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Qual conhecimento é relevante para o cidadão comum?
Rodrigo Cunha
No dia 14/09, a Folha de S. Paulo publicou na editoria de Ciência uma matéria intitulada
“Estudo do analfabetismo científico nos EUA tem resultado preocupante”. Na versão on-line,
convidava seus leitores a fazer o teste.
A matéria começa dizendo que “menos da metade dos americanos entende minimamente
como funciona um laser”. Por que entender minimamente como funciona um laser é
relevante? E por que não entender é preocupante? Os pesquisadores responsáveis pelo
estudo não respondem isso e a Folha sequer faz esse questionamento.
O texto da Folha diz que “uma pessoa razoavelmente instruída deveria ter um desempenho
bastante bom” no teste. Há implícita, nessa afirmação, uma das possíveis definições de
alfabetização científica (scientific literacy, que alguns autores preferem traduzir como
letramento científico): uma pessoa cientificamente alfabetizada ou cientificamente letrada
seria alguém com “instrução”, “erudição”.
Há outras definições possíveis para o mesmo termo, que dizem, por exemplo, não se esperar
que uma pessoa cientificamente letrada saiba que a expressão do DNA é mediada por uma
molécula de RNA transmissor, mas que ela saiba se posicionar diante de uma decisão política
envolvendo a construção de uma usina, por exemplo, sabendo os prós e os contra de uma
usina hidrelétrica, a carvão ou nuclear.
Ao apontar a média de acertos de homens e mulheres dos EUA no teste, que para ambos é
acima de 50%, o texto da Folha não diz por que o cidadão comum deveria ter um desempenho
melhor do que esse.
A Folha diz que "os dados ganharam repercussão porque a perda comparativa de
competitividade dos EUA em ciência tem causado preocupação no país. Essa preocupação já
vem desde a emergência dos países asiáticos na economia global e é um dos argumentos de
quem defende a importância do scientific literacy nos EUA, com foco no desempenho
econômico do país. Há outros argumentos possíveis, que poderiam entrar em conflito com
interesses econômicos, como aumentar o conhecimento do cidadão comum sobre a relação da
queima de combustíveis fósseis e o aquecimento global, contrariando a indústria do petróleo.
A Folha diz que para um dos autores do estudo, a exploração espacial, as mudanças climáticas
e as plantas geneticamente modificadas são temas contemporâneos que “dependem do
conhecimento científico para serem debatidos pelo público que vota e paga impostos”. Que
tipo de conhecimento é necessário para se discutir politicamente esses temas? Os três
assuntos são relativamente frequentes na mídia. O jornalismo não pode dar conta do nível de
informação necessário para o público que vota e paga impostos se posicionar em relação a
essas questões?
A Folha também diz que "limites éticos de pesquisas com células-tronco ou uso abusivo de
antibióticos seriam exemplos de temas cuja compreensão fica limitada se a pessoa não
entende nada de ciência". Será que não é possível tratar dessas questões junto ao público sem
que seja preciso um conhecimento científico aprofundado? O jornalismo já produziu inúmeras
matérias sobre superbactérias resistentes que surgem pelo uso abusivo de antibióticos e,
inclusive, sobre os riscos da automedicação. É preciso mais do que isso?
O final do texto da Folha mostra claramente a visão com foco econômico que vincula
escolaridade/alfabetização científica com desempenho de um país, ao falar em "limitações ao
desenvolvimento tecnológico: países com ensino científico ruim inovam pouco e têm
produtividade baixa". Há outras visões possíveis sobre ensino, como a preparação para o
exercício da cidadania.
Para quem quiser fazer o teste (é só ir até a matéria da Folha na internet), ficam aqui alguns
questionamentos sobre as 13 questões do teste.
1- Qual o objetivo de uma questão do tipo “toda a radioatividade tem origem humana”? O que
se quer com essa pergunta?
2- Apesar de ser, de fato, um assunto tratado na escola, qual a relevância do cidadão comum
saber se os elétrons são menores do que os átomos?
3- Muda alguma coisa na vida de alguém saber se é verdadeiro ou falso os lasers funcionarem
organizando ondas sonoras?
4- A deriva continental também é um tema abordado na escola, mas tem alguma importância
o cidadão comum saber ou não saber disso?
5- A questão sobre o protetor solar não é de todo ruim, mas independentemente de o cidadão
comum saber ou não distinguir entre raios ultravioleta ou raios infravermelhos, o importante
não seria saber que a exposição exagerada ao sol pode ser nociva e que ele pode tomar certos
cuidados?
6- Por que o cidadão comum precisaria saber que a nanotecnologia lida com objetos muito
pequenos? Quem importância tem esse conhecimento?
7- Qual a relevância de o cidadão comum saber qual é o gás mais comum na atmosfera da
Terra?
8- O cidadão comum precisa saber a função dos glóbulos vermelhos do sangue?
9- A pergunta sobre abuso de antibióticos é bem intencionada, mas as possibilidades de
resposta não podem confundir quem faz o teste?
10- O cidadão comum sabe ferver uma água para coar café, sabe misturar o açúcar ao café (ou,
no caso dos mineiros, na própria água que vai coar o café) e sabe o que é um prego
enferrujado. Precisa saber qual dessas coisas é uma reação química?
11- Essa questão sobre como o cientista deve testar um remédio tem a ver com a visão que
certas pessoas do meio científico têm sobre o cidadão comum ser cientificamente alfabetizado
(ou letrado): ele deveria conhecer o modo de produção do conhecimento científico, deveria
saber como a ciência funciona. Será que o cidadão comum precisa mesmo saber o que é um
"grupo de controle"? Precisa saber como se testa um medicamento? Quando não há ética no
teste de um medicamento, um filme como "Paciente inglês" pode levar esse tipo de discussão
para o grande público. O que o cidadão comum precisa saber não seria que existem várias
etapas para o teste de um novo medicamento até que ele esteja disponível para o consumo?
12- Essa pergunta talvez tenha a mesma boa intenção da pergunta 9, mas será que essa é a
melhor maneira de perguntar se o cidadão comum sabe dizer que um determinado gás é
causador do efeito estufa e do aumento do aquecimento global? As opções de resposta
também não podem causar confusão?
13- Por que um cidadão comum deveria saber o que é "fraturamento hidráulico"? Esse
conhecimento serve para alguma coisa no dia a dia das pessoas?
Isso é apenas um convite à reflexão.
Rodrigo Cunha ([email protected]) é linguista, foi editor da revista ComCiência e é
professor da Especialização em Jornalismo Científico e do Mestrado em Divulgação Científica e
Cultural, ambos da Unicamp.
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