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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 150, 5-26
A relação entre força e sentido na
prática de Ludwig Binswanger:
uma discussão do texto
“Sobre a psicoterapia”*
Érico Bruno Viana Campos
O
artigo discute os referenciais teóricos e metodológicos da aborda gem de
Ludwig Binswanger a partir do texto “Sobre a psicoterapia”, recentemente
publicado em português. Um recorte que prioriza a dialética entre força e
sentido é feito para estudar a relação entre os referenciais psicanalítico e
fenomenológico-existencial na constituição da análise existencial e de seu
setting. Conclui-se que: 1) Direção geral de sentido e reconstrução da história
interior de vida são os eixos norteadores da psicoterapia; 2) Constituição de
uma relação humana autêntica na qual o terapeuta se apresenta como mediador
entre o si mesmo do paciente, seu não si mesmo e suas formas de mundo é a
condição ética que configura o espaço clínico. A psicoterapia concreta é um
campo de presença e expressão no qual o novo pode surgir. Em outras palavras,
não se trata da supressão de defesas, mas da criação de formas de existir.
Palavras-chave: Análise existencial, corpo vivido, força, sentido, ética
T
his article discusses the theoretical and methodological aspects of Ludwig
Binswanger’s approach, based on his text entitled About Psychotherapy,
*
Este texto foi elaborado no âmbito do grupo de estudos na disciplina de treino em pesquisa coordenado pelo professor Luís Claudio Figueiredo no Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo. Gostaria de expressar meus agradecimentos ao professor pela orientação cuidadosa e aos colegas pelo espaço sempre criativo de diálogo.
Pulsional Revista de Psicanálise
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recently published in Portuguese. The author discusses the dialectics between
drive and meaning, with the purpose of studying the psychoanalytical and the
phenomenological-existential frames of reference in the constitution of existential
analysis and its setting. The conclusions are: (1) the general direction of meaning
and the reconstruction of inner life history are the main axes of psychotherapy;
(2) the constitution of an authentic human relationship in which the therapist is
seen as a mediator of the patient’s self and/or non-self, and his or her kinds of
world, is the ethical condition that configures the clinical space. Concrete
psychotherapy is a field of presence and expression through which the new can
arise. In other words, it is not a matter of suppressing the defenses, but of creating
new kinds of being.
Key words: Existential analysis, lived body, drive, meaning, ethics
CONTEXTUALIZAÇÃO DO RECORTE:
A DIALÉTICA ENTRE FORÇA E SENTIDO
O
presente artigo considera a abordagem psicoterapêutica de Ludwig
Binswanger no âmbito teórico e metodológico a partir do recorte da dialética entre força e sentido que se configura na
relação terapêutica. Procura-se descrever a relação entre os referenciais psicanalítico e existencial-fenomenológico na
constituição da análise existencial e de
seu setting a partir da discussão do texto “Sobre a psicoterapia”, publicado originalmente em 1935 e recentemente traduzido para o português.
O estudo do nível técnico e metodológico da psicoterapia, tal como praticada
por Binswanger, não se deve a uma escolha arbitrária ou pelo desmerecimento
da teorização – normalmente um campo
abstrato – em relação à técnica – o lugar
da prática concreta. Todo o percurso filosófico da fenomenologia existencial
opera uma passagem da metafísica para
a ontologia, ou seja, da abstração do
pensamento de sobrevôo para a concretude do ser-no-mundo. A fundamental
crítica da diferenciação entre sujeito e
objeto, através da apreciação da intencionalidade da consciência, implica uma crítica severa a qualquer projeto epistemológico abstrato e desvinculado da dimensão fundamental do homem que é a sua
existência. Portanto, a fenomenologia
existencial vem a ser uma crítica de
qualquer corte arbitrário entre teoria e
prática, corte esse que no campo das
psicoterapias é expresso pela dicotomia
teoria versus prática. Convém lembrar
que a artificialidade dessa distinção já
nos é apontada pela própria psicanálise,
na qual teoria e prática não podem ser
entendidas de forma desvinculada e estanque. Contudo, se a prática psicanalítica e o sentido de sua teorização apontam para uma compreensão da dimensão
existencial do ser humano, a sua roupagem teórica está atrelada a uma epistemologia positivista e estritamente bioló-
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
gica. É esse o ponto nodal da crítica de
Binswanger à compreensão psicanalítica
do homem: redução do espírito ao instinto; fazendo-se biologia em vez de antropologia filosófica.
Se, porém, a prática psicoterápica não
pode ser entendida desvinculada de sua
dimensão teórica, entendida aqui como
arcabouço ético, ontológico e epistemológico, ela também não se resume a ele.
Ou seja, a práxis tem uma especificidade que não é derivada da reflexão. O esforço fenomenológico-existencial é justamente o de descrição e compreensão
da facticidade do ser-no-mundo, sendo
a metapsicologia uma forma de explicação que se constrói na e pela compreensão do pathos humano. A psicoterapia,
portanto, não é uma prática derivada de
uma compreensão teórica, mas sim de
uma atitude, um posicionamento frente
ao outro humano que procura não só
compreendê-lo, mas ajudá-lo a se situar
autenticamente no mundo. A situação da
clínica envolve uma forma de abordagem da existência humana que não é
meramente compreensiva, mas também
envolve uma ação, um posicionamento.
Em outras palavras, trata-se do manejo
de uma relação entre dois seres humanos que suscita não só uma compreensão do sentido, mas um reconhecimento do mesmo em sua autenticidade pelo
sujeito possibilitando, a partir daí, uma
transformação libertária. Essa situação
particular que é a prática psicoterápica,
fornece subsídios para a compreensão
da dimensão existencial do homem en-
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quanto generalidade; enquanto investigação filosófica. Contudo, a filosofia – quer
seja metafísica, quer seja existencial –
não é uma psicologia. Ou seja, não é
uma investigação do particular. A dimensão psicológica tomada a partir da clínica muito tem a se beneficiar da reflexão
filosófica e de sua compreensão geral de
homem. Isso, porém, é condição necessária, mas não suficiente.
Compreende-se, assim, a importância do
nível técnico em uma abordagem existencial da clínica, pois é nele que se observa mais facilmente a dialética entre a
especificidade do interesse e, conseqüentemente, do olhar psicoterápico em
relação à generalidade da descrição do
ser enquanto categoria ontológica. Não
se trata apenas de passar de uma compreensão do ser em geral para o ente em
particular pois, nesse caso, bastaria contrapor a filosofia à psicologia, mas também da compreensão desse ente enquanto ser-no-mundo – o que seria interesse
da filosofia – para uma atitude que vise
a libertação do paciente, ou seja, a tomada efetiva e autêntica do seu lugar – o
que seria interesse da psicoterapia. Disto decorre que as relações entre teoria e
prática, ontologia e epistemologia, ética
e técnica, não se concatenam em uma
lógica de causa e efeito, mas sim de uma
forma dialética na qual a tensão entre as
polaridades e níveis caracterizam um
campo de atividade humana: a psicoterapia enquanto compreensão transformadora do sofrimento.
Dentre as diversas categorias presentes
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no entendimento da psicoterapia, podese dizer que o interesse compreensivo,
vinculado diretamente a uma expressão
existencial do sentido, é a grande contribuição da abordagem fenomenológicoexistencial. É contra a metafísica psicanalítica ou psiquiátrica e pelo resgate da
dimensão antropológica plena que
Binswanger vai assentar o seu projeto
psicológico no enfoque do sentido que
tematiza a existência e que se expressa
na patologia através da experiência própria da relação entre dois seres humanos. O patológico não mais é explicado
enquanto sintoma de uma vida pulsional
ou de um desarranjo fisiológico, mas
compreendido enquanto expressão de
uma forma de habitar o mundo. Essa
abordagem é extremamente enriquecedora do trabalho psicoterapêutico, porém não comporta todas as suas dimensões. Um aspecto não é propriamente
contemplado: a ação terapêutica, o colocar-se diante desse outro e, de alguma
forma, suscitar uma transformação. Em
outras palavras, a questão gira em torno
de se afirmar que a prática psicoterapêutica não se resume a uma hermenêutica
pura. Como se sabe, esse debate é extremamente caro à própria psicanálise, a
qual se vê diante do impasse de ser uma
terapêutica do sentido e uma teorização
sobre as pulsões. Mais que isso, a especificidade e a riqueza da psicanálise estão justamente nessa dialética entre uma
concepção de sentido e uma concepção
de força. É somente nesse duplo registro que ela pode contemplar a riqueza do
Pulsional Revista de Psicanálise
campo psicoterapêutico e toda a sua
complexidade reside no entendimento
dessa ambigüidade entre expressão e sinal de doença, existencial e biológico, mente e corpo. A revolta de Binswanger com
a psicanálise se deu justamente pelo fato
dela priorizar o aspecto biológico em detrimento do antropológico, uma concepção de força sobrepujando o sentido. Mas
a questão é saber se a prática psicoterapêutica pode prescindir de um referencial de força. Força esta que, em última
análise, se vincula a um registro corporal.
Binswanger recusa a teorização psicanalítica, entretanto não abandona a técnica
psicanalítica. É o método psicanalítico
que Binswanger emprega na sua prática
clínica e é através dele que chega à compreensão dos seus pacientes nos termos
de seu referencial existencial. Como já
foi colocado, a inter-relação entre o nível técnico e o teórico, na psicoterapia,
é caracterizada por uma dialética. Dessa
forma, fica difícil afirmar que a técnica
psicanalítica não sofre modificações e
não modifique uma abordagem estritamente existencial da psicopatologia. Portanto, seria simplista afirmar que há um
corte entre técnica e teoria na análise
existencial de Binswanger ou que sua
técnica psicoterápica não seja modificada em relação à psicanálise ortodoxa.
Nesse aspecto, deve-se levar em consideração justamente o aspecto de força
que está implicado na intervenção psicanalítica e que é, à primeira vista, desautorizado por um referencial existencial
que prioriza o sentido.
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
A partir desses argumentos, propõe-se a
definição de um recorte que possibilitará uma compreensão da forma de operação da análise existencial no contexto
da clínica: o das relações entre força (registro da pulsão e do desejo) e sentido
(registro da expressão de uma situação
existencial) nos momentos em que
Binswanger se atém mais detidamente à
técnica psicoterapêutica. Nesse sentido,
o artigo “Sobre a psicoterapia” mostrase de grande valia e é no esteio de seus
argumentos que se desenvolverá essa
discussão.
FUNDAMENTO ONTOLÓGICO E
EXISTENCIAL DA PSICOTERAPIA
Binswanger inicia seu texto procurando
definir a psicoterapia através da delimitação de sua especificidade enquanto atividade terapêutica e da enumeração de
suas restrições enquanto um encontro
humano. O autor coloca claramente que
a psicoterapia deve ser entendida enquanto expressão técnica que se refere a
uma certa dimensão fundamental do ser.
A dimensão em questão é a do “ser em
uma intersubjetividade, em uma relação
justa com o semelhante ou a do ser com
o mundo comunitário” (Binswanger,
2001[1935], p. 149)1 . Em outras palavras, a psicoterapia se assenta em uma
dimensão da existência humana e é dela
que retira o seu sentido enquanto prática. Enquanto conhecimento aplicado, ela
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está fundamentada em uma “esfera”
existencial: a esfera do mundo comunitário e da intersubjetividade. Em outras
palavras, a esfera do Mitwelt. A compreensão da existência, através de formas de mundo, é um eixo importante da
análise existencial e ponto original de
Binswanger em relação a Heidegger. Para
melhor entendê-las, convém retomar alguns conceitos. São eles: história interior de vida, direção geral de sentido,
os três modos de mundo, os modos existenciais e as noções de idios kosmos e
koinos kosmos.
A noção de uma história interior de vida
contrapõe-se a uma percepção da vida
enquanto função vital. Enquanto a função
vital diz respeito a um modo de conceituação que se serve das categorias biológicas de causalidade e lei, trazendo
sempre dissimulada uma noção de substância, a história interior de vida diz
respeito a uma busca de relação afetiva
entre os conteúdos das experiências vividas de uma pessoa individual. Pessoa
essa que só pode ser entendida no referencial intencional e eidético da fenomenologia husserliana e em uma noção de
historicidade que remete a Dilthey. A
experiência vivid a é d a o r d e m de
uma espiritualidade e de uma singularidade que não pode ser apreendida na
f o r m a de uma teorização empírica
(Gambini, 1993, p. 72-73). A história interior de vida é, portanto, a dimensão
1. Em nome da fluência do texto, daqui em diante, as citações desse artigo de Binswanger serão
indicadas apenas pelo número da página.
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existencial em que se desenrola a vida
do indivíduo.2
A direção de sentido – descrita em Sonho e existência na forma dos eixos da
ascensão e da queda – mostra o movimento existencial do ente em sua totalidade. Não há um simbolismo que remeta
a uma causa na forma de uma metáfora
ou sinal, mas sim uma expressão da
condição geral do ser nesse ente. Assim,
a prostração simbolizada no sonho, ou
mesmo expressa através do corpo, não
é um sinal da fraqueza sentida na consciência. Ela é queda. O ser só é entendido através de sua direção geral de sentido, que nada mais é do que uma forma
dele ser-no-mundo. Nessa concepção, o
ser não é um ser geral e despersonalizado que transcende e, ao mesmo tempo,
emana do ente. Também não é um ser
empírico ou um indivíduo psicofísico.
Ele é essência encarnada. É nesse espaço, entre a filosofia e a psicologia empírica, que Binswanger vai desenvolver os
seus conceitos, tentando dar conta da
passagem da filosofia enquanto enunciação do geral e a psicologia enquanto descrição do particular.
Não é só na enunciação de uma direção
de sentido que Binswanger transcende-
Pulsional Revista de Psicanálise
rá o domínio estritamente ontológico da
filosofia heideggeriana. De fato, toda a
sua construção dos modos de mundo é
uma acepção “ôntica” da idéia de mundo e se insere justamente na construção
desse espaço intermediário no qual opera a análise existencial. Essa passagem
do nível ontológico para o ôntico na
compreensão do Dasein é tomada por
alguns, dentre os quais o próprio Heidegger, como uma subversão da analítica existencial. De qualquer forma a idéia
de um “mundo” próprio do ente, ou melhor, de uma forma particular de inserção do sujeito enquanto ser-no-mundo, é
o grande eixo estruturante da compreensão binswangeriana de homem. A
Daseinanalyse se configura em torno da
idéia de que o homem habita o mundo de
uma forma particular e que é esse próprio colocar-se em situação que o constitui enquanto um ser-no-mundo.
Inicialmente, Binswanger distingue três
modos de mundo: o Umwelt, o Mitwelt e
o Eigenwelt. Esses três mundos, caracterizados respectivamente como mundo
circundante, mundo do ser-com e mundo próprio, dizem respeito a dimensões
significativas do Dasein (ser-aí) e devem
ser entendidas do ponto de vista de ca-
2. É interessante notar que o que está em questão é um aspecto particularizado da existência, ou
seja, trata-se não de uma compreensão da existência em geral e despersonalizada, que é o ser,
mas sim da compreensão existencial dessa expressão particularizada que é o ente. Esse é um
ponto central na diferenciação do pensamento de Binswanger em relação ao de Heidegger.
Binswanger procura tirar a sua análise existencial de um registro ontológico para um mais próximo do ôntico. Esse movimento fará Needleman descrever o campo da análise existencial como
meta-ôntico, através do que chama de a priori existencial . Cf. a introdução crítica em Binswanger, L. Being-in-the-world.
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
tegorias existenciais. Posteriormente
esse quadro de referência foi alargado
com as distinções entre modos existenciais. São eles: dual, plural, singular e
anônimo. 3 O modo existencial diz respeito à dimensão do Dasein no âmbito do
Mitwelt. Ele é o modo através do qual o
ser-aí se coloca no âmbito de sua relação com os semelhantes. É interessante
notar que a idéia de diversos modos
existenciais do ser-aí rompe definitivamente com a noção de uma continuidade identitária no sujeito. O sujeito pode
se colocar em relação de diversos modos
em diversos níveis sem, necessariamente, manter uma forma única de relação
com os outros. Assim, o ser binswangeriano pode ser multifacetado – ambíguo
–, apesar de não se desintegrar enquanto totalidade compreensiva. Esse ponto
diferencia Binswanger de grande parte
da psiquiatria e psicologia existencial antes dele, as quais tendem a entender o
ente enquanto unívoco. Em suma, há espaço para o conflito no Dasein, apesar
desse conflito ter um sentido na estruturação de mundo do sujeito.
Quanto às noções de idios kosmos e
koinos kosmos, pode-se dizer que o idios
kosmos se refere a um mundo privado
em que a existência se rebaixa ao âmbito vital, enquanto o koinos kosmos se
refere a esfera do mundo compartilhado.
Essas duas dimensões do ser homem se
fundam em uma dupla contraposição:
mundo próprio versus mundo comparti-
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lhado e esfera vital versus esfera do espírito. O que implica dizer que é através
da experiência intersubjetiva que o homem pode transcender sua vitalidade
animal. É só no registro de um mundo
comunitário que se inscreve o espírito.
Nota-se aqui a mesma ênfase na distinção entre um entendimento biológico e
antropológico do homem que é central
no projeto binswangeriano para a psicopatologia.
Concluído esse pequeno desvio pela definição dos termos essenciais do pensamento de Binswanger, pode-se agora retomar a sua apreciação da psicoterapia
enquanto expressão técnica da dimensão
intersubjetiva do ser. Como foi visto,
essa é a dimensão do ser-com, do
koinos kosmos e do Mitwelt. Dimensão
na qual a verdadeira autenticidade é possível apenas através do modo de relação
dual, ou seja, do eu-tu. Binswanger afirma que todas as formas de psicoterapia
são caracterizadas pelo encontro face a
face de dois humanos, no qual eles “relacionam-se um com o outro em uma
recíproca dependência” (p.144), explicando-se um ao outro. A psicoterapia,
enquanto encarnada no Mitwelt, é fundamentalmente uma autêntica relação intersubjetiva no mundo compartilhado.
Todavia, na expressão técnica chamada
psicoterapia, a relação fundamental é
simplificada em três pontos: 1) redução
de ambos os parceiros da relação a entidades abstratas: psique em detrimento
3. Para um aprofundamento desses conceitos, cf. Ellenberger, 1958, p. 121-122.
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ao doente e terapia em detrimento ao
médico; 2) unilateralidade da relação:
movimento exclusivo do terapeuta em
direção à psique; 3) subversão da relação
com próximo na forma de um serviço
prestado a uma causa. Portanto, a psicoterapia é uma redução do sentido do ser
na forma de um serviço médico prestado ao psiquismo de um próximo. A argumentação se desenvolve contra uma
caracterização de psicoterapia que está
embasada na clínica médica. É fundamentalmente contra a compreensão psiquiátrica do homem que se coloca o
problema de definir a psicoterapia a partir do seu solo existencial de encontro
humano na esfera do ser-com. O diálogo, portanto, não se inicia a partir do
campo próprio da psicoterapia, mas no
seu fundamento. Isso se justifica pelo
fato do projeto de Binswanger ser o de
fundamentação da psiquiatria em novas
bases. A análise existencial se constituirá, primariamente, em um novo método
de pesquisa que constituirá bases seguras para a psicopatologia. A proposta de
tratamento é secundária. Ou seja, a preocupação terapêutica não é o motor da
investigação binswangeriana, o que pode
ser facilmente notado pelo conjunto de
sua obra, que discorre muito mais sobre
os fundamentos filosóficos e éticos da
teoria e prática do que propriamente das
técnicas de intervenção. Nesse ponto em
particular, Binswanger demarca uma distinção com relação ao projeto psicanalítico de Freud ou mesmo Jung, os quais
teriam fundamentalmente uma preocupação terapêutica (Binswanger apud Perei-
Pulsional Revista de Psicanálise
ra, 2001, p. 138). Isso, contudo, não implica dizer que a psicanálise não tem um
lugar na proposta da análise existencial.
Afinal, é dessa forma de atuação que
Binswanger parte, apesar de sua indagação fundamental provir de um outro lugar que não o da prática psicoterápica,
mas sim o do estatuto ontológico e epistemológico da própria psiquiatria.
Até aqui a psicoterapia foi definida em
sua negatividade, isto é, enquanto redução de uma relação plena que é compreendida apenas nos termos de uma fenomenologia existencial. Ao passar para uma
definição positiva da psicoterapia, ou
seja, ao tentar explicitar o que faz a psicoterapia, Binswanger tem que necessariamente transcender o sentido dessa relação e compreendê-la enquanto dinâmica. Ele dirá claramente que a questão da
ação em psicoterapia está diretamente ligada a uma noção de força. Mais ainda,
a compreensão do efeito psicoterápico
deve partir da constatação que tanto a
psicoterapia médica como a medicina
somática não criam forças, podendo apenas “isolar, concentrar e dirigir as ‘forças’ que reinam no Cosmos do ser como
próximo, do ser humano com e para o
próximo” (p. 145). A atuação terapêutica – em qualquer nível – lida sempre
com dois conjuntos de “forças elementares” primordiais que se referem a duas
esferas do ser: 1) cosmos orgânico e
inorgânico; 2) cosmos do ser com e
para o próximo. Isso implica dizer que a
noção de força não pode ser ignorada na
compreensão da existência e que é o
manejo dessas forças que caracteriza a
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
ação terapêutica, forças que não são criadas pela prática terapêutica, mas são inerentes e constitutivas do ser. Elas se
constelam em dois níveis, sendo um o
da função vital e o outro do mundo compartilhado. Assim, a força não é uma
noção restrita à corporeidade, enquanto
aspecto biológico da existência, mas
também uma dimensão da vida de relação. Com isso se nega qualquer atribuição primária de força ao organismo biológico da qual o movimento existencial
seria mero epifenômeno. Não se trata
aqui de um esquematismo fisiológico
simples ou de um aparelho psíquico elaborado no qual o conceito limítrofe de
pulsão permite a ligação entre o fisiológico e o psíquico, mas sim de uma compreensão expressiva das dimensões existenciais de mundo do indivíduo.
Depreende-se, do acima colocado, que
qualquer referência à força – fisiológica,
instintiva ou volitiva – só pode ser compreendida em termos existenciais, uma
vez que a noção de força não existe independentemente da condição de ser-aí
do ente. Assim, a possibilidade de ação
da psicoterapia está fundada no fato de
que ela representa uma particularidade
dos modos de ação que os homens exercem em sua relação intersubjetiva. Dessa forma, as intervenções sugestivas,
pedagógicas e comunicativas em psicoterapia remetem, impreterivelmente, a
esse campo existencial primordial. O
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fato de Binswanger demonstrar predileção pelas formas comunicativas do “indivíduo no papel de próximo” 4 deve-se
ao esforço de não reduzir o existencial
primordial da psicoterapia. Trata-se da
forma mais autêntica de ação, confundindo-se com a própria configuração
existencial do ser humano como “ser-nomundo e ser-com-e-para-com-o-outro”
(p. 145-146). Em outras palavras, o que
Binswanger faz no início de seu artigo é
designar o fundamento ontológico e
existencial da psicoterapia no homem
como ser-no-mundo.5 Com isso revela
não só o caráter redutivo da psicoterapia
médica, mas mostra como a intervenção
comunicativa é a forma mais autêntica
de psicoterapia, pois remete diretamente ao solo existencial sobre o qual ela se
assenta e através do qual é possível. A
abordagem comunicativa em psicoterapia, por sua vez, não elimina a noção de
força, pois é fundamental para qualquer
ação terapêutica. A noção de força, tal
como entendida pela psicoterapia médica e mesmo pela medicina exclusivamente somática, é, contudo, ressignificada no contexto existencial do ser no
mundo. Assim, é por meio de referenciais completamente diferentes que a
noção de força pode ser entendida como
constitutiva das relações interpessoais e
intrapsíquicas. Há dinâmica na existência
em seus mais diversos níveis. Essa dinâmica, contudo, deve ser entendida nos
4. Definição apoiada, segundo o próprio Binswanger, em Jaspers e Martin Buber.
5. Cf. Fédida apud Pereira, 1990, p. 137.
Pulsional Revista de Psicanálise
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termos de direção de sentido e não de
causalidade. Há força no sentido e há
sentido na força. Em suma, a relação
entre dois homens é transformadora porque a possibilidade de elaboração de sentido se dá por intermédio de uma dinâmica. Tem-se, então, que nessa concepção
a noção de sentido não impossibilita o
conflito e a ambigüidade. A existência
comporta a tensão entre pólos e é nesse interjogo que ela se desenrola enquanto história interior de vida.
VICISSITUDES DA TÉCNICA
Tendo Binswanger postulado o solo
inaugural de onde a psicoterapia se torna possível, resta saber como a psicoterapia de fato age e transforma. Ao colocar que o saber-médico se sobrepõe ao
ser-com e ao afirmar que o elemento
novo que é trazido só pode advir “do serviço médico relativo ao dever médico
‘prático’, ou seja, a partir do saber médico-psicológico e da ação segundo o
saber” (p. 146), ele está claramente admitindo que a ação terapêutica é propulsionada por um saber distinto da descrição existencial. Este saber prático nada
mais é do que a psicanálise freudiana.
Assim, deve-se admitir que Binswanger
está seguindo a técnica da atenção flutuante e da associação livre, assim como
se valendo do método psicanalítico de
interpretação. Além disso, é nessa forma
de atividade prática que ele pode retomar
o ser-com e compreender o sentido existencial da patologia da paciente. Portanto, o setting psicanalítico e o seu saber
prático se sobrepõem à estrutura existencial primordial do ser-homem como
ser-no-mundo e ser-com-o-outro. O elemento novo, que possibilita a transformação do mundo do paciente, se deve
ao primeiro fator dessa dupla. Fator este
oriundo de um outro saber, um saber
que para Binswanger é, fundamentalmente, médico – entendido como clínico. A relação entre essas esferas é, segundo Binswanger, uma relação dialética entendida como uma contraposição
de tensões:
Comunicação na existência e ação dirigida
para um objetivo de libertação e conduta
de “forças” biológico-psicológicas, eis os
dois pólos dialéticos da psicoterapia médica, na qual nenhum destes dois pólos
pode aparecer só e único, assim como não
pode apagar-se completamente em favor do
outro. Isto quer dizer que, como psicoterapeuta médico, jamais poderia ser somente
o “amigo” ou o apaixonado do doente
como é o caso da relação puramente existencial, da mesma forma que jamais poderei me limitar ao serviço único do objeto.
Um bom psicoterapeuta pode somente ser
aquele que, para nos servir de uma excelente expressão de Martin Buber, pode ver
com justeza em qualquer relação dialética o
contraponto dominante e o utilizar conforme as regras da arte. (p. 146)
Há uma polaridade dialética na qual o
sentido se define na relação entre o solo
existencial do mitsein e a esfera das funções vitais, ou seja, do Umwelt. É na dinâmica entre esses dois níveis, ou seja,
entre o koinos kosmos e o idios kosmos,
que se diferencia a dupla faceta do tera-
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
peuta: ser-médico e ser-com-o-próximo.
O saber prático que lida com as forças
bio-psicológicas não está desvinculado
da existência, apesar de se desenvolver
em um outro nível de entendimento. Assim, o saber que a psicanálise produz
contempla necessariamente uma dimensão existencial. É por isso que pode se
constituir em um dos pólos do processo terapêutico. O conhecimento puro
das funções vitais é apenas medicina,
enquanto a compreensão pura do sentido existencial da doença é apenas amizade. O campo ético da ação psicoterapêutica é constituído tanto pela comunicação
existencial como pela libertação e condução de forças vitais. O papel do psicoterapeuta é contemplar essa polaridade e
equilibrar o jogo de tensões pelo trabalho
com o contraponto dominante. Trabalho
este que não envolve apenas a aplicação
do saber prático do ser-médico, mas
fundamentalmente a intuição artística do
ser-com-o-próximo. A psicoterapia, portanto, é uma atividade tanto científica
como estética.
A intervenção terapêutica que ilustra o
artigo de Binswanger envolveu dois momentos. Inicialmente, houve a intervenção ativa contrapondo pressão ao sintoma. Posteriormente, através do conhecimento da biografia e com o curso da
análise, houve a reconstrução do sentido
da história interior de vida. Essa primeira intervenção em caráter urgencial consistiu na oposição de uma potência vital
15
em relação à outra. Trata-se de uma intervenção no nível da função vital e de
uma ação baseada na potência vital que
se contrapõe a outra e constitui, por si
só, um princípio terapêutico (p. 148). É
bastante significativo que Binswanger
tenha escolhido para ilustrar sua discussão sobre a psicoterapia, um caso em
que tão claramente a dinâmica das funções vitais se contraponha ao sentido
existencial da doença e, da mesma forma, um caso no qual a manipulação de
forças esteja lado a lado com a elucidação de sentido no processo terapêutico.
Os dois níveis de oposição na verdade
dizem respeito a uma única configuração, na qual a dupla dimensão da relação
entre os homens se confunde com a dupla dimensão do ser-no-mundo. É como
um campo polarizado de tensões que
Binswanger define a psicoterapia. Tensões que dizem respeito ao ser do doente,
ao ser do médico e à natureza restritiva
dessa relação. Aqui não há pólo privilegiado e não há relação de causa e efeito.
A dimensão de força deve ser entendida
no registro existencial e, portanto, vinculada à dialética geral do campo psicoterapêutico e do Dasein. Ela não é causa,
é intencionalidade: a força é motivada.6
A dimensão de força das funções vitais
se articula com o pólo da relação existencial entre o médico e o doente. É somente a partir de uma relação de comunicação e confiança, ou seja, no plano do
ser-com-o-próximo, que a intervenção
6. Aqui a motivação é entendida no sentido fenomenológico e não no cognitivo.
16
psicoterapêutica, no nível das funções
vitais, pode agir. Assim, a dimensão de
força é motivada pela relação existencial autêntica e é somente a partir desse
solo materno que a ação pode ocorrer
(Cf. p. 149).
A ação terapêutica se dá pela dinâmica de
forças, mas a sua eficácia e seu sentido
se dão no contexto da relação existencial
originária. Contudo, a ação se origina de
uma compreensão estética que está relacionada com o saber próprio da psicoterapia, ou seja, da prática psicanalítica.
Surge, então, a questão referente à contribuição do saber psicanalítico nessa
ação psicoterapêutica. Binswanger é bastante claro: qualquer tentativa de sobrepujar a dimensão existencial pela interpretação desencarnada é antiterapêutica. O
saber psicanalítico é sempre secundário.
O psicoterapeuta deve saber responder à
confiança nele depositada pelo paciente e
estabelecer uma relação autêntica. Sem
ela a intervenção não se constitui como
um ato terapêutico, permanecendo uma
simples ação fora da esfera terapêutica e
humana. Mais que isso, considerar o
outro como objeto é uma brutalidade.
Esse tipo de atitude é condenável principalmente porque, ao fazê-lo, o terapeuta pode suscitar no doente “todos os instintos masoquistas da submissão” (p.
Pulsional Revista de Psicanálise
149). A violência em se tratar o outro
como objeto está implícito na psicoterapia apoiada apenas no pólo das forças
biológico-psicológicas. Nesse caso, o
paciente pode sofrer uma perversão –
seus sintomas e sua dinâmica existencial
ficam “fixados” na esfera das funções
vitais. Eis o ponto nodal da insatisfação
de Binswanger com o referencial metapsicológico psicanalítico: a preponderância do instinto sobre o espírito.7 Tal
como a psicoterapia reduz a relação
existencial autêntica, a função vital reduz
a dimensão propriamente espiritual da
existência. Além disso, ela corre o perigo de subverter a dinâmica existencial
privilegiando a expressão de determinadas vias de comunicação não autênticas,
o que implica uma exacerbação do sintoma. Assim, não se trata de renunciar a
dimensão pulsional ou desejante do paciente, mas sim redimensioná-la no contexto geral do sentido existencial. Ou
seja, trata-se de saber não se excitações
eróticas estavam ou não presentes, mas
sim o que elas significam na totalidade do
sentido do ato psicoterápico (p. 150).
O terapeuta se coloca ativamente na relação e se apresenta fundamentalmente
como um outro. Ao trabalhar na reconstituição da história interior de vida o terapeuta não apenas funciona como um
7. A análise dessa contraposição sob o ponto de vista teórico e filosófico das psicoterapias – ou
seja, no nível de uma antropologia filosófica – será o objetivo dos dois textos subseqüentes de
Binswanger: “Freud e a constituição da psiquiatria clínica” (1936) e “A concepção freudiana de
homem à luz da antropologia” (1936). No texto aqui discutido, o autor explicita essa oposição
sob o ponto de vista da ação psicoterapêutica. Nesse contexto, sua crítica recai sobre o valor
heurístico do modelo psicanalítico.
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
portador da imagem paterna ou materna,
mas, também, como um “novo semelhante”. A relação intersubjetiva é fundamentalmente uma relação de alteridade.
Ao afirmar que o terapeuta se coloca
como um outro semelhante, que não é
apenas uma velha imagem projetada pelo
paciente, Binswanger está claramente
colocando que a relação primordial do
ser-com-o-próximo é uma relação intersubjetiva em que o outro aparece como
uma potência expressiva.8 O terapeuta
não se confunde com o paciente, pois ele
é também um outro. Não há uma submissão do terapeuta ao mundo do paciente, nem uma identificação total do terapeuta com ele. Isso significa que não
há nem projeção nem empatia. Há uma
relação de alteridade fundada no solo do
ser-com e é nesse campo de tensões que
o sentido se revela. Em termos psicanalíticos o fenômeno da relação que se estabelece entre o terapeuta e o paciente é
entendido como projeção das imagens
parentais, ou seja, como transferência. A
noção psicanalítica de transferência é
uma forma reduzida de compreensão da
relação interpessoal e os aspectos nela
compreendidos – investimentos eróticos
– são absolutamente secundários em relação ao contexto existencial geral. A
análise existencial entende o duplo papel
17
do terapeuta como tomada de um “novo
semelhante” e como portador de uma
“velha imagem” pertencente ao mundo
de outrem, podendo ser apreendido na
forma de outro como outro e na forma
de outro como mesmo.
A estratégia psicoterapêutica descrita no
artigo parte de um ato psicoterapêutico
isolado e de um rito que daí adveio para
um método psicoterapêutico de investigação da biografia exterior e da história
interior de vida, tendo como conseqüência uma intervenção socialmente terapêutica. Os aspectos particulares das intervenções são pautados pelo sentido global do processo psicoterapêutico que é o
de elucidação existencial no contexto da
relação interpessoal que se processa na
terapia. Todas as intervenções – manifestações de força – são possíveis e eficazes a partir da inserção nas formas de
mundo do paciente. Para isso é fundamental o trabalho de reconstrução da história interior de vida, pois é nele que se
revelarão os sentidos existenciais daquele ser. Assim, a psicoterapia proposta
por Binswanger tem como eixo a compreensão da história interior de vida e a
elucidação de seu sentido geral de existência. Esse processo se dá na e pela
relação psicoterapêutica entendida como
libertação e transformação, assim como
8. Pode-se notar a influência de Scheler nessa forma de concepção do outro. Max Scheler foi
quem originalmente discutiu a fundamentação da noção de outro no campo da fenomenologia.
A essência de seu pensamento é que a percepção de formas expressivas é primária em relação ao conhecimento objetivo do mundo e que a comunicação se torna possível a partir do solo
pré-pessoal do outro indiferenciado no qual o eu e o tu se enraízam. Para maiores esclarecimentos, Cf. Figueiredo, 1991.
18
pela confrontação com o novo, com o
outro enquanto outro. Não basta revelar
o sentido por trás de uma compulsão,
mas manipular a relação de forma que ela
possa se transformar. A noção de força,
na análise existencial, é fundamentalmente a de um potencial criativo e não de
uma compulsão à repetição. É nesse ponto que a técnica psicoterapêutica proposta por Binswanger diverge mais profundamente da psicanálise freudiana: o terapeuta se coloca como presença e é esse
colocar-se que possibilita o despertar da
“chama divina” no paciente. A técnica é
subsidiária do encontro face a face de
dois seres humanos. O terapeuta, nesse
caso, é muito mais ativo e responsável9
do que o psicanalista ortodoxo, pois a
situação não é mediada por abstrações
teórico-metodológicas. O fracasso de
uma terapia nem sempre se deve ao doente, mas, muitas vezes, ao terapeuta. Fracasso que não ocorre no plano meramente técnico, mas no nível mais fundamental do estabelecimento de uma relação autêntica.
Pode-se, agora, definir a especificidade da ação terapêutica empregada por
Binswanger no contexto de uma relação
dual autêntica. O fator mais importante
desse processo é a exploração metódica
da história interior de vida e é feito no
sentido da retomada do sentido geral da
existência do ser do paciente, em outras
palavras, em sua temática. Essa temáti-
Pulsional Revista de Psicanálise
ca se revela não só pela compreensão,
mas também pelas interpretações que
surgem na colaboração entre o paciente
e seu terapeuta. Essa reconstrução não
passa ao largo do reconhecimento de
ambigüidades e tensões, pelo contrário.
É na compreensão do conflito e na possibilidade de reconstrução desse tema na
experiência vivida que se processa a
cura, isto é, a transformação libertária. A
técnica é pautada não por uma teoria
abstrata, mas por um posicionamento
concreto que expressa um ethos fundamentalmente existencial. O trabalho da
psicoterapia é dar expressão à temática
existencial do paciente, compreendendoa através da reconstrução refletida da
história interior de vida, possibilitando
assim a transformação desse modo existencial de forma que ele possa situar-se
mais autenticamente no mundo, libertando-se. Esse trabalho não é meramente
interpretativo, mas, fundamentalmente,
um contato comunicativo criativo e recíproco que se desenvolve na situação
restrita que é o tratamento psíquico
(p. 152).
Percebe-se, ao longo da exposição propriamente técnica da psicoterapia proposta por Binswanger, que a crítica à
psicanálise transcende o seu domínio estritamente teórico – a metapsicologia – e
recai também sobre sua categorização
clínica. Redimensionando o processo terapêutico no âmbito mais profundo da
9. A palavra responsável aqui é entendida no sentido de colocar-se em atitude de resposta ao
outro.
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
comunicação autêntica, o autor mostra
como a clínica psicanalítica é insuficiente para captar a complexidade da situação psicoterapêutica. Assim, a técnica
psicanalítica não é aplicada por Binswanger sem ressalvas e pode-se dizer que
ela é ressignificada a partir de uma abordagem existencial da psicoterapia. A técnica psicanalítica, em decorrência de
seu referencial ético, ontológico e epistemológico, renega a dimensão propriamente espiritual e de koinonia do processo psicoterapêutico. Com isso ela tem a
sua eficácia terapêutica reduzida, estigmatizando o pathos do paciente na forma de “patologia”. Sua dimensão existencial é restrita a um jogo de forças biológicas desencarnadas. Não é contra a
dimensão de força em psicoterapia que
Binswanger define a sua análise existencial, mas sim contra uma força descontextualizada do circuito da existência que
reduz a potência do espírito à pressão libidinal.
O
CORPO VIVIDO
Até agora foram abordadas duas questões cruciais na psicoterapia: o seu solo
primordial e sua ação. Foi visto como a
relação terapêutica propicia uma transformação, a qual pode ser traduzida por
uma espécie de escolha existencial. Escolha essa que não pode ser entendida
como um ato deliberativo de uma vontade soberana. Não há aqui uma correção
de raciocínio lógico ou mesmo a revelação de um segredo desconhecido que
traz luz onde antes só havia dúvida. Não
se trata do sujeito consciente e autôno-
19
mo da modernidade e do cientificismo
funcionalista. Há uma grande diferença
entre o que o paciente quer e aquilo que
ele pode fazer de sua vida. Pode-se dizer
que a escolha na cura tem o mesmo significado daquilo que o próprio Freud
descreveu como a escolha da neurose:
há um sentido que motiva o sintoma, assim como algo motiva a cura, mas ambos recaem em uma esfera que transcende à consciência e à vontade.
Chega-se a um ponto crucial do entendimento da psicoterapia. Trata-se de saber como se compreende a sua ação
transformadora, isto é, de que forma um
encontro entre dois seres humanos mediado apenas pela comunicação expressiva – na qual a linguagem tem grande
peso, mas não é exclusiva – pode resultar em uma transformação de vida. A
questão é que esse fenômeno não se dá
somente no campo da psicoterapia, mas
sim é uma característica de toda e qualquer relação intersubjetiva. Daí o mérito
de Binswanger em colocar que a psicoterapia se funda e só é possível enquanto
uma forma reduzida da relação humana
em geral e da própria experiência constitutiva do ser humano. É no âmbito existencial da experiência concreta – na esfera da facticidade – que se inscreve a
potência transformadora das relações intersubjetivas, em geral, e da psicoterapia,
em particular. É na dimensão existencial
que Binswanger desenvolverá os seus
operadores teóricos descritivos caracterizados pelo interesse compreensivo.
Discutindo como a paciente foi levada
não só a querer novamente falar em voz
20
alta, mas a poder fazê-lo, Binswanger
introduz a idéia da relação entre o desaparecimento do sintoma e a retomada do
controle sobre o corpo vivido. Com isso
está sendo colocado que é no nível da
experiência corporal que se poderá enfim compreender o interjogo das polaridades existenciais. A noção de corpo vivido é fundamental para o entendimento
não só da psicoterapia, mas para o próprio ser-no-mundo enquanto um ser-aí.
Por corpo vivido deve-se entender a dimensão existencial concreta da experiência corporal. Não se trata do corpo psicofísico ou de um arcabouço teórico
que procure explicar as experiências por
interações ou paralelismos entre as funções bio-psicológicas. Trata-se da apreensão fenomenológica da esfera corporal
naquilo que ela tem de factual e empírico; naquilo que se apresenta como fenômeno intencional. Trata-se, grosso
modo, de compreender como o doente
“vive” em seu corpo vivido e como o
“sente”, lembrando que o corpo vivido
não existe em separado da consciência,
mas é sua própria sede – sua abertura
para o mundo. A consciência corporal
deve ser entendida como o “a priori de
suas leis essenciais e as possibilidade de
alteração de sua ‘facticidade’” (p. 154).
Pulsional Revista de Psicanálise
Em outras palavras, a dimensão do corpo vivido é um verdadeiro a priori existencial em que se configuram as polaridades da existência; é a dimensão originária do ser-aí. Ao voltar-se para a experiência particular do ente e do seu pathos, Binswanger é levado a considerar
a dimensão da vivência corporal na existência.10 A questão é que não se possui
um corpo vivido, mas que se é um corpo vivido. A dimensão corporal é fundamentalmente constitutiva da existência.
Isso não quer dizer que se viva sempre
corporalmente, mas que há sempre uma
forma de comunicação corporal, ou seja,
que o corpo vivido se expressa constantemente. Assim, ao lado de uma linguagem falada temos uma “linguagem” corporal claramente articulada. Isso implica
em um nível de comunicação intercorpórea na experiência intersubjetiva.
Essa característica torna-se crucial nos
momentos em que a comunicação entre
o paciente e os outros humanos cessa e
o paciente fecha-se em si mesmo. Ao se
abandonar o mundo comunitário permanece um nível de comunicação préreflexivo. Nessa falência de contato e
de sentido, na qual o ser sucumbe a
uma meia-existência, é que a dimensão
corporal revela toda a sua potência
10. Binswanger concebe a noção de corpo vivido referindo-se a diversas fontes, desde a filosofia (romântico-idealista, clássica e escolástica) até os autores contemporâneos do meio acadêmico alemão: von Weizsäcker, Erwin Strauss e Scheler, entre outros. Curiosamente, não há
aqui referência alguma aos grandes inspiradores do trabalho de Binswanger no campo da filosofia e da consideração existencial do ser humano: Husserl e Heidegger. Cabe ainda citar
Maurice Merleau-Ponty, que discutirá esse mesmo caso de Binswanger em seu livro Fenomenologia da percepção. Cf. Merleau-Ponty, 1994, p. 222.
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
expressiva. A corporeidade é um refúgio
para a existência malograda; ela é “sítio
da simples pressão vital” (p. 156).
Sem uma direção de sentido autêntica o
corpo vivido continua a “funcionar”,
porém desvinculado da experiência total
de ser. A noção de que a corporeidade é
um refúgio da existência é uma idéia importante no pensamento de Binswanger
e extremamente original em relação à
compreensão psicanalítica freudiana.
Porém, antes de contrapô-la, é necessário precisar a sua complexidade. Há dois
aspectos fundamentais para o entendimento do corpo vivido enquanto expressão do pathos: 1) a corporeidade como
um horizonte de experiência mais ou
menos preservado e estruturado que possibilite um apoio – um refúgio; 2) a corporeidade como esfera na qual a existência é impelida pela pressão vital pura –
um exílio. Há aqui uma clara ambigüidade. O corpo vivido é a forma de expressão que resiste à desarticulação do espírito e é por meio desse corpo que o paciente pode falar. O corpo vivido é o órgão verbal da revolta existencial, assim
como o recurso à corporeidade não é
uma escolha deliberada ou uma reclusão
salutar, mas o resultado de uma força
vital que se aliena. Há um conflito que se
expressa na desestruturação do campo
de polaridades entre força e sentido, corpo e espírito, eu e mundo. A força vital
se torna uma verdadeira entidade sem o
sentido que configura o campo existencial. É no corpo que a função vital se
expressa e é através da rebeldia do corpo que o sintoma ganha sua autonomia
21
em relação à vontade. A experiência
existencial se dissocia e nessa dissociação de sentido está implicada uma reconfiguração de forças. O paciente não tem
controle sobre as vicissitudes de sua
existência e seu corpo se torna autônomo. Essa autonomia não é de forma alguma livre, pois o sintoma é a própria
expressão da história interior de vida. O
corpo é forçado e, ao mesmo tempo, é
a única dimensão de expressão possível
da tensão entre as polaridades existenciais. Dessa forma, o sintoma não é apenas resultado de força, mas também expressa o sentido do sofrimento. O sintoma tem uma dupla face: ele é produto e
significação do pathos existencial. Essa
é uma formulação existencial daquilo que
Freud, metapsicologicamente, concebeu
como sintoma – uma solução de compromisso entre o princípio do prazer e o
princípio da realidade. Aqui não se trata
de um compromisso, mas da ambigüidade de uma pressão vital que angustia e,
ao mesmo tempo, comunica.
O que é dito do sintoma diz respeito a
toda esfera da corporeidade. É enquanto expressão concreta da linguagem corporal que se deve entender a sintomatologia do paciente. Os sintomas expressam a falência e o conflito nas direções
de sentido da existência. Dessa forma
compreende-se a incapacidade geral de
“engolir” como algo que existencialmente
não é assimilável (a proibição), pois vai
de encontro com sua vontade de viver
(p. 157). Não se trata de metáfora, mas
de expressão do sentido existencial do
ser-aí, de abertura ao horizonte da fac-
22
ticidade. As diversas expressões do sintoma comunicam um único e mesmo
estado de fato existencial: a vacilação da
“orientação” da existência em seu espaço global, histórico-biográfico vital e relacional. A importância da dimensão do
corpo vivido é que ela é, por vezes, a
única forma de expressão da existência,
a única forma de comunicação que ainda resta a um ser que se fechou em si
mesmo e que não mais se coloca como
abertura para o mundo. Esse é o verdadeiro sentido terapêutico da corporeidade em uma abordagem existencial. Disso resulta que entender o sintoma histérico, como um refúgio na corporeidade
e como verdadeira possibilidade existencial, é criticar toda e qualquer noção de
conversão histérica. Tem-se, assim,
mais uma ressalva com relação ao entendimento metapsicológico da psicopatologia e à patologização daquilo que é possibilidade existencial: a doença é um
fato antropológico reduzido em sua expressão clínica e a histeria é um mero
rótulo diagnóstico (p. 158). Da mesma
forma, não fazem sentido as explicações
baseadas em zonas erógenas. Binswanger critica a sobrevalorização do componente sexual na compreensão do sofrimento humano, principalmente uma concepção biológico-energética de sexualidade. Não é só pela redução do espiritual
ao instintivo e pela redução do campo
expressivo do sofrimento que se deve ser
cauteloso com relação à apreciação dos
conteúdos sexuais, mas também porque
essa forma de abordagem é eminentemente genético-evolutiva e não propria-
Pulsional Revista de Psicanálise
mente histórica. A diferença é que uma
história se compreende pela dinâmica
dos sentidos enquanto a gênese psicossexual se explica pela cartografia das
pulsões (p. 160).
O enfoque existencial em psicoterapia
revela que a corporeidade é uma dimensão de fixação e de expressão da direção
geral de sentido e da história interior de
vida. Da mesma forma, ela não é só uma
forma existencial de isolamento, mas
também uma verdadeira dissociação da
experiência vivida. Isto implica em um
refúgio da existência em relação à própria soberania do sujeito, uma vez que
ele é impelido pela pressão vital desgovernada para esse espaço restrito e angustiante de abertura para o mundo. Foi
visto que a ação psicoterapêutica tem
como finalidade o despertar do desejo
do doente em deixar o seu isolamento
para voltar à vida de comunidade. O fato
do paciente não poder se libertar pode
ser explicado pela noção de corpo vivido ou, mais precisamente, pelo refúgio
da existência na corporeidade. Em outras
palavras, não há mais um controle sobre
o corpo vivido. É no registro da corporeidade que se pode de fato entender a
expressão “inconsciente” (p. 161). O inconsciente, em Binswanger, não é uma
instância representacional psíquica que
comporta conteúdos recalcados pulsionalmente investidos, mas sim uma dimensão existencialmente dissociada da
experiência corporal. Inconsciente não é
um lugar, mas uma qualidade da existência. O refúgio da existência na corporeidade é inconsciente porque está cor-
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
tado do campo de sentidos. É uma expressão desvinculada que só se apreende por sua restritividade à liberdade do
doente. A fala está fora do circuito de
existência do paciente de Binswanger. A
possibilidade de falar simplesmente não
existe. Só existirá quando esse ente puder reintegrar a possibilidade de se situar no mundo. A potência existencial
chamada fala não está mais acessível.
As perspectivas vedadas à existência não
se apresentam como horizontes de significação que circunscrevem o mundo.
Metaforicamente, o adjetivo inconsciente
qualifica aquilo que está para além dos
horizontes e só pode ser resgatado por
uma ampliação das dimensões existenciais. Um enfoque existencial compreende o inconsciente não como aquilo que
está atrás de nossos olhos, porém como
as dobras de nossa configuração de
mundo. Merleau-Ponty faz um comentário esclarecedor ao descrever a dimensão propriamente existencial da experiência de perda de contato com o corpo fenomenal:
Não se pode dizer que a situação de fato
assim criada seja a simples consciência de
uma situação, pois isso representaria dizer
que a recordação, o braço ou a perna “esquecidos”, est ão expostos à minha consciência, estão presentes e próximos para mim
do mesmo modo que as regiões “conservadas” de meu passado ou de meu corpo.
Também não se pode dizer que a afonia é
desejada. A vontade supõe um campo de
possíveis entre os quais escolho: eis Pedro,
eu posso falar com ele ou não lhe dirigir a
palavra. Ao contrário, se me torno afônico,
23
Pedro não mais existe para mim enquanto
interlocutor desejado ou recusado, é todo
o campo de possibilidades que desmorona,
eu me retiro até mesmo deste modo de comunicação e de significação que é o silêncio. (Merleau-Ponty, 1994, p. 225)
Não há escolha quando a existência se
refugia no corpo vivido. Eis por que
querer não é poder: há uma dimensão
inconsciente do vivido que se refugia na
corporeidade. A existência se aliena na
esfera corporal e, de alguma forma, o
corpo a acolhe. A existência que se refugia, apesar de desvinculada da experiência total, de alguma forma ainda se
expressa corporalmente. Isso implica que
a existência, apesar de se colocar para
além dos horizontes, ou seja, de imediato inacessível, ainda de alguma maneira
se apresenta no ente como uma forma
de não-eu. O corpo vivido é o lugar a
partir do qual a existência se abre e suas
possibilidades se alojam. As possibilidades de transformação e libertação da
existência estão nela mesma contidas.
É no corpo vivido que se encontra o
fundamento para a compreensão existencial do homem enquanto um ser de
atitudes “subconscientes” e “inconscientes” (p. 163). A psicoterapia, em sua forma mais autêntica, ou seja, aquela que
promove e liberta a comunicação, diz
respeito a uma mediação feita pelo terapeuta entre o doente e suas formas de
mundo que está assentada em uma dialética entre o doente como si mesmo e o
doente como não si mesmo. Ou seja,
aquilo que o doente reconhece como
integrado a sua existência e aquilo que
Pulsional Revista de Psicanálise
24
está alienado de sua existência, expressando-se como mera pressão vital. É na
experiência transformadora e libertária da
psicoterapia, como uma relação existencial, que a corporeidade e as demais dimensões da vida espiritual podem ser
redimensionadas e ressignificadas. É
nessa relação que a psicoterapia pode
agir e passar de um mero querer para um
poder. Para isso, contudo, é fundamental que o paciente dê o passo final e acolha a sua própria existência.
Chega-se a essência da visão de
Binswanger sobre a psicoterapia. Ela
compreende não só o solo fundamental
existencial que possibilita a ação terapêutica e a descrição de sua ação transformadora e libertária, mas também a caracterização dessa esfera fundamental da
relação do si mesmo com o mundo que
é o corpo vivido. Direções gerais de sentido e reconstrução da história interior de
vida são os eixos norteadores da psicoterapia biswangeriana. Por sua vez, as
condições éticas que configuram o espaço terapêutico são a constituição de uma
relação humana autêntica e a presença
do terapeuta como mediador do si mesmo do doente com o seu não si mesmo
e com suas formas de mundo. A psicoterapia é fundamentalmente um campo
de presença e expressão no qual o novo
pode surgir do mesmo. Não se trata da
supressão de defesas, mas da criação de
formas de existir.
A PSICOTERAPIA COMO ETHOS
Ao longo do presente texto discutiu-se
os fundamentos apresentados por
Binswanger de uma psicoterapia concreta baseada na compreensão existencial
do homem. Compreensão esta que é tributária tanto da fenomenologia existencial de Heidegger e da psicanálise de
Freud, mas que introduz contribuições
originais a ambas. A partir das diferenciações introduzidas, tanto no campo da
técnica como da teoria psicanalítica e de
uma compreensão própria da existência,
constitui-se uma abordagem psicoterapêutica singular que dará origem à
Daseinanalyse.
Ao libertar a psicoterapia das restrições
metafísicas da teoria psicanalítica,
Binswanger pode compreender o homem em sua positividade e completude
existencial, ao invés da negatividade patológica do funcionamento meramente
vital. O cerne da crítica contra a psicanálise é reduzir o homem àquilo que nele
se apresenta enquanto inautenticidade. É
nesse caminho que perfilam as críticas à
concepção de homem enquanto ser biopsicológico, à relação psicoterapêutica
enquanto campo transferencial, ao existir
corporal enquanto conversão somática e
à história enquanto um desenvolvimento
psicossexual genético-causal. Da mesma
forma, observa-se a reviravolta na noção
de inconsciente, trazendo-o da esfera
psíquico-representacional para a esfera
do corpo vivido.
As críticas à psicanálise transcendem o
domínio meramente teórico, uma vez
que os operadores técnico-metodológicos, por ela propostos, se mostram insuficientes para captar a complexidade
presente na situação psicoterapêutica
A relação entre força e sentido na prática de Ludwig Binswanger
concreta. A psicoterapia se constitui
como um campo de relação autêntica
configurado por uma dialética de opostos: a relação humana e a relação terapêutica; a existência no ser-com-o-próximo
e a existência puramente vital; a repetição do mesmo e a apresentação do
novo; a vida privada e a vida de comunidade; o refúgio na corporeidade e a
expressão pela corporeidade; e assim por
diante. Nessa tensão entre polaridades
estão presentes não só os sentidos, mas
a dinâmica entre eles. A análise existencial redimensiona não só os sentidos que
emergem na clínica, mas as forças que
impelem a existência para um ou outro
destino. A força aqui é contextualizada
no circuito da existência, ressaltando-se
que a sua apresentação isolada e desgovernada é, justamente, a expressão de
uma existência inautêntica. Pode-se concluir que a idéia de psicoterapia não pode
prescindir de uma concepção de força e
que Binswanger está claramente consciente disso. Força e sentido são as expressões de um campo constitutivo fundante que é o próprio Dasein. Não há como
entendê-las isoladamente e o erro da psicanálise é, justamente, priorizar o segundo aspecto, apesar de inegavelmente
também tratar do primeiro. Em suma,
Binswanger não pode prescindir da dialética entre força e sentido presente na
psicanálise porque ela é constitutiva de
qualquer relação humana.
A psicoterapia proposta por Binswanger
se propõe a uma compreensão libertadora e transformadora no seio de uma relação existencial autêntica. Para isso, ele
25
parte de uma técnica e metodologia próprias à psicanálise. Porém, essa aceitação não é incondicional e a compreensão
existencial de homem necessariamente
transforma essa concepção de setting.
Isso coloca o terapeuta no papel de mediador entre o paciente, seu eu, seu não
eu e suas formas de mundo. Cabe a ele
se mostrar como outro para o paciente
e com isso favorecer a retomada da vida
autêntica através do restabelecimento da
comunicação nas diversas esferas existenciais. A realidade da ação terapêutica
se constitui na retomada em mãos de si
mesmo a partir da consciência do corpo
vivido e de sua linguagem, assim como
liberar o si mesmo das malhas e armadilhas das imagens e da corporeidade alienada nas quais ele se acha aprisionado
e nas quais ainda vive, de certa maneira.
Para tanto a terapia abre mão de alguns
operadores metodológicos concretos que
norteiam o trabalho: a reconstrução da
história interior de vida, a compreensão
das direções de sentido, a koinonia e assim por diante. Essas referências, contudo, não dão qualquer referência externa à relação terapêutica. É no seu encontro com outro ser humano que o terapeuta se situa e é dele que retira seus
instrumentos, ou seja, suas intervenções
verbais ou gestuais. A referência a um
saber teórico constituído pela prática é
sempre secundária. A atitude do psicoterapeuta é muito mais de uma presença
expressiva do que de um observador
dotado de um saber abstrato. A concepção binswangeriana de psicoterapia pode
ser entendida, primeiramente, como uma
Pulsional Revista de Psicanálise
26
ética existencial. Trata-se do terapeuta se
colocar de forma a permitir que algo de
novo possa ser criado. O espaço terapêutico é um espaço de criatividade e
não de revelação de segredos. É uma
acolhida e um manejo para que a potência existencial de um ente possa, de fato,
ser. „
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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia
da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
Artigo recebido em maio/2001
Revisão final recebida em setembro/2001
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