Introdução Na década de 70, o elevado crescimento da economia brasileira, espacialmente concentrado, fez “explodir” as metrópoles nacionais e ensejou a metropolização de outros importantes centros urbanos. Esse fenômeno fez surgir o termo “macrocefalia” urbana, denunciativo de que a concentração espacial das atividades econômicas e da população ultrapassava limites, não só prejudicando as condições de vida nesses centros, mas também colocando em risco a capacidade das metrópoles em permanecer exercendo a função — “cerebral” — de comando da economia nacional. Não é de hoje, portanto, a constatação de que as atividades produtivas e a população no Brasil estão bastante concentradas nas grandes cidades. Na década de 70, o “milagre econômico” e os grandes movimentos migratórios inter-regionais ampliaram a tendência de “inchaço” que já se manifestava nessas cidades, criando e agravando as deseconomias de aglomeração. De um lado, essas deseconomias refletiam os maiores custos econômicos que a excessiva concentração gerava nas grandes cidades e metrópoles brasileiras, não só elevando os preços de todos os insumos, particularmente do espaço, como também tornando mais dispendioso o transporte, seja do ponto de vista das tarifas a serem pagas, ou do tempo gasto em vencer os congestionamentos e os grandes deslocamentos urbanos. De outro lado, do ponto de vista social, esses grandes centros urbanos não tinham condições de disponibilizar ou de priorizar a ampliação da oferta de infra-estrutura, a não ser para o segmento privilegiado da população capaz de pagar ou de “vocalizar” politicamente a sua demanda. Equipamentos sociais, como habitações, escolas, redes de saneamento e de energia elétrica, hospitais e meios de transporte de massa, não eram socialmente oferecidos de maneira adequada. Assim, o desenvolvimento ocorria v a custos econômicos e sociais crescentes, já que excessivamente concentrado, sobretudo nas grandes cidades. Junto às metrópoles crescia então a expectativa entre os pesquisadores e planejadores urbanos e regionais de que as cidades médias poderiam cumprir o papel de “diques” para conter os fluxos migratórios que tendencialmente continuariam a se dirigir para as metrópoles.1 Era plural o interesse por essa alternativa espacial de crescimento, valorizando as cidades médias: vislumbrava-se a minimização da pobreza urbana; a garantia da capacidade gerencial e financeira do Estado em prover os equipamentos e serviços urbanos; evitar a queda da produtividade das atividades econômicas; a preservação do meio ambiente; o avanço do projeto de integração do território nacional; a ocupação das fronteiras nacionais. O foco nas cidades médias, e não nos pequenos centros urbanos, justificava-se pela preocupação em atingir o menos possível o processo de crescimento econômico do país, ou seja, evitar uma pulverização espacial excessiva dos capitais públicos e privados. Portanto, para que um determinado centro urbano se apresentasse como alternativa locacional às metrópoles, era preciso, além de certo nível de complexidade da divisão do trabalho, uma oferta suficiente de infra-estrutura produtiva. É também preciso reconhecer que a opção pelas cidades médias como solução do problema da “macrocefalia” urbana deixava de lado a questão da concentração fundiária. Em suma, a reforma agrária seria uma outra opção, ou uma opção complementar, que acabaria por valorizar os pequenos centros urbanos na medida em que contribuiria para fixar as populações rurais em seu território de origem, contendo o crescimento das metrópoles via redução do êxodo rural. Independente de seus resultados, o Programa Nacional de Cidades de Porte Médio, iniciado em 1976, que visava ao fortalecimento das cidades de porte médio por meio do financiamento da ampliação da infra-estrutura social e produtiva, registrou ter havido uma explícita preocupação governamental com as cidades médias,2 preocupação essa que perdeu importância 1 Sujeitas a inúmeras explicações, cambiantes segundo a época e os objetivos analíticos, cidades médias, neste capítulo, serão definidas como sendo o conjunto de centros urbanos não-metropolitanos e não-capitais com população entre 100 mil e 500 mil habitantes, segundo o Censo de 1991. As seções sobre crescimento econômico e sobre finanças municipais incorporaram as cidades médias pertencentes às regiões metropolitanas e aquelas capitais estaduais. Ver lista de cidades estudadas em anexo. 2 Para uma avaliação do programa CPM/Bird, ver Capítulo 2. vi na década de 80 e começo dos anos 90 e, agora, parece recrudescer, por certo motivando a realização deste trabalho.3 O retorno ao tema cidades médias está bastante relacionado ao eventual processo de reconcentração espacial das atividades econômicas e da população, fato, aliás, confirmado pelos primeiros resultados do Censo 2000.4 Anunciada na década de 90, a hipótese de uma reconcentração, ou, pelo menos, de um estancamento do processo de desconcentração espacial — iniciado já no final da década de 60 —, esteve baseada nos imbricados processos de reestruturação produtiva, abertura comercial e mudança do papel do Estado na alavancagem da economia nacional. Com respeito às mudanças tecnológicas vinculadas à chamada reestruturação produtiva (ou à Terceira Revolução Científica Tecnológica), estas parecem influenciar as decisões locacionais no sentido da concentração urbana, na medida em que acaba por revalorizar a metrópole como espaço privilegiado para o desenvolvimento de atividades econômicas modernas, porque é nas metrópoles que estão concentradas as universidades, os centros de pesquisa e os serviços industriais “superiores” (ou de alta qualificação).5 A proximidade com esses elementos interessa às firmas, pois facilita a transferência de tecnologia dos “laboratórios” para o interior do espaço produtivo. Outro fator que permite associar reestruturação produtiva e reconcentração espacial nos grandes centros urbanos do país parece ser a difusão do processo de desintegração vertical. As firmas, ao enxugarem seu escopo 3 Um dos reflexos evidentes dessa retomada de interesse pelas cidades médias é o número e a qualidade dos simpósios, congressos e reuniões internacionais e nacionais consagrados a esse tema, nos últimos anos. Em nível internacional, merecem registro, por seu alcance e influência: o congresso realizado em Mâcon (cidade média da região de Lyon, França), em 1995, sob a coordenação geral de Nicole Commerçon e Pierre Goujon, que tinha como tema Villes Moyennes – Espace, Société, Patrimoine; o Seminário Internacional Ciudades Intermedias de América, realizado em 1996, na universidade e na cidade de La Serena (Chile), sob a coordenação geral da Dra. Edelmira González González. Ainda no domínio internacional, cabe ressaltar o simpósio realizado em Chillán (Chile), em setembro de 2000, sob o patrocínio da Universidad del Bío-Bío e a coordenação da Dra. Dídima Olave Farías, tendo como tema geral Ciudades Intermedias y Calidad de Vida. No contexto brasileiro, deve-se mencionar o VI Simpósio Nacional de Geografia Urbana, realizado em 1999 em Presidente Prudente, sob os auspícios da Unesp daquela cidade, onde se realizou a I Jornada de Pesquisadores sobre Cidades Médias. 4 Ver Capítulo 4. 5 Não necessariamente a metrópole se apresenta como locus privilegiado para localização de firmas de plantas industriais modernas. Estas, a rigor, poderiam, inclusive, se dirigir para centros urbanos pequenos. Entretanto, essa possibilidade estaria associada ao surgimento de tecnopólos nesses centros urbanos (veja, por exemplo, a cidade de Santa Rita do Sapucaí, MG), o que não parece ser um fenômeno com presença marcante na rede urbana nacional. Tampouco políticas sistemáticas de apoio e criação desses tecnopólos em cidades pequenas parecem elencar as diretrizes nacionais da política de desenvolvimento regional contemporânea. vii produtivo, dedicando-se apenas à realização de tarefas/produtos para as quais possuam conhecimento específico (vantagens comparativas), tornam-se cada vez mais dependentes do fornecimento de insumos. E, como é sabido, quanto maior a interdependência entre firmas, maior a tendência de ocorrer aglomeração. No concernente à abertura comercial, a exposição (muitas vezes de forma abrupta) de setores e gêneros produtivos à concorrência externa pode ser interpretada como alimentadora do processo de concentração espacial e, conseqüentemente, de ampliação da secular diferenciação regional brasileira. Esse efeito fundamenta-se nas enormes diferenças existentes entre subespaços nacionais, tanto no que diz respeito à competitividade vigente quanto no tocante à capacidade de investimentos, visando às melhorias nos níveis de eficiência produtiva.6 Já quanto aos possíveis efeitos da diminuição do Estado sobre o grau de concentração urbana nacional,7 primeiramente pode-se fazer referência à própria perda de status dada ao planejamento regional, o qual representa um instrumento extremamente necessário para ações voltadas para a desconcentração urbana, no mínimo, servindo para implantar políticas governamentais compensatórias aos possíveis efeitos concentradores descritos anteriormente. Para além do esvaziamento dos órgãos de planejamento, a política de privatizações pode ser associada à concentração urbana, na medida em que seja válido interpretá-la (a privatização) como perda de capacidade de investimento governamental direto, o qual potencialmente pode atender ao princípio da eqüidade na distribuição espacial da riqueza nacional. Como os investimentos privados em infra-estrutura vinculam-se exclusivamente ao princípio da eficiência, pode ser argumentado que as privatizações se concentrarão no Centro-Sul do país.8 Como mostra Azzoni 6 Sobre possíveis efeitos danosos na economia nordestina, advindos da forma como se processa a inserção do país na economia internacional, ver Guimarães Neto (1996). 7 Rodriguez (1997) fala ainda de efeitos macroeconômicos pós-Plano Real, que tenderiam a favorecer a desconcentração espacial: “O efeito combinado de ampliação do mercado interno com a melhoria do salário real, a estabilidade econômica, a redução de incertezas proporcionadas pelo Plano Real e a retomada dos investimentos em infra-estrutura modificou as condições que favoreciam a reconcentração circunscrita ao Estado de São Paulo e ao grande polígono em torno dele” [Rodriguez (1997, p. 15)]. 8 Diniz e Lemos (1997) mostram que especificidades do setor de infra-estrutura, tais como o grau elevado de indivisibilidade, o seu consumo difundido e a baixa relação produto/capital, tornam essa atividade interessante à iniciativa privada somente onde existe alta densidade econômica. Do contrário, nas áreas de baixa densidade econômica, é mister a participação do Estado para complementação da infra-estrutura produtiva necessária à alavancagem econômica dessas mesmas áreas. viii (1997), acreditando-se que a privatização traz elevação da produtividade, pode-se concluir pelo aumento dos diferenciais de produtividade interregionais. Há ainda outro fator que pode ter contribuído para o aludido processo de reconcentração espacial, não destacado anteriormente devido ao seu caráter até então bastante especulativo: trata-se dos efeitos espaciais advindos da recorrente política monetária nacional, calcada na manutenção de taxas de juros elevadas, seja como mecanismo contentor da inflação, de “rolagem” da dívida interna, ou como medida de atração de capitais externos para compensação dos sucessivos déficits em transações correntes, observado no período pós-abertura. Quanto a esse último fator, argumenta-se que aqueles centros onde é maior a importância do financiamento do capital de giro por terceiros e inversões das firmas sentiram mais intensamente os reveses de uma política de juros elevados, quais sejam: o desemprego via restrição do investimento ou via falência e concordatas. Já nos centros onde o capital de giro e os investimentos são predominantemente financiados com recursos próprios das firmas, o impacto de uma política de juros elevados seria menos sentido. Se, paralelamente a isso, for plausível admitir que as grandes firmas, isto é, aquelas com maior capacidade de autofinanciamento, estão concentradas nos maiores centros urbanos, seria possível associar a política de juros elevados com o fenômeno da reconcentração espacial das atividades econômicas. Mesmo que esse processo de reconcentração espacial das atividades econômicas e da população seja “relativizado” pelo amadurecimento das análises dos resultados do último censo demográfico, não se esgota o interesse em conhecer a experiência de crescimento das cidades médias, para permitir avaliações quantitativa e qualitativa de sua importância para o processo de desconcentração populacional e econômica e balizar o debate sobre a continuidade de seu papel estratégico nesse processo. O retrato sobre a experiência de crescimento das cidade médias brasileiras, desenvolvido a partir do Capítulo 4, é precedido por três estudos introdutórios: o Capítulo 1 mostra que existem alguns atributos, difundidos pela literatura de economia regional e geografia econômica, que definem funções específicas para os centros de porte médio no interior do sistema urbano. Essa demonstração busca recuperar as origens do interesse de pesquisadores e promotores de políticas públicas pelas cidades de porte médio, reservando especial atenção à experiência francesa do aménagement ix du territoire e às motivações para se intervir nas cidades médias brasileiras na década de 70. Finalmente, esse capítulo inicial especula sobre um possível “novo papel” reservado às cidades médias na atual ordem econômica mundial. O Capítulo 2 reúne avaliações de uma experiência brasileira de planejamento territorial, comandada pelo Estado no período 1975/86 — a implantação de um programa que visava promover as cidades de porte médio a centros estratégicos da rede urbana nacional. O sentido da reflexão não se atém apenas a um mero exercício de resgate e registro. Trata-se não só de discutir os resultados das políticas urbanas de âmbito nacional e do Programa de Cidades de Porte Médio, mas, principalmente, em que contexto eles ocorreram, a fim de conjeturar sobre a importância atual desse tipo de cidade. O Capítulo 3 é um outro estudo introdutório, que extrapola o interesse sobre o desempenho produtivo das cidades médias, apresentando uma interpretação da dinâmica espacial da distribuição da riqueza nacional durante o período 1975/96. A partir do Capítulo 4 são retratados diferenciados aspectos da experiência de crescimento das cidades médias brasileiras: crescimento populacional (Capítulo 4), dinâmica migratória e absorção dos imigrantes (Capítulo 5), fatores determinantes do crescimento econômico (Capítulo 6), evolução da magnitude e do nível de pobreza (Capítulo 7), evolução das finanças públicas municipais (Capítulo 8) e desconcentração espacial da indústria na década de 90 (Capítulo 9). x