Cocaína e o coração

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ATUALlZACAo
Cocaína e o coração
Cocaine and the hearf
Maurício Bastos de Freitas Rachid, Edison C. Sandoval Peixoto
Do Serviço de Cardiologia do Hospital-Rio da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Endereço para correspondência: Maurício Bastos de Freitas Rachid. Serviço de Cardiologiá Hospital-Rio da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rua Estácio de
20. CEP 20211. Te!. (02il 273-3322, R. 184
sa
Rev. SOCERJ 3: 58-00
Resumo
A toxicidade cardiovascular decorrente do uso da cocaína tem sido freqüentemente relatada. Neste artigo,
os autores fazem uma revisão dos aspectos farmacológicos das ações da
cocaína sobre o aparelho cardiovascular, descrevem as lesões cardíacas
assbciadas ao seu uso, incluindo o
infarto agudo do miocárdio, e sugerem tratamento específico para cada complicação.
Ressaltam que o
médico deve estar atento às complicações cardiovasculares da cocaína,
suspeitando de sua ocorrência principalmente quando frente a pacientes jovens de modo a exercer um tratamento específico-e evitar a recidiva.
Introdução
o
uso crescente de drogas ilícitas
tem constituído uma grande preocupação mundial. Nas últimas duas décadas assistimos ao surgimento
de
um enorme incremento na distribuição e uso de narcóticos, notadamente da cocaína. Nos Estados Unidos,
estima-se que um em cada dez americanos já fizeram uso da cocaínaI1,21. No Brasil, a situação não é
tão grave, porém não menospreocupante. Em pesquisa recente do Ministério da Saúde apurou-se
que
0,7% dos adolescentes do 1? e 2?
grau já experimentaram
a droga(3)
Ao lado dos danos causados pela
dependência
à droga e das lesões
neurológicas, temos observado uma
série de complicações
cardiovasculares agudas e crônicas causadas pela cocaína, várias delas responsáveis
pelo óbito de seus usuários. O objetivo do presente trabalho é rever a
farmacologia
e a toxicidade cardiovascular da cocaína e, com base nestes aspectos, traçar uma abordagem
terapêutica
mais racional para a
doença cardiovascular causada por
esta droga.
Aspectos farmacológicos
A cocaína é extraída das folhas da
Erithroxilon coca, planta originária do
Peru e da Bolívia. Nativos destes países há muitos séculos mascam a folha de coca com intuito de aumentar a disposição e produzir uma sensação de bern-estar'", Seu uso médico data de 1884 quando foi utilizada como anestésico local em procedimentos
oftamológicos
e dentá-
rios'".
Do ponto de vista químico, a cocaína é uma benzoilmetilegonina,
uma base de amino-álcool estruturalmente
semelhante
à tropina,
o
amino-álcool da atropina. É, portanto, um éster do ácido benzóico com
estrutura
similar aos anestésicos
locais'?'.
É preparada dissolvendo-se o alcalóide em ácido clorídrico para obterse o sal hidrossolúvel, a forma mais
comumente
utilizada, denominada
cloridrato de cocaína!". A. cocaína é
bem absorvida por todas as membranas mucosas e pone sw administrada por via intranasat. mtravenosa e
até mesmo mtravaqinal's', Mais recentemente,
tornou-se popular fumar sua base livrel6!.
Após sua absorção, ela é então degradada pelas colinesterases plasmáticas e urinarias. formando metabólitos hidrossolúveis, que são eliminados pela urina. Somente pequenas
quantidades são excretadas inalteradas'", A meia-vida da cocaína quando ingerida por via oral ou administrada intranasal ou intravenosamente é de cerca de uma hora'", Entretanto, quando fumada tende a ter
uma meia-vida mais curta, em torno
de vinte rninutos'".
Um aspecto importante a ser ressaltado é que altos níveis sangüíneos
de cocaína podem ser observados
em qualquer forma de administração
da droga e que as complicações decorrentes de seu uso podem acontecer em faixas amplas de níveis séricos da droga, sugerindo uma suscetibilidade individual às complicaçõesl51. .. Segundo
Mittelman'?', as
complicações
observadas também
parecem não depender da via de administração da droga.
Os efeitos cardiovasculares da cocaína são principalmente
decorrentes de suas ações nos sistemas nervosos central e oeritérico'". Alguns
poucos efeitos são causados por sua
ação anestésica local e por sua ação
tóxica diretaI4,8,m
Já está estabelecido que a cocaína bloqueia
a recaptação
présináptica das catecolaminas, produzindo um excesso de neurotransmissores nos receptores pós-sinápticos.
causando elevações agudas de catecolaminas nas sinapses'". Isso explica a maioria dos efeitos cardiovasculares, -ncluindo a vasoconstricção,
a
Revista da SOCERJ . Vol. 111. N? 2 . Abril. Maio, Junho
taquicardia, a elevação da pressão arterial, o aumento do consumo de oxigênio e também a predisposição
a
arritmias cardíacas'". Alguns autores atribuem também à cocaína a capacidade de produzir um aumento
da densidade dos receptores adrenérgicosl51 eprornover
uma denervação
farmacológica
generalizada110I..
Em doses baixas pode através de
sua ação vagal central produzir uma
diminuição
da freqüência
cardíaca141.Em doses maiores, produz taquicardia decorrente de seus efeitos
estimuladores adrenérgicos centrais
e periféricos. A pressão arterial tende a se elevar como conseqüência
da taquicardia e da vasoconstricção
mediadas pelo sirnpático'".
A condução cardíaca é deprimida devido
à ação anestésica local da cocaína,
podendo ocorrer bradicardia sinusal
e até assistoüe'". A estimulação
simpática
central e periférica também produz uma maior suscetibilidade a arritmias cardíacas, principalmente ventriculares'?'
Há também
evidências de uma ação tóxica direta sobre o miocárdio causando depressão da função sistólica e interferindo
com
o
relaxamento
ventricular'ê'".
loxícídcde cardiovascular
Paralelamente ao aumento do consumo de cocaína têm-se observado
relatos de complicações cardiovasculares agudas e crônicas relacionadas
ao seu uso. Já foram descritos infartos do rniocárdio'".
miocardite'V'.
cardiomiopatia
dilatadal13l, edema
pulrnonar'l".
rotura da aortal15l, morte súbita e arritrnias'V'".
Dentre as complicações
mencionadas, temos o infarto agudo do
miocárdio como a mais freqüentemente relatada. Recentemente, Frishman e col.15l fizeram uma revisão
dos 43 casos de infarto agudo do
miocárdio (IAM) devidos à cocaína
reportadas na literatura mundial até
1988.
A idade média dos pacientes foi
de 3í ,3 anos, não havendo evidência de doenca cardiovascular prévia
na maioria dos pacientes. Havia 21
infartos anteriores, 14 inferiores e 7
ântero-Iaterais (um não especificadol.
A angiografia coronária foi realizada
em 27 pacientes sendo que 11 apresentavam evidência da trombose coronariana aguda, 9 apresentavam co-
ronárias normais e os 7 restantes tinham graus variados de obstrução
coronariane'".
Em nosso meio, Andrea e col.1171relataram o caso de
um paciente de 29 anos de idade
'com IAM anterior após inalação de
cocaína cuja coronariografia
revelava apenas discreta redução de calibre da artéria descendente anterior.
Os mecanismos pelos quais a cocaína provoca infarto do miocárdio
não estão ainda plenamente estabelecidos, Atribui-se ao espasmo coronariano um papel importantel18,191
Há também evidência de uma maior
trombogenicidade
devida ao aumento da agregabilidade plaquetária produzida pela drogal20,221. Alguns autores admitem também que em presença de obstrução coronariana prévia, o aumento súbito do duplo produto com conseqüente incremento
acentuado na demanda de O2 pelo
miocárdio pode levar ao infarto do
miocárdio em usuários'?'. Frishman
e col,15l propuseram
uma hipótese
unificadora
para explicar o infarto
agudo do miocárdio induzido pela
cocaína onde o aumento da agregabilidade plaquetária com formação
de trombo e o vaso-espasmo seriam
decorrentes de uma agressão às artérias coronárias promovidas pelas
catecolaminas.
Mais recentemente,
Dressler e col.(231 sugeriram que o
uso crônico da cocaína poderia acelerar a aterogênese. Isso poderia explicar o achado de doença coronariana aterosclerótica
nos 7 pacientes da série de Frishman=', todos
com menos de 40 anos de idade.
A cardiomiopatia dilatada é, juntamente com a miocardite, responsável pela insuficiência
cardíaca· em
usuários'F'". É decorrente de uma
provável agressão isquêmica repetida1241A
. s arritmias ventriculares são
possivelmente induzidas pelas catecolaminas e acredita-se que sejam
responsáveis pela maioria dos casos
de morte súbita em indivíduos que
fizeram uso de cocalna'". É também
descrita a rotura da aorta que pode
ser devida ao aumento súbito da
pressão arterial nestes oacientes'>'.
Embora de existência inquestionável, tais complicações
são relativamente raras frente ao uso epidêmico da drogal5l No entanto, deve o
clínico estar atento quando diante de
tais doenças em pacientes jovens
pois, se devidas à cocaína, merecem
abordagem individualizada.
1990
59
Tratamento
Até recentemente, não havia referência a um antídoto específico para as complicações cardiovasculares
produzidas pela cocaína. Estudos experimentais em animais têm mostrado que a nitrendipina,
um bloqueador dos canais de cálcio, é capaz de
proteger contra as arritmias cardtacas e antagonizar os efeitos centrais
da cocaínal25l. Tais benefícios necessitam ainda de comprovação em seres humanos. Na ausência de um antídoto único comprovadamente
eficaz, cada complicação deve ser tratada de acordo com seu mecanismo
fisiopatológico.
Nos pacientes que se apresentam
com angina instável, o uso de bloqueadores dos canais de cálcio, nitratos e aspirina se faz necessário.
Aqueles com infarto agudo do miocárdio devem ser medicados com vasodilatadores coronarianos e, se não
houver pronta resposta, imediatamente submetidos à terapia trornbolítica devido à grande incidência de
trombose coronariana nesses indivíduos. Já os admitidos com arritmias
ventriculares
são melhor tratados
com beta-bloqueadores excetuandose os com atividade simpaticomimética intrínseca. Frente às emergências hipertensivas temos como opções a nifedipina e o nitroprussiato
de sódio.
Os pacientes vítimas de complicações cardiovasculares
por cocaína
devem ser aconselhados a não fazer
mais uso da droga e devem ser mantidos sob orientação psiquiátrica'?'.
Nos usuários crônicos da droga em
que o abandono do vício é um processo lento e trabalhoso é sugerido
o uso crônico de bloqueadores dos
canais de cálcio como forma de prevenção secundária. O prognóstico é
relativamente bom desde que sejam
mantidos afastados da droga.
Summary
Cardiovascular toxicity due to cocaine use has been frequently reported. In this article, the authors review
the pharmacological
aspects of cocaine actions on the cardiovascular
svstern, the several complications associated with its use, including myocardial
infarction,
and sugest
specific therapy for each complication. In conclusion, physicians must
be aware of cocaine induced heart
disease mainly in young patients so
60
that
Maurício
specific
Bastos de Freitas Rachid e colo . Cocaína e o coração
aproach
can be exerted
and recurrence avoided.
myocardium.
1989.
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SOCERJ
Eleição
15 de junho de 1990
Participe comparecendo à sede da SOCERJ a R. Alcino Guanabara, 24,
sala 1601, Cinelândia, das 8:00 às 20:00 horas
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