanhecer. Neste jantar, Nakdimón
apresenta alguns relatos de sua infância e adolescência. Especialmente as discussões e
discrepâncias entre seu pai Jefonias e seu irmão Ananias, com relação à interpretação
de algumas passagens do Texto Sagrado. O que levou seu irmão a deixar a casa
paterna e mudar-se para Damasco, onde abandonou a fé judaica. O narrador enfatiza
que Jesus se parece muito ao seu irmão, principalmente na forma de analisar os
acontecimentos e expressar sua opinião. Narra também nesta parte sua experiência no
primeiro milagre de Jesus nas bodas de Canaã, na qual esteve presente e experimentou
o vinho do milagre que, além do sabor inigualável, produziu em Nakdimón efeitos
rejuvenescedores. Nesta parte, o narrador desenvolve uma problemática, que é o
reflexo das discussões entre seu pai e seu irmão e para as quais Nakdimón, em toda
sua vida, não achou resposta convincente. E agora a apresenta para Jesus na esperança
de que ele o libere deste conflito interior, que são suas dúvidas a respeito da correta
interpretação de alguns textos da Bíblia.
Para apresentar esta problemática a Jesus, Nakdimón, analisa algumas
passagens das Escrituras, como o livro do Gênese e dos Macabeus e algumas figuras
importantes do Antigo Testamento, como Moisés e Elías. Essa primeira parte conclui
com a resposta de Jesus, que é um convite ao narrador para estar atento aos sinais que
5
Deus está realizando. Nakdimón entende com isso que Jesus neste momento não tem
todas as respostas desejadas.
Na segunda parte, o narrador dá um salto de dois anos e transporta o leitor para
a semana santa, que é a última semana de vida de Cristo. Nakdimón chega a
Jerusalém para comemorar a páscoa e curioso para saber mais detalhes da suposta
ressurreição de Lázaro. Conversa com Gamaliel1, outro mestre da lei com grande
prestígio em Jerusalém e José de Arimatéia2, um importante comerciante. Participa no
templo do último discurso público de Jesus, onde não entende porque ele não mostra
ali diante das autoridades religiosas quem é na verdade. Porque deixa passar uma
oportunidade como essa? Curioso para ver Lázaro e querendo encontrar-se com Jesus
novamente, se dirige a Betânia, onde encontra um Jesus mais consciente de sua
missão, ou melhor, da missão que o Pai lhe há confiado: dar sua vida em resgate dos
homens.
Depois Nakdimón acompanha Jesus durante o seu julgamento, mas não
consegue defendê-lo, pois são muitos os lideres religiosos que querem Jesus morto.
Narra alguns detalhes sobre a última ceia de Jesus com seus apóstolos, a qual, ele,
1
Então um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, de muito prestígio entre todo o povo, levantou-se
no conselho. Mandou que aqueles homens fossem postos fora um instante. E lhes disse: “Israelitas,
cuidado com o que ides fazer com estes homens! Há pouco tempo atrás surgiu Teudas. Ele dizia que
era pessoa importante e uma turma de uns quatrocentos homens juntou-se a ele; mas foi morto e todos
seus seguidores foram dispersos e aniquilados e nada sobrou. Depois disso, surgiu Judas, o Galileu, na
época do recenseamento, que também consegui arrastar o povo com ele; mas foi morto e todos seus
seguidores espalhados. Por isso agora vos digo: não façais nada contra estes homens. Deixai-os em paz.
Porque, se este plano ou esta obra vem dos homens, fracassará na certa. Mas se vem de Deus, então
nunca podereis destruí-la. Pois neste caso estareis lutando contra Deus!” Todos concordaram com ele.
Em seguida chamaram novamente os apóstolos e depois de surrá-los, ordenaram que nunca mais
falassem em nome de Jesus. (Bíblia, Atos dos apóstolos, 5,34-40)
2
A tarde já tinha caído e, como era o Dia da Preparação, isto é, a véspera do sábado, José, o chamado
de Arimatéia, membro importante do tribunal superior, e que também esperava o reino de Deus, teve a
coragem de chegar até Pilatos e pedir o corpo de Jesus. Pilatos se admirou de que ele já estivesse
morto, e tendo chamado o oficial romano, perguntou se já estava morto. Informado pelo oficial, deu o
corpo a José. Ele comprou um lençol, fez descer o corpo de Jesus, o envolveu no lençol e o colocou
num sepulcro escavado na rocha. (Bíblia, Evangelho de Marcos 15,42-46)
6
Nakdimón não esteve presente, mas soube por testemunho de um apóstolo.
Acompanha-o também no caminho até o calvário e permanece ao pé da cruz até sua
morte.
A última parte da obra trata do dia seguinte à morte de Jesus no sábado. À
tarde Nakdimón se dirige a Betânia para encontrar e conversar com Maria. Primeiro
Maria pede a João para contar-lhe o relato da transfiguração de Jesus, onde
apareceram também transfigurados Moisés e Elías. Posteriormente, Maria conta o
importante episódio da anunciação. E Nakdimón se lembra da história que lhe havia
contado Gamaliel de que na mesma época em que Maria apareceu grávida, uma
jovem fora estuprada por um centurião romano em Nazaré. As datas coincidiam,
porém ninguém sabia quem havia sido a tal jovem, que nunca se apresentou
provavelmente por medo.
Novamente a conversa se estende até o amanhecer, quando chega a Betânia o
boato da ressurreição de Jesus. Todos os que estavam neste jantar se dirigem ao
sepulcro. Contudo, ao passarem por Jerusalém Nakdimón é preso acusado de ter pago
suborno aos soldados para que os discípulos de Jesus roubassem o corpo.
Ao final da obra, descobrimos que o narrador esteve todo tempo contando sua
história desde sua prisão, no pátio do palácio de Anás. Onde havia sido deixado
desmaiado quando era levado para ser torturado. Encerra a obra tranqüilo, pois se
descobriu discípulo de Jesus, tendo a esperança de receber o prêmio eterno.
III – Conceitos operatórios.
Quero neste momento justificar a minha escolha por desenvolver um estudo
sobre o papel que desempenha o narrador na obra La puerta de la misericordia de
Tomás de Mattos. E também fornecer uma definição do conceito de sedução que
colabora de modo especial em explicitar o papel do narrador no texto. Primeiro para
justificar o estudo da função do narrador na obra, quero recuperar uma idéia expressa
pelo autor na introdução da obra acima indicada. Na qual menciona que escreveu este
romance buscando abrir um diálogo com o leitor, principalmente o “não crente”.
Como fica evidente no seguinte fragmento:
7
Escribiendo con mi atención especialmente fijada en los no creyentes, no me
guió el propósito de convencer o persuadir, sino que apenas quise que el
lector pudiera revivir, en la coincidencia o en la discrepancia la única
certidumbre que poseo y abrigo: la cálida esperanza de que el carpintero de
Nazaret no se haya engañado. (MATTOS, 2002, Pág. 12)
Justamente pensando neste leitor “não crente” que Tomás de Mattos escolhe
para sua obra um narrador “não cristão”: Nakdimón que assume uma posição de
cautela em relação a Jesus, demonstrando estar pouco convencido sobre ele. Pareceme que esta seja a tática usada pelo autor para atrair a atenção do leitor. E ao meu ver
funciona tanto para o não crente que sente afinidade pelas idéias apresentadas pelo
narrador. E também para o crente que se sente incômodo com os argumentos
apresentados. Como por exemplo:
Mi padre y mi hermano coincidían en despojar de su aura portentosa a
determinados hechos, como las plagas, el maná o la separación de las aguas
del mar.
Jefonías siempre sostuvo y Ananías nunca lo contradijo, que el Altísimo no
suele apartarse del orden que impuso a su creación desde el comienzo de los
tiempos, aun cuando se sienta obligado a intervenir en la historia del hombre.
(MATTOS, 2002, pág. 161).
De todas formas há a presença de um leitor privilegiado pelo autor no
desenvolvimento do texto. Considero importante esta questão, pois como diz Antonio
Candido, sua presença pode influenciar as escolhas do autor no momento da produção
literária interferindo até mesmo na própria estrutura da obra:
Todo autor depende de um público. E quando afirma desprezá-lo, bastandolhe o colóquio com os sonhos e a satisfação dada pelo próprio ato criador,
está, na verdade, rejeitando determinado tipo de leitor insatisfatório,
reservando-se para o leitor ideal em que a obra encontrará verdadeira
ressonância. Tanto assim que a ausência ou presença da reação do público, a
sua intensidade e qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de
um artista. (CANDIDO, 1985, pág.75).
8
A esse respeito temos também a posição de Umberto Eco, que faz a distinção
entre leitor empírico: “É você, eu, todos nós, quando lemos o texto” (ECO, 1994, pág.
15). E leitor modelo: “Uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como
colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1994, pág. 15). Sendo este sumamente
importante no momento da produção literária, pois serve de contraponto ao que chama
de autor-modelo: “Por fim há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar e
que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria com o leitor-modelo.”
(ECO, 1994, pág. 20). Só esclarecendo a segunda entidade para Umberto Eco seria o
narrador. Esta entidade a qual o teórico chama de autor-modelo, de certa forma, acaba
indicando no texto algumas atitudes que espera do leitor-modelo:
Por outro lado, o autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou
imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se
manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos
são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como
leitor-modelo. (ECO, 1994, pág. 21)
Mas o aspecto ao que quero chamar a atenção é sobre a importância do “leitor
ideal” ou “leitor-modelo” no momento da produção literária, que interfere de modo
ativo nas escolhas do autor: “autor-modelo” ou “autor implícito”. E no texto de
Tomás de Mattos o narrador, como porta-voz no diálogo com o leitor, está pensado
para desviar a atenção. Logicamente, não é possível recuperar as intenções do autor
ou todo processo de criação do narrador, pois eles não são evidentes na obra.
Contudo, Bakhtin3, observa que o narrador é uma criação do autor que visa alcançar
certa finalidade segundo o objetivo que o autor se propõe no desenvolvimento de sua
obra. As atitudes do narrador, o ponto de vista que assume em relação ao tempo e
modo da narrativa, são uma escolha do autor pensando provocar certas atitudes no
leitor. Partindo desta idéia pretendo trabalhar com a hipótese de que o narrador tem
em La puerta de la misericordia a função de desviar a atenção do leitor do objetivo
principal que se propôs Tomás de Mattos para sua obra, isto é, conduzir o leitor,
principalmente o “não crente” a conhecer a história de Jesus narrada nos Evangelhos.
3
BAKHTIN, Mikhail, Estética da criação verbal, 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
9
Essa característica que assume o narrador é muito bem expressa pelo conceito
de “sedução”, proposta por Jean Baudrillard, que o define como um artifício usado
para desviar a atenção de um argumento para outro:
A sedução é aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua
verdade. Por conseguinte, seria o inverso da distinção psicanalítica entre
discurso manifesto e discurso latente, pois o discurso latente desvia o discurso
manifesto não de sua verdade mas para a sua verdade. Ele faz dizer o que não
gostaria, faz com que transpareçam suas determinações e indeterminações
mais profundas. (...) Na sedução, ao contrario, de alguma maneira é o
manifesto, o discurso no que tem de mais “superficial” que se volta sobre a
organização profunda (consciente ou inconsciente) para anulá-la e substituir
seu encanto e a armadilha das aparências. Aparência não de todo frívolas, mas
lugar de um jogo e de uma aposta, de uma paixão pelo desvio.
(BAUDRILLARD, 1992, pág. 61)
Tendo introduzido este conceito gostaria de passar a analisar a partir do texto,
como o narrador desempenha está função nas diferentes partes da obra. Primeiro com
relação ao modo e tempo da narrativa. Depois com relação ao papel que assume de
maior ou menor destaque. E, por último, recuperando a idéia de diálogo com o leitor,
o narrador assume uma atitude de abertura fornecendo aspectos positivos e negativos
em relação a vida de Jesus. Deixando liberdade ao leitor escolher o que mais o
convence.
IV – O narrador em La puerta de la misericordia.
Tomás de Mattos escolhe para sua obra um narrador-personagem, Nakdimón,
que segundo a tradição judaica vigente na época era fariseu e doutor da lei. É
conhecido no Evangelho pelo nome de Nicodemos4, um velho mestre da lei que se
4
Havia entre os fariseus um, chamado Nicodemos, dos mais importantes entre os judeus. Ele foi
encontrar-se com Jesus à noite e lhe disse: “Rabi, bem sabemos que és um Mestre enviado por Deus,
pois ninguém seria capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não estivesse com ele”. Jesus
respondeu: “Eu te afirmo e esta é a verdade: se alguém não nascer do alto, não poderá ver o reino de
Deus”. Nicodemos perguntou: “Como é que pode o homem nascer, quando já é velho? Porventura
poderá entrar de novo no seio de sua mãe e nascer?” Jesus respondeu: “Eu vos afirmo e esta é a
verdade: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no reino de Deus. O que nasce
da carne é carne; o que nasce do Espírito é Espírito. Não te admires do que eu disse: é necessário para
vós nascer do alto. O vento sopra para onde quer e ouves sua voz, mas não sabes de onde vem, nem
aonde vai. Assim é quem nasce do Espírito”. Nicodemos perguntou: “Como pode acontecer isso?”
10
encontra com Jesus à noite. Não sabemos se por medo, mas provavelmente agiu assim
para não chamar a atenção das autoridades religiosas. No texto dos Evangelhos, Jesus
não o condena por essa atitude e tampouco o faz o texto de Tomás de Mattos, pode ser
por uma razão muito simples, Nakdimón aqui é o narrador.
Faço a relação do nome do narrador da obra La puerta de la misericordia com
este misterioso personagem do Evangelho, devido à coincidência nas respostas de
Jesus, no romance é: “Lo nascido de la carne, es carne; lo nascido del espíritu es
espíritu”, (MATTOS, 2002, pág. 300), no Evangelho diz: “O que nasce da carne é
carne; o que nasce do Espírito é Espírito, (Evangelho de João 3, 1-12)”. Desta
referência tomada do texto de João, Tomás de Mattos, vai desenvolver um complexo
narrador-personagem. Conservando os mesmos traços de humildade e simplicidade,
de quem se apresenta ante Cristo, com desejo de escutar e entender. E que chega a fé
em Jesus pelo que suas obras têm de sobrenatural e inexplicável.
Em alguns momentos o narrador assume o protagonismo da obra. É como se
tivéssemos dois planos; um que narra a conversão de Nakdimón, e outro que repassa
toda a vida de Jesus, mas esta sempre em função das certezas e incertezas do narrador.
Percebemos que Nakdimón é atormentado por muitos questionamentos sobre a correta
interpretação de algumas partes das escrituras. São essas dúvidas que fazem com que
ele se aproxime de Jesus. E mesmo sendo uma pessoa com uma profunda formação
intelectual sobre as Escrituras, todo juízo que emite sempre vai ser muito racionalista.
Quero frisar que o narrador se encontra preso no pátio do palácio de Anás. E
que todos os fatos são narrados desde esse ponto, como uma recuperação de eventos
passados, os quais são evocados para tentar entender sua atual situação. O que
coincide com seu progressivo processo de adesão a Cristo. É por esse caráter de
memórias, que temos uma não linearidade na conexão de alguns fatos. Como na
primeira parte onde interrompe a narrativa sobre os episódios do Antigo Testamento,
Jesus disse: “És mestre em Israel e não sabes estas coisas? Eu te afirmo e esta é a verdade: nós falamos
do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis nosso testemunho. Se não
acreditardes quando vos falo das coisas terrestres, como acreditareis quando vos falar das coisas
celestes”? (Bíblia, Evangelho de João 3,1-12)
11
para recordar os milagres; do nascimento de João Batista e das bodas de Canaã. Na
qual Nakdimón estava presente e onde teve seu primeiro contato com Jesus.
V – O ponto de vista do narrador.
Para esclarecer o modo como o narrador desvia a atenção do leitor, acredito
que seja importante recuperar o presente do narrador em relação aos fatos narrados.
Nakdimón se encontra detido no pátio do palácio de Anás. Acaba de voltar a si depois
de haver desmaiado, no momento que o levavam para torturar. E é desde este pátio
que ele narra todos os fatos: “Aquí estoy en un viejo tenderete que Anás ha
considerado indigno de que se siga usando para la venta de las ofrendas y que hoy,
con otros dos, sirve de calabozo par el castigo de los esclavos”. (MATTOS, 2002,
pág. 987). É o primeiro momento em que o narrador utiliza o presente “aqui estou
neste velho pátio”. Sendo assim posso afirmar que este é o momento presente do
narrador e que assume uma perspectiva de futuro em relação aos eventos narrador.
Que na primeira parte da obra é um passado mais distante dois anos atrás. E na
segunda e terceira parte um passado próximo refere-se à última semana de vida de
Jesus até o dia de sua ressurreição, que foi justamente no dia anterior ao presente do
narrador.
Fica vidente com isso que o narrador já vivenciou todos os fatos que estão
sendo narrados. E sendo assim ele já tem uma opinião formada sobre Jesus e sobre
seu messiado. Mas a obra está construída de tal forma que o leitor é levado a pensar
que está acompanhando o narrador em sua busca por respostas. Isso fica evidente já
nos primeiros parágrafos da obra, onde o narrador se mostra ainda com dúvidas em
relação a Jesus:
Me duele pensar que es posible que ayer hayamos crucificado tan luego al
Mesías. Pero todavía no puedo aceptar que ese hombre a quien vi morir y
cuyo cadáver fue perfumado con los aromas que yo mismo le compré, sea
Dios hecho carne. (MATTOS, 2002, pág. 19)
Aparentemente o narrador ainda não é cristão e está pesando os
acontecimentos a favor e contra Jesus. Para fazer um juízo preciso a respeito de sua
verdadeira identidade e missão. Contudo, é só no final da obra que o leitor percebe
12
que Nakdimón enquanto conta sua história, já tomou uma decisão e já se considera
discípulo de Cristo, como indica no exemplo que segue:
Sabíamos lo que hacíamos cuando frecuentamos la compañía de Jesús en los
días precedentes; y, desde que lo defendimos en juicio hasta que lo
acompañamos al pie del cadalso y auxiliamos a los suyos a sepultarlo, fuimos
plenamente concientes de que habíamos traspasado todos los límites.
(MATTOS, 2002, pág. 989).
Há na obra um narrador em primeira pessoa, como fica manifesto dos
exemplos acima citados é um narrador-personagem. Porém acredito que estes dois
aspectos, a saber, pessoa do narrador e o presente da narrativa colaboram entre si para
alcançar o objetivo de desviar a atenção do leitor. Com isso passo a analisar como a
narrativa em primeira pessoa segue uma evolução. Passando de um narrador na
primeira parte menos presente como personagem e mais uma voz que narra. Temos
um narrador-personagem secundário na segunda parte que dá testemunho sobre a
morte de Jesus. Até se tornar o protagonista na terceira e última parte.
Para explicar melhor o exposto acima, utilizo a classificação do narrador que
nos oferece Ligia Chippiani Morais Leite na sua obra O foco narrativo. Seguindo a
classificação da autora percebo que na obra La puerta de la misericordia se poderia
enquadrar o narrador em duas das nomenclaturas mencionadas: “Eu” como
testemunha”5 e “Narrador-protagonista”6. O narrador assume as características dos
dois aspectos citados: um quando dá testemunho sobre a vida de Jesus, colocando-se
num segundo plano: “Jesús recuperó el equilibrio que había perdido a consecuencia
do empujón del soldado, apurando tres passos cortos y deteniéndose luego apenas um
instante. Quedo así frente a nosotros tres e, inesperadamente, nos sonrió”. (MATTOS,
5
Narra em 1ª Pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos
como personagem secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los
ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Testemunha, não é a toa esse nome: apela para o
testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal.
(MORAIS LEITE, 1997, pág. 37)
6
O NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado mental dos demais personagens.
Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente as suas percepções, pensamentos e
sentimentos. Como no caso anterior ele pode servir-se seja da CENA seja do SUMÁRIO, e, a
DISTÂNCIA entre HISTÒRIA e leitor pode ser próxima, distante ou, ainda mutável. (MORAIS
LEITE, 1997, pág. 43)
13
2002, pág. 688); outro em que assume o protagonismo da narrativa, como no texto
que segue onde o narrador conclui uma conversa com sua esposa.
Recién cuando nos retiramos de la mesa y comprobé la dificultad con la que
se retiraba de su diván, me di cuenta de lo dolorida y pálida que estaba, me
acerque, la besé y, muy lentamente, la ayudé a llegar hasta nuestro lecho.
(MATTOS, 2002, pág. 830)
Essa dupla posição do narrador que em alguns momentos assume o
protagonismo e depois um papel secundário de testemunha dos fatos. É usada pelo
autor para gerar um equívoco no leitor, dá a idéia que o protagonista da obra seja
Nakdimón, pois está narrando sua própria vida e como se deu seu processo de
conversão. Quando na verdade ele não esta interessado em contar sua história: ele
quer falar de Jesus, quer dar seu testemunho sobre Jesus. Isso se torna evidente na
segunda parte da obra quando o narrador assume uma posição secundária, colocando
Jesus no centro da narrativa. E ademais, ele já se considera discípulo de Cristo no
momento que conta a os eventos.
Há também o falso desapontamento de Nakdimón com relação a Jesus na
primeira parte da narrativa, que são artifícios usados pelo autor para seduzir o leitor e
conduzi-lo a leitura da vida de Jesus. Tomás de Mattos não pretende converter o
leitor7, mas somente fazer com que tenha contato com a história de Jesus contida nos
Evangelhos. Fazendo com que o leitor acredite que o narrador esteja todo tempo em
busca de respostas. Quando que na verdade o narrador tem uma posição de fé em
relação a pessoa de Jesus e não busca resposta alguma, só conduzir o leitor a reviver
com ele suas experiências do Messias.
VI – A temática da primeira parte de La puerta de la misericordia: Sobre
tribulaciones.
Na primeira parte da obra Nakdimón apresenta uma série de dúvidas que tem
com relação a interpretação de alguns textos da Bíblia. Dificuldades que herdou das
discussões entre seu pai e seu irmão. Porém, o que quero ressaltar é que o narrador dá
a narrativa uma perspectiva polêmica pelo modo como aborda algumas passagens e
7
Confira citação na página 8: (MATTOS, 2002, pág. 12).
14
alguns personagens do Antigo Testamento. O que indiscutivelmente chama a atenção
do leitor que fica interessado em saber como se soluciona esta problemática.
Contudo, o ponto central na obra não é a polêmica, mais sim apresentar o
cristianismo por meio de Jesus como resposta a toda essa problemática levantada.
Como fica claro na segunda e terceira parte do romance, onde o narrador deixa em
suspense os assuntos tratados na primeira parte e se dedica a repassar os eventos
acontecidos na vida de Jesus, durante sua última semana de vida. E os temas tratados
nesta primeira parte se tornam evidentemente um álibi para prender a atenção do leitor
e ao mesmo tempo desviar sua atenções da vida de Cristo que esta sendo contada
paralelamente.
Na primeira parte da obra, o narrador narra a perda que seu pai sofreu na peste
de Jerusalém, onde faleceu sua primeira esposa e filhos. Esta catástrofe gera em
Jefonias certo conflito com a interpretação de algumas passagens do Antigo
Testamento. Conflito que será incorporado e levado as últimas conseqüências por
Ananias, o filho mais velho, que acaba fugindo para Damasco, onde foi viver com os
“não judeus”. Estes fatos da infância de Nakdimón são importantes para a história,
porque vão representar um dos pólos que geram o conflito no narrador e que
determinará o desenvolvimento da trama, na medida em que muitas das dúvidas
geradas das discussões entre seu pai e seu irmão serão assimiladas por Nakdimón, que
as levará por toda sua vida. Seu maior interesse neste jantar é expor a Cristo algumas
dessas incertezas. Ele tem a esperança que Jesus as solucione e acabe com seu
conflito.
O autor apresenta a questão de uma perspectiva cultural onde aparentemente o
narrador está atravessando uma crise de valores morais e religiosos. Este tema da crise
de valores morais e religiosas é muito atual e própria dos nossos dias. Seria de se
pensar que no tempo de Jesus ninguém se atreveria a levantar tais questionamentos
sobre as escrituras ou sobre a fé dos próprios pais. Reforçando assim a idéia exposta
antes, que esta parte seja um artifício do autor para atrair a atenção do leitor. Fica a
impressão de que Jesus e Nakdimón concordam não só que é lícito, mas é um direito
individual questionar a cultura dos seus pais e mesmo os dogmas religiosos do seu
tempo. O “questionar” seria algo positivo, pois liberta o homem da opressão de viver
15
algo sem acreditar, sem estar convencido. E resgata a idéia de que Deus nos criou
livres, ao perguntar-se sobre o motivo de Deus ter plantado no centro do paraíso a
árvore do conhecimento do bem e do mal.
- Pudo erradicar del Edén el Árbol de la Ciencia del Bien y del Mal. ¿Por qué
consintió en que creciera? ¿Por qué expuso a nuestros padres al pecado?(…)
- ¡Porque nos quiso libres! ¡Libres para llegar a ser lo que quisiéramos!
Y añadió:
Libres para construir o destruir el mundo. Por eso, a pesar de que podemos
caer en la más degradante abyección, nos hizo libres. Porque solo se goza a
plenitud el bien, si se contribuye a generarlo. (MATTOS, 2002, pág. 101)
Porém, quais são os questionamentos que levanta Nakdimón e que neste
primeiro encontro, nem Jesus consegue responder convincentemente? Isso deixa o
narrador um pouco decepcionado o que será superado posteriormente. Resumiria a
questão das incertezas de Nakdimón da seguinte maneira, primeiro sobre o pecado,
depois sobre a verdade bíblica, e por último sobre a morte.
A – A questão do pecado.
Nakdimón apresenta a questão quando trata do caso do pai dos sete irmãos do
relato bíblico dos Macabeus. Irmãos que motivados pela mãe e pela esperança na vida
após a morte, se lançam ao martírio, antes que comer carne de porco proibido pela lei
judaica e exigência do rei da Babilônia para demonstrarem adesão a sua autoridade:
Aconteceu também que foram presos sete irmãos juntamente com sua mãe, e
o rei quis obrigá-los a comer carne de porco, proibida pela Lei, fustigando-os
com golpes de azorrague e de nervos de boi. Um deles, como porta-voz de
todos, disse: “Que vais perguntar, que queres saber de nós? Estamos prontos a
morrer antes que violar a lei de nossos pais”.(Bíblia Segundo livro dos
Macabeus 7, 01)
O interesse de Nakdimón neste relato se concentra na figura do pai, que não é
mencionado nas escrituras, “– El padre ha sido minuciosamente borrado de la
historia”. (MATTOS, 2002, pág. 46). Já teria morrido? Ou será que, para salvar sua
família preferiu comer carne de porco e cair em desgraça ante seu povo? Que culpa
16
teria tal pai por agir assim? Que pecado poderia estar cometendo um homem que
segue os impulsos do próprio coração pretendendo proteger sua família?
O narrador questiona a idéia tradicional de pecado, que não toma em conta
estados de ânimo nem situação pessoal dos indivíduos. Esta idéia é fundamentada na
moral religiosa da obediência cega incondicional ao Texto Sagrado. E que é
introduzida no contexto bíblico a partir do livro do Gênese com o conceito de pecado
original. Livro que trata do pecado de Adão e Eva, que consistiu em comer do fruto da
árvore do conhecimento do bem e do mal. Porém, como poderiam Adão e Eva terem
pecado se antes de comerem o fruto não tinham conhecimento do bem e do mal? É a
pergunta que nos deixa o narrador:
– ¿Es justo castigar a nuestros primeros padres por comer del fruto de la
ciencia del bien y del mal cuando, precisamente por no haberlo probado,
todavía eran incapaces de distinguir lo bueno de lo malo? (MATTOS, 2002,
pág. 94)
Jesus reconhecendo que o texto bíblico mais do que tratar os mistérios do
pecado, passa a imagem de um Deus que fracassou no seu projeto e se tornou um
Deus cruel e vingativo. Ao invés de ressaltar o amor de Deus pai cheio de
misericórdia, que está sempre disposto a perdoar e acolher o pecador. Ressalta o
aspecto do Deus que esta sempre vigiando, observando o homem, só esperando que
ele peque para castigá-lo. O que é uma conclusão aparentemente lógica de todo esse
contesto bíblico do livro do Gênese e o faz dizer:
– Me duele que el pasaje, más que acometer los misterios del pecado y de la
muerte, atienda al fracaso de una deidad improvisada y cruel. Aun entre los
malos, ¿qué padre abandona a su hijo ante la primera desobediencia? ¿Qué
artesano desecha la pieza que al principio se niega a tomar la forma que él le
ha asignado? (MATTOS, 2002, pág. 95)
A solução que Jesus personagem da obra La puerta de la misericordia, oferece
a respeito do pecado, também é muito polêmica. Indicando que o mal não é desejado
por Deus, mas ele o permite, pois, é o meio necessário para o crescimento humano.
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Necessário principalmente para realizar o misterioso plano que Deus tem para o
homem, que é conduzi-lo a um estado de felicidade eterna. Sendo assim o paraíso não
foi perdido, mas ainda não foi conquistado pelo homem:
– Yo he estado en el Edén, que encontré en el desierto. Te aseguro que es
real y que no vale la pena nacer si no es par gozar de su eterna plenitud. Y en
verdad también te digo que ningún pie de hombre ha hollado todavía su suelo.
Nuestros padres jamás han sido expulsados del Paraíso ni aún les ha sido
entregado. Para el hombre ha sido y es una posibilidad, tal como decía tu
padre, que no ha aprovechado y de la que se ha alejado, generación tras
generación. (MATTOS, 2002, pág. 96).
Contudo, o que quero ressaltar neste momento é que esta temática
desenvolvida pelo narrador sobre o pecado se torna evidentemente uma forma de
desviar a atenção do leitor. O narrador termina de contar a trágica história do pai, que
para salvar sua família abandonou a fé de seus antepassados e sobre a expulsão do
paraíso de Adão e Eva. Sutilmente introduz dois relatos do Evangelho, sobre as Bodas
de Canaã onde Jesus realiza seu primeiro milagre e sobre João Batista e o batismo de
Jesus:
Cuando me importunó con esta pregunta, yo estaba paladeando un vino
excelente y no me interesaba regresar enseguida a ese malhadado puente de
Damasco. (...).
– Solo cede en la comparación a un vino que probé en Caná de Galilea, en
casa de Benjamín, cuando la boda de Emmanuel, tu pariente, y Haddasah, la
hija de Nicanor, mi primo… Un vino que sirvió casi al final de la segunda
noche para los muchos invitados que, por más que ya se habían retirado los
novios a su tienda, todavía no se habían ido a dormir. (MATTOS, 2002, pág.
109)
É muito sútil o modo como o Nakdimón muda o tema da narrativa, o narrador
consegue alcançar seu objetivo, pois coloca o leitor em contato com os primeiros
relatos da vida de Jesus. Contudo, o leitor continua ainda distraído pela problemática
sobre o pecado, com a incerteza se este tema vai continuar a ser desenvolvido, durante
a narrativa.
18
B – A questão sobre verdade bíblica.
Alguns dos textos bíblicos relatados por Nakdimón na primeira parte da obra,
principalmente sobre Moisés e Elias, revelam uma forte cultura da lei de Talião
vigente na época em que foram escritos. E fica a pergunta, se isso ocorre porque Deus
assim o quis, ou foi uma interpretação dos escritores sagrados que embebidos desta
cultura achavam que ela fosse justa e desejada por Deus? Primeiro em relação aos
adversários, que contestaram a mediação de Moisés entre Deus e o povo. O Livro do
Deuteronômio, fala que a terra se abriu e engoliu a todos os que questionavam sua
autoridade. O narrador trás ao leitor a dúvida que tinha seu irmão a respeito de tal
evento. Será que foi Deus quem o fez, ou foi uma atitude de Moisés movido por seu
zelo à lei, ou para eliminar os adversários? Como vemos no exemplo:
- ¿A
quién responsabilizaba Ananías por esta masacre? ¿Al Padre o a
Moisés?
Daba por descontada mi respuesta, pero igual se la di:
- A Moisés, por haber matado a los conjurados, pese a que los había vencido.
No creía en la grieta prodigiosa, ni en la llamarada que brotó de los
incensarios. (MATTOS, 2002 pág, 213)
Há também o caso de Elias que realiza uma disputa com os sacerdotes de Baal.
Ao sair vitorioso, incitou toda a multidão que assistia a contenda, para eliminarem os
sacerdotes adversários, que foram todos degolados. O narrador faz aqui a mesma
pergunta, se este foi um mandado de Deus, ou um impulso do demasiado zelo, ou
ódio do profeta? Como fica claro do texto que segue:
Al atardecer, todos estaban apretados en dieciocho grupos de veinticinco,
cercados por hombres y mujeres armados con palos y segures, hoces y
cuchillos. (…)
Cuchillos de hierro y de piedra fueron cercenando las gargantas y
enrojeciendo las arremolinadas aguas del torrente hasta que fue imposible ver
los cantos rodados del fondo. (MATTOS, 2002, pág. 275)
Nakdimón não concorda com as atitudes de Elias e Moisés e nos coloca a
pergunta: como estas passagens bíblicas devem ser interpretadas, como palavra de
19
Deus, e reconhecer que Moisés e Elias fizeram só o que Deus desejava que fizessem?
Ou se pode admitir que houve exagero em suas atitudes e deram vazão ao seu ódio e
desejo de vingança, fato que não estava nos planos de Deus. Porém, foi relatado pelos
escritores sagrados para dar legitimidade aos feitos de Moisés e Elias e não para ser
palavra de Deus, como se tornou mais tarde? Levantando, assim, o problema sobre a
verdade bíblica. Tudo o que está escrito na Bíblia é palavra de Deus ou há partes que
podemos filtrar como por exemplo: a cultura e possíveis interferências dos “escritores
sagrados”? A resposta vem pela boca de Jesus. Primeiro, para dar legitimidade a sua
interpretação sobre o relato do livro da Gênese do pecado de Adão e Eva. Jesus Indica
que os Textos Sagrados mesmo sendo palavra de Deus foram escritos por homens e
são homens quem os lêem. E como na história humana ocorrem constantes mudanças
culturais, é obvio que quem os lêem, não o fazem com os mesmos olhos de quem as
escreveram. E segundo, não há garantia nenhuma que os compiladores, tanto escribas
da tradição judaica, como os monges na tradição cristã não tenham acrescentado algo
ao texto original. Resposta que Jesus formula da seguinte forma:
– Las Escrituras son, por supuesto, palabra de Dios. Pero no son tablas de
piedra en las que Él o sus mensajeros hayan grabado las letras. Humanos han
sido los pulsos y humanos son los ojos que las leen. Y la luz que en nuestra
vida las ilumina únicamente se genera a través de lámparas heredadas, que no
siempre resisten a nuestro tiempo. (MATTOS, 2002, pág. 92)
– ¡No alcanzo a imaginarme como Ananías tan sutil en la exégesis, ha caído
en un interpretación tan apresurada! ¿No ha sospechado que un escriba ha
metido su beligerante mano en el texto sagrado y ha agregado esa parte, acaso
desconsolado porque su Dios es una brisa inofensiva y no un cataclismo
destructor? (MATTOS, 2002, pág. 281).
Nos dois trechos citados antes podemos destacar que o narrador de La puerta
de la misericordia aproveita para chamar atenção sobre Jesus e insinua que tanto
Moisés e Elias são prefigurações do Messias. Sendo assim, Jesus tem autoridade para
corrigir e interpretar as Escrituras. Nakdimón não revela claramente que Jesus seja o
Messias e deixa ao leitor a possibilidade de formar sua propria opinião. Além de
indicar que Jesus representa uma figura de Messias que difere muito do esperado pela
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tradição judaica, que deveria ser o Rei e libertador de Israel de toda opressão
estrangeira, reinado do qual Jesus não está interessado.
C – A questão da morte.
O grande conflito do narrador e que é o grande conflito da humanidade acaba
sendo, como entender a morte, o que vem a ser a morte? O fim de tudo ou o início de
algo novo? Um castigo pelos pecados cometidos? Ou um evento natural? O narrador
da obra La puerta de la misericordia desenvolve esta idéia quando nos narra a história
vivida por seu pai Jefonias, que perdeu a esposa e filhos na peste de Jerusalém.
Compara isto com o relato bíblico do livro de Jó, que depois de perder tudo, foi
recompensado com mais riquezas e uma nova família, parecendo que tudo ficou
perfeito. Porém, o pai de Nakdimón lembra que sua esposa e filhos que morreram
continuam mortos:
No sé si maldecir o bendecir el libro de Job – le confesó un día, en el lecho,
Jefonías a mi madre –. Tanto lo medité y expliqué, que un día atraje sobre mí
la misma prueba; pero, si ya no la hubiera vivido en fantasía, me habría
desesperado.
– No recuperaste la hacienda, porque no la tenía – le susurró su mujer,
abrazándolo –, pero se te devolvió tu familia.
– No es la misma. A ustedes los quiero igual y no menos, pero ellos siguen
muertos. (MATTOS, 2002, pág. 32).
Tudo indica que Deus tem o poder de perdoar os pecados, mas devolver a vida
a quem ele já a tirou, não é possível. E o sacrifício de Cristo na cruz servirá para que?
No decorrer da narrativa a ressurreição de Lázaro se torna um dos maiores
testemunhos do poder de Jesus sobre a morte. É um elemento que divide a obra em
dois momentos, até esse ponto o narrador não tem uma idéia clara sobre Jesus. Desse
ponto em diante começa a admitir que Cristo tem todas as características para ser o
Messias. Lázaro com sua ressurreição divide também as opiniões dos doutores da lei.
É um acontecimento que pesa muito a favor de Jesus, mas que por outro lado será
ofuscado por sua morte na cruz. A situação se resolve com o anúncio da ressurreição
de Jesus, posto que, se Cristo ressuscitou, a ressurreição é o destino de todos. Mas o
fato é que o narrador não é testemunha da ressurreição de Cristo.
21
No final da primeira parte da obra Jesus não tem resposta precisa sobre a
questão da morte. Contudo, ele indica que o destino de todos é o paraíso, que no
fundo é a culminação do desejo humano mais íntimo de alcançar uma felicidade
plena. Porém, Jesus revela que seu acesso ainda não está permitido e neste momento
ele não sabe exatamente como liberá-lo. Por isso dá a Nakdimón uma resposta um
tanto confusa, é preciso nascer de novo, nascer do espírito, quem nasce do espírito é
espírito quem nasce da carne é carne. “En verdad, en verdad te digo: el que no nazca
de nuevo y desde lo alto, no puede percibir el Reino de Dios y, por lo tanto, vivir en
él”. (MATTOS, 2002, pág. 301). O que não joga muita luz no problema apresentado
pelo narrador. Na verdade se trata de um convite a Nakdimón para estar atento aos
acontecimentos par perceber neles a atuação divina.
Nakdimón termina sua conversa com Jesus a respeito do pecado, da verdade
bíblica e da morte, oferecendo algumas respostas um tanto incompletas da parte de
Jesus. Porém, é justamente a isso que quero chamar a atenção, pois na verdade o
narrador na segunda e terceira parte não recupera mais esta problemática e nem busca
uma nova solução. Ele se dedica a apresentar Jesus como uma perspectiva de resposta,
a todos estes problemas. Cristo, sendo o Messias, tem autoridade para interpretar as
escrituras, autoridade para perdoar os pecados e poder sobre a morte. Nakdimón narra
a última semana de vida de Jesus, alguns milagres, os discursos importantes e sua
paixão e ressurreição.
A segunda parte da obra é o momento auge do testemunho do narrador a
respeito de Jesus, mas Nakdimón aparentemente ainda não tem uma opinião formada
sobre a verdadeira identidade de Jesus. Este fato seduz o leitor que quer saber como o
narrador, vai resolver suas dúvidas em relação ao Messias.
VII – Vida de Jesus.
A vida de Jesus é importante porque, por um lado, coloca em claro todo o
conflito em que vive Nakdimón, e por outro, ilumina suas dúvidas dando uma
perspectiva de resposta. Sua morte levanta novamente todo o problema, já que
22
pareceria um castigo por algum pecado que teria cometido, de alguém que perdeu a
proteção divina. Dúvidas que se solucionam com a sua ressurreição, mas esta não é
testemunhada pelo narrador.
O autor, por meio das experiências de Nakdimón, apresenta um Jesus bem
humano, que como todo homem tem um crescimento tanto espiritual, como
intelectual. Jesus não tem plena consciência de si mesmo desde o início. Foi se
conhecendo pouco a pouco conforme o pai foi revelando a ele. O caminho percorrido
por Cristo tem certas características comuns com o caminho que está percorrendo
narrador, onde há um lento processo de tomada de consciência, no caso de Cristo
guiado por Deus e no caso de Nakdimón guiado pela mensagem de Cristo. Até que
chega o momento em que Jesus fica plenamente consciente de quem é e de sua
missão. Não é possível entender a Jesus sem entender e aceitar sua missão. Nakdimón
percorre este caminho por meio de um profundo juízo das ações de Jesus à luz do
Antigo Testamento.
Nakdimón relaciona este processo de crescimento espiritual em Jesus com o
que teria acontecido com o profeta Elias. Este teria feito a profecia da seca que se
abateria sobre Israel, não porque Deus o ordenou. Foi algo meio ao acaso, ele viu uma
necessidade de purificação do povo, fez a profecia e Deus por seu lado sustentou a
palavra do profeta. Este fato, juntamente com outros com as mesmas características,
dão a Elias a certeza de ter sido escolhido para ser profeta e lhe dá forças para vencer
os desafios. Processo semelhante vai acontecer com Jesus, em sua relação com o Pai:
Mi padre decía que ese comienzo atípico de la trayectoria profética de Elías
admite dos interpretaciones: gozo de un llamado pero se abstuvo de gloriarse
de contándoselo a alguien, por lo que el pobre escriba no contó con los
antecedentes necesarios; o, lisa y llanamente, obró por propia iniciativa,
dando por descontado que si el Altísimo lo desaprobaba, le impediría actuar.
(MATTOS, 2002, pág. 235).
Há também um grande esforço por parte do autor na construção de sua obra
para mostrar que a figura do Jesus histórico é a mesma do Jesus contida nos
Evangelhos: “El Jesús-personaje de esta novela está construido siguiendo muy de
23
cerca a los evangelios -fuente de todas sus iglesias- y teniendo en cuenta exégesis y
análisis teológicos tanto católicos como protestantes”. (Periódico elmundo.es;
entrevista a Tomás de Mattos, 21-01-2004)
Na segunda parte da obra, Nakdimón é colocado às vésperas da paixão de
Jesus, buscando compreender este momento. Percebe que sua doutrina centrada no
amor de Deus pelos homens pode reaproximá-los da misericórdia de divina. E agora
só falta reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, que se não é o Messias, pelo
menos deve ser reconhecido como profeta para que sua doutrina tenha validade.
Quero chamar atenção sobre dois aspectos: um, a indecisão do narrador que
não acaba de decidir-se a respeito de Cristo. Estando continuamente buscando uma
prova definitiva a respeito de sua verdadeira identidade. E o outro aspecto, ao que
quero desenvolver neste momento, se trata de uma característica importante na obra
La puerta de la misericordia. Consiste no fato de que o narrador apresenta sempre um
ponto positivo a favor de Jesus e logo em seguida apresenta algum aspecto negativo.
Deixando liberdade ao leitor para acreditar ou não. Conduzindo-o a conhecer a vida
de Jesus narrada nos Evangelhos, mas sem forçá-lo a aderir a Cristo. A forma como o
seu narrador apresenta os fatos da vida de Jesus é sumamente importante para manter
o diálogo aberto e assegurar a liberdade ao leitor. Esse aspecto se torna evidente na
segunda parte da obra onde os doutores da lei perguntam a Jesus: “¿Con que autoridad
nos dices estas cosas, tratándonos como si fuéramos tus discípulos?” (MATTOS,
2002, pág. 540). De onde vinha a sua autoridade para pregar esta nova mensagem?
Jesus da uma resposta evasiva, colocando os doutores da lei numa situação difícil:
“Háblenme del bautismo de Juan. Este asunto..., ¿venía de Dios o era ocurrencia de
um hombre? Como ninguém responde a Jesus, ele também não responde. Neste
momento nem Nakdimón e nem Gamaliel entendem porque Jesus sendo o Messias,
desperdiça oportunidades como essas para prová-lo
Jesus tem todas as características para ser o Messias, realiza milagres
evidentes, que demonstra ter o total apoio divino. Ele tem uma nova doutrina
renovadora, voltada a uma relação de intimidade com Deus, tratando-o de Pai. Mas no
momento em que é questionado sobre sua verdadeira identidade, ele responde com o
silêncio. O narrador nos indica que Judas também não é capaz de entender ou aceitar
24
o misterioso plano de Deus. Por que Jesus deve ser um Messias que se revela só a
alguns e não a todos? Não faz sentido ocultar essa grande notícia, pensava da mesma
forma que Nakdimón e Gamaliel. Por isso entrega Jesus para forçá-lo a se revelar-se
como Messias ante as autoridades de Israel:
– ¡Pero, Señor! ¿Cuántos ciegos no ven, cuántos paralíticos están postrados,
cuántos leprosos apestan y viven confinados, cuántos sordos no escuchan,
cuántos pobres no comen, cuántas prostitutas son humilladas diez veces por
noche, cuántos huesos se amontonan en los sepulcros? ¿Cuándo tu reino va a
dejar de ser un grano de mostaza? (MATTOS, 2002, pág. 478)
E no momento em que Nakdimón está quase reconhecendo Jesus, como o
Messias e filho de Deus, acontecem sua prisão e condenação a morte. A sentença de
morte reacende novamente todo conflito e gera uma expectativa: de que Deus Pai
salve milagrosamente Jesus da cruz e assim demonstre portentosamente a
autenticidade do seu anúncio. O narrador indica que José de Arimatéia tem essa
atitude, mas de certa forma ele cultiva a mesma esperança expressa nos seguintes
termos:
José se defendía de la angustia, escudándose en una excitación casi eufórica.
Sostenía que estábamos por presenciar un acontecimiento histórico que
generaciones de generaciones de judíos habían aguardado con entrañable
expectativa. Hasta nombre le había dado: “El Día de la Misericordia”.
Suponía en suma, que la tribulación de Jesús tendría un desenlace glorioso y
no moriría e la cruz. (MATTOS, 2002, pág. 682)
Contudo, não acontece e ante a morte de Jesus, Nakdimón não sabe o que
pensar. E temos somente a declaração contundente por parte de Gamaliel, de que
Jesus é mais um louco que apareceu. Não consegue conceber um Messias abandonado
por Deus a uma morte reservada aos pecadores, como deixa claro no exemplo:
– Este pobre desdichado – agregó, señalando con la cabeza el cadáver de
Jesús – me deshizo realmente el corazón. Me conmovió verlo morir en el
desesperado intento de desasirse de la cruz. Pero el Altísimo no le acudió en
su ayuda. Lo dejó en una calidad que acaso, a nuestro humano parecer, no
25
merecía, pero que las Escrituras le adjudican sin dejar margen de dudas: cerró
su vida como un maldito porque murió en la cruz. (MATTOS, 2002, pág.
715)
Gamaliel atua na obra como uma figura que serve de contraponto a Nakdimón,
pois, como este, quase chega a acreditar em Cristo. Sua idéia de Messias era a
tradicional de todo judeu, que o Messias viria para iniciar seu reinado e libertar todo
povo da opressão estrangeira. Para ele o Messias deveria ser alguém que tenha sido
abençoado por Deus para cumprir essa missão. Reconhece que Jesus tem todas as
características espirituais para ser o Messias, apesar de não entender plenamente
algum aspecto de sua doutrina. Seus milagres demonstram que ele tem um grande
apoio divino. Gamaliel acompanha Nakdimón durante a crucifixão, que entende este
ato como uma última esperança de que Deus livrasse Jesus da Cruz.
Acredito que essas atitudes do narrador consigam manter um equilíbrio entre o
objetivo da obra e a abertura de diálogo com o leitor. E ao mesmo tempo desviando a
atenção do leitor que quer saber como termina as peripécias deste narrador que
conviveu com Jesus. Contudo, ainda falta narrar alguns fatos sobre a vida de Jesus,
que será feito na última parte da obra La puerta de la misericordia, onde o narrador
retorna para outro jantar em Betania. Agora será recebido por Maria, a mãe de Jesus.
O narrador acrescentará fatos como, a transfiguração e o nascimento de Jesus,
colocando-o definitivamente como filho de Deus. Mas como é característico na obra,
Nakdimón apresenta também uma segunda versão para o misterioso nascimento de
Jesus.
VIII – Maria, a mãe de Jesus.
Maria é apresentada pelo narrador como uma mulher forte, que está totalmente
convencida que foi escolhida por Deus para ser mãe do Messias. Não é consciente de
tudo o que isso implica, mas acompanha seu filho apoiando-o em todas as partes. E é
a ela que o autor dedica toda a última parte de sua obra. Nakdimón a procura para tirar
suas últimas dúvidas. E é em torno a ela que alguns dos discípulos se reúnem na noite
da morte de Cristo. Acredita vivamente em Jesus e em sua missão, e junto com ele vai
tomando consciência de sua verdadeira identidade, que Jesus é filho de Deus. Maria
tem um conhecimento muito profundo das escrituras, e os apóstolos inclusive Pedro,
26
não tem nenhum receio em dirigir-se a ela para pedir sua opinião sobre seus
interrogantes:
Miró a Maria y le preguntó:
– ¿No te parece, señora, que la fe también se pierde cuando uno se
enorgullece falsamente de lo que hace, creyendo que es mérito
exclusivamente personal, cuando es, sobre todo, Dios quien actúa? Por ese
lado me convence de que los primeros pasen a ser últimos y los últimos, por
la propia defección de los primeros, terminen ocupando su lugar.
María no dijo palabra, se sonrió, asintió con la cabeza y siguió bordando, con
hilos de lana cruda, la túnica roja, sin costuras, que le había traído a Jesús
desde Nazaret. (MATTOS, 2002, pág, 465)
Por boca de Gamaliel, o narrador levanta a hipótese de que Maria tenha sido
estuprada por um centurião romano: daí sua gravidez repentina. E a acusa de inventar
toda história da anunciação do anjo e incentivar a loucura do seu filho. É interessante
na obra de Tomás de Mattos como ele coloca sempre um ponto positivo a favor de
Jesus e logo depois um ponto negativo. Deixando certa liberdade ao leitor, se este
quiser acreditar, terá motivos para isso, mas se quiser duvidar terá motivos também. O
leitor terá que fazer uma opção por uma ou por outra, mas nenhuma delas lhe dará
uma certeza absoluta. Gamaliel ouviu esta versão da história da boca de Tarfón, que
era o Rabino em Nazaré, quando esses fatos aconteceram:
Semanas antes que el pueblo se enterara de que María estaba embarazada, tres
muchachas bajaron juntas a recoger agua de un manantial que brotaba en la
frondosa que brotaba en la profundidad del valle y volvieron corriendo
espantadas y sin sus cántaros, a los que fueron abandonando a lo largo de la
cuesta. Contaron en sus casas, y luego la noticia se repartió, que cuando ya
estaban muy cerca de la fuente, oyeron los gritos de una muchacha y se
aproximaron para auxiliarla; pero cuando la vieron tumbada en un pequeño
claro del bosque, sobre la improvisada alfombra de hojas caídas de los pinos,
con cinco soldados romanos que la aferraban, la mantenían en el suelo y
levantaban sus vestiduras, se aterrorizaron porque comprendieron que si se
acercaban compartirían su suerte. (MATTOS, 2002, pág, 810)
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No vieron el rostro de la desgraciada, cubierto por el soldado que la mantenía
en el piso. (…) También vieron la cara jadeante y con la mirada extraviada de
Pandera, el centurión romano, quien por estar en el clímax del placer no
alcanzó a divisarlas, siendo el único que, por su posición, podía hacerlo.
(MATTOS, 2002, pág, 811)
Nakdimón fica conhecendo a “verdadeira” história pelos lábios de Maria e
acredita nela, mas julga que se Gamaliel escutasse a historia da anunciação do anjo a
julgaria mais louca ainda. Temos que recordar que o pai de Nakdimón lhe havia
contado também os acontecimentos sobrenaturais com relação ao nascimento de João
Batista. Por isso, sua maior facilidade em acreditar na história de Maria. E depois essa
história vinha só confirmar sua idéia da divindade de Jesus. Contudo, fica ainda a
dúvida de que se Jesus era filho de Deus como poderia estar morto e enterrado? Ao
amanhecer vem a resposta, um boato da suposta ressurreição de Jesus.
IX – Conclusão.
Podemos conluir que a obra La puerta de la misercordia realmente está
construída para “seduzir” o leitor, isto é, desviar sua atenção do objetivo principal do
romance, que é conduzir esse leitor a um conhecimento da vida de Jesus narrada nos
Evangelhos.
O autor realiza a sedução do leitor (entendida não como a conversão do leitor,
mas sim, como a consecução do objetivo do autor) mediante o uso de alguns recursos
literários, como por exemplo; a falsa atitude de constante indecisão do narrador, que
dissimula sua posição de discípulo de Cristo. Afirmo isso, pois não é possível
identificar, no texto, o momento em que ocorre a conversão do narrador. Ficando
evidente no final do romance que tal decisão ele já havia tomado antes de começar
narrar sua história. Com isso tudo o que é relatado por Nakdimón assume não a
perspectiva de busca de resposta, como aparenta no texto, mas sim, de dar testemunho
da sua nova fé. A isso se junta a problemática levantada na primeira parte a qual não
se pretende resolver, mas que certamente chama a atenção do leitor. E também o
modo como o narrador apresenta a vida de Jesus sempre colocando uma segunda
alternativa para a interpretação dos fatos, mantendo assim a atenção do leitor.
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Logicamente não é possível saber qual vai ser a reação do leitor, na sua leitura
da obra. Acredito que isso não seja relevante, o importante é que o autor pretende
abrir um diálogo com o leitor que mesmo concordando ou discordando do narrador,
conheça a vida de Jesus, apresentada a partir dos relatos do Evangelhos. E este
objetivo evidentemente a obra alcançou.
Finalmente, podemos ressaltar como, Tomás de Mattos conseguiu organizar a
narrativa para seduzir o leitor, tanto o “crente” como o “não crente”, através de uma
atitude pendular de Nakdimón, oscilando sempre entre o testemunho a favor de Jesus
e a dificuldade em aceitar que ele era o Messias, e mais, o Filho de Deus.
29
X – Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail, Estética da Criação verbal, 4 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
BAUDRILLARD, Jean, Da sedução, 2 ed. Campinas: Papirus, 1992.
BIBLIA, Mensagem de Deus, São Paulo: Edições Loyola, 1989.
CANDIDO, Antonio, Literatura e Sociedade, estudos de teoria e história literárias, 7
ed. São Paulo: Editora Nacional, 1985.
ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, São Paulo: Companhia das
letras, 1994.
MATOS, Tomas de, La puerta de la Misericordia, Montevideo: Alfaguara, 2002.
MORAES LEITE, Ligia Chiappini, O foco narrativo, (ou a polêmica em torno da
ilusão, 10 ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.
PERIÓDICO, elmundo.es, na internet, encuentros digitales, entrevista a Tomás de
Mattos, publicada 21de janeiro de 2004, pagina acessada, http://www.elmundo.es
/encuentros/invitados/2004/01/944, dia e hora de acesso, 12-06-06, 22:30h
30
Anexo I.
Nasceu em Montevidéu no Uruguai em 1947, mas viveu quase toda sua vida
em Tacuarembo. Transferido-se temporariamente para Montevidéu para realizar o
curso universitário de direito e tendo concluído o mesmo volta a Tacuarembo, onde
vive até nossos dias. Seu percurso como escritor começou ainda na universidade onde
o professor e autor Washington Benavides ajudou-o a publicar em distintos jornais e
revistas literárias seus primeiros contos. Publicou dois livros de contos; Libros y peros
(1975), e Trampas de barro (1983) pelo qual obteve o prêmio Hermes concedido pela
revista semanal, Correo de los viernes, e três romances: Bernabé, Bernabé!, (1988)
com o qual recebeu os prêmios: Bartolomé Hidalgo, conferido pela Câmara Uruguaia
do Livro ao melhor romance publicado em 1987-1988; da Intendência Municipal de
Montevidéu ao melhor romance editado em 1988; e do Ministério da Educação e
Cultura, compartilhado com a obra de Sergio Otemin para o melhor texto narrativa
publicado em 1988. Publica em 1996 La fragata de las mascaras, pela qual recebeu o
prêmio do Ministério da Educação e Cultura a melhor obra narrativa publicada em
1996, que foi também seu primeiro livro publicado na Espanha, (Alfaguara, 1998). A
sua última obra editada foi, A sombra del Paraíso, (1998) com o qual ganhou o
segundo prêmio do Ministério da Educação e Cultura. Atualmente é diretor da
Biblioteca Nacional de Montevidéu e membro da Academia Nacional de Letras do
Uruguai.
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