Significados de cuidados paliativos narrados pela equipe de saúde

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Universidade Federal da Bahia
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Significados de cuidados paliativos narrados pela equipe de saúde
na Oncologia Pediátrica
Ana Clara de Sousa Bittencourt Bastos
Orientadora: Profa. Dra. Marilena Ristum
Salvador – Bahia
2014
1 Universidade Federal da Bahia
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Significados de cuidados paliativos narrados pela equipe de saúde
na Oncologia Pediátrica
Ana Clara de Sousa Bittencourt Bastos
Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da
Bahia, como exigência parcial para obtenção do grau de
Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia do Desenvolvimento
Orientadora: Profa. Dra. Marilena Ristum
Salvador – Bahia
2014
2 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
_____________________________________________________________________________ Bastos, Ana Clara de Sousa Bittencourt B327
Significados de cuidados paliativos narrados pela equipe de saúde na
Oncologia Pediátrica / Ana Clara de Sousa Bittencourt Bastos. - Salvador, 2014. 165 f.
Orientadora: Profª Drª Marilena Ristum.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, 2014.
1. Cuidados paliativos. 2. Profissionais. 3. Morte. 4. Pediatria. I. Ristum,
Marilena. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.
CDD: 155.937
3 Dedico esse trabalho a minha querida vovó Ruth (in
Memoriam), que me ensinou o verdadeiro sentido de
cuidar e amar.
4 AGRADECIMENTOS
Inicialmente, a Deus, pelo mistério, pela força e pela coragem durante toda essa
caminhada.
A minha querida orientadora, Marilena Ristum, pelo acolhimento, pelos ensinamentos,
pela confiança e pela liberdade que me concedeu para estudar este tema.
A meus queridos pais, Virgílio e Ana Cecília, por terem me dado educação, valores e
por terem me ensinado a andar e a seguir em frente. A meus grandes exemplos de vida,
profissional e pessoal, pelo apoio incondicional e por tornarem minha vida mais alegre
e mais bela.
A meu avô, José Newton, que me ensinou a possibilidade de ver a beleza da vida,
mesmo em momentos de dor e de tristeza. Sem essa capacidade, seria difícil construir
esse trabalho.
A meu noivo, Thiago, por todo o amor, carinho e apoio ao longo dessa e de tantas
outras caminhadas.
A minha família e aos meus verdadeiros amigos, sempre. Em especial, a minha tia,
Elinalva, pela disponibilidade e pelo apoio na transcrição das entrevistas, a minha
dinda, Maninha, pelos diversos momentos felizes compartilhados, e ao meu irmão, pela
grande amizade e pela vida de Mariana, que nos encanta e nos alegra diariamente.
A Jaan Valsiner e a Kenny, pelo constante incentivo à minha trajetória como
pesquisadora.
A meu anjinho da guarda, Brena, com quem posso compartilhar os momentos tristes e
alegres. Por sua sensibilidade, delicadeza, acolhimento e por ter segurado a minha
mão, ter me incentivado nos momentos mais difíceis e ter tornado a vida mais leve.
5 Aos colegas e amigos do grupo de pesquisa, pelas trocas, pelo aprendizado e pelas
alegres manhãs de segunda-feira. Em especial, ao apoio de Manu e de Déa nessa reta
final da dissertação e a Marianna, pelos planos e projetos compartilhados juntos.
A Ana Lúcia, por ter facilitado a conciliação entre o trabalho e o estudo. À amiga
Paula, pelo grande aprendizado e por ter “abraçado” o meu estudo e ter me dado
suporte no processo de coleta de dados. Aos amigos do ambiente de trabalho, pelo
apoio e troca constante, em especial a Fabíola, Marrahdna, Alinne, Gilmara e
Fabiana.
Aos profissionais participantes do estudo, pelo interesse e pela disponibilidade em
conceder entrevistas.
Por fim, um agradecimento todo especial aos pacientes e familiares que cruzaram o
meu caminho, me ensinaram sobre a vida e me fizeram ter o interesse por estudar esse
tema rico e, ao mesmo tempo, doloroso, da morte.
6 RESUMO
Acredita-se que a morte é uma das experiências mais traumáticas para o ser
humano, por originar uma carga pessoal de dor, e por também ser, culturalmente, um
assunto tabu na maioria das sociedades. Aprender a lidar com a morte acarreta desafios
para os profissionais de saúde envolvidos nos cuidados paliativos, que se caracterizam
como uma abordagem emergente que adota uma política assistencial de dar suporte aos
indivíduos e a suas famílias em momentos cruciais diante da morte. O presente estudo
buscou analisar os significados de cuidados paliativos para os profissionais de saúde
que atuam na oncologia pediátrica. Foram realizadas entrevistas narrativas, baseadas em
um temário previamente elaborado, sendo tópicos relevantes: cuidados paliativos,
estratégias de enfrentamento, redes sociais de apoio, crença religiosa, práticas de
atenção à saúde. As entrevistas foram realizadas em dois hospitais filantrópicos de
Salvador, Bahia, com cinco profissionais: médico, enfermeira, técnica de enfermagem,
dentista e psicóloga. Foi utilizado o modelo de análise narrativa proposto por Lieblich,
Tuval-Mashiach e Zilber (1998). Os significados de cuidados paliativos, de uma forma
geral, apresentaram-se associados a uma abordagem que prioriza medidas de conforto e
a redução da dor. As práticas de atenção à saúde que mais se destacaram foram a
comunicação e a tomada de decisão, ambas sob a responsabilidade do médico, sendo
ressaltadas as dificuldades de informar a uma mãe sobre a morte iminente de um filho, e
de incluir a criança no processo de tomada de decisão. Os cuidados paliativos vieram
associados a um sofrimento, e são formados fortes vínculos afetivos entre a equipe de
saúde, o paciente e os familiares. A iminência do rompimento de tal vínculo foi
representada nas narrativas pelo processo do luto antecipatório e, dentre as estratégias
para enfrentamento, os participantes incluíram: a tentativa de adotar um distanciamento
afetivo e cognitivo do cuidado paliativo, uma separação entre a vida pessoal e a vida
profissional, o apoio da equipe de saúde e a espiritualidade. O contato com a morte no
ambiente de trabalho apresentou-se como uma ruptura, sendo seguida por um processo
de transição e adaptação à rotina dos cuidados paliativos. Propõe-se, desta forma, uma
reflexão sobre a formação profissional voltada para uma educação para a morte, assim
como sobre a necessidade de um suporte para o profissional lidar com o luto vivenciado
diante da perda.
Palavras-chave: Cuidados paliativos, profissionais, morte, pediatria.
7 ABSTRACT Death is believed to be one of the most traumatic experiences for the human
being, as it brings personal pain and also for having been culturally set up as taboo in
most societies. Learning how to deal with death is a challenge faced by health care
professionals involved in palliative care, which is characterized as an emerging
approach that adopts a policy of outreach support to individuals and their families at
crucial moments in the face of death. This study sought to analyze the meanings of
palliative care for health care professionals who work in Pediatric Oncology. Narrative
interviews were carried out, being relevant topics: palliative care, coping strategies,
social support networks, family, religious beliefs, health care practices. The interviews
were conducted in two charitable hospitals in Salvador, Bahia, with five professionals:
doctor, nurse, nursing technique, dentist and psychologist. The model of narrative
analysis proposed by Lieblich, Tuval-Mashiach and Zilber (1998) was used. The
meanings of palliative care, generally speaking, are associated with an approach that
prioritizes measures of comfort and pain reduction. The most important health care
practices reported concern communication and decision-making process, both under the
responsibility of the physician. Difficulties related to inform a mother about the
imminent death of a son, and to include the child in the decision-making process, were
highlighted. Palliative care appears associated to suffering and to a painful process in
which strong affective bonds are formed between the health team, the patient and family
members. The imminence of the breakup of such bond has been represented in the
narratives by anticipatory mourning process, and among the reported coping strategies,
participants included: trying to adopt an affective and cognitive distance of the
palliative care situation, searching some separation between the personal life and
professional life, getting support from the work team of health and leaning on
spirituality. Contact with death in the workplace presented itself as a rupture, being
followed by a process of transition and adaptation to the routine of palliative care. It is
important, therefore, to propose a reflection on professional training oriented towards an
education for death, as well as pointing out the need for a support professional to deal
with the grief experienced before the loss.
Key words: Palliative care, health professionals, death, pediatrics.
8 LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: MAPA ILUSTRATIVO DA REVISÃO DE LITERATURA SOBRE OS CUIDADOS PALIATIVOS ........... 17 FIGURA 2: MAPA ILUSTRATIVO DA REVISÃO DE LITERATURA SOBRE OS CUIDADOS PALIATIVOS NA PEDIATRIA ........................................................................................................................................................ 19 FIGURA 3: MODELO TEÓRICO ILUSTRATIVO SOBRE OS FENÔMENOS ESTUDADOS NO PRESENTE TRABALHO. ....................................................................................................................................................... 48 FIGURA 4: TEMAS E SUBTEMAS ELABORADOS PARA A ANÁLISE DOS DADOS ............................................... 63 FIGURA 5: MAPA DESCRITIVO DOS CONTEÚDOS NARRADOS PELO MÉDICO CARLOS .................................. 99 FIGURA 6: REDE DE SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AOS CUIDADOS PALIATIVOS NA ONCOLOGIA PEDIÁTRICA NA PERSPECTIVA DO MÉDICO CARLOS ............................................................................... 109 FIGURA 7: REDE DE SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AOS CUIDADOS PALIATIVOS NA ONCOLOGIA PEDIÁTRICA NA PERSPECTIVA DA TÉCNICA DE ENFERMAGEM ............................................................. 112 FIGURA 8: REDE DE SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AOS CUIDADOS PALIATIVOS NA ONCOLOGIA PEDIÁTRICA NA PERSPECTIVA DA ENFERMEIRA ..................................................................................... 113 FIGURA 9: REDE DE SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AOS CUIDADOS PALIATIVOS NA ONCOLOGIA PEDIÁTRICA NA PERSPECTIVA DA DENTISTA ........................................................................................... 115 FIGURA 10: REDE DE SIGNIFICADOS ASSOCIADOS AOS CUIDADOS PALIATIVOS NA ONCOLOGIA PEDIÁTRICA NA PERSPECTIVA DA PSICÓLOGA ......................................................................................... 117 FIGURA 11: MAPA DESCRITIVO DOS CONTEÚDOS NARRADOS PELA TÉCNICA DE ENFERMAGEM TINA 136 FIGURA 12: MAPA DESCRITIVO DOS CONTEÚDOS NARRADOS PELA ENFERMEIRA JÉSSICA ................... 137 FIGURA 13: MAPA DESCRITIVO DOS CONTEÚDOS NARRADOS PELA DENTISTA LEILA ............................ 138 FIGURA 14: MAPA DESCRITIVO DOS CONTEÚDOS NARRADOS PELA PSICÓLOGA POLIANA .................... 139 9 Sumário
1. APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 13 2. REVISÃO DE LITERATURA ......................................................................................................... 18 3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................................................................................... 27 3.1 CULTURA E SIGNIFICADO .................................................................................................................... 27 3.2 MORTE, CULTURA E SIGNIFICADO ................................................................................................. 35 3.3 LUTO E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADO ....................................................................................... 37 4. DELINEAMENTO DO OBJETO DE ESTUDO ............................................................................. 43 4.1 O CONTEXTO DE CUIDADOS PALIATIVOS .................................................................................... 43 4.2 LUTO ANTECIPATÓRIO ......................................................................................................................... 49 4.3 PRÁTICAS DE ATENÇÃO À SAÚDE ................................................................................................... 51 4.3.1 Cuidados físicos ................................................................................................................................. 51 4.3.2 Tomada de decisões ......................................................................................................................... 51 4.3.3 Comunicação ...................................................................................................................................... 52 4.4 PERGUNTA DE INVESTIGAÇÃO E PRESSUPOSTO ..................................................................... 54 4.5 OBJETIVOS .................................................................................................................................................. 54 4.5.1 Objetivo geral .................................................................................................................................... 54 4.5.2 Objetivos específicos ........................................................................................................................ 54 5. DELINEAMENTO METODOLÓGICO .......................................................................................... 55 5.1 ESTRATÉGIA GERAL DA PESQUISA ................................................................................................. 55 5.2 PARTICIPANTES ....................................................................................................................................... 55 5.3 COLETA DOS DADOS .............................................................................................................................. 57 5.4 ANÁLISE DOS DADOS ............................................................................................................................. 58 5.5 QUESTÕES ÉTICAS .................................................................................................................................. 60 6. RESULTADOS E DISCUSSÃO ....................................................................................................... 62 6.1 OS SIGNIFICADOS DE CUIDADOS PALIATIVOS NARRADOS PELOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE ........................................................................................................................................................... 62 6.1.1 Caracterização geral sobre os cuidados paliativos ............................................................. 63 6.1.2 Práticas de assistência à saúde ................................................................................................... 70 6.1.3 A relação com a família ................................................................................................................. 75 10 6.1.4 A percepção do paciente a partir da visão dos profissionais .......................................... 81 6.1.5 Morte ..................................................................................................................................................... 84 6.1.6 Processo de luto ................................................................................................................................ 91 6.2 A DINÂMICA DA EXPERIÊNCIA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NOS CUIDADOS PALIATIVOS ....................................................................................................................................................... 98 6.2.1 CASO 1: Médico Carlos .................................................................................................................... 98 6.2.2 CASO 2: Técnica de enfermagem Tina .................................................................................. 110 6.2.3 CASO 3: Enfermeira Jéssica ........................................................................................................ 112 6.2.4 CASO 4: Dentista Leila ................................................................................................................. 113 6.2.5 CASO 5: Psicóloga Poliana ......................................................................................................... 115 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 127 APÊNDICE A ...................................................................................................................................... 133 APÊNDICE B ...................................................................................................................................... 134 APÊNDICE C ...................................................................................................................................... 136 11 - "A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é,
começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda,
dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
(...) A vida das gentes nesse mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda;
pisca e ama;pisca e cria filhos; pisca e geme os
reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?".
(Monteiro Lobato, 1936, trecho de “Memórias da Emília”). 12 1. APRESENTAÇÃO É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do
que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças
perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental.
Edgar Morin
Nascemos, vivemos e morremos. Esta é uma certeza, uma verdade histórica,
universal e comum a todas as culturas ditas humanas que já existiram e existem no
mundo atual. Acredita-se que a morte é uma das experiências mais traumáticas para o
ser humano por originar uma carga de perda e de dor para si e por também ser,
culturalmente, um assunto tabu e evitado de ser abordado na maioria das sociedades.
Dar suporte aos indivíduos e a suas famílias em momentos cruciais diante da
morte é a política assistencial da emergente abordagem dos cuidados paliativos. Esta
abordagem é interdisciplinar e visa a melhorar a qualidade de vida dos pacientes em
estados terminais e das suas famílias, através da prevenção e alívio do sofrimento, com
foco no tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual1.
Acredita-se atualmente que essa abordagem deve ser aplicada o mais breve possível a
pacientes com doenças crônicas ou potencialmente fatais, e não somente em seu estado
terminal (WHO, 2012).
Inicialmente, esta abordagem foi oferecida a indivíduos com câncer, passando a
ganhar maior reconhecimento e visibilidade e ser utilizada com indivíduos portadores
de outras doenças. De acordo com Milicevic (2002), o serviço de informações do St.
Christopher’s Hospice2 evidencia que existem mais de 7000 hospices ou serviços de
cuidados paliativos em 90 países no mundo. Na América Latina, há mais de 100
serviços destinados ao cuidar no final da vida e, já no Brasil, há indícios apenas de 30
serviços que oferecem cuidados paliativos (Melo, A. G., 2003, conforme citado por
Floriani, 2008).
Floriani (2008) aponta que a política de cuidados paliativos no Brasil ainda se
apresenta tímida, incipiente e desarticulada, enfrentando o desafio de incorporação desta
1
Definição da abordagem dos cuidados paliativos obtida no site oficial da Organização Mundial da Saúde:
http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/
2
The Hospice Information Service. Hospice and Palliative Care Facts and Figures 2001, St. Christopher’s
Hospice, London, 2001 13 prática ao sistema de saúde vigente. O primeiro hospice (lugar onde são atendidos os
pacientes fora dos recursos de cura) brasileiro surgiu no ano de 1944 na cidade do Rio
de Janeiro, atendendo à demanda de cuidado a pacientes com câncer avançado. O
mesmo autor observa que o movimento dos cuidados paliativos somente veio a crescer
nos anos 1980, com o surgimento de novos centros para tratamento de pacientes
oncológicos em estado avançado e com dor crônica.
Aprender a lidar com perdas e com a morte são desafios enfrentados pela família
e pelos profissionais envolvidos no contexto de cuidados paliativos. Destaca-se a
vivência do luto, o qual é considerado como uma reação à perda e pode ter um percurso
normal ou patológico. Os sintomas mais característicos do luto são episódios agudos de
dor, com grande ansiedade e sofrimento psíquico (Parkes, 1998). O autor também
afirma que a dor do luto faz parte da vida, bem como a alegria de viver, e que talvez
seja o preço que paguemos pelo amor.
Em um contexto de cuidados paliativos, destaca-se a especificidade da vivência
do luto antecipatório, por ocorrer anteriormente ao marco objetivo da data da morte. O
luto antecipatório pode ser considerado como um fenômeno que favorece uma
adaptação à situação, o qual permite que haja uma preparação emocional e cognitiva
para a ocorrência da morte, tanto para o paciente quanto para a família (Fonseca, 2012).
De acordo com Santos (2009), quando se tratam dos profissionais de saúde, uma
grande dificuldade enfrentada é seguir os principais pressupostos da sua formação
profissional, que são prevenir, curar e salvar vidas. Destaca-se ainda uma inadequada
formação do profissional de saúde no que se refere a lidar com a morte, faltando-lhe
subsídios para que enfrente sentimentos de impotência, de culpa e de insatisfação
consigo mesmo, o que termina por distanciá-lo do paciente e, consequentemente, da
família (Santos, 2009).
Na revisão de literatura realizada para o presente estudo apresentada na Figura 1,
observa-se reduzida produção, principalmente nacional, e podem ser identificados seis
eixos temáticos referentes à produção na área dos cuidados paliativos: dor/sintomas;
humanização; profissionais (formação, dificuldades enfrentadas, percepção do cuidado e
comunicação); cuidador (dificuldades enfrentadas, enfrentamento da morte, assistência
ao cuidador); metodologia de pesquisa; gestão do cuidado paliativo (questões éticas e
dificuldades, concepção do cuidado paliativo e modelos assistenciais).
14 No que se refere à produção de artigos sobre os cuidados paliativos na pediatria,
o número encontrado foi ainda mais restrito, consistindo em uma clara lacuna a
demandar maior investigação por parte da comunidade científica. Na definição de
cuidados paliativos na infância3, a OMS afirma que esta abordagem abrange o cuidado à
criança em sua totalidade (corpo, mente e espírito), fornecendo suporte também à sua
família. Os profissionais de saúde possuem o objetivo de aliviar o sofrimento físico,
psicológico e social do paciente pediátrico, podendo essa assistência ser prestada em
instalações de atendimento terciário, em centros comunitários de saúde e até mesmo nas
casas das crianças.
O tema morte surge, socialmente, associado à conspiração do silêncio e à
dificuldade de comunicação, o que dificulta a compreensão acerca desse fenômeno e do
seu impacto na vida humana. No entanto, a construção social acerca da mesma, ainda
que silenciada, interfere tanto nos comportamentos diante de tal fenômeno, quanto em
outras esferas mais amplas da vida humana. Neste sentido, a situação de cuidados
paliativos surge como um momento privilegiado para nos permitir o confronto mais
direto e uma reflexão mais vívida acerca da morte. Por tais características, este contexto
configura-se como uma situação na qual se tornam mais evidentes nossas crenças,
sentimentos, e atitudes em relação à morte, as quais estão geralmente circunscritas aos
medos e receios de enfrentá-la.
Assim, levando-se em conta tais peculiaridades, é possível supor o momento
dos cuidados paliativos como um cenário adequado para compreensão acerca dos
significados envolvidos na morte. Vygotsky (1989) acredita que o significado é uma
generalização ou um conceito, sendo este um fenômeno do pensamento verbal e da fala
significativa. De acordo com Mesquita (2005), são os significados que orientam a ação
do homem e sua relação com o mundo, configurando-se como zonas mais estáveis e
compartilhadas. Significados, neste trabalho, são tomados em referência à perspectiva
histórico-cultural, a qual compreende o sujeito como constituído nas suas relações
sociais, o que permite analisá-lo enquanto práticas de atores sociais, construídas
culturalmente.
3
Definição obtida no site oficial da Organização Mundial da Saúde: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/ 15 “Através do conhecimento de significados culturais acerca de determinado
objeto, é possível compreender a prática que se dispensa a esse mesmo objeto”
(Mesquita, 2005, pp. 16)
Desta forma, a análise dos significados associados aos cuidados paliativos
permite a compreensão do que está instituído e compartilhado nesta situação, incluindo
as ações e práticas de assistência à saúde, assim como a análise dos sentidos permite a
compreensão das emoções e os aspectos particulares de cada sujeito nessa realidade. As
experiências singulares de cada indivíduo produzem novos sentidos pessoais para os
significados compartilhados socialmente (Mesquita, 2005).
Considerando a clara lacuna de estudos sobre cuidados paliativos, especialmente
na oncologia pediátrica, e a centralidade que a sua compreensão desempenha na
determinação de práticas, vivências e conflitos entre os atores envolvidos na situação, o
objetivo deste estudo é analisar os significados sobre cuidados paliativos de crianças
com câncer a partir da perspectiva dos profissionais de saúde e identificar como estes
atores atuam na área.
16 FIGURA 1: Mapa ilustrativo da revisão de literatura sobre os Cuidados Paliativos
17 2. REVISÃO DE LITERATURA Para a revisão de literatura mais específica ao tema abordado nesta pesquisa,
foram selecionadas produções relacionadas ao cuidado paliativo na pediatria e à
perspectiva dos profissionais de saúde nesta abordagem.
Na revisão de literatura, foram selecionados 36 artigos produzidos na área dos
cuidados paliativos pediátricos. Para a organização da revisão, foram construídas quatro
categorias referentes ao foco do tema abordado, sendo elas o profissional de saúde, o
cuidador, a gestão dos cuidados paliativos e o tema morte. Dentro de cada categoria,
foram elaboradas subcategorias para maior especificação dos estudos, sendo estes
apresentados no mapa correspondente à Figura 2.
Foi possível observar um equilíbrio entre a literatura nacional e a literatura
internacional, sendo que a maior parte das pesquisas empíricas corresponde a estudos
estrangeiros e, na literatura nacional, a maior parte caracteriza-se como uma revisão de
literatura. A maior parte dos estudos selecionados corresponde às questões da gestão do
cuidado paliativo, discutindo os modelos de assistência e as questões éticas, as
dificuldades e os conflitos diante desse contexto. Destaca-se a maior produção no
campo da enfermagem, de uma maneira geral, e, na literatura nacional, foi possível
selecionar diversos artigos produzidos pela psicologia.
Na literatura nacional, foi possível encontrar artigos relacionados às questões
éticas, dificuldades e conflitos na gestão dos cuidados paliativos, às práticas de
assistência, à formação dos profissionais de saúde, à concepção dos cuidados paliativos,
à perspectiva da morte pela equipe de saúde e à associação do câncer à iminência da
morte. Já na literatura internacional, foi encontrado um maior número de artigos
empíricos e os temas foram as questões éticas, dificuldades e conflitos na gestão dos
cuidados paliativos, as práticas de assistência, a formação dos profissionais de saúde, o
luto do profissional e o cuidador, conforme apresentado na Figura 2 a seguir.
18 FIGURA 2: Mapa ilustrativo da revisão de literatura sobre os Cuidados Paliativos na Pediatria
19 Morte
Na literatura nacional foram encontrados poucos artigos científicos empíricos
com o objetivo de explorar o contexto dos cuidados paliativos pediátricos. Mendes,
Lustosa & Andrade (2009) em seu estudo buscaram descrever os aspectos
fundamentais presentes na relação da equipe de saúde com o paciente terminal e os
seus familiares, com foco nos estágios psíquicos diante da morte. Trata-se de um
estudo de revisão de literatura, no qual foi evidenciada a importância do psicólogo no
contexto de cuidados paliativos, para facilitar essas relações, visando melhor
comunicação, além do suporte psicológico no momento crucial da morte.
Quando se trata do paciente terminal, Mendes, Lustosa & Andrade (2009)
destacam a valorização de um trabalho preventivo diante do luto antecipatório, para
facilitar a experiência diante da morte. O resultado deste estudo pode reforçar a visão
do efeito positivo do luto antecipatório diante de uma evolução saudável do luto
normal, pós morte. Evidencia também que o luto antecipatório pode ser entendido
como um processo adaptativo para o luto normal (Rando, 1986; Rando, 2000 apud
Fonseca, 2012).
Froelich (2011), através de uma revisão de literatura, buscou apresentar a
relação entre o diagnóstico de câncer e a ideia eminente da terminalidade. A autora
foca nos trabalhos acerca do ciclo de vida e morte e conclui que o temor de morte
quase sempre acompanha o diagnóstico oncológico. Desta forma, o adoecimento de
um filho desencadeia uma série de reações emocionais dos pais, que podem requerer
um suporte psicológico diante de tal experiência. Na conclusão do artigo é ressaltada
a importância da psico-oncologia, com o objetivo de promover intervenções
preventivas e facilitar o enfrentamento no contexto de cuidados paliativos.
Novamente observa-se a indicação de uma atuação do psicólogo com foco na
prevenção, para facilitar a experiência dos familiares diante da perda de um ente
querido. No caso do estudo de Froelich (2011), propõe-se um trabalho do psicólogo
anterior à morte em si, no qual deve ser considerada a vivência do luto antecipatório,
desde o momento em que se tem o diagnóstico de câncer e a sua associação com a
iminência da morte. O estudo discute também a importância de trabalhar com a
prevenção para facilitar o processo do luto parental, ou seja, realizar um trabalho com
20 o luto antecipatório conduzindo um processo de adaptação para os pais que vivem
com suas crianças em adoecimento e/ou estado terminal.
Um artigo encontrado durante a revisão da literatura, foi o de Combinato &
Queiroz (2011), que realizaram entrevista individual semiestruturada com 13
profissionais da área de saúde (6 médicos e 7 enfermeiros), com o objetivo de
explorar a concepção de morte em geral, a sua construção social. Os autores
concluíram, a partir dos dados, que são identificadas três principais concepções de
morte: como consequência da vida, como processo biológico e como benção divina.
Foram identificadas também dificuldades para acessar o tema, no momento em que
não há um campo apropriado para o seu desenvolvimento mais sistemático, com o
espaço para as representações do profissional acerca da morte.
De acordo com o estudo de Hermes & Lamarca (2013), foi possível observar
que a morte é um tabu para todas as categorias profissionais de saúde. Os autores
afirmam que a morte contemporânea implica em um cuidado dos profissionais com o
fim da vida com dignidade para o paciente, fornecendo voz ao mesmo e permitindo
escolhas. Apesar da dificuldade em lidar com o assunto, a filosofia da morte
contemporânea está começando a ser discutida socialmente, principalmente pelo
envelhecimento da população.
Diante da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, observa-se a
importância de compreender o significado para poder intervir na ação dos indivíduos.
Desta forma, torna-se importante a compreensão acerca da morte para se entender e
poder trabalhar/facilitar a experiência dos profissionais, assim como dos pacientes e
familiar, diante da morte. Combinato & Queiroz (2011) apontam a necessidade de
explorar o tema e modificar o contexto institucional e de educação na saúde.
Profissional de saúde
Alguns estudos apontam uma falha na formação dos profissionais de saúde
para o enfrentamento da morte e do luto. Bifulco & Iochida (2009) propõem uma
educação para a morte, voltada para cursos de cuidados paliativos, objetivando formar
uma atitude humanitária nos futuros profissionais em relação ao paciente em
iminência da morte. Os autores identificaram uma necessidade de capacitar os
21 profissionais de saúde a enfrentarem o cuidado deste paciente, através de uma
formação voltada para o conhecimento do processo da morte e do morrer.
O estudo de Yazdani, Evan, Roubinov, Chung & Zeltzer (2010) buscou
explorar possíveis efeitos do currículo de cuidado paliativo pediátrico no nível de
conforto do residente ao cuidar de uma criança gravemente enferma. Foi possível
observar que apenas 7% dos residentes se sentiram preparados adequadamente para
lidar com a morte e o morrer. Os residentes apresentam um maior conforto em
algumas áreas do cuidados paliativos após o ano da residência e não se sabe a causa
desta relação.
Roth, Wang, Kim & Moody (2009) buscaram analisar o impacto do
treinamento em cuidados paliativos para os profissionais e identificaram uma lacuna
significante na formação profissional no que se refere ao processo do morrer Os
participantes (oncologistas pediátricos) consideraram a importância do treinamento
em cuidados paliativos, porém pontuaram que não há a disciplina de cuidados
paliativos em nenhum dos currículos dos programas de residência médica na área.
Em entrevista com dois professores de enfermagem na área de cuidados
paliativos para compreender os aspectos envolvidos no ensino da abordagem, Nicholl
& Price (2012) concluíram que há uma ambiguidade na terminologia e lacuna na
clareza do conceito de cuidado paliativo, assim como pontuaram uma complexidade
em ensinar tópicos relacionados à sensibilidade do sujeito para grandes grupos.
Hermes & Lamarca (2013) realizaram uma revisão bibliográfica de artigos
relacionados à perspectiva do cuidado paliativo a partir das categorias profissionais,
sendo elas a medicina, o serviço social, a psicologia e a enfermagem. Puderam
observar que existem poucos serviços de cuidados paliativos no Brasil, e que há uma
carência na formação dos profissionais no que se refere ao tema da morte. Além disso,
identificaram barreiras para a um novo olhar sobre o paciente terminal e, para todas as
categorias profissionais abordadas, o conceito de cuidados paliativos adotado foi o
formulado pela OMS.
Hermes & Lamarca (2013) identificaram, também, que os cuidados paliativos
pressupõem a ação de uma equipe multiprofissional, pela necessidade de cuidar do
paciente nos diversos aspectos: físico, espiritual, mental e social. O serviço social
22 possui o papel de informar à equipe sobre quem o paciente é em seus aspectos sociais
e também estabelece um elo entre o paciente, a família e a equipe. Nos estudos
analisados, Hermes & Lamarca (2013) identificaram os temas que associam o serviço
social e os cuidados paliativos: o trabalho do serviço social com as famílias dos
pacientes terminais, a importância de uma equipe multiprofissional no cuidado aos
pacientes, e a comunicação do óbito aos familiares.
No que se refere à psicologia, Hermes & Lamarca (2013) pontuam o papel do
psicólogo diante da terminalidade e da busca por uma qualidade de vida do paciente,
reduzindo o sofrimento, a ansiedade e a depressão perante a morte. Nos artigos
encontrados que se referem à psicologia, os autores identificaram os seguintes temas:
a apresentação da morte no tempo e no espaço, a importância da equipe
multiprofissional nos cuidados paliativos, bioética, ansiedade, depressão, eutanásia,
mistanásia, ortotanásia e distanásia.
Na enfermagem, Hermes & Lamarca (2013) identificaram o maior número de
artigos produzidos sobre cuidado paliativo e os temas foram: a carência de disciplinas
na formação profissional voltadas para a morte e despreparo para lidar com pacientes
terminais. Os profissionais de enfermagem utilizam o conceito de cuidados paliativos
formulado pela OMS, o que condiz com uma perspectiva mais humanizada do
cuidado. Os autores observaram que a enfermagem é uma das categorias que mais
sofre desgaste emocional devido ao contato intenso com os pacientes enfermos e,
consequentemente, com a dor, o sofrimento e a morte.
Hermes & Lamarca (2013) afirmam que o médico possui uma formação
voltada para o diagnóstico e tratamento das doenças, o que se contrapõe à abordagem
dos cuidados paliativos, no qual o foco se torna o doente. Os autores destacam o
desafio de mudança de paradigma do cuidado, o sentimento de fracasso por não
conseguir curar e a necessidade de aprender a trabalhar em equipe, para poder
alcançar a demanda do paciente por completo.
Um estudo realizado por Nascimento et al (2013) buscou compreender a visão
da equipe multiprofissional diante da criança portadora de leucemia em cuidados
paliativos, em uma pesquisa qualitativa com 17 profissionais. Identificou-se que há
uma pouca experiência na área e os profissionais expressaram a dificuldade em lidar
com os sentimentos diante da angústia e da iminência da morte. Apesar do
23 sofrimento, os profissionais demonstraram gostar do trabalho, o que favorece o
acolhimento e o respeito ao paciente e aos familiares.
A gestão dos cuidados paliativos
Menezes & Barbosa (2013) trazem uma reflexão acerca da perspectiva do
cuidado paliativo, que possui o objetivo de fornecer uma morte digna, pacífica,
tranquila, aceita e compartilhada socialmente. Os autores diferenciam a abordagem
dos cuidados paliativos para adultos e para crianças e destacam que, na infância, a
doença terminal se torna um drama social, por ser uma etapa da vida tão valorizada na
sociedade ocidental contemporânea.
De acordo com Menezes & Barbosa (2013), uma análise documental do
modelo de cuidados paliativos na pediatria sugeriu que os profissionais valorizam o
autocuidado, por atribuírem um significado terapêutico ao próprio ego. É necessário
que o profissional trabalhe de modo racional, afetivo e humanizado, com autocuidado
e autocontrole emocional, para que tenha uma interação adequada com os pacientes e
com os familiares.
No que se refere ao processo de tomada de decisão, Menezes & Barbosa
(2013) identificaram que o cuidado paliativo pediátrico possui uma diferença na
inclusão do paciente, por ser uma criança – um ser em formação. Os autores destacam
que os paliativistas incluem, no processo de tomada de decisão, as crianças tidas
como autônomas, ou seja, crianças que já alcançaram um determinado
desenvolvimento emocional e cognitivo.
Como prática de assistência à criança em cuidado paliativo, Menezes &
Barbosa (2013) afirmam ser necessária a facilitação da expressão dos desejos da
criança e cabe à equipe e aos pais possibilitar a sua concretização, se possível. No que
se refere à concepção da boa morte, há uma especificidade na pediatria pois a criança
não possui desenvolvimento emocional suficiente para participar da decisão do seu
cenário de morte, além de ser difícil conceber a beleza na morte de uma criança.
Foram encontrados alguns estudos da enfermagem referentes aos cuidados
paliativos na pediatria. Costa & Ceolim (2010), em uma revisão de literatura,
24 buscaram identificar as ações da enfermagem e concluíram que o trabalho em equipe,
o cuidado domiciliar, o manejo da dor, o diálogo, o apoio à família e as
particularidades do câncer infantil são fundamentais para a enfermagem na assistência
no contexto de cuidados paliativos. Foi possível destacar, também, a importância do
cuidado com solidariedade, compaixão, apoio e com o objetivo de aliviar o
sofrimento. O cuidado da enfermagem deve atender às necessidades biopsicossociais
do paciente e do familiar, garantir a dignidade, promover a qualidade de vida e
respeitar a individualidade, como aspectos importantes para a humanização do
cuidado.
Já Silva & Sudigursky (2008), em uma revisão de literatura, buscaram
identificar as concepções de cuidados paliativos apresentados pelos enfermeiros. Os
autores identificaram uma lacuna na oferta dos cuidados paliativos no Brasil e a
concepção da abordagem refere-se à um cuidado integral, com ênfase no aspecto
físico, psicossocial e espiritual do indivíduo e da família, na qualidade de vida, no
cuidado baseado em uma abordagem humanística e de valorização da vida, no
controle da dor e dos demais sintomas, nas questões éticas sobre a vida e a morte, na
abordagem multidisciplinar, no morrer como processo natural, na prioridade do
cuidado sobre a cura, na comunicação, na espiritualidade e no apoio ao luto.
O estudo realizado por Avanci, Góes, Carolindo & Netto (2009), através de
entrevista com cinco enfermeiros com o objetivo de discutir os cuidados prestados à
criança com câncer sob cuidados paliativos, concluiu que o cuidar da criança com
câncer é um processo de sofrimento e um misto de emoções para o profissional. Foi
possível observar também que os cuidados voltam-se para a promoção do conforto,
para o alívio da dor e dos sintomas, para o atendimento às necessidades
biopsicossociais e espirituais, e para o apoio à família.
Em um estudo realizado com 303 pediatras, com o objetivo de descrever as
barreiras para o cuidado paliativo, Knapp & Thompson (2011) identificaram que as
barreiras mais apontadas foram a relutância da família em aceitar o cuidado paliativo
e a visão da família de que o cuidado paliativo é uma desistência. Os autores sugerem
intervenções educativas para os familiares.
25 Cuidador
No que se refere à perspectiva do cuidador (familiar), foram selecionados
apenas dois trabalhos, que demonstraram estar relacionados às práticas da equipe de
saúde, o que condiz com os objetivos do atual estudo.
No estudo de Meyer, Ritholz, Burns & Truog (2006), foram entrevistados 56
pais que perderam seus filhos em uma situação de cuidados paliativos. Os
participantes destacaram seis prioridades na assistência à saúde: informações honestas
e completas, acesso fácil à equipe, cuidado e comunicação coordenados, expressão
emocional e suporte pela equipe, preservação da integridade da relação entre pais e
filhos, e a fé.
Já no estudo de Widger & Picot (2008), no qual foram entrevistadas 38
famílias acerca do cuidado recebido no final da vida de seus filhos. Os participantes
identificaram áreas problemáticas na assistência na situação de cuidados paliativos:
comunicação entre os profissionais de saúde, relacionamento com os profissionais de
saúde, cuidado no momento da morte e a atenção ao processo de luto dos familiares.
No contexto de cuidados paliativos, o trabalho é realizado em equipe
multiprofissional e o foco da atenção se torna o doente e a família, principalmente
quando se trata da pediatria. Observa-se que, no estudo de Meyer et al (2006), as
necessidades expressas pelos familiares corroboram com os princípios éticos dos
cuidados paliativos como integrar aos cuidados os aspectos psicossociais e espirituais
e oferecer um sistema de suporte para que os familiares sintam-se amparados durante
o processo da doença (WHO, 2007), assim como o não-abandono (estar junto ao
paciente, estabelecendo uma comunicação empática e aceitando o desafio de lidar
com a finitude humana) e a veracidade (comunicação clara com o paciente e
familiares) (Pessini, 2001).
26 3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Considerando-se os objetivos da pesquisa, a fundamentação teórica será
guiada pela abordagem da Psicologia Cultural, sendo dada ênfase à definição de
cultura e a relação com a construção do significado. A primeira seção, Cultura e
significado, consiste em um aprofundamento de tais conceitos sob a luz de autores
como Vygotski e Valsiner. Na segunda seção, Morte, cultura e significado, serão
apresentados significados construídos acerca da morte ao longo da história humana.
Na terceira seção, Luto e construção de significado, destaque será dado para a
vivência do luto enquanto construção do significado, questões centrais para a
elaboração do presente estudo.
3.1 CULTURA E SIGNIFICADO
Este trabalho apresenta como referencial teórico a perspectiva da Psicologia
Cultural do Desenvolvimento. Esta abordagem ressalta a importância do tempo e do
espaço para a compreensão do comportamento humano. Para o presente estudo, o
valor do contexto cultural, a consideração do momento de vida e a noção do tempo
enquanto irreversível para os atores envolvidos no contexto de cuidados paliativos na
oncologia pediátrica, são fundamentais para a exploração do tema. Além disso, a
abordagem da Psicologia Cultural contribui para a compreensão das trajetórias da
vida humana através das evidências das ambivalências e tensões presentes.
Ao buscar compreender o fenômeno dos cuidados paliativos no contexto da
oncologia pediátrica, pode-se perceber que a noção cultural sobre a morte vem
associada a valores sociais e são internalizadas individualmente. É possível observar
que a morte, além de um fenômeno biológico, se caracteriza também como uma
situação social e culturalmente regulada através da combinação de diversos signos
compartilhados que atuam como um guia social.
A literatura e a experiência social demonstram que a morte é um fenômeno
complexo e polissêmico, devido aos diversos significados e sentidos produzidos pelas
27 diferentes pessoas, grupos e comunidades. Tal diversidade pode ser refletida na
diferentes conceitualizações do fenômeno da morte, as quais orientam todos os que
trabalham e vivenciam tal temática. A perspectiva histórico-cultural tem ajudado a
compreender a subjetividade humana através da compreensão e explicação do
significado (Mesquita, 2005).
A relação do homem com o mundo e com os outros ocorre através dos
significados (Mesquita, 2005). De acordo com Vygotsky (1989), o significado da
palavra é uma unidade do pensamento verbal. O autor afirma que do ponto de vista da
psicologia, o significado pode ser considerado como uma generalização ou um
conceito, sendo este um fenômeno da fala significativa ou do pensamento verbal, ou
seja, uma união do pensamento e da palavra.
O significado pode ser considerado como uma ideia e representação, mas
também como as ações e disposições práticas, ajudando na compreensão do
comportamento humano. Tal compreensão implica em uma relação social, o que nos
permite concluir que o processo de significação é uma construção social (Mesquita,
2005). De acordo com a autora, o significado é um fenômeno social e pode ser
considerado como organizador da consciência humana.
A análise do significado só é possível no contexto específico no qual é
produzido, pois, de acordo com Mesquita (2005), o significado é histórico,
determinado e indissociável de uma cultura específica e das relações sociais de uma
determinada época na qual surge. O significado depende tanto do contexto social no
qual emerge quanto dos sujeitos diversos de cada situação.
Vygotsky (1989) diferencia sentido e significado e afirma que há um
predomínio do sentido sobre o significado. De acordo com o autor, o sentido é um
complexo fluído e dinâmico, sendo ele a soma dos eventos psicológicos da
consciência despertados pela palavra. O significado desta vez é apenas uma zona do
sentido, sendo mais estável e preciso. Vygotsky (1989) afirma que o sentido da
palavra é adquirido no contexto em que surge e este é alterado com a mudança dos
contextos. Já o significado permanece estável, mesmo com todas as mudanças do
sentido. Ele se caracteriza como conteúdos instituídos que são fixos e compartilhados,
sendo apreendidos pelo sujeito (Aguiar e Ozella, 2006).
28 Quando o conteúdo de uma palavra se altera, o modo pelo qual a realidade é
generalizada e refletida em uma palavra também se altera (Vygotsky, 1989). Desta
forma, o autor ressalta a dinâmica na formação dos significados das palavras. Pode-se
considerar o sentido de uma palavra com um caráter mais individual, no momento em
que é um fenômeno móvel e variável, a depender da situação e da mente que o utiliza
e o constrói.
Mesquita (2005) acredita que os sentidos se relacionam com a realidade
particular do sujeito e com as emoções, sendo eles um elemento de ligação entre a
subjetividade do sujeito e o contexto social mais amplo. O significado é construído
em um contexto social de interação verbal, sendo permeado por uma experiência
individual que reflete uma realidade psicológica única. Desta forma, o sentido pode
ser considerado como construtor de tal individualidade, integrando as emoções,
valores e experiências com o mundo e participando também da construção dos
significados (Mesquita, 2005).
Valsiner (2000) ressalta a principal contribuição da teoria de Vygotsky, que foi
a demonstração de que o processo de viver através de experiências constrói novidade.
O autor destaca a mediação semiótica e afirma que o uso dos signos permite a
distinção das funções psicológicas mais avançadas. O uso dos signos permite a síntese
de novos significados, sendo distintiva no sistema psicológico abordado na teoria de
Vygotsky a questão da síntese desenvolvimental através dos significados culturais e
semióticos.
Aguiar e Ozella (2006) afirmam que o significado da palavra nos permite
compreender o movimento do pensamento. O instrumento psicológico que representa
o objeto na consciência é o signo, o qual facilita a compreensão do pensar, ser e agir
do sujeito. A relação do homem com a natureza é de transformação, sendo o
significado um elemento constitutivo do processo de produção cultural, social e
pessoal do sujeito.
O mundo com o significado pode ser analisado através da mediação semiótica.
De acordo com Aguiar e Ozella (2006), a mediação é uma categoria de grande
importância para a abordagem histórico-cultural e pode ser considerada o centro
organizador da relação singularidade e universalidade, as quais se constituem
29 mutuamente através de um processo dialético. A linguagem se caracteriza como um
instrumento fundamental na emergência do novo, no qual o indivíduo modifica o
social, transformando-o em psicológico.
A semiótica é a ciência dos signos e seus usos (Valsiner, 2012). De acordo
com Mesquita (2005), a mediação semiótica permite a compreensão e expressão dos
significados, através do uso dos signos. Os signos estão associados aos significados,
os quais são internalizados pelo sujeito, orientando a sua ação. Os signos e
significados são instrumentos para a comunicação e posteriormente são utilizados
para o controle e reflexão acerca do comportamento humano (Mesquita, 2005).
Através da mediação semiótica, a forma de agir sobre o meio social modifica,
sendo possível estabelecer relações com objetos sem necessitar da sua presença
concreta. Torna possível também estabelecer diálogos e planejar e prever ações
futuras, ao considerar o tempo enquanto irreversível (Mesquita, 2005).
A Psicologia Cultural assume a idéia de que a cultura e a mente são
inseparáveis. Tal abordagem lida com o estudo e impacto da cultura, tradição e
práticas sociais na psiquê que confere a unidade do ser humano. Segundo Valsiner
(2012), o mundo dos seres humanos é cultivado, através da transformação dos
recursos naturais em um mundo significativo dos objetos.
O sujeito possui um papel ativo no seu curso de desenvolvimento e na
construção de conhecimento, transformando e sendo transformado pelas mensagens
culturais, o que implica a construção da novidade (Valsiner, 2012). Segundo o autor,
é papel do estudo do desenvolvimento compreender a relação de troca entre o sujeito
e o seu ambiente cultural.
Valsiner (2012) considera, desta forma, a cultura enquanto algo dinâmico e
processual que ocorre dentro dos sistemas psicológicos humanos. A cultura pode ser
compreendida através dos processos pelos quais o sujeito se relaciona com o mundo,
ou seja, uma interação mútua entre indivíduo e ambiente que caracteriza a
constituição dos mesmos (Valsiner, 2007). A cultura pode ser abordada como o
organizador do desenvolvimento humano.
30 Os significados possibilitam a regulação do self através de uma construção
hierarquicamente organizada. A pessoa está constantemente construindo, demolindo e
reconstruindo hierarquias de significados, as quais regulam a ação da pessoa no
contexto do aqui-e-agora, permitindo a emergência da novidade (Valsiner, 2000).
Diferentes pessoas em um mesmo contexto constroem diversos significados acerca do
mesmo, utilizando signos semióticos de diferentes níveis de generalização (Valsiner,
2000). O fenômeno psicológico humano é considerado como um processo, o qual
funciona através de mediadores semióticos – os signos.
Os signos são recursos que apresentam e representam certos aspectos de uma
determinada realidade (Abbey e Valsiner, 2004). Diante da demanda de adaptação às
constantes e inúmeras incertezas das experiências pessoais, ao longo do tempo, os
signos exercem a função de facilitar a compreensão de fenômenos pessoais e/ou
sociais complexos. Abordando o uso e as funções dos signos na vida humana,
Valsiner (2005) afirma que o signo é um instrumento de mediação semiótica e
abrange o passado para o futuro possível, o que permite que o indivíduo lide com o
presente frente a tantas possibilidades do futuro. Os signos não apenas nomeiam, mas
relacionam eventos e podem ser caracterizados como um campo de possibilidades de
significação. O signo pode ser visto como o promotor do desenvolvimento (Valsiner,
2007).
A construção do signo ocorre com o objetivo de superar demandas de um
determinado processo. Eles emergem para modificar o processo e, da mesma forma,
podem desaparecer, conduzindo a construção de ferramentas culturais que serão
utilizadas em outras aplicações (Valsiner, 2012). Tais aplicações adicionais são
orientadas através da construção pessoal de regulação de alguns processos em outro
contexto temporal.
Através da mediação semiótica, pode-se afirmar que as mentes fabricam os
signos e são por eles operadas (Valsiner, 2012). A construção humana de significados
é repleta de ambiguidades, sendo atravessada por limites de tempo. Tanto as
experiências vividas no passado quanto as possibilidades futuras são afetadas pelo
presente através da construção pessoal semiótica. De acordo com Valsiner (2012), tal
fluxo temporal garante a emergência da novidade dos processos semióticos
constantemente.
31 De acordo com Valsiner (2000/2012), é através da construção e utilizações dos
mecanismos semióticos que o sujeito apreende a capacidade de se manter distante do
seu contexto de vida imediato. Desta forma, a pessoa se torna tanto ator da situação
quanto um agente reflexivo sobre o seu contexto imediato. O papel de agente
reflexivo do contexto permite que o sujeito possa considerar em seu sistema
psicológico os eventos passados e imaginar os contextos futuros, considerando
também a perspectiva de outras pessoas (Valsiner, 2000).
O desenvolvimento da pessoa e do mundo ao redor é um fenômeno cultural, e
é possível fazer uma distinção entre cultura pessoal e cultura coletiva, conceitos que
se assemelham aos conceitos de significado e sentido. A pessoa, em sua
individualidade, relaciona-se com o mundo cultural e com os significados emergentes
no contexto através de um processo constante de internalização e externalização
(Valsiner, 2000).
De acordo com Valsiner (2000), a cultura pessoal não se refere somente ao
fenômeno subjetivo internalizado, mas também as externalizações imediatas deste
processo, que são visíveis publicamente. O sistema pessoal de significados se reflete
no mundo através de arranjos importantes para a pessoa, na construção pessoal dos
domínios simbólicos que são publicamente visíveis, como na decoração do corpo, nas
organizações de objetos pessoais e nos rituais pessoais de interação interpessoal. A
externalização das culturas pessoais ocorre de maneira única e individualizada,
mesmo nas diferentes pessoas ligadas a uma mesma entidade social (como a família),
o que caracteriza a multivocalidade do discurso social (Valsiner, 2000).
A cultura coletiva, por sua vez, é composta pelas externalizações dos sistemas
pessoais de significados. A cultura coletiva é uma entidade mais estável e funciona
como um input na construção das culturas pessoais, no momento em que a pessoa em
desenvolvimento está constantemente exposta às sugestões sociais do ambiente. A
construção da cultura coletiva ocorre através das trocas comunicativas entre as
pessoas que a constroem e reconstroem (Valsiner, 2000).
De acordo com Valsiner (2012), o processo de internalização é construtivo e
se caracteriza pela análise do material semiótico contido no mundo externo e a síntese
de uma nova forma no domínio intrapsicológico. Já a externalização é o processo de
32 análise dos conteúdos pessoal-culturais expressos no contexto e a síntese de tal
material, evidenciada na modificação do ambiente externo.
Os processos de internalização e externalização das culturas pessoal e coletiva
permitem a individualidade do sujeito, a sua maneira única de ser, mesmo estando
apoiado sobre um contexto mais geral da cultura coletiva (Valsiner, 2012). Ao
construir um significado para se relacionar com o ambiente, o sujeito encontra-se
implicado em um campo de significados opostos automaticamente. Essa tensão ocorre
da interação entre a cultura pessoal e o contexto social no qual o sujeito está imerso.
Desta forma, a pessoa está constantemente em uma fronteira: do que é conhecido e do
que ainda não lhe é conhecido, mas é sugerido pelo contexto social através de
dispositivos semióticos (Valsiner, 2012).
A vida psicológica do ser humano por ser considerada afetiva em sua natureza,
no momento em que os sentimentos estão presentes nas construções simbólicas, sendo
eles próprios, culturalmente organizados pela via da criação e uso de signos (Valsiner,
2012). Destacam-se diferentes níveis de generalização nos três domínios nos quais a
experiência
humana
flui
continuamente
(microgenético,
mesogenético
e
ontogenético), nos quais ocorre a regulação da afetividade através da sugestão social
codificada em signos.
No nível microgenético incluem-se as experiências de enfrentamento da
pessoa aos momentos próximos e inéditos da sequência do tempo irreversível; no
nível mesogenético situam-se os diversos cenários e contextos de atividade que são
relativamente repetitivos (rezar, ir à escola...) e que canalizam a subjetividade humana
ao estabelecer uma gama de experiências possíveis; por fim, no nível ontogenético,
agregam-se as estruturas de significados relativamente estáveis que orientam a pessoa
durante sua vida (Valsiner, 2012).
Segundo o autor (Valsiner, 2012), momentos singulares na vida de uma pessoa
que conservam um caráter profundamente afetivo (a exemplo da perda de um filho)
podem ser culturalmente assistidos por eventos mesogenéticos (rituais), de forma a
amortecer o seu impacto no nível ontogenético de organização subjetiva. Entretanto, o
autor também ressalta a possibilidade de um evento microgenético impactar
33 diretamente significados mais estáveis do nível ontogenético, evidenciando a
dinâmica na construção dos significados.
Conforme apontado pelo autor (Valsiner, 2012), os campos afetivos superiores
regulam a experiência humana em sua totalidade, e podem aparecer como significados
hipergeneralizados que deixaram o contexto original em que emergiram, para ensaiar
novas
experiências.
De
acordo
com
Valsiner
(2007),
os
significados
hipergeneralizados das vivências sociais orientam o comportamento humano, a sua
conduta, pensamento e afetos, destacando a centralidade da cultura na mente humana.
Na presente pesquisa, destaca-se o contato com a morte e a vivência do luto, que
podem ser apreendidos como signos hipergeneralizados, conduzindo as ações dos
atores neste contexto em um tempo irreversível.
Os signos no presente auxiliam na significação acerca da variedade de
possíveis construções de experiências futuras, possibilitando que elas sejam
antecipadas subjetivamente. Isto significa que o indivíduo se orienta para situações
futuras através da construção antecipada de significado, com base em vivências
passadas (Valsiner, 2005). Desta forma, entende-se que são construídos signos com
níveis suficientes de abstração que funcionam como guias para as futuras ações e
construções semióticas, sendo estes os signos promotores do desenvolvimento
humano.
De acordo com Valsiner (2004), a mediação semiótica permite um
distanciamento psicológico do aqui-e-agora, favorecendo uma dialogicidade com o
sistema do self. Esse processo é guiado pelo signo promotor, o qual consiste em
significados generalizados tipo campo que orientam o self na construção de
significados em qualquer contexto. O processo de mediação semiótica envolve signos
em alto nível, os quais flexibilizam a hierarquia de signos para futuras transformações
necessárias. O signo promotor também funciona como um tradutor particular de
experiência do nível microgenético para o ontogenético.
O signo promotor enfatiza a extensão temporal orientada para o futuro. Os
signos promotores possuem uma maior abstração e têm a função de guiar diante das
diversas possibilidades de construções futuras. Todo mediador semiótico pode
funcionar como um signo promotor – isso ocorre no processo microgenético no
34 presente. O papel desses signos é de feed-forward – eles disponibilizam a gama de
possibilidades de significados para futuras experiências com o mundo. O signo se
torna promotor ao canalizar as ações futuras e internalizá-las na forma de sentimentos
(Valsiner, 2004).
Desta forma, o signo promotor organiza o significado para o tempo futuro,
sendo essencial para analisar e compreender as ações e práticas de atores sociais.
Quando se trata do contexto de cuidados paliativos, o signo promotor morte é capaz
de organizar os significados e sentimentos associados à perda, permeando o modo de
enfrentamento do luto.
Acredita-se que há um impacto da visão cultural sobre a morte na construção
de significados pessoais acerca dessa experiência. A morte pode ser vista como um
signo hipergeneralizado e promotor, mas que adquire diversos significados a depender
das experiências singulares – cada um constrói um significado particular para o
conceito. Observa-se um grande nível de abstração no signo morte, que apresenta a
capacidade de conduzir e guiar o comportamento humano frente aos desafios da vida.
Desta forma, a partir do significado atribuído ao signo morte, diferentes atitudes serão
encontradas na sociedade frente a esse fenômeno.
3.2 MORTE, CULTURA E SIGNIFICADO
Menezes (2004) discute a política de cuidados paliativos e afirma que esta foi
criada com o objetivo de aplacar o sofrimento do indivíduo em contraposição à
prática médica eminentemente tecnológica e institucionalizada, buscando uma nova
representação sobre a morte e um espaço para discussão de tal tema.
A morte não pode ser considerada apenas um fato biológico, mas também um
processo construído socialmente. Como nos coloca Menezes (2004),
“Como outros fenômenos da vida social, o processo do morrer pode ser
vivido de distintas formas, de acordo com os significados
compartilhados por essa experiência. (...) Os sentidos atribuídos ao
35 processo do morrer sofrem variação segundo o momento histórico e os
contextos socioculturais” (pp. 24).
Ariès (1977) apresenta o comportamento humano diante da morte, na
sociedade ocidental cristã, destacando o ponto de vista histórico e sociológico. O
autor busca compreender as atitudes diante da morte sob a ótica do momento histórico
e social da vivência, sendo que algumas atitudes permanecem praticamente
inalteradas, enquanto outras surgem em determinados momentos e são peculiares a
determinado período histórico.
No início da Idade Média, a morte era considerada um fenômeno familiar, no
qual o indivíduo era advertido e apresentava conhecimento acerca da morte. Ou se
tratava da morte terrível pela peste, ou era uma morte súbita, a qual se apresentava
como excepcional e não era mencionada. Por saber que o fim estava próximo, o
moribundo, conforme cita Ariès (1977), tomava as suas providências e a morte era
esperada no leito, sendo uma cerimônia pública e organizada. A morte era aceita
socialmente por ser um evento da natureza e os rituais eram cumpridos com
simplicidade.
A partir do século XI, na Idade Média, alguns novos fenômenos introduziram
a preocupação com a particularidade de cada indivíduo. A crença no juízo final e na
vida após a morte, no qual eram julgadas as ações do indivíduo ao longo da vida,
trouxeram a prática de se pensar na própria biografia e no apego às coisas e aos seres
ao longo da vida. Desta forma, a morte destacou-se como um momento em que o
homem melhor toma consciência de si mesmo (Ariès, 1977).
Uma nova representação é dada à morte a partir do século XVIII. A morte
passa a ser vista como uma ruptura e não mais como algo familiar. Destaca-se a
exaltação e a dramatização, no momento em que se passa a se preocupar com a morte
do outro, cuja saudade e as lembranças estabelecem o culto aos cemitérios. Segundo
Ariès (1977), há uma complacência para com a morte e o moribundo delega aos mais
próximos todos os seus poderes e decisões. Destaca-se a perspectiva do luto
excessivo, sendo este ritualizado por duas finalidades: permitia um espaço para a
família manifestar a dor que experimentava e apresentava o efeito de defender o
sobrevivente por submetê-lo a um tipo de vida social.
36 De acordo com Ariès (1977), “a morte, tão presente no passado, de tão
familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonha e objeto de interdição” (p.
53). Os amigos e familiares que cercam o moribundo passam a poupá-lo das
informações e da gravidade do seu caso e a verdade se torna problemática. Na
modernidade, a dor passa a ser evitada a qualquer custo e a morte passa a ocorrer no
hospital e não mais nas casas. Desta forma, a morte se torna um fenômeno técnico e
as manifestações do luto passam a ser condenadas, sendo a dor demasiadamente
visível um sinal de perturbação mental.
Ariès (1977) afirma que “o luto não é mais um tempo necessário e cujo
respeito a sociedade impõe; tornou-se um estado mórbido que deve ser tratado,
abreviado e apagado”. Como pode ser visto na atualidade, há uma tentativa do ser
humano de evitar a morte a qualquer custo e uma dificuldade em se debater tal tema.
A morte torna-se então um tema tabu e o luto envolvido, desta forma, pouco
reconhecido e respeitado socialmente.
3.3 LUTO E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADO
O ciclo de vida é marcado não somente por regularidades e continuidades
progressivas, como principalmente por momentos nos quais essas continuidades são
interrompidas, desafiadas e reorientadas. Esses momentos podem ser considerados
como pontos de bifurcação nos quais o indivíduo necessita desenvolver novas
condutas. As rupturas na vida geram questões e situações estranhas, as quais buscam
respostas e um ajustamento, sendo este compreendido como uma transição (Zittoun,
2012).
A ruptura assinala o final de um modo de ajustamento, a emergência de
ambivalências, e um período no qual novas dinâmicas e mudanças mais profundas
precisam ser estabelecidas. Os processos através dos quais esses ajustes são
produzidos, por sua vez, são conceituados pela mesma autora, como transições.
Assim, concebe-se que é ao longo das transições que mudanças mais significativas
são produzidas, visando um novo encaixe mais sustentável entre a pessoa e o seu
37 ambiente, e uma espécie de reequilíbrio e restauração do senso de continuidade e
integridade do self (Zittoun, 2009).
De acordo com Zittoun (2012), o processo de transição após a ruptura pode ser
analisado através de três níveis:
1. Processo de aprendizagem: aquisição de conhecimento e habilidades, o qual
reflete na capacidade de resolver problemas;
2. Processo de identidade: elaboração de uma identidade social, um
posicionamento e um reconhecimento, envolvidos na própria definição do self
(crenças e valores);
3. Dinâmica de construção de sentido: sistema de organização entre os níveis de
análise, o qual ocupa um papel central nas mudanças que envolvem a
identidade e a aprendizagem.
Para facilitar a transição, Zittoun (2012) aponta recursos necessários que a pessoa
encontra em si ou no ambiente. As classes dos recursos são: institucionais, nas
relações
interpessoais,
recursos
semióticos/simbólicos
(conhecimento
social,
informações, conhecimento científico, elementos culturais) e recursos pessoais
(capacidade reflexiva e experiências passadas).
Esse conjunto de noções (rupturas e transições) constitui, segundo Zittoun
(2009), uma unidade metodológica muito proveitosa para a análise e estudo do
desenvolvimento de trajetórias de vida. Segundo a autora, os pontos de bifurcação e a
sequência de comportamentos e estratégias que os seguem, podem ser vistos como
laboratórios naturais de mudanças e emergências de novidades, na vida das pessoas.
No entanto, a autora pontua que metodologicamente, os estudos dos processos de
transição precisam identificar pontos de ruptura significativos que justifiquem a
investigação. Embora esses pontos sejam geralmente identificados com base em
critérios externos (representações sociais, fatos observáveis ou critérios definidos pelo
pesquisador), é preciso que as rupturas sejam percebidas como significativas pela
própria pessoa que conta sua história.
A morte pode ser considerada uma ruptura, no momento em que é uma das
experiências mais traumáticas para o ser humano, tanto por originar uma carga de
perda e dor para si mesmo, como também por culturalmente ser considerada um
38 assunto tabu na maioria das sociedades. De acordo com Carter e McGoldrick (1995),
a morte causa uma ruptura no sistema familiar e o grau de impacto é influenciado
pelos seguintes fatores: contexto social e étnico da morte; a história de perdas
anteriores; o timing da morte no ciclo de vida; a natureza da morte ou da doença; a
posição e função da pessoa no sistema familiar e a abertura desse mesmo sistema.
O processo do luto é normal e esperado para a elaboração de alguma perda,
proporcionando ao indivíduo a reconstrução de recursos e adaptação às mudanças
impostas pela ruptura.
Ele pode então ser considerado como um processo de
organização e transformação, no qual não se apaga a crise, mas ocorre uma adaptação
à nova realidade (Casellato, 2005).
"O processo de luto é necessário na medida em que nós precisamos dar sentido
ao que aconteceu em nossas vidas e retomarmos o controle sobre nós mesmos,
sobre o mundo e sobre as relações afetivas" (Casellato, 2005, pp. 20).
De acordo com Bowlby (1985), duas mudanças psicológicas estão implicadas
no processo do luto: "reconhecer e aceitar a realidade; e experimentar e lidar com as
emoções e problemas que advém da perda", as quais podem ser prejudicadas ou
favorecidas pelo contexto no qual a elaboração ocorre. O trabalho de luto implica no
teste de realidade no qual se constata que o objeto de investimento emocional não está
mais acessível. Desta forma, a aceitação dessa nova realidade permite que o indivíduo
possa investir em outras relações afetivas e assim reorganizar-se emocionalmente e
continuar a viver (Casellato, 2005).
Além de ser uma reação à perda, acompanhada de um pesar, o luto nos
confronta com ameaças à segurança e mudanças importantes na vida e na família,
podendo ou não estar associada às lembranças terríveis de eventos, culpa pela morte
(dirigida a si ou a outras pessoas) e vergonha ou culpa por sua negligência ou
cumplicidade (Parkes, 2009), como se pode observar em muitos casos de luto
paterno/materno.
Para Carter e McGoldrick (1995), a morte de um filho pode ser considerada
como a maior tragédia da vida familiar, principalmente por inverter a ordem natural
da vida. As autoras sugerem que o grande pesar pela perda de um filho tem como
39 maior explicação o processo de projeção familiar, no qual os filhos são o foco
emocional importante da família. Além disso, projetam-se nos filhos os sonhos e
esperanças de vida dos pais, sendo a morte deles um golpe existencial para esse
sistema familiar (Carter e McGoldrick, 1995).
Silva (2006) afirma que a perda de um filho se caracteriza como um tipo
singular de luto, o qual requer um ajustamento emocional para enfrentar a sua dor
assim como enfrentar as alterações no sistema familiar. Apesar de existir um grande
pesar em toda a família pela perda da criança, a mãe talvez seja quem mais sente pela
culpa e pela crença de que poderia ter feito algo para salvar o filho, por imaginar ter
falhado em seus cuidados maternos.
No que se refere ao tema morte, Freud foi um dos primeiros a se atentar ao
fenômeno cientificamente e definiu os traços mentais distintivos do luto como uma
reação à perda de alguém que se ama e consequentemente uma mudança de interesse
no mundo externo. De acordo com Freud (1996), o luto refere-se também a perda da
capacidade de substituir o objeto de amor perdido e um afastamento de experiências
que evoquem o pensamento sobre ele.
O ego realiza o teste de realidade que revela que o objeto amado (ente querido
ou alguma abstração que ocupa o lugar dele) não existe mais, então, a partir disso é
exigido que a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Porém, isso se
torna difícil porque nem sempre as pessoas aceitam facilmente deixar uma posição
libidinal, mesmo quando já existe um substituto. Quando o trabalho do luto se
conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido (Freud, 1996). É quando o tempo
passa, a dor e a ferida da perda cicatrizam e a pessoa passa a “viver” novamente.
Diferentemente de Freud e apresentando uma visão mais abrangente sobre o
enlutamento, Parkes (2009) discorre acerca do Harvard Bereavement Project
(Pesquisa de Harvard), uma primeira tentativa de analisar o processo de luto e
identificar fatores que influenciam no resultado do luto, destacando a vulnerabilidade
pessoal do enlutado; a relação com a pessoa falecida; eventos e circunstâncias que
levaram à morte e o apoio social e outras circunstâncias após a morte. A Pesquisa de
Harvard evidenciou que o apego à pessoa que morreu seria um forte determinante do
resultado do processo de luto e de virem a acontecer reações problemáticas.
40 Em seus estudos acerca do luto, Parkes (2009) introduz o conceito de mundo
presumido, que se caracteriza por ser o nosso mundo interno que acreditamos ser
verdadeiro. Nele estão incluídas as experiências de vida passadas e a estrutura
complexa cognitiva que produz o nosso senso de significado e propósito de vida.
Desta forma, qualquer acontecimento que provoque mudanças importantes na vida,
principalmente quando inesperado, introduzem uma crise ao desafiar o nosso mundo
presumido. Até que as mudanças sejam realizadas, observam-se sentimentos de
inquietude, tensão, ansiedade e indecisão (Parkes, 2009). Tal fenômeno pode ser
observado no processo de luto, no qual mudanças são necessárias na rotina e no
significado em torno da vida.
Segundo Parkes (2009), pesquisas indicam que há uma maior probabilidade de
se desenvolverem complicações no processo de luto quando este é consequência de
mortes súbitas, inesperadas e prematuras, comparando-as a mortes que podem ser
antecipadas e haver um preparo, como é o caso do luto frente ao contexto de cuidados
paliativos. Na Pesquisa de Harvard, observou-se que, nas perdas traumáticas, a pessoa
possuía maior dificuldade para acreditar na morte e confrontar a perda. Além disso,
originava com maior frequência isolamento social, ansiedade duradoura, depressão,
solidão e auto-reprovação (Parkes e Weiss, conforme citado por Parkes, 2009). No
caso da morte de uma criança no contexto de cuidados paliativos, pode-se considerar
como uma morte prematura e inesperada, apesar de haver um preparo e uma
antecipação ao longo do agravamento da doença.
Casellato (2005) ressalta que o enfrentamento da morte na nossa sociedade é
marcado pela negação e pela evitação, o que dificulta o reconhecimento de situações
de perdas, as condições para expressão do pesar e o compartilhamento dos
sentimentos e pensamentos frente à crise desencadeada em situações de luto. Esse
aspecto dificulta o recebimento de apoio social e profissional, e, consequentemente, a
reorganização do indivíduo diante do momento de ruptura.
Franco (2008) nos trás que a natureza e os significados relacionados à perda
estão intimamente associados ao luto e à sua estratégia de enfrentamento. A autora
acredita que o próprio processo do luto apresenta a ideia de reaprender o mundo
através da construção de significados para tal vivência. Franco (2008) afirma então
41 que o processo do luto favorece uma revisão da identidade, das relações sociais, da
relação com a morte e do sistema de crenças do indivíduo.
42 4. DELINEAMENTO DO OBJETO DE ESTUDO 4.1 O CONTEXTO DE CUIDADOS PALIATIVOS
A assistência à saúde torna-se cada vez mais voltada ao processo de cura,
baseada em um direcionamento aos cuidados críticos através da medicina de alta
tecnologia. Através deste movimento e do aumento da dependência tecnológica, as
práticas humanistas e o paradigma do cuidar se enfraquecem no contexto da saúde. A
preocupação, o apreço e a presença solidária junto aos pacientes perdem espaço e
identifica-se um esforço da medicina de prolongar a vida a qualquer custo (Pessini,
2001).
O paradigma do cuidar parte do pressuposto de aceitação da morte como um
processo natural e como condição do ser humano, a finitude. Tal paradigma permite
um enfrentamento mais concreto dos limites da mortalidade humana e, de acordo com
Pessini (2001), “a medicina orientada para o alívio do sofrimento estará mais
preocupada com a pessoa doente do que com a doença da pessoa” (p. 218). Essa
visão favorece uma assistência na qual a dor e o sofrimento das pessoas tenham a
prioridade no cuidado, com um compromisso direto com o bem-estar do paciente. O
autor ressalta que curar é aliviar a dor e auxiliar o paciente a viver e enfrentar a
fragilidade, tanto no âmbito corporal, quanto mental ou funcional.
A medicina paliativa trabalha com a filosofia de reconhecer a morte como um
processo natural do viver. Desta forma, o objetivo não é acelerar a morte e nem adiála, mas de assumir uma postura holística de cuidado às dimensões físicas,
psicológicas, sociais e espirituais do ser humano (Pessini, 2001). Os hospices, então,
são conhecidos como uma forma especial de cuidar de pessoas em fase terminal da
vida e envolve uma equipe de profissionais especializada, que esteja atenta às
necessidades físicas, sociais, emocionais e espirituais do paciente, assim como
fornecer suporte aos familiares/cuidadores (Wolfe, Hinds & Sourkes, 2008).
Considera-se importante para a compreensão da abordagem dos cuidados
paliativos, algumas notas históricas sobre o desenvolvimento dos hospices,
43 destacando-se que hospice corresponde a uma filosofia de cuidado, e não somente a
um espaço físico. A origem dos hospices, de acordo com Pessini (2001), ocorre no
século IV da era cristã, na qual uma matrona romana (Fabíola) abriu a sua casa aos
necessitados (famintos e sedentos, enfermos, prisioneiros, estrangeiros) com o
objetivo de praticar misericórdia cristã, sendo mais tarde assumido pela Igreja. Na
cidade de Lyon, em 1842, foi onde surgiu o primeiro hospice dedicado aos
moribundos, através do contato da Madame Jeanne Garnier com pacientes com câncer
que morriam em suas casas.
A filosofia foi se expandindo e surgindo em outros lugares do mundo, como
na Grã-Bretanha e em Londres. Em 1967, destaca-se o surgimento do St. Christopher
Hospice, sob a coordenação de Cicely Saunders, assistente social e posteriormente
médica, que dedicou os cuidados a pacientes em fase final da vida. O seu interesse
surgiu após o contato com um judeu refugiado que estava morrendo de câncer e,
juntos, refletiram sobre a melhor forma de suprir as necessidades do mesmo, ou seja,
aliviar a dor e ter alguém que o cuidasse como pessoa (Pessini, 2001).
Cicely Saunders liderou um movimento a favor da medicina paliativa e dos
hospices, analisando estratégias para lidar com os sintomas dos pacientes, através de
medicação e apoio sociopsicológico e espiritual. O novo campo criado da medicina
paliativa envolve uma equipe de saúde especializada, com o foco no controle da dor e
no alívio dos sintomas (Melo, 2011). Conforme nos traz Pessini (2001), tal
movimento cresceu e o Reino Unido foi o primeiro país no qual foi reconhecida a
medicina paliativa como uma especialidade para a medicina. Atualmente, a filosofia
da medicina paliativa tem se expandido em diversos locais do mundo, inclusive no
Brasil.
Melo (2011) nos traz os obstáculos presentes na implementação de programas
de cuidados paliativos em nível nacional: falta de uma política de alívio da dor e
aspectos ligados ao cuidado paliativo, defasagem na formação dos profissionais de
saúde, preocupação referente ao abuso no uso de morfina e opióides e limitação de
fornecimento de outras drogas utilizadas para alívio da dor e de outros sintomas,
limitação de recursos financeiros para a pesquisa na área de cuidados paliativos.
Para a implementação de uma unidade de cuidados paliativos é necessária uma
mudança de postura, na qual se assuma que é possível fazer algo para pacientes em
44 sofrimento ou alcançando os momentos finais da vida, evitando tratamentos
agressivos (Melo, 2011). Conforme a autora, a Associação Brasileira de Cuidados
Paliativos (ABCP) foi fundada em São Paulo, em 1997, com o objetivo de
proporcionar uma interação científica e profissional da equipe de saúde que atua e
pesquisa aspectos ligados ao cuidado de pacientes crônicos ou em fase avançada no
processo terminal, assim como qualificar a atenção aos enfermos e incentivar as
pesquisas no campo dos cuidados paliativos. Tal iniciativa propõe também prestar
assistência técnica sobre o conteúdo e promover discussões sobre problemas éticos e
implicações na prática dos cuidados paliativos. No Brasil, foram identificados em
2011, trinta serviços de cuidados paliativos, de acordo com um levantamento
realizado pela ABCP (Melo, 2011).
O trabalho de cuidados paliativos é regido por princípios que devem ser
seguidos em todas as atividades desenvolvidas. De acordo com a Organização
Mundial de Saúde (WHO, 2007), os princípios dessa abordagem são: promover o
alívio da dor e de outros sintomas estressantes; olhar a morte como um processo
natural, reafirmando a vida; não antecipar e nem postergar a morte; integrar aos
cuidados os aspectos psicossociais e espirituais; oferecer um sistema de suporte para
que o paciente possa viver ativamente o quanto possível; oferecer um sistema de
suporte para que os familiares sintam-se amparados durante o processo da doença; e,
deve ser iniciado o mais precocemente possível.
Dentre os princípios éticos da abordagem da medicina paliativa, destacam-se a
proporcionalidade terapêutica (deve-se levar em conta a utilidade da medida,
alternativas, riscos e benefícios, prognóstico diante da ação, assim como os custos em
todas as dimensões para o sujeito e para a equipe), o duplo efeito (deve haver uma
razão proporcional para a medida terapêutica e o possível efeito colateral), a
prevenção, o não-abandono (estar junto ao paciente, estabelecendo uma comunicação
empática e aceitando o desafio de lidar com a finitude humana) e a veracidade. No
que se refere à veracidade, destacam-se os aspectos da comunicação, na qual se exige
clareza na comunicação com o paciente e com a família, para torná-los ativos no
processo de tomada de decisões fortalecendo a sua autonomia (Pessini, 2001). De
acordo com o autor, há uma conspiração do silêncio, principalmente na cultura latina,
com o objetivo de proteger o paciente da verdade, o que traz o risco de expor o
paciente e seus familiares a novas formas de sofrimento.
45 No contexto de cuidados paliativos, o trabalho é realizado em equipe
multiprofissional e o foco da atenção se torna o doente, e não somente a doença a ser
curada. Entende-se doente como um ser ativo, o qual possui direito a informação e
autonomia diante das decisões acerca da sua saúde (Maciel, 2008).
Maciel (2008) pontua que a cura nem sempre é uma verdade na medicina e,
desta forma, a abordagem paliativa deve ocorrer concomitantemente com o
tratamento curativo. Ressalta-se a importância do trabalho multiprofissional, que
possa atuar sobre os sintomas de forma ampla, não apenas abrangendo o aspecto
biológico, como também o entorno afetivo do paciente, buscando, além de aliviar,
prevenir um sintoma ou uma situação de crise.
No que se refere aos cuidados paliativos na pediatria, a atenção é centrada na
família e no favorecimento da qualidade de vida, atendendo a todos os aspectos
envolvidos no sofrimento da criança gravemente enferma (Zhukovsky & Robert,
2011). Torna-se importante ressaltar a especificidade da infância e a necessidade de
uma abordagem adaptada a esse momento da vida. É necessário o conhecimento
acerca do desenvolvimento e das diferentes fases que a infância possui, destacando-se
os momentos em que a criança é capaz de expressar seus pensamentos e os momentos
em que ainda não o consegue (Barbosa, Lecussan & Oliveira, 2008).
Em nossa sociedade ocidental, é comum se deparar com a crença de que as
crianças não sabem informar o que sentem, não são capazes de identificar o que seria
melhor para elas, não compreendem informações sobre o adoecimento e a morte, e
evidencia-se uma tendência para protegê-las. Barbosa, Lecussan & Oliveira (2008)
ressaltam que as crianças apresentam mudanças intensas ao longo do seu
desenvolvimento e apresentam maior resiliência em comparação aos adultos assim
como uma maior variabilidade de respostas às intervenções de saúde. Como as
crianças estão em desenvolvimento, torna-se mais difícil prever a resposta ao
tratamento, além disso, a criança é representada por um responsável e o luto da
família é frequentemente mais intenso e com maior duração, devido ao ciclo de vida
familiar.
Barbosa, Lecussan & Oliveira (2008) trazem que pais que perdem filho correm
o risco de desenvolver um luto complicado, devido ao sofrimento de perdas múltiplas,
pois morrem também sonhos e esperanças e fortalece a impressão de fracasso por
46 parte dos pais. Quando se trata da criança, pode ocorrer a vivência do luto
antecipatório, decorrente da perda das suas funções, bem como de um isolamento
progressivo e comprometimento da vida social e familiar.
A Academia Americana de Pediatria afirma que a oferta dos cuidados
paliativos deve iniciar no momento do diagnóstico e permanecer de forma contínua
até a cura ou até o momento da morte. Apresenta princípios para um modelo
integrado de Cuidado Paliativo como o respeito à dignidade dos pacientes e do
familiar, o acesso a um serviço competente, que apresente suporte aos profissionais de
saúde, a melhoria do suporte profissional e social, assim como melhora contínua da
assistência através da educação e de pesquisas (Barbosa, Lecussan & Oliveira, 2008).
Como se trata de cuidados paliativos na pediatria, as crianças, na maior parte
das vezes, como pontuado anteriormente, são representadas pelos seus responsáveis,
que atuam na tomada de decisões. Do ponto de vista ético, os responsáveis devem
prezar pelo maior beneficio para a criança e esta deve ser envolvida no processo de
tomada de decisões pertinentes ao seu cuidado, o máximo possível (Barbosa,
Lecussan & Oliveira, 2008). Destaca-se a importância da comunicação clara e sincera,
que possa fornecer segurança para que os familiares possam decidir com base em suas
crenças, valores e interesses da criança.
A abordagem do cuidado paliativo ressalta, a todo o momento, o fenômeno da
morte com o objetivo de aplacar o sofrimento envolvido na mesma, tanto para o
paciente quanto para a sua família (Menezes, 2004). Desta forma, o contexto de
cuidados paliativos convida o paciente, os familiares e os profissionais de saúde a
envolverem-se em um processo de busca de significados relativos ao viver e morrer
(Prade, Casellato e Silva, 2008). Concordando com os autores, a busca desses
significados é o foco principal do presente trabalho.
Os significados compartilhados socialmente, embasados no momento e
contexto histórico e social, assim como os sentidos construídos pelos indivíduos
guiam as atitudes que se apresentam frente à morte. Desta forma, podemos obter uma
melhor compreensão sobre o fenômeno dos cuidados paliativos ao explorar as
crenças, os sentimentos e as estratégias de enfrentamento da morte envolvidos nos
processos de significação frente ao morrer.
47 No contexto de cuidados paliativos, destaca-se a vivência do luto
antecipatório, mais evidenciado na experiência dos familiares e da criança, mas sendo
também uma vivência possível para os profissionais que lidam com a perda de um
paciente. Desta forma, busca-se também, no presente estudo, identificar crenças,
sentimentos e estratégias para tal enfrentamento.
A Figura 3 a seguir apresenta o modelo teórico criado para indicar os
conceitos e os fenômenos a serem estudados na presente trabalho, evidenciando as
suas relações e interações.
FIGURA 3: Modelo teórico ilustrativo sobre os fenômenos estudados no presente
trabalho.
48 4.2 LUTO ANTECIPATÓRIO
A vivência do luto antecipatório destaca-se no contexto de cuidados paliativos,
mais evidenciado na experiência dos familiares e do paciente. O luto antecipatório é
aquele luto pela perda futura concreta, o qual permite uma reorganização de recursos
para enfrentamento da perda iminente, propiciando um desenvolvimento normal do
luto (Fonseca, 2012).
O fenômeno do luto antecipatório se caracteriza como um processo, sendo
desta forma dinâmico, singular e não linear. Da mesma forma que o processo de luto
normal após a perda, o luto antecipatório também apresenta “... reações intensas e
sobrepostas de choque e negação, ansiedade e busca, desorganização e desespero,
recuperação e reorganização” (Prade, Casellato & Silva, 2008, p. 154).
A principal função do luto antecipatório talvez seja facilitar um
desenvolvimento do luto normal. Por ser um luto por uma perda futura, este
possibilita que, no momento em que a família conseguir assumir a vivência de um
membro doente e em fase terminal, ela seja capaz de organizar os seus recursos para
enfrentar a perda iminente do ente querido (Fonseca, 2012). O autor ressalta que o
processo de luto antecipatório não extingue o impacto da morte quando ela ocorre.
De acordo com Kovács (2008), a antecipação do luto permite a elaboração de
perdas que acontecem ao longo da vida, o que produz significado para a existência do
sujeito. A autora destaca que o luto antecipatório envolve perdas adquiridas com o
adoecimento e que o trabalho deste luto e a busca por um sentido para a dor possui
um caráter preventivo.
Rando (1986) identificou divergências no que se refere às opiniões acerca do
luto antecipatório, pontuando três vertentes: um grupo de pesquisadores que
acreditam haver um efeito positivo no luto normal pós-morte quando vivenciado o
luto antecipatório, sendo este uma possibilidade de evitar o luto complicado; outro
grupo de pesquisadores que não identificam uma relação entre luto antecipatório e o
luto pós-morte e, por último, aqueles que consideram que o luto antecipatório pode
trazer um efeito negativo para o luto pós-morte, por conduzir a uma separação
prematura entre o paciente e seus familiares (Rando, 2000 apud Fonseca, 2012).
No luto antecipatório, é necessário observar que existem diversas perspectivas
para se analisar a experiência, sendo estas a do paciente, a das pessoas mais íntimas, a
49 de outras pessoas envolvidas e a do cuidador. Cada pessoa envolvida no processo
apresenta seus sentimentos, pensamento, valores, princípios e crenças que devem ser
respeitados e ouvidos, sendo que a ênfase deve ser dada ao paciente em primeiro
lugar. Outro aspecto a se destacar no luto antecipatório é o foco temporal, já que
diante de um diagnóstico de terminalidade, a experiência de enlutamento é
influenciada por perdas que ocorreram no passado, pelas atuais, assim como pelas que
possam vir (Rando, 1986; Fonseca, 2012).
O processo do luto no contexto de cuidados paliativos é vivido pelo paciente,
pela família e pela equipe de saúde. De acordo com Prade, Casellato e Silva (2008), o
luto do profissional de saúde frente à iminência da morte do paciente é um fenômeno
complexo e pode se tornar um fator de risco para a sua saúde física e mental. A
complexidade do fenômeno ocorre principalmente devido ao fato do processo de luto
ser vivido de forma velada, negada e negligenciada por esses atores envolvidos no
contexto.
O luto experienciado pelos profissionais de saúde pode ser considerado um
luto não reconhecido, no momento em que existem regras na sociedade que
determinam como, quem, quando, onde e por quanto tempo devem ser expressos os
sentimentos do luto. De acordo com Maso, Campos, Gianini & Padovan (2005), o
agravamento do estado do paciente ou a iminência da morte podem mobilizar a
equipe de saúde com sentimentos como angústia, choque, negação, fracasso, tristeza,
culpa, vergonha e fantasias variadas. Os sentimentos diante da perda do paciente
podem ter uma duração longa e, caso não sejam elaborados, podem retornar no
contato com outros pacientes e outras situações futuras, provocando um estresse no
profissional.
No ambiente de trabalho, os profissionais estão submetidos a uma série de
estressores e de demandas de tarefas e cobranças institucionais, as quais podem
interferir nas necessidades pessoais dos mesmos, dificultando o enfrentamento de
determinadas situações. Sendo assim, é possível observar a utilização de mecanismos
de defesa em resposta ao estresse no ambiente de trabalho (Maso et al, 2005).
O estresse vivenciado pelos profissionais pode ocorrer muitas vezes devido à
um processos de luto não reconhecido, o qual não é validado socialmente e não há um
50 espaço para que o profissional expresse os seus sentimentos, pensamentos e
comportamentos (Maso et al, 2005). Desta forma, o luto antecipatório pode ser um
facilitador para o luto do profissional, como uma possibilidade de despedida do
paciente e de manejar as questões ligadas ao mesmo e à sua família nos momentos
finais da vida (Prade, Casellato e Silva, 2008).
4.3 PRÁTICAS DE ATENÇÃO À SAÚDE
No que se refere às práticas de atenção à saúde, alguns aspectos se tornam
importantes para a compreensão da dinâmica envolvida no contexto de cuidados
paliativos: os cuidados físicos, a tomada de decisões e a comunicação.
4.3.1 Cuidados físicos
Quando não é mais possível a cura, o tratamento no contexto de cuidados
paliativos oferece intervenções que permitam uma boa qualidade de vida para o
paciente. Segundo Kitajima e Cosmo (2008), a família demonstra a necessidade de
participar dos cuidados ao paciente, da mesma forma que deseja confiar e ter
seguranças nos cuidados oferecidos pela equipe.
A dor é o sintoma mais persistente no contexto de cuidados paliativos na
oncologia pediátrica. De acordo com Canan (2007), a dor não pode ser considerada
apenas biologicamente, como também psicologicamente e associada a um contexto
social específico. Desta forma, a avaliação dos fatores envolvidos no controle da dor
envolve a atuação de uma equipe multiprofissional assim como a atuação da família.
4.3.2 Tomada de decisões
De acordo com Kurashima & Camargo (2007a), vários fatores estão
associados à trajetória da doença, que se caracteriza como uma experiência pessoal,
como o prognóstico, o impacto das estratégias de tratamento e a incapacidades
preexistentes. Acredita-se que o planejamento e a tomada de decisões ao longo do
adoecimento podem ser facilitados através da compreensão dos tipos de trajetória da
51 doença e a sua relação com a morte (Ingham & Kachuik, 20024 apud Kurashima &
Camargo, 2007a).
Kurashima & Camargo (2007a) afirmam que não há uma única conduta no
processo de tomada de decisões, sendo esta uma avaliação individual e embasada nos
fatores momentâneos, na evolução clínica do paciente assim como nos próprios
sentimentos dos profissionais envolvidos, que interferem nas discussões com a
família. Os autores ressaltam que há uma recomendação para que o profissional seja
honesto, aberto e que esteja disposto a “escutar”. A comunicação é um fator
importante e que facilita o processo de tomada de decisões.
4.3.3 Comunicação
A comunicação, segundo Kitajima e Cosmo (2008), é um ato de emitir,
transmitir e receber mensagens com o objetivo de compreender o mundo, relacionarse com outros sociais e transformar a si mesmo. No contexto hospitalar, a
comunicação pode ser considerada a base central para uma qualidade na assistência.
As famílias que possuem um parente internado diante de um diagnóstico
considerado grave, encontram-se em circunstâncias emocionais difíceis e em um nível
elevado de estresse. Tal contexto torna a comunicação entre equipe e família um
processo complicado, no qual se evidencia a necessidade da equipe manter um bom
relacionamento com a família, ambos estando disponíveis para um processo de
comunicação clara, efetiva e dinâmica (Kitajima e Cosmo, 2008).
De acordo com Kitajima e Cosmo (2008), a comunicação envolve um
complexo de comportamentos como o verbal, tonal e postural. Desta forma, as autoras
ressaltam que, na comunicação, não devemos atentar apenas ao conteúdo transmitido,
mas, acima de tudo, a forma como essa interação ocorre na tríade paciente-famíliaequipe.
Kitajima e Cosmo (2008) destacam as duas partes da comunicação, o conteúdo
e o sentimento, e definem dois tipos de comunicação: a verbal e a não-verbal. A
4
Ingham, J. M. &Kachuik, L. E. (2002). Epidemiology of câncer at the end-of-life in
Principles & Practice of Palliative Care & Supportive oncology – second edition. Editors:
Ann M. Berger, Russel K. Portenoy, David E. Weissman. Lippincott Williams & Williams,
pp. 615-634.
52 verbal refere-se à expressão escrita ou falada e a não-verbal ocorre através dos gestos,
silêncio, expressões faciais e postura corporal. Desta forma, os autores ressaltam a
impossibilidade de não se comunicar, já que mesmo o silêncio pode ser uma forma de
comunicação.
A comunicação pode ser considerada uma questão central para a atuação
profissional, a qual se torna ainda mais difícil no contexto de cuidados paliativos
(Kurashima & Camargo, 2007b).
Os autores afirmam também que uma boa
comunicação facilita o processo do morrer e favorece a qualidade de vida nesse
período. O objetivo da comunicação e esclarecimento acerca das informações sobre a
doença e o tratamento é favorecer a compreensão, fortalecer o auto-cuidado, reduzir o
stress e conseguir uma maior adesão às condutas terapêuticas. Desta forma, “... uma
comunicação rica, boa e produtiva facilita muito o enfrentamento da situação. A
comunicação pobre, fraca e ruim é uma fonte de problemas” (Kurashima & Camargo,
2007b, pp. 116).
As dificuldades e as incertezas vividas no momento de internação hospitalar e,
principalmente, no momento de iminência da morte, levam a níveis elevados de
ansiedade. A comunicação afetiva e efetiva pode ser um instrumento para aliviar e
reduzir o as dificuldades enfrentadas em tal situação, fornecendo clareza para a
família poder se organizar (Kreicbergs, 2007; Kitajima e Cosmo, 2008).
Para o presente estudo, considera-se que a morte é uma experiência traumática
para o ser humano por originar uma carga de dor devido à perda, sendo também
considerada, culturalmente, um assunto tabu e evitado de ser abordado na maioria das
sociedades. Para os profissionais de saúde, aprender a lidar com perdas e com a morte
são desafios enfrentados em sua rotina de trabalho na situação de cuidados paliativos.
Desta forma, torna-se importante explorar os significados associados aos cuidados
paliativos, a partir da perspectiva dos profissionais de saúde, para melhor
compreender a experiência desses atores, assim como, também, as práticas de
assistência à saúde dispensadas aos pacientes pediátricos e aos seus familiares.
53 4.4 PERGUNTA DE INVESTIGAÇÃO E PRESSUPOSTO
Como se configuram os significados sobre os cuidados paliativos de crianças
com câncer para os profissionais de saúde e como estes atores atuam nesta área?
4.5 OBJETIVOS
4.5.1 Objetivo geral
Compreender os significados sobre cuidados paliativos em crianças com câncer
presentes nos relatos dos profissionais de saúde envolvidos na assistência e identificar
as práticas imbricadas nestes significados.
4.5.2 Objetivos específicos
1. Caracterizar as práticas de assistência à saúde presentes no cuidado paliativo
através das atitudes relacionadas à comunicação, à tomada de decisões e aos
cuidados físicos oferecidos ao paciente;
2. Descrever a percepção dos profissionais da equipe de saúde sobre a
participação da família nas práticas de assistência à saúde, assim como sobre a
vivência da mesma;
3. Verificar como os profissionais da equipe de saúde significam a morte,
analisando na construção do significado as crenças, os sentimentos e as
estratégias de enfrentamento perante a morte;
4. Analisar as estratégias de enfrentamento do luto antecipatório para os
profissionais da equipe de saúde.
54 5. DELINEAMENTO METODOLÓGICO 5.1 ESTRATÉGIA GERAL DA PESQUISA
A pesquisa no campo da saúde reflete uma realidade complexa, a qual
demanda o diálogo entre conhecimentos distintos que compõem a perspectiva
biopsicossocial, colocando em foco o problema da intervenção e da assistência à
saúde. De acordo com Minayo (1992),
“... a questão do homem enquanto ator social ganha corpo e faz emergirem,
com toda a sua força, as ciências sociais que se preocupam com os
significados” (Minayo, 1992, pp. 33).
Este é um estudo exploratório e descritivo, de cunho qualitativo, o qual é
caracterizado por usar o texto como dado empírico, possuir como base a construção
social da realidade em estudo e está interessado na perspectiva do participante, através
da compreensão do seu cotidiano e da sua prática diária (Flick, 2009). De acordo com
Mesquita (2005), a abordagem qualitativa permite uma exploração mais particular
sobre as atitudes, crenças, valores e significados da população estudada.
Estrutura-se, em seu delineamento, como um estudo de casos. Esta estratégia
de investigação permite um maior aprofundamento sobre um fenômeno (seja este um
caso, um grupo, um meio ou um acontecimento), cujo destaque aumenta a
compreensão acerca do mesmo (Laville & Dionne, 1999).
5.2 PARTICIPANTES
Os participantes foram profissionais da equipe de saúde multidisciplinar que
trabalham na assistência a essas crianças na situação de cuidados paliativos, sendo os
responsáveis pela tomada de decisão, comunicação e cuidados físicos com o paciente
e família.
55 Por ser um estudo de caso, buscou-se identificar pessoas que pertencessem a
essa caracterização, sendo a definição da quantidade de participantes estabelecida
através do critério de saturação. No momento em que as informações começaram a ser
tornar repetidas e não agregaram mais novos dados a serem analisados, foi possível
considerar uma quantidade satisfatória de participantes.
As entrevistas foram realizadas nas próprias unidades de oncologia pediátrica.
Foi realizado um contato prévio com as psicóloga alocadas nestas unidades e o
critério de seleção dos participantes se baseou na dinâmica da unidade de oncologia
pediátrica: foram convidados a participar da pesquisa os profissionais que compõem a
equipe de saúde da unidade (um de cada área).
Dentre os diversos hospitais na cidade de Salvador, foram selecionadas duas
instituições que possuem serviço de oncologia pediátrica. O projeto de pesquisa foi
submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em ambas as instituições. A
escolha de duas instituições ocorreu apenas com o intuito de ampliar o rol de
participantes, já que não é objetivo deste trabalho comparar os dois serviços de
oncologia pediátrica.
Hospital 1
O hospital 1 é caracterizado por ser um hospital geral e filantrópico, o qual
possui um serviço de oncologia pediátrica. Tal serviço presta atendimento
ambulatorial e tem seis leitos para internamento. A estrutura física comporta
recepção, internamento, sala de quimioterapia, sala de exames, consultórios médicos,
consultório odontológico, consultório psicológico, brinquedoteca. A equipe é
composta por quatro médicos, uma psicóloga, uma dentista, fisioterapeutas, uma
assistente social, enfermeiras, técnicas de enfermagem, nutricionistas, uma pedagoga.
Foram selecionados para participar da pesquisa um profissional de cada uma das áreas
nas quais há o contato direto com os pacientes da oncologia pediátrica. Nem todos os
profissionais se disponibilizaram a participar; no caso de algumas áreas, como a
fisioterapia e a nutrição, há uma rotatividade dos profissionais, o que dificultou a
participação na pesquisa, principalmente por não acompanharem a trajetória do
paciente desde o adoecimento até o momento de cuidados paliativos.
56 Hospital 2
O hospital 2 é caracterizado por ser um hospital especializado em oncologia e
filantrópico, o qual possui um serviço destinado à pediatria. A estrutura física
apresenta recepção, ambulatórios, sala de curativos, centro cirúrgico, brinquedoteca,
sala de quimioterapia, sala de fisioterapia, sala da nutrição, sala do serviço social,
consultório psicológico, consultório odontológico, sala de aula, apartamentos
individuais e área administrativa. A equipe é composta por seis médicos, duas
psicólogas, uma assistente social, uma nutricionista, uma fisioterapeuta, enfermeiras,
técnicas de enfermagem.
Dentre as entrevistas realizadas nas duas instituições, foram selecionadas
cinco para compor a análise dos dados do presente estudo, sendo estas dos seguintes
profissionais: médico, técnica de enfermagem, enfermeira, dentista e psicóloga. A
seleção de cinco entrevistas ocorreu de acordo com o critério de saturação das
informações relevantes para atender aos objetivos deste estudo.
5.3 COLETA DOS DADOS
“Não há experiência humana que não possa ser expressa na forma de uma
narrativa” (Jovchelovitch & Bauer, 2008, p. 91)
Foram realizadas entrevistas narrativas com os profissionais da equipe de
saúde multidisciplinar. Esta técnica é característica de uma pesquisa qualitativa, na
qual não se segue o esquema “pergunta-resposta” ou um roteiro dirigido, mas, sim,
temas amplos a serem propostos aos entrevistados. Desta forma, há um incentivo para
a espontaneidade por parte do participante e para o ‘contar histórias’.
Aqui, a entrevista narrativa, baseada em um temário previamente elaborado
(Apêndice A), buscou explorar as dimensões envolvidas no significado sobre os
cuidados paliativos e as práticas e vivência dos atores envolvidos neste contexto.
Entre esses domínios da experiência, foram tópicos relevantes: cuidados paliativos,
câncer, estratégias de enfrentamento, sociabilidade (redes sociais e redes de apoio),
família, crenças religiosas. Especial atenção foi dada aos signos emergentes quanto ao
57 fenômeno da morte, bem como aos significados e práticas a eles associados ao longo
da narrativa.
Grandesso (2011) define narrativa como um discurso organizado, que reflete
um fluxo de experiência vivida, atribuída de significados e uma sequência temporal.
A autora reforça que as narrativas são construções complexas e que não são estáticas,
havendo sempre reconstruções em torno delas; ela chega a adotar a narrativa como
“uma chave para a construção do conhecimento humano”, afirmando que a mesma é a
base para estudar as experiências pessoais.
De acordo com Bruner (2002), na arte narrativa fazem-se presentes a memória,
as ideias, os sentimentos, as crenças e a subjetividade de um sujeito, sempre em
interação com a opinião das outras pessoas e de expectativas presentes na cultura da
qual está imerso. Nesse sentido, como assinala Grandesso (2011), pode-se observar
que a narrativa serve como um instrumento para se compreender os valores, crenças e
significados que uma pessoa e/ou uma sociedade possuem acerca de um fenômeno. A
autora ainda ressalta a característica de construção social que a narrativa possui, sendo
que as histórias vividas e narradas possuem sempre uma co-autoria. No entanto, é a
perspectiva do participante que ocupa a cena no caso da entrevista narrativa
(Jovchelovitch & Bauer, 2008).
Grandesso (2011) afirma que o ‘contar histórias’ permite que o indivíduo
construa sentidos para as suas experiências, tanto passadas, quanto presentes e futuras
no seu contexto social. Desta forma, a habilidade da narrativa confere uma identidade
ao indivíduo e um sentido de existência e de atuação no mundo ao longo do tempo.
De acordo com a autora, as narrativas se caracterizam como um instrumento cultural
para a produção de sentidos.
5.4 ANÁLISE DOS DADOS
O modelo para a leitura, interpretação e análise de narrativas, proposto por
Lieblich, Tuval-Mashiach e Zilber (1998), possui duas dimensões: holístico x
categórico e conteúdo x forma, sendo que tais dimensões caracterizam-se por ser um
58 contínuo e combinar entre si, configurando a possibilidade de quatro maneiras básicas
para se analisar e interpretar narrativas. A abordagem mais adequada para a análise
deve ser escolhida após a coleta dos dados, baseada nos objetivos da pesquisa.
A primeira dimensão refere-se à unidade de análise, na qual há a possibilidade
de criação de temas, em uma análise de conteúdo tradicional, sendo que trechos ou
palavras da narrativa são inseridas em determinados temas. Em contraste, na
abordagem holística, a história de vida da pessoa é considerada como um todo e as
sessões da narrativa são analisadas baseadas no contexto de outras partes que
compõem a narrativa.
A segunda dimensão se caracteriza pela distinção entre a forma e o conteúdo,
dicotomia tradicional na literatura. A abordagem orientada pelo conteúdo se preocupa
com o significado apresentado na narrativa e com quais características e motivações
do indivíduo são expressas. No entanto, a abordagem centrada na forma, se
caracteriza pela orientação através da estrutura do texto, a sequência dos eventos
narrados e a relação com o tempo, o estilo e a coerência da narrativa, os sentimentos
evocados, entre outros aspectos.
Esse modelo de análise proposto por Lieblich, Tuval-Mashiach e Zilber (1998)
guiou a análise dos dados do atual projeto a partir de duas abordagens: 1) holística
baseada em conteúdo, e 2) categorial baseada em conteúdo. A primeira abordagem
enfatiza a narrativa completa do indivíduo, a partir do conteúdo apresentado por ele,
favorecendo uma visão mais ampla sobre o fenômeno estudado. Já a segunda,
privilegia o conteúdo das narrativas como apresentado em partes separadas, aqui
definidas por temas associados aos cuidados paliativos.
As entrevistas realizadas foram gravadas com o consentimento dos
participantes, e posteriormente transcritas, como procedimento inicial para possibilitar
a análise dos dados. Em seguida, foi feita a leitura exaustiva das entrevistas, com o
objetivo de melhor compreender o discurso do participante. A cada leitura, foram
selecionados elementos importantes na narrativa e, posteriormente, as anotações
iniciais foram transformadas em temas que pudessem expressar a fala do participante.
59 A partir da definição de temas, foi possível buscar elementos e conexões entre
as narrativas para auxiliar na compreensão da vivência e significados no contexto de
cuidados paliativos. Foram explorados os sentimentos, crenças, atitudes, práticas de
assistência à saúde e estratégias de enfrentamento. As falas foram organizadas de
forma a responder os objetivos específicos da pesquisa.
Após a organização dos dados a partir de temas, foi selecionado um caso para
ser apresentado em uma análise detalhada à luz da Psicologia Cultural do
Desenvolvimento. Sob o direcionamento dado pelo objetivos desta pesquisa, buscouse compreender os significados de cuidados paliativos, sendo possível explorar os
conceitos de ruptura e transição (Zittoun, 2012), de ambivalência (Abbey & Valsiner,
2004) e a compreensão da dinâmica dos signos e da mediação semiótica (Valsiner,
2012).
5.5 QUESTÕES ÉTICAS
Esta pesquisa está de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo Código de
Ética Profissional do Psicólogo, pela Resolução CFP N° 011/97, de 20 de outubro de
1997, e pela Resolução CFP N° 016/2000, que trata da realização de pesquisa em
Psicologia com seres humanos.
O projeto da pesquisa foi enviado ao Comitê de Ética, de modo a considerar
todos os aspectos éticos envolvidos na mesma, especialmente sobre o recorte empírico
envolvendo seres humanos no delicado contexto dos cuidados paliativos. Foram
garantidos os princípios éticos de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça,
e aplicado o Termo de Consentimento livre e esclarecido (Apêndice B). O projeto foi
aprovado através da Plataforma Brasil.
Ficou esclarecida, para os participantes, a possibilidade de interromper a sua
participação no momento que julgasse necessário. A pesquisadora também ficou
atenta a situações em que pudesse ser preciso interromper as entrevistas, para garantir
que esta experiência seja superior a qualquer inconveniente do processo.
60 Como benefícios aos participantes, acredita-se que esta é uma oportunidade de
expor
as
dificuldades
associadas
à
situação
dos
cuidados
paliativos
e,
consequentemente, ao tema morte, buscando favorecer a assistência da equipe de
saúde em tal contexto assim como a vivência e o enfrentamento do paciente e dos
familiares.
61 6. RESULTADOS E DISCUSSÃO Nessa seção, será apresentada a análise dos dados obtidos nas entrevistas.
Inicialmente, serão explorados, através de um sistema de temas e subtemas propostos,
os dados referentes às entrevistas com os profissionais de saúde da oncologia
pediátrica, que possuem contato com os pacientes em cuidados paliativos. O objetivo
foi buscar, nas narrativas dos participantes, dados que respondam aos objetivos
específicos da pesquisa, nos quais se baseou o temário da entrevista.
Em um segundo momento, será apresentada uma análise mais detalhada, à luz
da Psicologia Cultural do Desenvolvimento, da narrativa de um dos participantes da
pesquisa. De acordo com os objetivos deste estudo, buscou-se compreender os
significados envolvidos nos cuidados paliativos, com base nos conceitos de ruptura e
transição (Zittoun, 2012), de ambivalência (Abbey & Valsiner, 2004) e na
compreensão da dinâmica dos signos e da mediação semiótica (Valsiner, 2012).
Dentro desta perspectiva, foram construídas redes de significados sobre
cuidados paliativos a partir das narrativas dos participantes. Tais redes serão
apresentadas em um último momento.
6.1 Os significados de cuidados paliativos narrados pelos profissionais de saúde
A partir da transcrição e da leitura cuidadosa das entrevistas, foi possível
elaborar temas para melhor compreender o fenômeno dos cuidados paliativos
pediátricos a partir da perspectiva dos profissionais de saúde que atuam na área. Os
temas propostos para a análise foram: a caracterização geral sobre os cuidados
paliativos, as práticas de assistência à saúde, a relação com a família, a percepção do
paciente a partir da visão dos profissionais, o significado de morte e o processo de
luto. Foram construídos também subtemas para melhor explorar os dados coletados,
conforme se observa na Figura 4, a seguir.
62 CARACTERIZAÇÃO GERAL DOS CUIDADOS PALIATIVOS • De$inição • Desa$ios na atuação • Aspectos positivos • Estratégias de enfrentamento PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE • Comunicação • Tomada de decisão • Cuidados $ísicos • Função do pro$issional RELAÇÃO COM A FAMÍLIA • Formação de vinculo • Vivência da família • Impacto do diagnóstico PERCEPÇÃO DO PACIENTE • Percepção do adoecimento • Criança x adolescente MORTE • Crenças • Sentimentos • Estratégias de enfrentamento PROCESSO DE LUTO • Sentimentos • Estratégias de enfrentamento FIGURA 4: Temas e subtemas elaborados para a análise dos dados
6.1.1 CARACTERIZAÇÃO GERAL SOBRE OS CUIDADOS PALIATIVOS A caracterização dos cuidados paliativos envolve as definições que emergiram
nas narrativas dos profissionais, assim como as dificuldades encontradas e os aspectos
positivos que auxiliam no enfrentamento desta realidade.
O trabalho nos cuidados paliativos é regido por princípios que devem ser
seguidos em todas as atividades desenvolvidas. De acordo com a Organização
Mundial de Saúde (WHO, 2007), os princípios dessa abordagem são: promover o
alívio da dor e de outros sintomas estressantes; olhar a morte como um processo
natural, reafirmando a vida; não antecipar e nem postergar a morte; integrar aos
cuidados os aspectos psicossociais e espirituais; oferecer um sistema de suporte para
que o paciente possa viver ativamente o quanto possível; oferecer um sistema de
suporte para que os familiares sintam-se amparados durante o processo da doença; e
63 deve ser iniciado o mais precocemente possível. Foi possível observar que os
profissionais pontuaram muitos destes princípios ao longo das suas narrativas.
Nas entrevistas realizadas com os profissionais de saúde que atuam na
oncologia pediátrica, são trazidas as definições sobre os cuidados paliativos que
envolvem as medidas de conforto, a redução da dor e do sofrimento, assim como a
compreensão de que o cuidado paliativo é decidido quando não há mais possibilidade
de cura para a doença. Tais definições estão de acordo com alguns dos princípios e
com a definição apontada pela WHO (2007):
"Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe
multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e
seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da
prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação
impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais,
psicológicos e espirituais" (WHO, 2012).
A identificação precoce com uma perspectiva preventiva foi também
enfatizada por Golan, Bielorai, Grebler, Izraeli, Rechavi & Toren (2008), o qual
destacou que a introdução precoce da abordagem permite uma transição gradual do
controle de sintomas até o momento da morte. Não foi possível identificar tal
perspectiva nas narrativas dos profissionais ao descreverem as práticas de assistência
e a compreensão acerca dos cuidados paliativos. Nas narrativas surge a definição de
que o cuidado paliativo é estabelecido quando a doença já está em um estágio
avançado e não há mais procedimentos curativos possíveis a serem aplicados.
Como compreensão acerca dos cuidados paliativos, Leila, dentista, afirma que
são procedimentos para a diminuição da dor e a tentativa de ofertar o maior conforto
possível para o paciente e para a sua família. A situação de cuidados paliativos
envolve conforto, frustração e suporte religioso. Leila destaca a espiritualidade como
um forte apoio para o enfrentamento.
Não se observou, na narrativa de Leila, uma definição mais elaborada e que
abrangesse os diferentes domínios objetivados pela prática dos cuidados paliativos.
Essa prática, se assumida em toda sua amplitude, favorece uma assistência na qual a
dor e o sofrimento das pessoas tenham prioridade no cuidado, com um compromisso
direto com o bem-estar do paciente, como apontam os estudos de Costa & Ceolim
64 (2010) e Silva & Sudigursky (2008). Curar torna-se, então, o alívio da dor e o suporte
para que o paciente possa enfrentar a fragilidade diante da iminência da morte
(Pessini, 2001). Nas narrativas dos profissionais, a definição de cuidados paliativos
parece demonstrar algumas dimensões dos cuidados paliativos pautadas no alívio da
dor e no conforto, promovendo uma qualidade de vida, conforme se vê na fala a
seguir.
“Cuidados paliativos, o conceito é justamente esse: paliativo é você
dar uma qualidade de vida um pouco melhor, mesmo aqueles que estão
fora de possibilidade terapêutica.” (Carlos, médico)
Ao definir o contexto de Cuidados Paliativos, Leila (dentista) afirma que não
passou por um curso de formação e acredita que essa falha na formação profissional
interfere na atuação. Caso houvesse um protocolo fechado, acrescenta ela, algo mais
claro e determinado que se pudesse aplicar, seria mais fácil lidar com essa situação,
por facilitar um distanciamento emocional.
Diante dos desafios enfrentados no contexto de cuidados paliativos, destaca-se
o sentimento de frustração e derrota, por não ter conseguido vencer a doença, além de
uma dificuldade para aceitar que não há mais tratamento possível para aquele
paciente. Leila enfatiza a falta de um suporte para os profissionais que lidam com esse
contexto em sua rotina de trabalho.
“E a gente tem como dificuldade a frustração. De não ter
conseguido... Meio que a doença venceu o tratamento. Não adiantou a
gente ser uma equipe multidisciplinar, estar trabalhando todo mundo
junto, um monte de cabeça pensando e a derrota. Tem essa frustração.
Fora o envolvimento afetivo, com o paciente, porque sempre acaba
ruim. É muito difícil aceitar que não tem mais tratamento.” (Leila,
dentista)
Ao longo das narrativas, os profissionais trazem o trabalho da equipe
multidisciplinar – o que é essencial para o suporte ao paciente em todos os níveis
(uma perspectiva biopsicossocial), e pontuam também a importância do cuidado para
além dos sintomas físicos, abrangendo os aspectos sociais, psicológicos e, em
algumas entrevistas, como a da dentista, principalmente, os aspectos espirituais.
65 Diante dos desafios da atuação profissional neste contexto, são pontuadas pela
enfermeira e pela psicóloga a falta de clareza na definição dos cuidados paliativos e
uma divergência de opiniões entre os membros da equipe médica, o que dificulta a
assistência prestada pela equipe de saúde. Para Jéssica, enfermeira, o maior obstáculo
na situação de cuidados paliativos é a divergência na compreensão da equipe, o que
dificulta o enfrentamento e a oferta de uma qualidade para a morte do paciente. A
equipe, de uma forma geral, não possui o conhecimento satisfatório sobre os cuidados
paliativos ao ponto de os profissionais trabalharem o tema como uma equipe
multiprofissional, com os papéis e as funções de cada profissional delimitados.
Poliana, psicóloga, também aponta como maior dificuldade encontrada no
contexto de cuidados paliativos a falta de posicionamento da equipe, associada a uma
dificuldade da equipe médica em definir os limites dos cuidados paliativos e até onde
e de que forma a assistência deve ocorrer. Essa falta de segurança e esclarecimento
acerca da definição de cuidados paliativos é vista, por Poliana, como um obstáculo
para a sua própria atuação. Poliana relaciona essa dificuldade a um sentimento de
frustração do médico por não conseguir solucionar o problema do adoecimento da
criança.
No que se refere à definição de cuidados paliativos, observa-se, na narrativa de
Poliana, uma dificuldade para realizar o seu trabalho devido à superficialidade
encontrada na definição das medidas de assistência ao paciente que está sob esses
cuidados.
“Hoje em dia eles tem colocado no prontuário, não é?
[...]contraindicação de manobra Heróicas, que é muito superficial, eu
acho né. O que são manobras Heróicas? Eu não sei. [...] Quando isso
acontece, quando não está muito claro, fica difícil pra mim sustentar
né, [...] mas assim, fica difícil guiar meus atendimentos” (Poliana,
psicóloga)
Apesar de pontuar o conflito advindo da divergência de opiniões dentro da
equipe, Jéssica traz o trabalho em equipe como um apoio na rotina diária de trabalho.
Ela destaca a união da equipe e o suporte de outras especialidades na atuação no
contexto de cuidados paliativos, como a clínica da dor. Como exemplos, Jéssica relata
que ocorrem reuniões multiprofissionais, normalmente de quinze em quinze dias, nas
66 quais são discutidas as informações principais acerca dos pacientes, favorecendo a
comunicação entre os profissionais equipe de saúde.
A ambivalência é definida como uma tensão produzida em um sistema devido
à divergência entre o que está presente e o que poderia ocorrer no momento seguinte
(Abbey, 2012). Para Abbey e Valsiner (2004), os signos possuem uma dimensão de
incerteza no tempo futuro do processo de emergência semiótica, ao mesmo tempo em
que os signos podem representar algo satisfatoriamente no momento presente. Desta
forma, o processo pode ser marcado por níveis variados de ambivalência. É possível dizer que a relação de Jéssica dentro da equipe de saúde é marcada
por ambivalência, havendo, por um lado, o conflito pela divergência entre as opiniões
e, por outro, o suporte advindo do trabalho em equipe como espaço para compartilhar
a experiência.
Como estratégia para enfrentar a situação de cuidados paliativos, Leila relata
buscar um distanciamento dos pacientes através da diminuição de visitas e de não
memorizar a idade dos pacientes, como tentativa para reduzir o vínculo e o impacto
da perda. Afirma que ter conhecimento sobre o sofrimento já é difícil, porém,
vivenciar o momento de dor se torna ainda mais difícil. Busca, então, evitar o contato
através da crença de que essa atitude favorece um distanciamento da situação dos
cuidados paliativos e da morte iminente do paciente, sendo este um recurso semiótico
(Zittoun, 2012), que funciona como estratégia para a proteção emocional.
“Já na fase mais final. Começa a ter desconforto respiratório...
começa a ter crises de dor... Vou, visito, claro... faço a assistência... Se
precisa de tratamento, realmente, precisa aplicação de laser, precisa
que eu vá e faça algum diagnóstico... mas eu tento não ficar muito
envolvida.” (Leila, dentista)
Foi comum, nas diferentes narrativas, a dificuldade para enfrentar a dor, o
sofrimento e a iminência da morte, característicos do contexto de cuidados paliativos.
Essa dificuldade foi também destacada no estudo de Nascimento et al (2013), sobre a
percepção dos profissionais diante da criança com leucemia em cuidados paliativos, e
no estudo de Avanci et al (2009) sobre a percepção dos enfermeiros diante da criança
com câncer em cuidados paliativos.
67 Como aspectos positivos, são apontados, por alguns profissionais, o vínculo
formado com os pacientes e familiares e o aprendizado acerca da vida e da morte. As
narrativas da técnica de enfermagem e da enfermeira destacam um envolvimento e
uma admiração pela força que as mães normalmente apresentam diante do momento
de dor e sofrimento pela perda iminente dos filhos. Observa-se, na entrevista com
Tina, uma atenção especial ao cuidado dispensado ao paciente e ao seu familiar, o
qual envolve um afeto e uma sensibilidade para compreender a dor deles.
É destaque também, nas narrativas, o trabalho em equipe como um
apoio/suporte para o enfrentamento do contexto de cuidados paliativos, sendo
valorizados a união, a comunicação e o compartilhamento da dor ou angústia entre os
profissionais, resultado também observado no estudo de Neilson, Kai, MacArthur &
Greenfield (2011) realizado com profissionais que atuam com o cuidado paliativo em
homecare. Como apoio para enfrentar as dificuldades, a dentista relata que a equipe
vivencia, em conjunto, um sentimento de esperança no cuidado junto ao paciente e à
sua família e compartilha as dificuldades enfrentadas.
A técnica de enfermagem destaca também a união da equipe e afirma que esta
favorece o trabalho de cada profissional individualmente. Tina relata que, com os
pacientes em cuidados paliativos, a equipe se une ainda mais e atua como um suporte
emocional para enfrentar o contexto. De acordo com Zittoun (2012), o apoio do
trabalho em equipe pode ser visto como um recurso interpessoal para o enfrentamento
da transição, o qual fornece um espaço possível para compartilhar a experiência e
dialogar.
Diante do contexto de cuidados paliativos, Leila ressalta a competência técnica
da equipe e a clareza do que deve ser feito na assistência ao paciente e à família,
oposto ao que foi apontado pela psicóloga e pela enfermeira anteriormente. Porém,
quando se trata do aspecto afetivo, não há um preparo para lidar com a dor do
paciente, da família e com a perda, faltando um suporte adequado para a equipe de
saúde.
“ ...o aspecto afetivo é uma coisa que a gente tem que estudar mais e
elaborar mais. [...] E eu não vejo nenhum trabalho voltado para
equipe, só voltado pras famílias. A gente tem um psicólogo para
68 atender a família, a gente não tem tempo nem para gente sentar para
ver como é que está a equipe.” (Leila, dentista)
Em grande parte das narrativas, a dimensão temporal se torna relevante para o
processo de adaptação. Os participantes relatam que o tempo favorece sua adaptação
ao contexto da oncologia e dos cuidados paliativos na pediatria. A percepção de uma
adaptação após um tempo de trabalho também foi observado no estudo de Yazdani et
al (2010) com residentes de medicina no contato com o cuidado paliativo. A única
participante cujo posicionamento parece apontar para uma direção diferente foi a
psicóloga, que expressa um sentimento de desgaste emocional devido ao constante
contato com a dor, com o sofrimento e com a perda dos pacientes. Ela afirma que tem
se tornado cada dia mais difícil enfrentar o contexto dos cuidados paliativos.
No que se refere ao processo de adaptação, Tina (técnica de enfermagem),
relata que foi um grande desafio defrontar-se inicialmente com o trabalho na
oncologia pediátrica, principalmente pela associação do câncer com a morte. Com o
passar do tempo, a participante afirma ter aprendido a lidar com as dificuldades que
surgem nesta situação. A aprendizagem envolve administrar as dificuldades do
ambiente dos cuidados paliativos e saber fornecer os cuidados necessários para o
paciente e para a sua família.
Na narrativa de Leila (dentista), é possível observar um processo de maior
aceitação ao longo do tempo. A participante relata que, ao experienciar a progressão
da doença e o tratamento intensivo, o momento da morte torna-se em alguns casos um
alívio da dor. É possível observar, em sua narrativa, uma dificuldade maior de lidar
com casos que se tornam paliativos e vão a óbito mais repentinamente.
As dificuldades enfrentadas por Jéssica (enfermeira), na situação dos cuidados
paliativos, também reduziram-se com o passar do tempo. Enfrentar o contexto de
cuidados paliativos na pediatria é bastante difícil, porém, destaca-se um processo de
adaptação àquela realidade através de uma tentativa de distanciamento emocional do
sofrimento experienciado pelo paciente e pelos familiares. Mais uma vez se observa o
papel de recursos semióticos para que tal distanciamento ocorra: no caso, o
entendimento de um caminho, de um papel próprio ao profissional. É possível que
esse distanciamento tenha uma função adaptativa às demandas da situação de cuidado
paliativo.
69 “É difícil... Mas, assim, antes era pior. No começo eu me apegava
muito aos pacientes. [...] E depois eu fui entendendo que o caminho,
realmente, não era esse, porque eu levava tudo para casa e absorvia muito
tudo isso. Chorava... era horrível.”(Jéssica, enfermeira)
6.1.2 PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE Este tema apresenta a compreensão dos profissionais acerca das práticas de
assistência à saúde oferecidas ao paciente em cuidados paliativos, englobando os
subtemas sobre o processo de comunicação, a tomada de decisão, os cuidados físicos
e a função do profissional neste contexto.
No que se refere ao processo de comunicação, há um consenso nas cinco
entrevistas realizadas de que é responsabilidade da equipe médica informar à família e
ao paciente, quando possível, acerca da decisão dos cuidados paliativos. Além disso,
foi observado nas narrativas que há uma comunicação clara com a equipe, porém só
ocorre com o paciente quando este questiona ou pergunta sobre o seu estado de saúde.
No que se refere ao processo de comunicação, Poliana (psicóloga) afirma que
a forma como ocorre varia de acordo com o médico responsável no momento, sendo,
em alguns casos, a comunicação mais clara e direta. Ressalta-se a necessidade de
avaliar a idade do paciente e utilizar estratégias de comunicação mais adequadas à
capacidade cognitiva e emocional da criança ou do adolescente. Em algumas
situações, a própria família comunica ao paciente e há um destaque, nas narrativas da
psicóloga e da dentista, para a importância de desenvolver uma forma lúdica de
comunicar o prognóstico à criança ou ao adolescente.
A psicóloga observa que alguns médicos da equipe apresentam dificuldade no
momento da comunicação com a família, devido a uma resistência em falar sobre a
morte, segundo a participante. Ela considerada que sua função, nesse contexto, é
justamente a de dar suporte à equipe médica e à família, auxiliando na mediação desta
relação. Poliana afirma que também aqui se deve pensar acerca da comunicação pois,
em sua opinião, alguns detalhes sobre a evolução da doença não precisam ser ditos ao
paciente e ao familiar.
70 “Eu não acho que a pessoa precise saber de forma muito cruel tudo
isso, sabe? Por exemplo que o testículo dele não vai diminuir, que não
vai desinchar eu sei, mas ele poderia ter dito – ‘Ó, é, no momento’, o
no momento amenizaria essa dor dele; ele se desesperou, ele
desesperou depois que soube de tudo isso, entendeu? E o paciente
ficar instável emocionalmente nesse momento é muito complicado, até
porque a intervenção da psicologia é quase mínima, ele dorme o
tempo inteiro, ele se queixa de dor o tempo inteiro...”.(Poliana,
psicóloga)
O posicionamento da psicóloga converge claramente com sugestões
encontradas na literatura, que destacam a importância da comunicação clara e sincera,
que possa fornecer segurança para que os familiares possam decidir com base em suas
crenças, valores e nos interesses da criança (Barbosa, Lecussan & Oliveira, 2008). No
que se refere à comunicação com a criança/adolescente, Torres (2002) aponta a
importância de preservar a integridade psíquica do paciente e afirma que a falta da
resposta ou uma resposta inadequada aos questionamentos da criança/adolescente
sobre a morte tem o poder de fragilizar ou até romper essa integridade.
No caso especial dos Cuidados Paliativos na Pediatria, há que se observar
também que as crianças, na maior parte das vezes, são representadas pelos seus
responsáveis, que atuam na tomada de decisões. Do ponto de vista ético, os
responsáveis devem prezar pelo maior benefício para a criança e esta deve ser
envolvida no processo de tomada de decisões pertinentes ao seu cuidado, o máximo
possível (Barbosa, Lecussan & Oliveira, 2008). De acordo com os participantes do
atual estudo, os indícios são de que a criança participa pouco da comunicação com a
equipe e consequentemente do processo de tomada de decisões sobre a sua própria
vida.
Assim como a comunicação, a tomada de decisão também é vista pelos
participantes como responsabilidade da equipe médica. A dentista chega a explicitar
que cabe aos demais profissionais atuar nesse processo como um suporte para os
médicos. De acordo com a revisão de literatura realizada por Piva, Garcia & Lago
(2011), a tomada de decisão fica centralizada no médico principalmente pelo domínio
sobre os conhecimentos técnicos da saúde, assim como por receios legais diante do
71 processo do morrer, o que impede uma maior participação da família no processo de
decidir sobre a vida do paciente.
Leila (enfermeira) destaca a dificuldade para o médico em decidir acerca da
vida de outra pessoa, decisão esta que, em cuidados paliativos, pode implicar na
morte. Carlos, o médico, relata compartilhar a responsabilidade da decisão com a
família, através de uma comunicação clara, o que facilita, para ambos, o
enfrentamento da situação. No estudo realizado por Piva, Garcia & Lago (2011), foi
possível observar que o envolvimento da família na situação de cuidados paliativos
participa da base para o sucesso do tratamento paliativo.
O processo de tomada de decisão caracteriza-se como um momento delicado
principalmente pela angústia e pela dificuldade de lidar com a morte, típica do ser
humano, segundo a psicóloga. Um aspecto que Poliana (psicóloga) considera difícil é,
além de definir os cuidados paliativos, a decisão acerca de como isso será feito e quais
serão os procedimentos para a assistência ao paciente e a sua família.
"... pra mim é muito difícil a questão do que fazer, né? Como os
médicos têm dificuldade de entrar nesse consenso, porque eles têm
dificuldade de lidar com a morte (como todo mundo tem) aí fica
naquela questão, é.... vai perder o paciente na enfermaria, morrendo
por...vai perder ele por asfixia? Não vai levar para a UTI?”.(Poliana,
psicóloga)
Poliana acredita que o momento mais difícil é o limite entre a possibilidade e o
momento em que se concretiza e decide os cuidados paliativos. Este é o momento em
que a família se questiona e busca métodos alternativos para tentar evitar a morte do
paciente.
Tanto a psicóloga quanto a enfermeira apontam uma divergência de opiniões e
uma falta de clareza referentes à conduta entre a equipe médica, o que favorece uma
insegurança e interfere na atuação dos outros profissionais da equipe de saúde. O
estudo de Nicholl & Price (2012) buscou compreender a oferta de ensino de cuidados
paliativos na graduação de enfermagem e constatou que há uma falha na formação no
que se refere ao tema da morte e que a ambiguidade na terminologia, assim como a
72 lacuna na clareza do conceito de cuidados paliativos, dificulta o processo de
aprendizagem acerca da abordagem.
Tratando-se dos cuidados físicos, observa-se que esta dimensão é mais
presente na narrativa da técnica de enfermagem, que relata a permanência do cuidado,
sem alteração, após a decisão dos cuidados paliativos. O que parece se modificar é a
mudança de foco na esperança da cura para a perspectiva da morte – o que também é
observado por Torres (2002) em seu estudo. Diante do comprometimento com a cura,
muito presente na formação do profissional de saúde, torna-se difícil encarar a morte e
esta aparece como uma falha. Essa vivência é claramente descrita pela técnica de
enfermagem, a qual expressou a mudança no sentimento, sendo que, ao invés de lutar
por uma cura, o foco maior é no carinho e no afeto para a terminalidade.
“Não há diferença não, a diferença é só interna mesmo, que no início
a gente faz querendo vencer – a gente vai fazer perfeito porque a gente
quer vencer -
a gente pensa né, e no final a gente já pensa –
infelizmente nós perdemos, mas vamos continuar fazendo o que a
gente veio fazendo desde o início.” (Tina, técnica de enfermagem)
No que se refere à afetividade na assistência aos cuidados paliativos, Tina
valoriza o cuidado ao paciente e ao familiar e acredita que a assistência da equipe
deve envolver uma relação de afeto e carinho. Embora afirme que não há mudança no
cuidado ofertado pela equipe após a definição dos cuidados paliativos, é possível
observar que a intenção do cuidado e o sentimento associado da participante sofrem
alterações após a definição de que o paciente encontra-se fora de possibilidade
terapêutica.
Observa-se, no relato do cuidado de Tina, um nível de ambivalência entre a
prática exercida e o sentimento experienciado diante de uma criança em cuidados
paliativos. Ao mesmo tempo em que a participante afirma que o cuidado permanece o
mesmo, apesar de já ter sido relatado anteriormente o foco nas medidas de conforto,
Tina expressa uma mudança no sentimento e no objetivo do cuidado – como uma
perspectiva de derrota.
A dentista também descreve o cuidado físico que ocorre com o paciente,
mesmo quando não há possibilidade de cura. O foco torna-se o conforto e a redução
73 da dor e do sofrimento, presente na narrativa dos cinco profissionais. Esse mesmo
foco é encontrado em alguns trabalhos da literatura os quais destacam, na
compreensão acerca dos cuidados paliativos, o cuidado, o manejo da dor e o controle
dos sintomas (Costa & Ceolim, 2010; Silva & Sudigursky, 2008; Avanci et al, 2009).
A função do profissional na situação dos cuidados paliativos é apresentada em
cada entrevista. O médico coloca-se como facilitador do processo de morrer,
destacando a importância de favorecer uma morte digna ao paciente, com o menor
sofrimento possível. A técnica de enfermagem destaca a importância da sensibilidade,
assim como no estudo realizado por Costa & Ceolim (2010) sobre a prática da
enfermagem nos cuidados à criança e ao adolescente com câncer, e afirma que a sua
função, além dos cuidados físicos, é tratar o paciente e a sua família com carinho e
afeto. A enfermeira destaca o papel de reduzir a dor do paciente através dos cuidados
físicos e da atenção, assim como a dentista pontua a sua função de dar conforto ao
paciente, mesmo quando não há mais a possibilidade de cura.
Tina, a técnica de enfermagem, ao fazer uma reflexão acerca do papel do
profissional no contexto dos cuidados paliativos, relata que é necessário gostar do
trabalho, ter um comprometimento específico e compreender a dor do outro. De
acordo com Menezes & Barbosa (2013), é necessário que o profissional, que atua com
cuidados paliativos na pediatria, trabalhe de modo racional, afetivo e humanizado,
com autocuidado e autocontrole emocional, para que tenha uma interação adequada
com os pacientes e com os familiares
Ao construir essa identidade profissional, Tina parece fortalecer a sua
perspectiva de cuidado ao paciente e aos familiares. Acrescenta que o profissional
também sofre, ao ver uma criança doente e hospitalizada. Destaca-se novamente a
importância de uma formação adequada para os profissionais de saúde lidarem com o
contexto de cuidados paliativos e iminência de morte:
“São pessoas que precisam né, de profissionais capacitados e que
sejam sensíveis né, acima de tudo tem que ser um ser humano, tem que
entender a dor do outro né, tem que entender quando o outro não está
legal...” (Tina, técnica de enfermagem)
74 Na narrativa da psicóloga, é trazida a importância da psicologia no suporte aos
cuidados paliativos, tanto para o paciente quanto para a família. É realizado um
trabalho de favorecer o processo de organização e adaptação à nova realidade, assim
como um suporte emocional para o momento de dor e sofrimento, com a iminência da
morte:
“...do medo de como é que vai ser a hora, o que é que vai fazer, não
da parte burocrática, mas assim, de vestir o corpo né, então assim,
esse momento eu tento trazer pra ver se elas conseguem pelo menos
tentar se organizar né, porque preparado ninguém tá, eu acho.
[...]tentar fazer com que eles ressignifiquem, esse momento, entre
estar aqui ainda e não estar mais, do filho.”(Poliana, psicóloga)
A psicóloga destaca o seu papel de, além de dar suporte à equipe e à família,
mediar a comunicação entre ambas. Tal perspectiva da atuação do psicólogo foi
apontada e valorizada nos estudos de Mendes et al (2009) e de Froelich (2011), que
defendem a importância da atuação do profissional de psicologia no contexto dos
cuidados paliativos desde os primeiros momentos, com intervenções preventivas,
facilitando a comunicação entre a equipe e a família, até fornecer suporte psicológico
no momento crucial da morte.
Tal processo não é vivido sem angústia, sentimento, para Poliana, que cresce
no momento de cuidados paliativos e na terminalidade, levando a dificuldades na
realização de atendimento psicológico ao paciente por resistência ou falta de desejo
do mesmo de falar sobre a sua vivência. Um sentimento de impotência é expresso
pela profissional:
“Quando nesse momento o paciente prefere recuar, prefere ficar mais
na dele. Respeitar é o ideal, mas, pra gente, que tem uma função de
tentar, de estar ali na escuta o tempo todo, é difícil, é difícil, pra mim
é.” (Poliana, psicóloga)
6.1.3 A RELAÇÃO COM A FAMÍLIA 75 Este tema descreve a perspectiva dos profissionais sobre a relação que
estabelecem com a família, englobando a formação do vínculo, a vivência da família e
o impacto do diagnóstico.
Sobre a formação do vínculo, nas narrativas dos cinco profissionais está
presente a força do vínculo formado com os pacientes e com os seus familiares.
Destaca-se o longo período de tratamento e o constante contato entre a equipe, o
paciente e a família, o que favorece o fortalecimento da relação. A dentista relata
estabelecer uma amizade com muitas mães de pacientes, o que intensifica nela mesma
o processo de luto antecipatório na iminência da morte e o luto vivido após a perda.
Piva, Garcia & Lago (2011) discutem os principais dilemas e dificuldades nas
decisões de terminalidade na pediatria, concluindo, em seu estudo, que o
envolvimento da família e a boa relação com a equipe são fundamentais para o
sucesso do tratamento paliativo. Rabello & Rodrigues (2010) também destacaram, em
seu estudo sobre os cuidados paliativos na Saúde da Família, a percepção positiva dos
profissionais acerca do vínculo formado com a família e o acolhimento ofertado.
Apesar de apontado como um aspecto positivo, no estudo de Rabello &
Rodrigues (2010), o médico ressalta que a formação do vínculo com o paciente e com
os familiares dificulta o seu trabalho e a tomada de decisões no momento em que se
torna necessário o cuidado paliativo. A formação de vínculo com a família e com o
paciente vem associada nas narrativas do presente estudo a uma ambivalência entre
uma boa relação e, por outro lado, a um sofrimento diante da iminência da morte e
diante da perda de um paciente.
A literatura aponta que a clareza na comunicação, o contato próximo com a
família e o acompanhamento do processo de morte auxilia a equipe a compreender
melhor a realidade dos pais, o que pode favorecer a assistência nesse contexto de
cuidados paliativos (Souza et al, 2009). Contrariamente a essa tendência, o médico
entrevistado apontou uma dificuldade na prática e um sentimento de que a assistência
fica também prejudicada devido ao vínculo formado com o paciente e com os
familiares.
Tina, técnica de enfermagem, destaca que, em muitos momentos, a família
cria uma barreira para proteger a criança e fazer as vontades da mesma, e isto dificulta
76 o trabalho da equipe de saúde. Ao mesmo tempo, ressalta o vínculo que é formado
com os familiares, expressando a dor de vivenciar o sofrimento da família e do
paciente. Pode-se dizer que, na interação com os pacientes e familiares, Tina
permanece tomada por um sentimento de ambivalência entre a vivência da dor e do
sofrimento e, ao mesmo tempo, pelo contato com a esperança e a força que as
crianças e seus familiares expressam. É marcante na narrativa da profissional a força
do que é aprendido no cotidiano do seu contexto de trabalho:
“Logo inicialmente eu achei que eu não ia conseguir, [...] mas você vê
tanta doçura, é uma fase que você vê a situação deles tá tão crítica e
eles estão te trazendo lições de vida, não é? [...] Contagia você
sempre. Eu aprendo mais com eles, eles me ajudam mais do que eu
acho que eu ajudo eles, emocionalmente né?” (Tina, técnica de
enfermagem)
Essa força que as crianças e familiares apresentam, ao ser identificada pela
profissional como um valor, passa a ser apropriada por ela enquanto um recurso
semiótico (Zittoun, 2012) que auxilia seu enfrentamento diante das dificuldades do
contexto de cuidados paliativos e no processo de transição após o contato constante
com a morte em seu ambiente de trabalho.
Tratando-se da vivência das famílias e seu impacto sobre os profissionais, das
narrativas em seu conjunto, apreende-se que o contato inicial com o contexto de
cuidados paliativos e com a morte, caracteriza-se enquanto ruptura, no sentido
proposto por Zittoun (2012), não apenas para o paciente e para os familiares, mas
também para os profissionais. Tal momento pode ser considerado uma ruptura já que
interrompe uma trajetória e exige da pessoa um ajustamento a uma nova realidade,
que é percebida de tal modo exigente que alguns chegam a expressar a crença de que
não seriam capazes de suportar.
Souza et al (2009) apontam para a importância da equipe de saúde estar atenta
ao sofrimento da família no contexto dos cuidados paliativos pediátrico. Os autores
ressaltam o impacto da perda de um filho para os pais, a qual envolve a perda de
projetos, desejos de vida e futuro, ocasionando um grande conflito interior. Afirmam,
ainda, que não há muito o que se fazer para aplacar a dor dos familiares; porém, os
profissionais de saúde podem evitar que este sofrimento seja ampliado, ofertando um
77 acolhimento, um suporte e um apoio e, para isto, os profissionais devem ser
capacitados.
O câncer pediátrico necessita de um tratamento prolongado, com
procedimentos médicos aversivos que podem envolver dor, desconforto e sensações
perturbadoras que podem ser piores do que a própria doença (Torres, 2002). Em todas
as entrevistas deste estudo, exceto na da técnica de enfermagem, aparece o sentimento
de alívio, na morte, diante do fim do sofrimento que o paciente vive durante todo o
tratamento, ressaltando que há um grande desgaste emocional ao longo do processo.
Segundo Torres (2002), observar e conviver com a dor de uma criança com câncer é
uma dura experiência, tanto para os familiares quanto para os profissionais de saúde.
Os participantes apresentam em suas narrativas a visão que possuem acerca da
experiência da família e do paciente, e destacam a força que as mães possuem para
enfrentar o adoecimento do filho. A dentista e a enfermeira destacam a importância do
suporte espiritual/religioso para familiares enfrentarem a perda da criança ou do
adolescente.
Assim, Leila considera que a religião se torna um suporte para as famílias
através de crenças que trazem conforto e permitem lidar com a dor, tais como a crença
de que a morte é uma passagem e que o filho está sendo entregue a Deus:
“A gente vê todo aquele processo de sofrimento e no belo momento
que aquele responsável está mais próximo, está mais ligado,
emocionalmente, à criança... [...] E eles relatam quando entregam a
Deus, “que cuide do meu filho”. Ou seja, eles começam a acreditar
também que não é mais fim. Que é passagem. Minutos depois, horas
depois, começa diminuir os batimentos cardíacos, começa a diminuir
as funções... e a criança para e vai a óbito. Então... é difícil a gente se
afastar de religião vivenciando isso tanto tempo. Ela traz um
conforto”.
No que se refere ao impacto do diagnóstico, pode-se afirmar que diagnóstico
e o tratamento oncológico envolvem uma sequência de intervenções sobre o paciente,
implicando em sucessivas hospitalizações. As hospitalizações são consideradas por
Torres (2002) como marcos de crise e stress ao longo do adoecimento, pois retiram a
78 criança e o seu responsável do meio familiar, implicando em uma nova rotina, com
novas leis e normas.
Tanto a enfermeira quanto a técnica de enfermagem afirmam que o momento
mais difícil é o diagnóstico da doença, o qual modifica por completo a vida daquele
paciente e dos seus familiares. Tal perspectiva é confirmada por Torres (2002), que
aponta que o momento do diagnóstico é a primeira situação de crise experienciada
pela criança e por seus familiares. Para Tina, o momento do diagnóstico se apresenta
como um choque para a família, gerando um desejo excessivo de proteção da criança.
Pode-se observar na narrativa da participante, o diagnóstico como um momento de
ruptura para a família, no qual a vida da criança aparece de forma tão frágil:
“Quando confirmava o diagnóstico é o baque da família, né? É um
baque assim, grande... porque criança a gente quer preservar de tudo
né, que nada de mal aconteça e tal e de repente é um negócio tão
frágil.”
Apesar da dificuldade que acredita existir na introdução dos cuidados
paliativos, Jéssica também afirma que o momento mais difícil para a família parece
ser o do diagnóstico oncológico, que surge, na sua narrativa, como uma ruptura. O
desgaste do tratamento e as dificuldades encontradas ao longo desta trajetória,
parecem facilitar o processo de aceitação para as mães no momento da decisão dos
cuidados paliativos, conforme demonstra sua fala a seguir:
“[...] já passa por tantas dificuldades no tratamento... E em muitos
momentos eu acho que elas perdem a esperança... [...] o que eu vejo é
que é com menos sofrimento do que o diagnóstico. Porque eu acho que
elas pensam assim ‘poxa, já sofreu tanto com o tratamento, que talvez
seja melhor”.
Poliana (psicóloga) observa uma dificuldade da família, mais especificamente
das mães, em utilizar o termo paliativo, por mais que estejam esclarecidas acerca do
prognóstico de seus filhos. Há a formação do vínculo da participante com o paciente e
com a sua família, assim como um envolvimento e a esperança de que o tratamento
tenha sucesso. Destaca-se o sentimento de frustração e a dificuldade de enfrentar a
situação de cuidados paliativos.
79 Em sua experiência na área como psicóloga, ela observa que há uma
resistência das mães em levar os filhos para morrer em casa devido a um medo da
terminalidade e de como será o processo do morrer. Por outro lado, há um predomínio
de desejo dos pacientes de morrer em casa e ela ressalta a importância de respeitar
essa vontade. Poliana acredita que a equipe de saúde deve refletir sobre esse aspecto.
Ao contrário do que ocorre com familiares de alguns pacientes adultos,as
mães, como cuidadoras principais, normalmente apresentam uma grande demanda
para atendimento psicológico quando os filhos estão em cuidados paliativos. Poliana
explica que as mães apresentam uma demanda para falar sobre o tema e buscam ajuda
para tentar adaptar-se à realidade vivida com seus filhos.
Diante da experiência de luto das mães, são identificados sentimentos como a
angústia e o medo da morte e do sofrimento que o filho irá passar. Após o óbito,
Poliana observa que as mães apresentam uma dificuldade para enfrentar a perda e o
vínculo com a equipe de saúde, em muitos casos, permanece.
Na função de psicóloga, Poliana descreve o seu papel diante da terminalidade
da criança numa linha convergente com a definida por Torres (2002), para quem o
suporte à criança permite que ela expresse as suas fantasias e os seus medos, que ela
pense sobre o tema, e que seja trabalhado o seu luto antecipatório diante da iminência
da morte, levando em conta que a linguagem mais utilizada pela criança é a
linguagem simbólica não-verbal.
Alguns pacientes crianças ou adolescentes falam sobre o medo e a
proximidade da morte e demonstram estar esclarecidos, mesmo quando não há a
comunicação direta sobre o assunto. Ao longo dos atendimentos psicológicos, a
psicóloga observa como questões frequentes o medo da morte, o medo de como será
o processo do morrer e a preocupação com a sofrimento da família.
Acerca da experiência da criança e do adolescente diante da morte, é
enfatizada, na narrativa da psicóloga, a vivência da temporalidade no momento
presente, no aqui e agora e, desta forma, observa que não há uma preparação dos
pacientes para o processo do morrer. Não é identificada uma organização emocional
ou uma conformação dos pacientes acerca da finitude da vida. Há uma preocupação
80 com o momento presente e com as questões práticas voltadas para o processo do
morrer.
“É difícil, eu não me lembro de nenhum caso assim da criança ou do
adolescente estar organizado no sentido assim do conformado, com
uma organização que eu acho que é muito do adulto[...]Na criança
não tem isso, é muito mais no aqui agora, [...] o prático né, como é
que vai ser no dia, no momento da morte? Como é que eu vou deixar
meus pais? Como é que eles vão ficar sem mim?” (Poliana, psicóloga)
6.1.4 A PERCEPÇÃO DO PACIENTE A PARTIR DA VISÃO DOS PROFISSIONAIS Ao longo da análise das narrativas, foi possível observar a percepção dos
participantes acerca da experiência da criança em cuidados paliativos, sendo, desta
forma, definido este tema para explorar os aspectos relacionados à vivência do
paciente. Torna-se, portanto, importante refletir sobre o que significa a morte para a
criança, sendo algumas questões suscitadas como: a criança possui consciência acerca
da morte? Quais os significados atribuídos? É uma possibilidade falar sobre a morte
com uma criança terminal? Segundo Torres (2002), a criança em fase terminal
experiencia um silêncio, o qual antecipa o silêncio da sua própria morte.
De acordo com Souza et al (2009), a literatura aponta que a criança doente
percebe o perigo da morte e utiliza uma linguagem simbólica, verbal ou não verbal,
para expressar a sua experiência e compreensão. É possível observar que a criança é
capaz de sentir as mudanças corporais e a progressão da doença, o que pode provocar
intensa angústia. Os autores destacam a importância de fornecer um espaço de escuta
para a criança, para continência da dor e do sofrimento psíquico, que pode ser através
da brincadeira e da linguagem simbólica.
No que se refere à experiência do paciente, encontra-se em todas as narrativas
a afirmação de que tanto a criança quanto o adolescente sentem a progressão da
doença e a iminência da morte, mesmo quando não lhes é formalmente comunicado.
A psicóloga relata, em maior profundidade, a experiência do paciente e os medos e
fantasias presentes no momento do cuidado paliativo.
81 Torres (2002) propõe uma discussão acerca da comunicação com a criança em
fase terminal e coloca a questão: “...se não há dúvidas de que a criança tem
conhecimento de que está morrendo, por que se faz segredo deste seu conhecimento?”
(p. 150). Segundo Torres (2002), a psicologia aponta que este silêncio advém da
forma como a sociedade lida com a morte, como um tabu, proibido, e o mecanismo de
negação se torna o mais utilizado para o enfrentamento. Desta forma, a experiência da
criança e do adolescente é determinada principalmente pelas relações com as pessoas
que são centrais em sua vida, como a família e a equipe de saúde, que influenciam na
oscilação entre a negação e a aceitação da morte.
A comunicação clara com o paciente (criança ou adolescente) e com a família
permite uma maior assimilação, compreensão e integração das informações acerca do
adoecimento e do tratamento, de acordo com a capacidade cognitiva e emocional da
pessoa. A comunicação clara permite também um fortalecimento da relação médicopaciente, o que pode facilitar o enfrentamento e as decisões no final da vida (Souza et
al, 2009).
Torres (2002) afirma que a ruptura do silêncio com a criança se torna
terapêutico e ressalta a importância de ofertar um espaço de escuta para criança,
esclarecendo as suas dúvidas e acolhendo a sua angústia. O foco central é que a
criança perceba que pode compartilhar com o adulto as suas indagações e os seus
medos perante a morte.
Ao longo das narrativas, os profissionais destacam algumas diferenças entre a
experiência e a assistência a uma criança e a um adolescente. No que se refere ao
processo de comunicação, observa-se, nas narrativas, que o médico comunica acerca
do prognóstico com os adolescentes com maior facilidade, por uma crença de que a
criança possui uma capacidade cognitiva mais limitada para compreender o processo.
Esse aspecto é relatado nas entrevistas, apesar do consenso – já comentado
anteriormente - de que tanto a criança quanto o adolescente percebem a evolução e
progressão da doença.
Essa percepção do médico é partilhada por Tina (auxiliar de enfermagem), ao
relatar, em sua narrativa, que muitas crianças já apresentam uma noção sobre a morte
e demonstram estar esclarecidas quando este momento se aproxima:
82 “[...] nos últimos momentos que ele vê, nos últimos dias que ele vê o
corpinho bem fraquinho eles sentem mesmo né, algo diferente mas, a
maioria deles tem essa imagem o tempo todo de que tá todo mundo
unido né pra cuidar dele”.
Ressalta-se,
novamente,
a
dificuldade
na
comunicação
com
a
criança/adolescente quando se trata do tema da morte, já que não é esclarecida, para o
paciente, a decisão acerca dos cuidados paliativos.
Jéssica (enfermeira) é outra voz que converge com seus colegas de equipe,
afirmando que os pacientes sentem a piora do quadro clínico ou a decisão acerca dos
cuidados paliativos, mesmo que não seja comunicado abertamente a eles:
“Mesmo quando ele não sabe, quando os pais optam por não contar,
você vê que o paciente está entendendo tudo que está acontecendo, que
está chegando a hora dele mesmo... e ele fala. Às vezes não fala para
mãe, nem pro pai, mas fala para você”.
Poliana (psicóloga) ressalta o grande desgaste do tratamento oncológico e
afirma que, em alguns casos, as crianças sentem um alívio ao saber que não há mais
tratamento possível, pois este se torna aversivo. Diante da sua experiência no contexto
de cuidados paliativos, foi possível observar que muitas crianças e adolescentes,
depois de um determinado tempo, já não acreditam mais que o tratamento funcionará,
e se apresentam esclarecidos acerca da possibilidade de morte iminente.
Ao diferenciar a experiência da criança e do adolescente, Poliana relata maior
dificuldade para trabalhar a questão da morte com o adolescente, que possui maior
clareza acerca do assunto. Quando se trata da criança, há o lúdico e a fantasia na hora
da comunicação, o que facilita a assistência da psicologia:
“A criança não tem tanta noção, e a criança ela se protege com a
fantasia, não é? É, é impressionante, tem uma coisa, um dom infantil,
uma coisa que é muito deles assim, de minimizar a realidade com a
fantasia mesmo”.
No que se refere ao processo de comunicação, Leila (dentista) comenta a
dificuldade de enfrentamento no momento em que o paciente verbaliza e questiona o
83 seu quadro clínico. Refere não ser autorizada e não ser de sua responsabilidade a
comunicação de diagnóstico e prognóstico. Ao trazer o exemplo de um caso, a
profissional afirma que a decisão por comunicar ao paciente parte normalmente da
família:
“Ele me questionou. “Por que a minha gengiva está assim?”. [...] E
eu falei “é a doença ativa”, e ele me perguntou “vai melhorar?”.
“Talvez”. Porque eu não podia dizer a ele que ele não foi... a mãe não
autorizou que ele soubesse que era cuidados paliativos...”
A participante aborda um dilema ético diante da impossibilidade de comunicar
ao paciente acerca do seu prognóstico, evidenciando angústia em tal vivência.
Ressalta que o paciente possui o direito de ser informado acerca da sua condição de
saúde. É destaque também na narrativa de Leila, a questão da forma utilizada na
comunicação, mostrando, como um meio de facilitação do processo, o uso da fantasia
e a ludicidade para se comunicar com a criança.
“É certo eu negar resposta ao paciente? Eu devo mentir para o
paciente porque a mãe decidiu? [...] A criança a gente diz que um dia
vai aparecer uma fada, que aquilo tudo vai sumir... Ou que ali vai
crescer porque vai nascer outra coisa mais bonita... Adolescente, vou
falar assim? Não posso. Então eu me apeguei ao código de ética. Você
pode omitir, já que não está no prontuário, é omisso... [...] Não menti
para o paciente, mas eu omiti”. (Leila, dentista)
6.1.5 MORTE Este tema foi definido para explorar os significados sobre morte apresentados
nas narrativas dos profissionais. De maneira geral, foi possível encontrar significados
associados a um processo de aprendizagem na prática profissional, a uma falha na
formação dos profissionais de saúde para lidar com a morte, à falta de suporte e
espaço para compartilhar os sentimentos e a uma dificuldade de aceitação da morte da
criança. Para melhor contextualizar tais significados, são retomados nos próximos
parágrafos aspectos da literatura sobre mudanças na representação de morte e morrer.
84 A política de cuidados paliativos surgiu justamente com o objetivo de reduzir
o sofrimento do doente em contraposição à prática médica eminentemente tecnológica
e institucionalizada, buscando uma nova representação sobre a morte e um espaço
para discussão de tal tema (Menezes, 2004).
Diante da reflexão de Ariès (1977) acerca do comportamento humano perante
a morte na sociedade ocidental cristã, é possível observar uma mudança de paradigma
da Idade Média até a Modernidade. A morte era considerada um fenômeno familiar,
sobre o qual o indivíduo era advertido e apresentava conhecimento acerca da morte.
Já na perspectiva da modernidade, a dor passa a ser evitada a qualquer custo e a morte
passa a ocorrer no hospital e não mais nas casas. Desta forma, a morte se tornou um
fenômeno técnico associado à fracasso e impotência, e as manifestações do luto
passam a ser condenadas, sendo a dor demasiadamente visível um sinal de
perturbação mental.
O processo de autoconhecimento, entrando em contato com impulsos
primitivos e com o próprio corpo, envolve o confronto com a finitude e a mortalidade.
Kovács (2001) afirma que a negação da morte é uma estratégia para evitar o contato
com a dor e o sofrimento. Desta forma, o processo de negação permite que o sujeito
viva em mundo de fantasia, no qual existe a ilusão da imortalidade.
De acordo com Kóvacs (2009), a morte, para o profissional de saúde, torna-se
diferente do que para as outras pessoas em geral, por fazer parte do seu cotidiano e se
tornar a sua companheira de trabalho. No hospital, torna-se prioridade a ação de curar
o paciente a qualquer custo e, quando isto não ocorre, é vivido pela equipe de saúde
como algo frustrante, desmotivador e sem significado. Observa-se também que não
conseguir evitar a morte, adiá-la ou não poder aliviar o sofrimento do paciente
confronta o profissional de saúde com os seus próprios limites, o sentimento de
impotência e a finitude, sendo este um processo doloroso (Kóvacs, 2003).
Schliemann (2009) afirma que, para a pessoa lidar com a morte, é necessário
um processo exaustivo de incorporação envolvendo as condições afetivas, cognitivas
e emocionais, de forma que o sujeito seja ajudado a refletir sobre si mesmo e sobre os
outros, desde a sua adolescência até a sua prática profissional. No presente trabalho, é
85 indispensável, portanto, analisar os significados de morte expressos nas narrativas dos
participantes e as estratégias de enfrentamento a eles associados.
Nas narrativas dos profissionais, o tema da morte vem associado ao
sofrimento; porém, surgem múltiplos significados nas entrevistas. Os profissionais
abordam, em seus relatos, as experiências pessoais e o trabalho na oncologia
pediátrica aparece como um processo de aprendizagem para se lidar com a morte.
Esse dado remete à afirmação de Luca (1997, apud Schliemann, 2009), de que lidar
com a morte e o morrer envolve uma aprendizagem, que pressupõe conhecimento
teórico e experiência prática, para permitir que o sujeito enfrente os seus medos,
preconceitos, angústias e alegrias dentro de sua profissão.
“...hoje eu consigo administrar esse sentimento né, consigo entender
melhor; quando você vê, vez após vez aquela situação... alguma
reação você tem, é positiva ou negativa né, cabe a você transformar;
saber lidar com a situação, e hoje eu lido muito bem com a morte, eu
sei que é algo que é normal, acontece né, dói, machuca muito. [...]
com isso você aprende a administrar, ter um conceito né, você passa a
estudar... [...] Os conceitos, como você deve agir, porque é preciso
para um profissional dessa área, né, ter consciência disso, se preparar
um pouco...” (Tina, técnica de enfermagem)
No que se refere ao tema morte, a enfermeira Jéssica cita o medo, o apoio da
religiosidade e a experiência pessoal como suporte para enfrentamento. Afirma que,
após a primeira experiência de perda na vida pessoal, passou a frequentar rituais
religiosos para melhor compreender o fenômeno da morte. A participante refere que o
ritual religioso funcionou como um “divisor de águas” para a sua compreensão e
enfrentamento diante da morte.
Tratando-se da experiência profissional, Jéssica afirma que familiares e
amigos de sua rede social acreditam que ela tenha se tornado uma “pessoa fria”, por
conseguir lidar com a morte e enfrentá-la constantemente. Desta forma, o contato
inicial com a morte no ambiente de trabalho pode ser considerado como um momento
de ruptura, definido como aquele momento em que os modos de ajustamento
existentes são interrompidos (Zittoun, 2012), pressupondo um processo de transição e
adaptação posterior, através do suporte de recursos necessários para enfrentamento.
86 Segundo Jéssica, foi necessário buscar mecanismos para se adaptar ao contato
constante com a morte.
“É que, querendo ou não, você acaba se acostumando, você acaba
criando mecanismos para aquelas situações para que [a morte] seja
menos sofrida possível.” (Jéssica, enfermeira)
Para Leila (dentista), a morte, vista através da ótica de sua crença religiosa, é
compreendida como uma passagem e transformação. Afirma que a morte vem
associada à dor e à saudade, porém, ao acreditar que não é o fim, isso permite uma
maior aceitação do processo, associada à experiência de calma e paz. No que se refere
à experiência da família, Leila acredita que quando não há a serenidade e a crença de
que a morte é uma passagem, o enfrentamento vem associado à revolta, aos
questionamentos, à negação e à não aceitação do processo.
Ao falar sobre a morte, Leila enfatiza a visão de que a vida está além do corpo
e que isso a ajuda a enfrentar o processo do morrer. Há uma crença de que, quando o
corpo morre, perde o brilho e a luz, e essa vida passa a existir de uma outra forma,
como uma transformação.
Para Leila, o significado de morte vem associado a um tabu social. Esse
aspecto aparece também na pesquisa realizada por Hermes & Lamarca (2013), sobre a
visão dos profissionais de saúde acerca da morte. Há uma dificuldade geral em falar
sobre o assunto e em aceitar o processo do morrer, mesmo para os profissionais que
lidam com isso no seu contexto de trabalho. Ela destaca o processo de negação da
morte pela própria equipe:
“Aceitar que é morte, aceitar que é fim, é difícil para todo mundo,
mesmo para quem trabalha dentro de um hospital com uma coisa tão
delicada. [...] E ninguém nunca está preparado para dizer “acabou”.
E muito menos para ouvir. [...] Entre equipe também não é fácil não...
a gente meio que fala baixinho “olha, fulaninho”. [...] E a gente nega,
até a própria equipe tenta negar ‘será mesmo?’”.
A dentista queixa-se por não haver espaço e suporte emocional/psicológico
para os profissionais diante do contexto de cuidados paliativos e que há poucos
momentos em que a dor é compartilhada entre a equipe. A morte é parte do contexto
87 hospitalar e da rotina dos profissionais de saúde. Quando esta começa a causar
angústia e dificuldade para lidar, é necessário falar sobre a morte em equipe (Souza et
al, 2009).
“...a gente tem que engolir a frustração que está sentindo para
conseguir consolar. E a gente não tem apoio para equipe. A gente está
sempre apoiando o paciente, a família, e cadê? Onde a equipe é
sustentada? [...] tá, a gente suporta o paciente, a gente suporta a
família, e a gente chega em casa, quem suporta a gente é o
travesseiro”. (Leila, dentista)
Poliana (psicóloga) acredita que há uma angústia universal no que se refere ao
tema morte e expressa a dificuldade de dar suporte e escutar um adolescente ou
criança falar sobre o medo da morte. Ela relata uma dificuldade pessoal de lidar com a
morte e destaca não ter vivido experiências pessoais que lhe trouxessem tal
aprendizagem. Pensar em morte, para ela, vem associado à angústia e ao sofrimento:
“...eu lido muito mal, muito mal mesmo, e é muito assim, que muito
das minhas amigas falam, - é impressionante como você trabalha com
morte intensamente e lida muito mal com (a possibilidade de) morte na
família -, lido mesmo.”
Como psicóloga, Poliana assinala a dificuldade de trabalhar a questão da morte
com a criança. O cuidado paliativo é visto como a certeza de que não há mais
tratamento possível e é o contato com a certeza da morte iminente. Quando não há
ainda esta certeza, trabalha-se com a possibilidade da cura, com a tentativa de
adaptação à realidade do adoecimento e do tratamento. Porém, diante da definição de
cuidados paliativos, Poliana traz a dificuldade de enfrentar e trabalhar com o tema da
morte, gerando angústia na equipe de saúde também.
Em sua narrativa, Poliana faz uma reflexão acerca da experiência na área,
relembrando casos e processos de luto vividos com diversos pacientes. Conclui que
tem se tornado a cada dia mais difícil enfrentar o contexto dos cuidados paliativos e a
morte. Evidencia cansaço e desgaste:
“...pra mim hoje em dia é muito mais difícil lidar com a morte do que
no início. Normalmente é o contrário, você vai se acostumando com o
88 tempo, pra mim não. [...]...por mais um que eu vou perder, não
aguento mais sabe? Você começa a desacreditar do tratamento.
[...]Muito por isso assim, eu acho que por cansaço mesmo da
realidade. Eu acho que a oncologia pediátrica tem vida útil pra
qualquer profissional.”
Apesar do constante contato com a morte após algum tempo de experiência no
trabalho, é identificada, pela enfermeira, uma falha na formação profissional
direcionada a esse tema. Seu relato vai na mesma direção que Schliemann (2009)
aponta, a da existência de uma falha na formação dos profissionais de saúde no que se
refere à morte e ao morrer. Essa falha, para a autora, remonta à graduação dos
profissionais de saúde, na qual a morte é desqualificada nos dois âmbitos de
aprendizagem direta, teórico e prático, sendo que no primeiro não há espaço para a
discussão do tema e no segundo, o foco se torna o trabalho direto com o paciente e a
família, sem uma reflexão sobre a morte e o morrer.
Essa discussão acerca de uma educação para a morte, que envolve a falha na
formação dos profissionais de saúde para lidar com tal tema, está também presente
nos estudos de Yazdani et al (2010), Roth et al (2009), Nicholl & Price (2012),
Combinato & Queiroz (2011), Bifulco & Iochida (2009), Piva, Garcia & Lago (2011),
Hermes & Lamarca (2013).
Schliemann (2009) vai além, promovendo uma discussão acerca da formação
dos profissionais de saúde, mais especificamente dos médicos, propondo estratégias
que auxiliem os futuros profissionais a lidarem com a morte e o morrer. Dentre elas
estão a realização de debates, treino de habilidades específicas e um processo de
sensibilização para o contato com a morte.
Um outro aspecto da formação profissional, ressaltado pela dentista, coloca
que o aprendizado é focalizado na cura, e se torna difícil lidar com a morte. Desta
forma, a morte vem associada a um sentimento de impotência. No que se refere à
dificuldade para lidar com a morte, a dentista problematiza, em sua narrativa, a
questão da morte como um tabu social em nossa sociedade, o que produz um impacto
sobre a assistência, principalmente no que se refere ao processo de aceitação da
morte.
89 “Até a gente tem tabu de falar sobre morte. Todos nós. Até em casa.
[...] Aceitar que é morte, aceitar que é fim, é difícil para todo mundo,
mesmo para quem trabalha dentro de um hospital com uma coisa tão
delicada. [...] Como é que a gente vai dizer sem ferir a pessoa? E
ninguém nunca está preparado para dizer “acabou”. E muito menos
para ouvir. [...] a resposta inicial é uma negação...”. (Leila, dentista)
Tratando-se da esfera pessoal, alguns profissionais trazem as perdas de
amigos/familiares que sofreram ao longo da vida e a forma como encaram a morte.
Na entrevista da dentista, é muito marcante o papel central que a espiritualidade
possui quando se trata da morte. No estudo realizado por Combinato & Queiroz
(2011) sobre a concepção de morte por profissionais de saúde, destacaram-se três
definições sobre o processo do morrer: uma consequência da vida, um processo
biológico e uma benção divina.
Na narrativa do médico, observa-se que a morte é vista como um processo
natural e que, ao longo da sua experiência profissional, houve um processo de
ressignificação sobre a vida. O médico expressa uma maior aceitação diante do
processo de morrer, apesar de pontuar a dificuldade de enfrentar a morte da criança,
por ser um processo inverso ao que se espera do ciclo vital. Esse aspecto é assinalado
também pela dentista, associado a um sentimento de revolta e de raiva. O medo da
morte aparece em algumas narrativas, como na do médico, da enfermeira e na da
psicóloga.
No que se refere ao significado da morte, Tina acredita ser um processo
natural, doído, difícil e que não deveria existir. A profissional fala da dor da perda e
relata, como estratégia para enfrentamento, tentar separar a vida no trabalho da vida
pessoal. Ao enfrentar a morte com certa frequência no seu contexto de trabalho, Tina
traz uma ressignificação da vida e uma nova forma de viver. Pode-se considerar o
contato inicial com a morte, para o profissional, como uma ruptura, no sentido
proposto por Zittoun (2012). Mais uma vez, constata-se a emergência de novos
significados, próprios do período de transição que se segue à ruptura:
“Você aprende a dar valor também às coisas pequenas, a dar valor à
vida, tudo, não é? É muita coisa pra mim que antes eu me irritava, que
90 antes eu achava que era uma coisa e eu vejo que não é nada né, você
passa a ser mais flexível com as coisas; porque você releva muita
coisa, é como se você é descobrisse o verdadeiro significado pra vida,
eu não estou aqui pra isso né, a vida é curta demais para me
preocupar ou perder tempo com isso né.” (Tina, técnica de
enfermagem)
Um sentimento de impotência ao lidar com a morte de um paciente aparece
também na narrativa de Tina:
“Diante de certas situações, a gente não é nada, não é, só um ser
humano. [...] É uma impotência muito grande você ver que não pode
fazer nada; e o que você fez e toda equipe fez, não pôde vencer a
doença.”
A técnica de enfermagem relata fazer um acompanhamento psicológico
(terapia) para enfrentar as dificuldades encontradas no seu contexto de trabalho,
destacando o sentimento único envolvido na perda de cada paciente.
“Eu busco apoio psicológico também porque é preciso, não tem como.
Por mais experiência que você ganhe, as crianças são diferentes, cada
criança é especial... [...] Então cada criança é uma perda, é um
sofrimento diferente, entendeu?” (Tina, técnica de enfermagem)
Além do suporte psicológico, Tina desenvolveu uma estratégia de evitar e
afirma buscar esquecer que determinado paciente está em cuidados paliativos, pois
afirma que o termo é doloroso. Busca cuidar do paciente com o maior carinho,
independente das condições clínicas. Observa-se que a narrativa da técnica de
enfermagem constrói-se dentro de um campo afetivo fortemente realçado, evidente
em cada definição e em cada tópico abordado acerca dos cuidados paliativos. A
participante trouxe sempre em sua narrativa, primeiramente, os sentimentos
envolvidos na experiência, para depois tentar descrevê-la.
6.1.6 PROCESSO DE LUTO 91 Este tema refere-se ao processo de luto vivido na situação dos cuidados
paliativos pediátricos, focalizando o luto antecipatório, o qual antecede o óbito do
paciente, e o próprio processo de luto após a morte daquela criança ou adolescente.
A experiência de sofrimento e de luto é inevitável para os profissionais que
lidam com crianças gravemente enfermas. De acordo com os estudos realizados por
Plante & Cyr (2011) e por Keene, Hutton, Hall & Rushton (2010), o luto após a morte
da criança é intenso para os profissionais de saúde. Segundo Reich (1989, apud Keene
et al, 2004), o sofrimento pode ser definido como “uma angústia experimentada como
uma ameaça à nossa compostura, à nossa integridade, ao cumprimento de nossas
intenções, e mais profundamente como uma frustração para o significado concreto
que encontramos em nossa experiência pessoal. É a angústia sobre a lesão ou ameaça
de prejuízo para si mesmo e, assim, o sentido do eu que está no âmago do sofrimento”
(p. 225).
De acordo com Prade, Casellato e Silva (2008), o processo de luto dos
profissionais de saúde é um fenômeno complexo principalmente por ser vivido de
forma negada, velada e negligenciada por todos os atores envolvidos no contexto.
Desta forma, a experiência deste luto para o profissional, frente à iminência da morte
do paciente, pode se tornar um fator de risco para a sua saúde física e mental.
O contexto hospitalar impõe um silêncio à morte, o que destaca a solidão do
paciente, o isolamento da família e o distanciamento da equipe de saúde, a qual evita
o confronto com a sua própria angústia. Os sentimentos dos profissionais que perdem
um paciente devido ao vínculo formado com o mesmo e com a sua família são
destacados nas narrativas. De acordo com Prade, Casellato e Silva (2008), o luto do
profissional de saúde frente à iminência da morte do paciente é um fenômeno
complexo e pode se tornar um fator de risco para a saúde física e mental dos
profissionais. A complexidade do fenômeno ocorre principalmente devido ao fato do
processo de luto ser vivido de forma velada, negada e negligenciada por todos os
atores envolvidos no contexto.
As narrativas dos profissionais contemplam vários dos aspectos trazidos pela
literatura. De um modo geral, como expresso na fala de Tina (técnica de
92 enfermagem), o contexto para os significados e sentimentos relatados é a percepção
de si mesmo enquanto ser humano e o fato do paciente ser tão jovem:
“É isso que nos diferencia né, das máquinas né. Nós temos
sentimentos. [...] É difícil pelo fato de passar a amar a criança.”
Destaca-se também a vivência do luto não reconhecido por se tratar de um
profissional de saúde. Tina descreve a dificuldade de sofrer e chorar no ambiente de
trabalho, reforçando a importância de ter um suporte psicológico para ajudar no
enfrentamento:
“... e a gente não pode se dar ao luxo de se comportar dessa forma,
você tem que ser muralha sempre diante da família e do paciente,
então isso é difícil.” (Tina, técnica de enfermagem)
O que sobressai no transcrito acima é a própria experiência do luto não
reconhecido, para o qual, segundo Maso et al (2005), não há uma validação social e
não há um espaço para que o profissional expresse os seus sentimentos, pensamentos
e comportamentos.
Diante da experiência de um luto não reconhecido, o luto antecipatório pode
ser um facilitador para o luto do profissional, como uma possibilidade de despedida
do paciente e de manejar as questões ligadas ao mesmo e à sua família nos momentos
finais da vida (Prade, Casellato e Silva, 2008).
O luto antecipatório é expresso nas narrativas antes do óbito do paciente,
desde o momento do diagnóstico da doença e principalmente quando se determina o
cuidado paliativo e fica esclarecida a iminência da morte. A decisão pela introdução
do cuidado paliativo configura ruptura e a partir daí é que vai ocorrer toda uma
transformação na assistência e na experiência vivida pelos profissionais.
Os participantes mostram-se esclarecidos acerca da evolução da doença dos
pacientes: já há um conhecimento prévio e uma expectativa para aqueles pacientes
que apresentam menor chance de cura. No que se refere ao luto antecipatório, foi
possível identificar nas narrativas sentimentos como a angústia, a tristeza, o choro,
93 identificados também nos estudos realizados por Plante & Cyr (2011) e por Keene et
al (2010).
Os profissionais que são testemunhas do sofrimento e da dor de uma criança
gravemente enferma poderão também experienciar sofrimento. É possível observar
que os profissionais de saúde tendem a sentir frustração e angústia diante das
dificuldades enfrentadas pela criança doente e por seus pais (Keene et al, 2010).
Diante da perda do paciente, Leila traz sentimentos contraditórios como alívio
e saudade. É possível observar uma ambivalência na experiência de luto, sendo que a
participante relaciona a morte a um alívio devido ao constante sofrimento do
tratamento e, ao mesmo tempo, a saudade é relatada devido ao vínculo rompido. Leila
afirma sentir raiva em muitos momentos, devido ao tratamento não ter tido sucesso,
questionando o fato de uma criança morrer. Sentimento de frustração e revolta
aparecem também durante o processo de luto, após a perda do paciente.
“Dá uma frustração, dá um sentimento de revolta também, junto com
a família. Eu vou olhar para ele e vou dizer o que, que eu estou junto
com você com essa mesma raiva? Eu não vou conseguir dizer para ele
‘tenha calma, tenha fé... tenha resignação...’. Porque a gente está
junto nesse mesmo sentimento.” (Leila, dentista)
Ao mesmo tempo em que Jéssica (enfermeira) parece desenvolver um
processo de adaptação por lidar constantemente com a morte, sua narrativa expressa
sofrimento e dificuldade para lidar com a perda e com a dor da família na situação de
cuidados paliativos. Está presente também na narrativa a expressão do luto do
profissional neste contexto e a dor de perder um paciente. É possível observar que há
uma tentativa de adaptação ao contexto dos cuidados paliativos, porém a vivência do
luto e de compartilhar a dor com o paciente e os familiares continua marcada por uma
ambivalência (Abbey, 2012).
Tratando-se do processo de luto após a perda, foi possível identificar nas
narrativas
expressões
emocionais
como
choro,
angústia,
tristeza,
frustração/impotência, dor, raiva, revolta. Emoções como estas foram relatadas
também por Plante & Cyr (2011), ao buscar acessar as reações emocionais, as
estratégias de enfrentamento e as necessidades dos profissionais que enfrentaram o
94 cuidado de uma criança gravemente enferma. Particularmente após a morte de uma
criança, esses autores identificaram reações como a tristeza, a raiva, a ansiedade,
assim como identificaram que os profissionais sentiam-se vulneráveis e descreveram
o sofrimento do impacto emocional, social e espiritual do luto.
A dificuldade de enfrentar o cuidado paliativo e a perda é associada por
Poliana (psicóloga) ao forte vínculo formado com os pacientes e com as suas família,
normalmente as mães. Esse vínculo persiste após a perda, em muitos casos, quando se
mantém o contato com as mães.
Ela verbaliza sentimentos de frustração, angústia, dor, choro e sofrimento pela
perda. A morte dos pacientes causa uma frustração e um impacto,
diante da
expectativa de cura. A participante relata a dificuldade para lidar com tal contexto e
com tantas perdas significativas, pois o contato com o paciente e a sua família é
intenso e o vínculo se torna forte.
“Tem pacientes que você vê mais do que pessoas de sua família, você
vê quase todo dia né. [...] Então você cria um vínculo, você cria uma
expectativa de cura não é, não tem como não criar né? Tem crianças
adoráveis que eu sou apaixonada...”(Poliana, psicóloga)
Observa-se também, na narrativa da psicóloga, que a grande dor e sofrimento
diante da perda dos pacientes se expressa também em sintomas físicos:
“É difícil, é um peso, hoje em dia eu tenho muito mais enxaqueca do
que eu tinha antigamente sabe? E era para ser ao contrário. Era pra
eu tá acostumada com toda essa realidade, mas eu sofro muito, sofro,
me envolvo e não tem como não se envolver.”
A estratégia de enfrentamento pela negação da morte, através da tentativa de
distanciamento físico dos pacientes e familiares, esteve presente para todos os
profissionais, em seu conjunto. Eles relatam, nas entrevistas, o distanciamento
cognitivo, a busca por evitar pensar na perda e a separação entre a vida pessoal e a
vida profissional. Não se envolver emocionalmente funciona como um mecanismo de
defesa diante do sofrimento; porém, há indícios de que também implica em impedir o
acolhimento efetivo aos familiares e à criança doente, podendo prejudicar a saúde de
quem permanece vivo: os profissionais e os familiares (Souza et al, 2009).
95 Foram apontadas ainda, como estratégias de enfrentamento, o suporte
religioso, o não memorizar detalhes sobre o paciente e a sua família, e recursos
cognitivos utilizados com o objetivo de controlar os pensamentos. As portas do
hospital aparecem como uma fronteira, que facilita a separação entre a vida
profissional e a vida pessoal, com o objetivo de aliviar o sofrimento experienciado
com a perda ou a iminente perda do paciente.
Como estratégia para enfrentamento, a psicóloga afirma utilizar o recurso
cognitivo de separar a sua vida pessoal e a sua vida profissional. Busca controlar os
seus pensamentos ao sair do hospital.
“Quando eu saio daqui, eu tento não pensar no que eu acabei de fazer,
sabe? No que eu acabei de falar, no que eu acabei de ouvir; [...]
aqueles recursos cognitivos mesmos, sabe? De trocar pensamento, de
falar pouco com as pessoas daqui quando eu não estou aqui...”
Segundo Tinoco (1997), na medida em que os pacientes e familiares
vivenciam o processo de luto antecipatório, torna-se impreterível para o psicólogo
entrar em contato com os sentimentos que a morte lhe causa, para poder compreender,
acolher e dar suporte à experiência dos pacientes e dos familiares. A autora refere
uma associação entre a vivência do stress pelos profissionais de saúde, devido ao
contato constante com a possibilidade e a ocorrência da morte, e uma vivência de um
luto do profissional diante das perdas experienciadas no ambiente de trabalho.
Para lidar com a morte, Tina (técnica de enfermagem) relata que conhecer
teoricamente e estudar sobre o tema da morte e da perda ajuda o enfrentamento do
processo de luto. O recurso semiótico do conhecimento permite uma preparação para
lidar com o tema e favorece a aprendizagem de como deve agir e se comportar como
profissional da área.
Como estratégia de enfrentamento, Jéssica (enfermeira) relatou um
distanciamento físico dos pacientes. Afirma que agora atua mais a nível ambulatorial,
o que facilita a redução do vínculo e do sofrimento ao lidar com o paciente em
cuidados paliativos. Destaca também um afastamento na fase terminal do paciente
para redução do sofrimento. O distanciamento da experiência do aqui e agora pode ser
96 considerado um recurso semiótico (Zittoun, 2012) que auxilia no enfrentamento da
transição, possibilitando uma atitude reflexiva.
“Mas o fato de você não ver, de você não estar no momento mais
desesperador para família, você acaba não sentindo tanto.”(Jéssica,
enfermeira)
Como apoio para enfrentar a perda de um paciente, Jéssica destaca a
diversidade e a rotatividade dos pacientes na unidade. Ao mesmo tempo em que se
perde um paciente, chegam novos e novos vínculos são formados, o que sustenta o
processo de luto do profissional, de acordo com a participante.
Tina destaca o envolvimento com o paciente e a família e a dificuldade para
enfrentar a decisão de cuidados paliativos e a fase terminal. Observa-se na sua
narrativa o sentimento de frustração e o processo de luto após a perda de um paciente:
“... durante o percurso do tratamento você se envolve com a criança e
com a família e quando chega no estágio final você também não quer
perder mais aquela criança, também é sua e aí você já, já passou a
gostar dos familiares, [...] aí realmente é difícil, porque você fala –
mas eu lutei tanto, a gente cuidou tanto e a gente perdeu, né?”.
De acordo com Maso et al (2005), os sentimentos diante da perda do paciente
podem ter uma duração longa e, caso não sejam elaborados, podem retornar no
contato com outros pacientes e outras situações futuras, provocando um estresse no
profissional, sendo um aspecto importante para a criação de um trabalho de cunho
psicológico específico com os profissionais de saúde envolvidos neste contexto.
Observa-se então a importância de um suporte para os profissionais que lidam
com a morte e a perda de pacientes. O estudo realizado por Keene et al (2010),
buscou avaliar um programa de intervenção voltado para o luto dos profissionais. As
sessões de grupo para suporte ao luto foram identificadas como uma estratégia efetiva
para fornecer suporte aos profissionais de saúde que passam pelo processo de luto ao
lidar com crianças gravemente enfermas. A oportunidade de expressar o luto e refletir
sobre a experiência de cuidar do paciente e da família permite que o profissional de
saúde aprenda a lidar com a experiência de luto e facilite a sua assistência no contexto
de cuidados paliativos.
97 6.2 A dinâmica da experiência dos profissionais de saúde nos Cuidados Paliativos
Neste tópico, buscou-se realizar a síntese de cada caso a partir de uma visão
dinâmica da rede de significados sobre os cuidados paliativos, de acordo com a
narrativa de cada participante. Inicialmente, optou-se por apresentar a análise mais
detalhada acerca de um único caso, para depois compor a rede de significados exposta
em sua narrativa. O caso apresentado será o do médico, escolhido devido ao papel
central que ocupa na equipe multiprofissional, sendo o principal responsável pela
comunicação e pela tomada de decisão. Ao final, serão apresentadas apenas as redes
de significados dos outros quatro casos, sendo que os mapas descritivos dos
conteúdos narrados pelos participantes encontram-se no Apêndice C.
6.2.1 CASO 1: Médico Carlos A Figura 5 a seguir apresenta um mapa com os temas e a dinâmica entre estes
extraídos da narrativa do participante.
98 FIGURA 5: Mapa descritivo dos conteúdos narrados pelo médico Carlos
99 “Eu nunca vou esquecer, pro resto da vida. Porque eu estava na enfermaria
e uma auxiliar chegou pra mim e falou “doutor Carlos, Joana quer falar com
você“. Eu entrei na sala, no quarto digo, e ela me fez três perguntas: a
primeira pergunta foi quando ela ia pra casa [...] e eu respondi que não
tinha condições de ela ir embora pra casa por causa de tudo aquilo que
estava acontecendo. E ela me fez a segunda pergunta... ela fez a segunda
pergunta que era o que estava acontecendo, e aí eu tive que explicar para ela
que a doença na verdade não tinha respondido ao tratamento, que tinha
progredido, e por conta daquilo tudo que ela estava sentindo dor [...] E a
terceira pergunta, que eu acho que selou assim para o entendimento de tudo
que estava acontecendo, até o entendimento de que naquele momento a vida
dela tinha, pelo menos terrena, tinha dado um ponto final, ela me perguntou
“e agora?”, e “agora a gente vai fazer com que você sofra o mínimo
possível, tá certo?”, “tá certo“. E naquele mesmo dia, à tardinha pra noite,
ela acabou falecendo.”
(Relato do médico sobre o seu último contato com uma adolescente em
cuidados paliativos)
6.2.1.1 Caracterização dos Cuidados Paliativos Ao longo da entrevista, Carlos apresenta a sua compreensão acerca dos
Cuidados Paliativos e as dificuldades enfrentadas nesse contexto. O médico acredita
que os cuidados paliativos permitem uma maior qualidade de vida para o paciente, no
momento em que não há mais possibilidade de cura para a doença. Ele afirma que há
estratégias para ajudar o paciente, que envolvem a analgesia e a sedação, assim como
medidas de conforto psicológico e o não uso de procedimentos invasivos. A
concepção de cuidados paliativos está explicitada em sua fala a seguir.
“Cuidados paliativos o conceito é justamente esse: paliativo é você
dar uma qualidade de vida um pouco melhor, mesmo àqueles que estão
fora de possibilidade terapêutica.” (Carlos, médico)
100 6.2.1.2 Práticas de assistência à saúde De acordo com o discurso de Carlos, as práticas de assistência à saúde são
caracterizadas em função do seu objetivo diante de uma situação de cuidados
paliativos. Dentro desse contexto, a prática envolveria a facilitação do processo de
morte através do favorecimento de uma morte que ele acredita ser mais tranquila, que
é marcada pela oferta de uma analgesia e alívio do desconforto físico que possa
aparecer.
“Eu acho que o momento de você partir tem que ser o momento com o
mínimo de sofrimento possível.” (Carlos, médico)
Uma morte mais tranquila, de acordo com a perspectiva de Carlos, é marcada
também por evitar medidas mais invasivas (procedimentos invasivos), por cuidados
afetivos/psicológicos e por um vínculo presente entre a família e a equipe de saúde,
que é vista por ele como restrita apenas aos médicos. Ao longo da entrevista, o
médico não se refere aos outros profissionais que compõem a equipe de saúde.
Carlos destaca a sua função como um facilitador no contexto de cuidados
paliativos. No que se refere à relação com a família, evidencia compartilhar a
responsabilidade e a tomada de decisões, através de uma comunicação clara. Explicita
que a sua função é colocar, para a família, as opções necessárias para que “o paciente
possa partir de uma forma mais tranquila”, sendo este o momento mais difícil de
acordo com a perspectiva do médico.
“Eu acho que comunicar a família que não tem mais nada a ser
ofertado, ou seja, comunicar que aquele pequeno, que se esperava que
tivesse um futuro pela frente, não terá. Eu acho que isso é o mais
difícil.” (Carlos, médico)
6.2.1.3 Experiência dos pacientes e da família Observa-se, nesse trecho da entrevista, que o médico atribui aos cuidados
paliativos o significado de não ter mais o que ofertar para a cura do paciente. É
possível observar uma ambivalência entre o cuidado paliativo como possibilidade de
101 proporcionar um conforto e o cuidado paliativo como uma impossibilidade de ofertar
a cura. Destaca-se também a ruptura (Zittoun, 2012) ocasionada pela decisão de um
paciente entrar em cuidados paliativos e, no caso da criança, interromper um esperado
futuro de desenvolvimento e crescimento.
Na relação com o paciente, o médico expõe as condições para que haja uma
comunicação clara com a criança e o adolescente, com o objetivo de protegê-los.
Inicialmente, Carlos considera a idade do paciente e a sua capacidade de compreender
questões relacionadas aos cuidados paliativos. O médico afirma que os adolescentes
possuem conhecimento acerca do que acontece com eles durante o adoecimento, mas
as crianças mais novas não apresentam tanta clareza. Ele comunica à criança e ao
adolescente o que é necessário quando estes questionam e/ou procuram saber
informações acerca do seu quadro clínico de saúde.
“... eles que estão vivendo ali no dia a dia, no corpo, tudo o que está
acontecendo com relação à progressão da doença, aos sintomas que a
doença está causando. Então por mais que a gente queira preservar, a
gente sabe que eles entendem. Eles têm o potencial de compreensão, e
talvez até de compreender o que a gente acha que eles não
compreenderiam.” (Carlos, médico)
Observa-se que, apesar de acreditar que o paciente possui um conhecimento
acerca dos processos que ocorrem em seu organismo e sentem a progressão da
doença, o médico opta por não estabelecer uma comunicação clara com a
criança/adolescente. A comunicação ocorre somente quando o paciente manifesta
verbalmente o desejo de saber sobre o seu quadro clínico. É importante ressaltar que o
médico coloca como maior dificuldade, na situação de cuidados paliativos, a
comunicação com a família e com o paciente. Desta forma, torna-se necessário
explorar esse tema e buscar ações que favoreçam o processo de comunicação na
situação de cuidados paliativos.
É possível observar a tentativa de proteger a criança e o adolescente do
enfrentamento da morte iminente declarada, através de uma conspiração de silêncio,
onde não se fala sobre o assunto. De acordo com Pessini (2001), esta conspiração,
principalmente na cultura latina, surge com o objetivo de proteger o paciente da
102 verdade, o que traz o risco de expor o paciente e seus familiares a novas formas de
sofrimento.
Ao abordar a questão da tomada de decisões, Carlos demonstra a formação do
vínculo com o paciente e com a família e os sentimentos que se desenvolvem nessa
relação. Diferencia o seu papel de médico do seu lado humano e afirma sofrer junto
com o paciente e sua família. O médico acredita que o sofrimento presente nesse
contexto dificulta o processo de tomada de decisões, conforme explicitado na fala a
seguir.
“É claro que você como médico, mas acima do médico você como ser
humano, você acaba se apegando muito a esses meninos e não tem
como você não sofrer junto com a família, até pra tomar uma decisão
dessa de sedar eu acho que é difícil pra todo mundo, tanto pra equipe
médica quanto pra família, mas a gente tem que entrar num consenso e
saber o momento certo, mas é complicado...” (Carlos, médico)
No que se refere à percepção dos profissionais da equipe de saúde sobre a
participação da família nas práticas de assistência à saúde, assim como sobre a
vivência da mesma, há, no discurso de Carlos, uma preocupação em evitar que a
família se depare com sintomas de dor e sofrimento, o que, para o médico,
promoveria um ambiente mais favorável ao que ele concebe como uma morte
"tranquila". Identifica-se uma tentativa por parte do médico de promover um ambiente
mais favorável para uma morte mais silenciosa.
Carlos acredita que a família cooperativa seria aquela que concorda com os
procedimentos e que não entra numa posição de negar a gravidade e realidade dos
fatos. Destaca também que o curso do desenvolvimento da doença e o seu tratamento
longo colocam a família em uma grande exposição ao sofrimento do paciente, e isto é
visto pelo médico como um dos fatores para que ela se mostre mais colaborativa com
a definição de cuidados paliativos.
“... então eu acho que pra eles (família) assim ver esse sofrimento
muito crônico acaba facilitando um pouco da aceitação dos cuidados
paliativos, do que não ter mais o que oferecer a não ser suporte né.”
(Carlos, médico)
103 6.2.1.4 Morte e Luto Em relação ao significado de morte para o médico, este inclui a noção da
morte enquanto uma certeza, como algo que tem o seu momento marcado no destino.
O médico traz também a noção de morte enquanto um processo que pode ser vivido
com maior ou menor dignidade, o que envolve o alívio do sofrimento. A dimensão
temporal também é pontuada por ele ao afirmar que a morte teria uma ordem natural,
cronológica, na qual os mais velhos morreriam primeiro e uma ordem inversa, em que
os mais novos morrem primeiro. O participante aborda o imenso sofrimento presente
quando a morte ocorre em uma ordem inversa, que é o caso das crianças em cuidados
paliativos.
Além da morte da criança inverter a ordem natural cronológica, Menezes &
Barbosa (2013) diferenciam a abordagem dos cuidados paliativos para adultos e para
crianças e destacam que, na infância, a doença terminal se torna um drama social,
também por ser uma etapa da vida tão valorizada na sociedade ocidental
contemporânea.
Em sua narrativa, Carlos explicita que há uma ambivalência entre a certeza da
morte e a capacidade de enfrentá-la, no momento em que afirma que, mesmo com o
contato próximo no exercício cotidiano de sua profissão, ele não está preparado para a
morte. Refere ter mudado a sua forma de encarar e lidar com a morte e afirma não ter
mais medo da morte, mas sim da forma como ela irá acontecer.
“... lidamos com a morte, é a única certeza que a gente tem, a gente só
não sabe quando e como a gente vai partir daqui, mas é a única
certeza e a gente não está preparado. E até a gente como oncologista,
a gente não está preparado.(...) Quando eu falo em morte, o meu medo
é de como morrer.” (Carlos, médico)
O tempo cronológico e o significado de ‘morte digna’ parecem ter impacto
sobre a prática deste médico em sua profissão. O participante destaca a morte inversa,
a morte de uma criança, como um evento associado a muito sofrimento, o que
dificulta o seu trabalho. Desta forma, pode-se considerar a morte de uma criança
como um ruptura não normativa (Zittoun, 2012), não esperada diante do ciclo de vida
humana, sendo necessário um processo de ajustamento à essa realidade. Diante da
104 experiência na oncologia pediátrica, Carlos afirma ter passado por um processo de
mudança de significados referentes à vida e à morte, mudando a sua postura e atitudes
enquanto ser humano.
“... na verdade a ordem natural é eu ir primeiro, ir muito primeiro do
que os pequenininhos que tem 2, 3, 4, 5, 6 anos de idade, né? Então
assim, eu acho que por conta disso acabou mudando um pouquinho a
minha visão. Não só de morte, mas como sobre um monte de coisa em
relação à vida. [...] em relação ao fato da gente dar importância à
coisas que são pequenas quando a gente compara com problemas que
são muito maiores.”(Carlos, médico)
Menezes & Barbosa (2013) trazem uma reflexão acerca da perspectiva do
cuidado paliativo, que possui o objetivo de fornecer uma morte digna, pacífica,
tranquila, aceita e compartilhada socialmente. No que se refere ao sofrimento diante
do processo de morrer, o signo ‘morte digna’ parece trazer um sentido e uma
esperança para a atividade do médico. Carlos afirma que é o seu papel e objetivo
permitir uma morte digna e tranquila para as crianças que estão em cuidados
paliativos.
“Eu acho que é morrer com dignidade, é morrer sem sofrimento. Eu
acho que a criança já sofreu tanto durante o tratamento, eu acho que
no momento final, eu acho que se puder partir de forma tranquila e
sem dor, melhor.” (Carlos, médico)
Embora Carlos destaque o sentimento de impotência em relação à cura, ao
longo da entrevista, evidencia-se um processo de ressignificação dos objetivos de sua
própria atividade. Acredita que a sua função não está ligada somente à cura, porém
mais ao alívio do sofrimento. Esta situação é de grande importância para o processo e
a assistência nos cuidados paliativos.
“Eu acho que a impotência do médico talvez não seja a impotência de
curar, mas eu acho que a impotência talvez de não amenizar o
sofrimento, ou seja, de fazer com mesmo com toda aquela situação,
com tanta medicação, com tanta coisa, você não foi capaz de fazer
com que o paciente não sofresse...” (Carlos, médico)
105 Além do sentimento de impotência, destaca-se também a vivência do luto do
profissional, nesse caso sendo também um luto antecipatório, por ocorrer antes do
momento da morte. O médico pontua que ao criar um vínculo com o paciente e com a
família, principalmente por ocorrer um longo tempo de convívio no tratamento, é
inevitável que haja dor e sofrimento diante da perda da criança ou do adolescente.
“Mas a gente sente, porque o tratamento normalmente é aquele
tratamento longo, de meses, anos em alguns casos, e não tem como
você não criar vínculo, não tem como não se apegar e se identificar
com algumas dessas crianças. Então é claro que você perde, você
sofre, você sente né?”(Carlos, médico)
Mas, ao mesmo tempo em que o vínculo aparece como inevitável, ao falar das
estratégias de enfrentamento perante a morte, o médico, ambiguamente, afirma buscar
um certo distanciamento da situação e da vinculação das emoções ao ambiente
hospitalar, o que considera ser uma estratégia para se defender: “Mas assim, você
para se proteger, em certos momentos precisa de distanciar também.”(Carlos,
médico). Ele busca vincular os sentimentos associados à perda do paciente e ao seu
sofrimento apenas ao ambiente hospitalar, na tentativa de se desligar ao sair da
instituição e viver a sua vida pessoal.
“A nossa defesa talvez é que a gente sofra durante aquele período e a
gente consiga criar uma barreira para que fora do ambiente hospitalar
a gente não deixe que isso interfira na vida da gente do dia a dia.
[...]Mas a gente sente sim. Não tem como não sentir...”(Carlos,
médico)
Outra estratégia apresentada pelo profissional é a de incluir a família na
decisão sobre o momento de sedar o paciente e optar de fato pelos cuidados
paliativos, como uma possibilidade de compartilhar a responsabilidade com alguém.
Ao final da entrevista, Carlos reflete acerca do seu papel enquanto oncologista
e afirma que a inteligência emocional se mostra mais importante no contexto de
cuidados paliativos do que a própria competência técnica. Observa-se que a
construção do signo morte digna é também envolvida pela competência emocional do
profissional de favorecer o alívio do sofrimento para o paciente e os familiares. O
106 médico pontua que sensibilidade e humanidade são características essenciais para a
sua atuação enquanto profissional, enquanto oncologista pediátrico.
“Eu acho que a sensibilidade, a humanidade, eu acho que a
inteligência emocional vale muito mais do que a competência técnica,
porque a competência técnica você estuda, você adquire, você vai em
protocolo, você discute com o amigo... mas ser sensível, ser humano à
dor alheia eu acho que isso é de cada pessoa. Eu acho que isso você
não aprende.” (Carlos, médico)
6.2.1.5 Rede de significados sobre Cuidados Paliativos É possível observar na entrevista de Carlos um domínio e compreensão sobre
os conceitos da abordagem dos cuidados paliativos e, consequentemente, sobre o seu
papel enquanto profissional. No que se refere à experiência pessoal, nota-se que a
definição de morte digna guia o seu comportamento e as suas atitudes diante do
contexto de cuidados paliativos. Desta forma, é possível compreender o signo ‘morte
digna’ como um signo promotor, o qual foi internalizado e opera como uma
orientação pessoal baseada em valores, favorecendo a experiência do médico diante
da antecipação de experiências futuras. A função do signo promotor é importante para
o enfrentamento das necessidades futuras e imprevisíveis (Valsiner, 2012).
O médico aprende, em sua formação profissional, a função de curar o paciente
e, conforme a literatura aponta (Souza, 2009; Roth et al, 2009; Hermes & Lamarca,
2013), pouco se trabalha sobre a morte ao longo da formação. Desta forma, o contato
com a morte, na oncologia pediátrica, apresenta-se como uma ruptura não normativa,
pois como o entrevistado afirma, é uma morte que não corresponde ao esperado pela
ordem natural do ciclo de vida; portanto, os modos de ajustamento existentes são
interrompidos, configurando a situação que Zittoun (2012) define como ruptura. É
diante da ruptura configurada pela morte de um paciente que o médico verbaliza a dor
e o sofrimento, advindos do vínculo formado com o paciente e com os familiares.
A transição, processo de ajustamento após a ruptura (Zittoun, 2012), se
caracteriza, neste caso, por um processo de adaptação ao contexto de cuidados
paliativos e à morte iminente de alguns pacientes. O profissional relata a estratégia de
107 enfrentamento de definir a porta do hospital como uma fronteira, a qual separa a sua
vida pessoal da sua vida profissional.
O signo ‘morte digna’ apresenta-se com um papel fundamental no processo
de transição e auxilia o profissional a ressignificar a sua experiência e o seu papel no
contexto dos cuidados paliativos. O profissional assume o papel de cuidador e
fortalece a sua prática nos cuidados paliativos de favorecer uma morte sem dor,
silenciosa e com conforto. Tais signos apresentam-se associados também à sua
experiência pessoal de perdas e aos significados atribuído à morte, sendo este
envolvido pelo sentimento de medo acerca do processo de morrer (com dor, com
desgaste, com sofrimento).
Conforme apresentado na Figura 6 a seguir, a trajetória do médico Carlos
sofre uma ruptura no início do trabalho na oncologia pediátrica, no momento em que
se depara com a morte iminente e a morte concreta dos pacientes. Após a ruptura, é
possível observar um reajustamento à sua trajetória profissional, caracterizado como
um processo de adaptação ao contexto dos cuidados paliativos. Tal processo é
envolvido por dor e sofrimento, diante do vínculo formado com o paciente e com os
familiares.
Como estratégia de enfrentamento, o médico afirma estabelecer uma fronteira
entre a vida profissional, dentro do ambiente hospitalar, e a sua vida pessoal fora
deste, além do compartilhamento, com a família, das decisões acerca do paciente.
Como organizador do seu comportamento, o signo morte digna é construído
pelo médico para favorecer o seu ajustamento ao contexto e a sua atuação enquanto
profissional. Significados como alívio da dor, ausência de sofrimento e função de
facilitador compõem a construção do signo promotor morte digna, conforme
apresentado na figura 6.
108 FIGURA 6: Rede de significados associados aos Cuidados Paliativos na
oncologia pediátrica na perspectiva do médico Carlos
De acordo com Zittoun (2012), o processo de transição após a ruptura pode ser
analisado através de três níveis: processo de aprendizagem, processo de identidade e a
dinâmica de construção de sentido.
Desta forma, é possível observar que no caso de Carlos, o primeiro nível se
caracteriza como uma aprendizagem prática de atuação na área dos cuidados
paliativos e na oferta de um conforto para os pacientes e familiares, através da
construção e fortalecimento do signo morte digna. Através deste signo, o médico
tornou-se capaz de resolver os problemas impostos pelo contexto específico,
promovendo o alívio do sofrimento e da dor do paciente em iminência da morte.
O processo de aprendizagem parece favorecer um processo de definição de
identidade para o médico, com a importância de sua função como facilitador do
processo de morte no contexto dos cuidados paliativos. Através desta relação entre os
dois níveis, é possível observar a dinâmica da construção de sentido para o
participante, que destaca ao longo da narrativa a prioridade de favorecer uma morte
digna, sem dor, com menor sofrimento. Tal construção de significado de morte digna
envolve não somente a atuação enquanto profissional como também o próprio
significado pessoal para a morte, associado a um medo da forma como irá morrer.
109 Para facilitar a transição, Zittoun (2012) aponta recursos necessários que a pessoa
encontra em si ou no ambiente. As classes dos recursos são: institucionais, nas
relações
interpessoais,
recursos
semióticos/simbólicos
(conhecimento
social,
informações, conhecimento científico, elementos culturais) e recursos pessoais
(capacidade reflexiva e experiências passadas).
Como recurso institucional, é possível observar, na narrativa do participante, a
presença do apoio da instituição hospitalar, que fornece um local seguro para a sua
atuação profissional. O conhecimento científico e o domínio técnico sobre a
abordagem dos cuidados paliativos apresentado pelo médico ao longo da narrativa
surge como um recurso semiótico que facilita o processo de transição neste contexto.
Também como recurso semiótico, é possível observar a influência de elementos
culturais na narrativa do participante.
Na modernidade, a dor passa a ser evitada a qualquer custo e a morte passa a
ocorrer no hospital e não mais nas casas. Desta forma, a morte se torna um fenômeno
técnico e as manifestações do luto passam a ser condenadas, sendo a dor
demasiadamente visível um sinal de perturbação mental (Ariès, 1977). O contexto
cultural e o significado de morte presentes na sociedade ocidental aparecem também
como um recurso semiótico, que favorece a construção do signo morte digna, a qual
evita a dor a qualquer custo. Tal signo demonstra favorecer o enfrentamento do
contexto de cuidados paliativos para o médico Carlos.
6.2.2 CASO 2: Técnica de enfermagem Tina Rede de significados sobre Cuidados Paliativos
É possível observar, ao longo da narrativa da técnica de enfermagem, uma
prevalência do campo afetivo e o relato dos sentimentos advindos da experiência de
trabalhar na situação de cuidados paliativos. Desta forma, pontos de ambivalência
foram identificados ao longo da narrativa, normalmente marcados pelo conflito entre
110 o sentimento experienciado e a assistência prestada no contexto dos cuidados
paliativos.
O contato com a morte no ambiente de trabalho aparece também como uma
ruptura, a qual pressupõe um processo posterior de transição, de acordo com Zittoun
(2012). A participante indica um processo de adaptação à situação de cuidados
paliativos e de aprendizagem – de compreender a melhor forma de cuidar do paciente
e dos familiares, com o passar do tempo. Com referência ao processo de identidade, a
profissional constrói, ao longo da narrativa, a definição do seu papel diante do
trabalho em cuidados paliativos, destacando a necessidade de possuir características
como sensibilidade, empatia, presença de carinho e de afeto.
Como recursos disponíveis para auxiliar no processo de transição, a
participante apresenta o recurso institucional (o ambiente seguro do hospital), as
relações interpessoais, os recursos simbólicos e os recursos pessoais. Tina destaca o
apoio do trabalho em equipe como recurso interpessoal e, ao mesmo tempo, dá
importância à um conhecimento teórico e científico para embasar a sua atuação e
favorecer o enfrentamento no contexto de cuidados paliativos. Refere também possuir
um suporte psicológico, como recurso pessoal.
Conforme pode ser visto na Figura 7 a seguir, a narrativa de Tina acerca da
sua experiência em cuidados paliativos é marcada por pontos de ambivalência – tanto
nos significados atribuídos à morte (fenômeno natural, mas não deveria existir)
quanto na relação com a família (sentimentos negativos como dor e sofrimento, assim
como admiração e aprendizagem pela esperança e força dos familiares). Os
sentimentos de dor e sofrimento estão associados ao vínculo formado com a família e
o paciente e o rompimento deste na morte, o que promove o processo de luto.
Há um destaque para o sentimento de impotência diante do contexto de
cuidados paliativos, o qual está relacionado à interação e ao cuidado ao paciente e aos
familiares. Tal sentimento de impotência parece ser amenizado pelo processo de
transição no nível da identidade, na qual a profissional ressalta competências como
sensibilidade, empatia e uso do afeto no cuidado ao paciente e aos familiares.
111 FIGURA 7: Rede de significados associados aos Cuidados Paliativos na
oncologia pediátrica na perspectiva da técnica de enfermagem
6.2.3 CASO 3: Enfermeira Jéssica Rede de significados sobre Cuidados Paliativos
De uma forma geral, observa-se que a experiência do contato com os cuidados
paliativos e com a morte está associada a uma experiência na vida pessoal. A
participante relata a perda de um membro da família, que lhe causou medo, choque e
sofrimento. Destaca o suporte da espiritualidade e a prática de rituais como estratégia
para enfrentamento.
Ao se defrontar com a morte no contexto de trabalho, Jéssica refere a
dificuldade para enfrentamento e o forte vínculo formado com os pacientes e
familiares, ocasionando grande sofrimento. A morte vem associada, na narrativa, a
um sentimento de medo e sofrimento. Ao longo do tempo, destaca-se um processo de
adaptação e, como estratégia principal, um distanciamento dos pacientes para evitar
112 um vínculo maior, sendo este um recurso semiótico no processo de transição (Zittoun,
2012).
Outros recursos utilizados para o processo de transição no contexto de
cuidados paliativos são apresentados na Figura 8 a seguir: o recurso pessoal
(espiritualidade e experiências passadas) e o recurso interpessoal (trabalho em
equipe), que apresenta um nível de ambivalência pelo conflito entre o apoio da equipe
e a divergência no conhecimento científico, o qual prejudica o trabalho
multiprofissional.
FIGURA 8: Rede de significados associados aos Cuidados Paliativos na
oncologia pediátrica na perspectiva da enfermeira
6.2.4 CASO 4: Dentista Leila Rede de significados sobre Cuidados Paliativos
113 É possível observar, novamente, o contato com a morte no ambiente de
trabalho como um momento de ruptura, sendo que a participante pontua a formação
voltada para a cura e a dificuldade para aceitar que não há mais tratamento possível na
situação de cuidados paliativos. A morte torna-se, então, um momento no qual os
modos de ajustamento vividos no trabalho precisam ser modificados para se adaptar à
uma nova situação. Leila relata não ter tido preparação e nem formação profissional
adequada para enfrentar o contato com a morte no ambiente profissional.
No processo de transição, é possível observar que a participante apresenta os
recursos pessoais (espiritualidade e experiências passadas), os recursos semióticos
(distanciamento afetivo, capacidade reflexiva) e os recursos interpessoais (trabalho
em equipe), assim como o recurso institucional de possuir um ambiente seguro para o
trabalho.
Um processo de ressignificação é observado na narrativa de Leila após a
experiência de lidar com a morte no contexto de trabalho. Inicialmente, a dentista
relata a revolta e a dificuldade para aceitar a morte dos paciente. Diante do contato
com o sofrimento dos pacientes e dos familiares, a participante constrói o significado
de morte associado à um alívio da dor e um conforto, facilitando o processo de
aceitação.
Destaca-se, desta forma, o papel do signo alívio da dor como um promotor
para o enfrentamento de Leila diante da morte no ambiente de trabalho. O signo foi
internalizado e opera como uma orientação pessoal baseada em valores, favorecendo
a experiência da dentista diante da antecipação de experiências futuras. Acreditar que
a morte apresenta-se como um alívio da dor do paciente, favorece a aceitação da
participante na situação dos cuidados paliativos. A função do signo promotor é
importante para o enfrentamento das necessidades futuras (Valsiner, 2012).
O processo de luto experienciado pela participante indica uma situação de
ambivalência entre o sentimento de dor, frustração, revolta, saudade e, de outro lado,
o sentimento de alívio diante do sofrimento vivenciado ao longo do adoecimento e
tratamento. A rede de significados relacionada à experiência de atuar nos cuidados
paliativos narrada pela dentista é apresentada na Figura 9 a seguir.
114 FIGURA 9: Rede de significados associados aos Cuidados Paliativos na
oncologia pediátrica na perspectiva da dentista
6.2.5 CASO 5: Psicóloga Poliana Rede de significados sobre Cuidados Paliativos
Observa-se, na narrativa da psicóloga, que há uma formação de vínculo e, com
a perda, um processo de luto. Esta experiência torna-se frequente com o passar dos
anos trabalhando na área, o que ocasionou uma maior dificuldade de aceitação da
morte por parte da profissional e um cansaço, um desgaste emocional.
Ao longo da narrativa de Poliana foi possível observar um destaque para os
significados associados à morte e como estes influenciam a sua postura e o seu
enfrentamento diante do contexto de cuidados paliativos. A psicóloga relata não ter
tido contato com a morte em sua vida pessoal, ao mesmo tempo em que, no ambiente
115 de trabalho, este contato é constante. A participante afirma que é um tema delicado e
um tabu social, com o qual as pessoas apresentam dificuldade para lidar.
Na situação de cuidados paliativos, o significado de morte vem associado a
uma impotência e a um sentimento de frustração. É possível observar também a morte
de um paciente como uma situação de ruptura, no momento em que a participante
verbaliza a expectativa de cura e a esperança depositada no tratamento oncológico.
Como estratégia para enfrentar o processo de transição, a psicóloga afirma utilizar
recursos cognitivos (semióticos) em sua vida pessoal para se distanciar do contexto de
trabalho.
Destaca-se, na narrativa de Poliana, em contraponto aos outros profissionais
entrevistados, um aumento na dificuldade para enfrentar o contexto de cuidados
paliativos. O processo de luto aparece carregado de sofrimento, angústia, dor, choro, o
que dificulta a própria atuação da profissional com outros pacientes que iniciam o
tratamento oncológico, devido a um abalo na esperança e na crença da cura.
As consecutivas perdas dos pacientes são apontadas como um fator que gera
um desgaste emocional e dificulta a sua assistência aos pacientes e aos familiares,
conforme apontado na Figura 10 a seguir. É possível observar, em sua narrativa, a
descrição da atuação do psicólogo na situação de cuidados paliativos com a função de
fornecer suporte no processo de morrer, tanto para o paciente quanto para os
familiares. Desta forma, a participante encontra-se constantemente em contato direto
com a morte, à qual Poliana associa uma angústia universal.
De acordo com Domingues, Alves, Carmo, Galvão, Teixeira & Ferreira
(2013), o paciente, que se encontra fora dos recursos terapêuticos de cura, vivencia
uma situação de medo, angústia e insegurança. O psicólogo, na equipe de saúde, é o
profissional capacitado para a escuta, promovendo a voz dos pacientes e dos seus
familiares, fazendo com que se sintam amparados e compreendidos.
O psicólogo possui o papel de mediador entre a família e o paciente,
facilitando o processo de reorganização de suas vidas. O profissional é capaz de
orientar a família a respeito da experiência diante da iminência de morte, assim como
oferecer a ela um suporte necessário para que se fortaleça e possa manter-se ao lado
do paciente nesta situação (Domingues et al, 2013).
116 Dar suporte aos familiares e ao paciente na situação de cuidados paliativos
envolve amparar a angústia, oferecer a escuta qualificada e compreender a dor do
outro, sem emitir nenhum juízo de valor, mas, ao contrário disso, valorizando as suas
queixas e dores, assim como promover a construção e expressão de significados para
a sua existência, facilitando a aceitação da morte (Domingues et al, 2013).
Devido à especificidade da atuação do psicólogo, é possível compreender a
carga emocional experienciada por Poliana, sendo que a participante demonstra uma
dificuldade em apresentar recursos disponíveis para dar suporte a um processo de
transição e adaptação na situação de cuidados paliativos. Enquanto os outros
profissionais apontam como recurso para enfrentamento um distanciamento do
contato com os pacientes em cuidados paliativos, a aproximação se torna mais
constante no trabalho do psicólogo, ao fornecer suporte para o processo de morrer.
FIGURA 10: Rede de significados associados aos Cuidados Paliativos na
oncologia pediátrica na perspectiva da psicóloga
117 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse estudo se propôs a compreender os significados de cuidados paliativos
pediátricos através da perspectiva dos profissionais de saúde que atuam na área, a partir
da fundamentação da Psicologia Cultural do Desenvolvimento. Assim, buscou-se
explorar as narrativas dos profissionais para descrever as práticas de assistência à saúde
presentes nos cuidados paliativos, assim como compreender a experiência do
profissional diante da iminência da morte e do vínculo formado com os pacientes e seus
familiares.
Diante das entrevistas realizadas com os profissionais de saúde, foi possível
identificar a compreensão acerca dos cuidados paliativos, traduzidas em uma
abordagem que prioriza as medidas de conforto, a redução da dor e do sofrimento, assim
como a compreensão de que o cuidado paliativo é introduzido quando não há mais
possibilidade de cura para a doença. Além disso, foi possível constatar que o cuidado
paliativo é iniciado no momento em que a doença já encontra-se em um estágio
avançado, com um comprometimento físico para o paciente.
Tal decisão acerca da introdução dos cuidados paliativos no momento em que
não há mais possibilidade de cura para a doença, contrapõe ao que foi encontrado na
literatura. De acordo com a OMS, os cuidados paliativos possuem o objetivo de
melhorar a qualidade de vida do paciente e dos familiares que enfrentam uma doença
com ameaça de vida. A OMS sugere uma atitude preventiva, através do alívio do
sofrimento, da identificação precoce do tratamento da dor e dos demais sintomas
físicos, espirituais, sociais e psicológicos. Desta forma, os cuidados paliativos devem
participar mesmo durante o tratamento com intenção curativa, para manejar os sintomas
de difícil controle, assim como os aspectos psicossociais que estão associados ao
adoecimento (INCA5)
O INCA enfatiza que, apesar do termo paliativo apresentar uma conotação
negativa ou passiva, esta abordagem deve ser introduzida principalmente no tratamento
de pacientes portadores de câncer em fase avançada, em que algumas modalidades de
5
http://www1.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=474 118 tratamento cirúrgico e radioterápico podem facilitar o manejo e o controle de sintomas
específicos.
De acordo com o primeiro objetivo específico proposto para este estudo, que foi
caracterizar as práticas de assistência à saúde presentes nos cuidados paliativos através
das atitudes relacionadas à comunicação, à tomada de decisões e aos cuidados físicos
oferecidos ao paciente, foi possível observar que tanto a comunicação quanto a tomada
de decisão são responsabilidades da equipe médica. Observam-se contradições nas
narrativas dos profissionais, no que diz respeito a um trabalho em equipe, por vezes
visto como um suporte para enfrentar a situação de cuidados paliativos e, em outros
momentos, colocado como um obstáculo, devido à falta de clareza na comunicação e na
definição dos cuidados paliativos.
Alguns profissionais entrevistados relataram ainda uma falta de clareza na
definição dos cuidados paliativos e nos limites necessários para a prática realizada nessa
situação. A ambiguidade na terminologia e a lacuna na clareza do conceito de cuidados
paliativos também foi expresso em entrevista com dois professores de enfermagem da
área de cuidados paliativos, no estudo realizado por Nicholl & Price (2012). A
responsabilidade da tomada de decisões é da equipe médica e, como abordado na
entrevista com o médico, a maior dificuldade por ele enfrentada é comunicar a uma mãe
que não há mais o que ser feito pelo seu filho. Desta forma, pode-se inferir uma
resistência por parte da equipe médica em enfrentar a tomada de decisão referente aos
cuidados paliativos.
Abordando a questão da comunicação, foi possível observar nas narrativas que a
comunicação ocorre claramente com a família, mas não com o paciente, apenas quando
este questiona. Uma questão apontada por todos os profissionais diz respeito à
percepção da criança e do adolescente sobre a aproximação da morte. Os profissionais
apontam que tanto a criança quanto o adolescente são capazes de sentir no próprio
organismo a evolução da doença, porém, mesmo com essa afirmação, a comunicação
direta não ocorre. Tal questão leva-nos a refletir sobre os motivos que impedem o
profissional de conversar com a criança e o adolescente sobre a iminência da morte.
O silêncio neste contexto pode ser considerado como um reflexo da forma como
a sociedade lida com a morte, como um tabu, tema proibido, e atua como uma estratégia
de enfrentamento. Desta forma, a experiência da criança e do adolescente diante da
119 morte é determinada principalmente pelas relações com as pessoas que são centrais em
sua vida, como a família e a equipe de saúde, que influenciam na oscilação entre a
negação e a aceitação da morte (Torres, 2002).
É destacada, no estudo de Souza et al (2009), a importância de fornecer um
espaço de escuta para a criança, para a continência da dor e do sofrimento psíquico, que
pode ser através da brincadeira e da linguagem simbólica, de acordo com o que foi
apresentado nas entrevistas da psicóloga e da dentista. De acordo com as entrevistas
realizadas com os profissionais, foi possível observar que a criança participa pouco da
comunicação com a equipe e, consequentemente, do processo de tomada de decisões
sobre a sua própria vida.
Diante de tal problemática a respeito da experiência da criança diante do
adoecimento e da iminência de morte, é importante discutir os direitos que a mesma
possui em relação à sua saúde. Se os profissionais pontuam que a criança é capaz de
perceber o agravamento da doença, por que não promover um espaço para que ela possa
expressar as possíveis dúvidas, anseios e angústias diante da iminência na morte? Por
que não promover um espaço para acolher e dar suporte psicológico à essa experiência
complexa de contato com a morte? Nas narrativas de alguns profissionais, foi destacada
a importância de adequar a forma da comunicação com a criança e a psicóloga ressalta a
necessidade de avaliar a capacidade cognitiva e emocional da criança para receber
determinadas informações acerca do seu quadro clínico.
O segundo objetivo específico propôs descrever a percepção dos profissionais da
equipe de saúde sobre a participação da família nas práticas de assistência à saúde,
assim como sobre a vivência da mesma e do paciente. Destaca-se, para esse tópico, o
vínculo formado com os pacientes e os familiares e o aprendizado acerca da vida e da
morte. O longo período de tratamento e o constante contato entre a equipe, o paciente e
a família, favorecem o fortalecimento desta relação. A formação de vínculo com a
família e com o paciente vem associada, nas narrativas, à uma ambivalência entre uma
boa relação (algo positivo) e um maior sofrimento diante da iminência da morte e após a
perda do paciente.
Verificar como os profissionais da equipe de saúde significam a morte, analisando,
na construção do significado, as crenças, os sentimentos e as estratégias de
enfrentamento perante a morte foi o terceiro objetivo específico proposto neste estudo.
120 Ao longo das entrevistas, o tema da morte vem associado ao sofrimento nas narrativas
dos profissionais, porém surgem diferentes significados nas entrevistas, através de
relatos de experiências pessoais e de experiências profissionais, sendo o trabalho na
oncologia pediátrica destacado como um processo de aprendizagem para se lidar com a
morte.
De maneira geral, os significados sobre morte apresentados nas narrativas estavam
associados a um processo natural, a uma falha na formação dos profissionais de saúde
para lidar com a morte, à falta de suporte e espaço para compartilhar os sentimentos, à
espiritualidade e a uma dificuldade de aceitação da morte da criança – ordem inversa.
Na narrativa do médico, observa-se que a morte é vista como um processo natural e que,
ao longo da sua experiência profissional, houve um processo de ressignificação sobre a
vida.
Pode-se observar que a formação profissional é voltada para a cura, o que dificulta o
enfrentamento da morte no contexto de trabalho. Desta forma, a morte vem associada ao
sentimento de impotência. No que se refere à dificuldade para lidar com a morte, a
dentista problematiza em sua narrativa a questão da morte como um tabu social em
nossa sociedade, reforçada nos estudos de Torres (2002) e de Hermes & Lamarca
(2013), e acentua o impacto que isso tem sobre a assistência, principalmente no que se
refere ao processo de aceitação da morte.
Foi comum, nas diferentes narrativas, a dificuldade para enfrentar a dor, o
sofrimento e a iminência da morte, característicos dos cuidados paliativos. O câncer
pediátrico necessita de um tratamento prolongado, com procedimentos médicos
aversivos que podem envolver dor, desconforto e angústia para os pacientes. Diante
desse cenário, os participantes narraram um sentimento de alívio dado pelo fim do
sofrimento que o paciente vive ao longo do tratamento, ressaltando que há um grande
desgaste emocional ao longo do processo.
Segundo Torres (2002), observar e conviver com a dor de uma criança com câncer é
uma dura experiência, tanto para os familiares quanto para os profissionais de saúde.
Desta forma, analisar as estratégias de enfrentamento do luto antecipatório para os
profissionais da equipe de saúde foi o quarto objetivo específico proposto neste estudo.
121 Tratando-se do processo de luto diante da perda iminente de um paciente, foi
possível observar expressões emocionais como choro, angústia, tristeza, frustração,
impotência, dor, raiva, revolta. Para os profissionais, a experiência de luto pode ser
considerada complexa principalmente por ser vivido de forma negada, velada e
negligenciada (Prade, Casellato e Silva, 2008), conforme apontado também nas
narrativas de alguns profissionais neste estudo. Desta forma, a experiência deste luto
para o profissional, frente à iminência da morte do paciente, pode se tornar um fator de
risco para a sua saúde física e mental.
Nas narrativas dos profissionais, foi possível observar as estratégias da negação
da morte, através da tentativa de distanciamento físico dos pacientes e familiares. Foi
relatado, nas entrevistas, o distanciamento cognitivo, a busca por evitar pensar na perda
e a separação entre a vida pessoal e a vida profissional. Porém, Souza et al (2009)
apontam que a tentativa de não se envolver emocionalmente funciona como um
mecanismo de defesa em relação ao sofrimento, o qual impede o acolhimento efetivo
aos familiares e à criança doente e pode prejudicar a saúde de quem permanece vivo: os
profissionais e os familiares. Torna-se importante refletir, desta forma, acerca da
formação profissional e da preparação da equipe para lidar com a morte de um paciente,
sendo as estratégias apresentadas neste estudo indicativas de uma barreira para a
prestação de uma assistência adequada.
É relevante pontuar, então, a importância de um suporte para os profissionais
que lidam com a morte e a perda de pacientes. A oportunidade de expressar o luto e
refletir sobre a experiência de cuidar do paciente e da família permite que o profissional
de saúde aprenda a lidar com a experiência de luto, além de facilitar a sua assistência
nos cuidados paliativos.
Ao realizar uma análise e considerar a dimensão temporal e o objetivo geral de
compreender os significados de cuidados paliativos pediátricos através da perspectiva
dos profissionais de saúde que atuam na área, foi possível construir uma rede de
significados de acordo com cada narrativa.
Em grande parte das narrativas, há um destaque para a dimensão temporal. Os
profissionais relatam que o tempo favorece sua adaptação ao trabalho da oncologia e
dos cuidados paliativos na pediatria. A única profissional que apresentou uma
experiência diferente foi a psicóloga, que aborda o desgaste emocional devido ao
122 constante contato com a dor, o sofrimento e a perda dos pacientes, e conclui que tem se
tornado cada dia mais difícil enfrentar o contexto dos cuidados paliativos.
O caso da psicóloga evidencia uma dificuldade de ajustamento e um desgaste
emocional maior ao longo do tempo, que pode ser atribuído também à especificidade do
seu trabalho e do contato mais intenso com a dor do paciente e dos seus familiares. O
papel do psicólogo diante da terminalidade e da busca por uma qualidade de vida do
paciente possui, como objetivo, a redução do sofrimento, da ansiedade e da depressão
perante a morte (Hermes & Lamarca, 2013).
O foco do cuidado da psicologia é o suporte emocional e psicológico ao paciente
e aos familiares, o qual permite que o profissional compartilhe, de forma mais próxima,
a dor diante do adoecimento e da iminência de morte. Dar suporte aos familiares e ao
paciente na situação de cuidados paliativos envolve amparar a angústia, oferecer a
escuta qualificada e compreender a dor do outro, assim como promover a construção e
expressão de significados para a sua existência, facilitando a aceitação da morte
(Domingues et al, 2013). Tal contato mais intenso com a morte pode proporcionar, ao
profissional o contato com questões reflexivas referentes à finitude e à própria vida.
Os profissionais de saúde enfrentam, na situação de cuidados paliativos, a
dificuldade de seguir os principais pressupostos da sua formação, que são prevenir,
curar e salvar vidas. Destacando-se ainda uma inadequada formação do profissional
para lidar com a morte, não lhe são oferecidos subsídios para que enfrente os
sentimentos de impotência, de culpa e de insatisfação consigo mesmo, o que termina
por distanciá-lo do paciente e, consequentemente, da família (Santos, 2009).
Desta forma, o contato com a morte nos cuidados paliativos apresentou-se como
uma situação de ruptura (Zittoun, 2012) ao longo das narrativas, devido à formação na
área de saúde ser voltada para a cura, principalmente para o médico. Hermes & Lamarca
(2013) destacam o desafio de mudança de paradigma do cuidado na situação de
cuidados paliativos, de uma atenção voltada para a cura à uma assistência voltada para o
conforto e para a qualidade de vida, além de um sentimento de fracasso, vivido pelos
profissionais de saúde, por não conseguir curar o paciente. Através de um processo de
transição pós ruptura, foi possível observar uma ressignificação da experiência diante da
morte e, em alguns momentos, uma nova forma de ver a vida. Identificou-se, então, que,
123 na situação de cuidados paliativos, os profissionais passam por um processo de
mudança, que envolve uma ressignificação acerca da própria identidade do profissional.
Como recursos disponíveis para dar suporte ao processo de transição após a
ruptura, foram mais apresentados pelos profissionais, o recurso semiótico como agente
reflexivo, de buscar se distanciar do contexto do aqui e agora. Outros recursos utilizados
foram os recursos interpessoais (trabalho em equipe), os recursos pessoais (experiências
anteriores e espiritualidade) e o apoio psicológico (terapêutico), indicado por uma
profissional, como estratégia para enfrentamento.
Os significados de cuidados paliativos, de uma forma geral, apresentaram-se
associados à uma abordagem que prioriza medidas de conforto e a redução da dor. Foi
possível observar também que os cuidados voltam-se para a promoção do conforto, para
o alívio da dor e dos sintomas, para o atendimento às necessidades biopsicossociais e
espirituais, e para o apoio à família, conforme também apresentado no estudo de Avanci
et al (2009) com enfermeiros que atuam com cuidados paliativos na oncologia
pediátrica.
As práticas de atenção à saúde que mais se destacaram foram a comunicação e a
tomada de decisão, ambas sob a responsabilidade do médico,
sendo ressaltada a
dificuldade de informar à uma mãe sobre a morte iminente de um filho, assim como a
dificuldade de incluir a criança no processo de tomada de decisões.
Os cuidados paliativos vieram associados a um sofrimento e a um processo
doloroso, no qual são formados fortes vínculos afetivos entre a equipe de saúde, o
paciente e os familiares. A iminência de rompimento de tal vínculo, foi representado nas
narrativas pelo processo do luto antecipatório, o qual provoca sentimento de angústia,
choro, tristeza, impotência, mas, ao mesmo tempo, um sentimento de alívio pelo fim do
sofrimento do paciente ao longo do tratamento. Dentre as estratégias para
enfrentamento, os participantes relataram a tentativa de um distanciamento afetivo e
cognitivo do cuidado paliativo, uma separação entre a vida pessoal e a vida profissional,
o apoio da equipe de saúde e a espiritualidade.
O atual estudo apresenta uma reflexão acerca da falha na formação profissional e
da dificuldade para enfrentar a morte de um paciente, conforme também apresentado
nos estudos de Bifulco & Iochida (2009), Yazdani et al (2010), Roth et al (2009) e
124 Hermes & Lamarca (2013), porém, sendo no ambiente da oncologia pediátrica.
Ressalta-se a importância de um olhar especializado para uma melhor preparação destes
profissionais, com foco em uma educação para a morte, assim como um suporte para
lidar com o luto vivenciado diante da perda. A preparação do profissional para enfrentar
a morte no ambiente de trabalho torna-se relevante para a assistência prestada ao
paciente e ao familiar na situação de cuidados paliativos.
Limitações e propostas de novos estudos
É importante salientar que este estudo foi desenvolvido dentro de uma situação
específica de cuidados paliativos, na cidade de Salvador, em instituições filantrópicas,
com pacientes e familiares da rede pública de saúde. É possível, desse modo, que
aspectos relacionados às normas e características das instituições assim como aspectos
relacionados à própria condição social tenham participado das redes de significados
narradas pelos profissionais, os quais não foram objeto de interesse específico dessa
pesquisa.
Torna-se oportuno, portanto, que estudos futuros possam explorar diferentes
instituições hospitalares com diversos públicos de pacientes, com o objetivo de
investigar o papel das condições sociais de adoecimento e tratamento na formação e no
enfrentamento dos profissionais de saúde. Além disso, novos estudos podem enfatizar o
papel da instituição, enquanto facilitadora de signos coletivos que possam favorecer a
promoção dos cuidados paliativos e condições específicas de suporte ao profissional de
saúde.
Da mesma forma, a possibilidade de aprofundar e compreender a dinâmica do
processo de luto e da experiência dos profissionais diante dos cuidados paliativos seria
interessante para estudos futuros, já que, no presente estudo, foram realizadas
entrevistas em um determinado ponto do tempo a partir de uma perspectiva
retrospectiva. Um estudo longitudinal poderia favorecer a exploração do tema dos
cuidados paliativos a partir da perspectiva de processo da experiência ao longo do
tempo, o que poderia também facilitar o acesso ao tema da morte, já que, em nossa
sociedade, é visto como um tabu.
Por fim, torna-se importante propor uma reflexão acerca da experiência da
criança em cuidados paliativos e da vivência da mesma na iminência da morte em
125 futuros trabalhos. Foi possível observar, nesse estudo, que as informações acerca do
adoecimento, do tratamento e do agravamento da doença são dialogadas entre a equipe
de saúde e os familiares, sendo a criança afastada das decisões acerca da própria vida.
Menezes & Barbosa (2013) identificaram que o cuidado paliativo pediátrico
possui uma diferença na inclusão do paciente, por ser uma criança – um ser em
formação. Os autores destacam que os paliativistas incluem, no processo de tomada de
decisão, as crianças tidas como autônomas, ou seja, crianças que já alcançaram um
determinado desenvolvimento emocional e cognitivo.
Apesar de nem sempre serem incluídas no processo de tomada de decisões,
Menezes & Barbosa (2013) afirmam ser necessária a facilitação da expressão dos
desejos da criança e cabe à equipe e aos pais possibilitar a sua concretização. Os autores
ressaltam a importância dar voz aos desejos da criança, mas, ao mesmo tempo, afirmam
que há uma especificidade na pediatria, no que se refere à concepção da boa morte, pois
a criança não possui desenvolvimento emocional suficiente para participar da decisão
do seu cenário de morte, além de ser difícil conceber a beleza na morte de uma criança.
Destaca-se a importância de realizar novos estudos acerca do enfrentamento da criança
diante da morte, para avaliar o seu desenvolvimento cognitivo e emocional e sua a
capacidade de compreensão.
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132 APÊNDICE A ROTEIRO DE ENTREVISTA
(TEMÁRIO PARA UMA ENTREVISTA NARRATIVA)
ENTREVISTA COM OS PROFISSIONAIS
Pergunta disparadora: como é para você lidar com o paciente em cuidados paliativos e
com a sua família?
1. Compreensão acerca dos Cuidados Paliativos e da morte
2. Atitudes e sentimentos frente aos Cuidados Paliativos
3. Questões éticas envolvidas
4. Comunicação com a família e com o paciente
5. Cuidados físicos
6. Tomada de decisões
7. Luto e vivência da perda (crenças, sentimentos e enfrentamento)
133 APÊNDICE B Termo de Consentimento livre e Esclarecido
Título do projeto: “Significados de cuidados paliativos narrados pela equipe de saúde na
Oncologia Pediátrica”
Essas informações estão sendo fornecidas para sua participação voluntária neste estudo, que
visa descrever e analisar os significados sobre a morte de crianças com câncer sob cuidados
paliativos e relacioná-los com as práticas de assistência à saúde e a vivência dos atores
(profissionais de saúde) nesse contexto. Desta forma, pretende-se contribuir com reflexões
acerca do contexto de cuidados paliativos e sobre a compreensão da morte, ao considerar as
dificuldades enfrentadas diante de tal fenômeno. Através destas, acredita-se na possibilidade
de serem identificados pontos de discussões para o aprimoramento da assistência e do
enfrentamento e vivência do paciente, da família e da equipe de saúde.
Para este estudo serão realizadas entrevistas narrativas com os profissionais da equipe de
saúde que atuam no cuidado paliativo pediátrico. Esta técnica é característica de uma pesquisa
qualitativa, na qual não se segue o esquema pergunta-resposta ou um roteiro dirigido, mas,
sim, temas amplos a serem propostos aos entrevistados. Aqui, a entrevista narrativa, baseada
em um temário previamente elaborado, buscará explorar as dimensões envolvidas no
significado sobre da morte no contexto dos cuidados paliativos e as práticas e vivência dos
atores envolvidos neste contexto. As entrevistas serão gravadas para posterior análise, a partir
da assinatura desta autorização.
Caso você se sinta desconfortável ao prestar estas informações, fica esclarecido que poderá
interromper a sua participação no momento que julgar necessário. De qualquer forma o
pesquisador deverá ficar atento a situações como estas, para garantir que esta experiência
será superior a qualquer inconveniente do processo.
Como benefícios, acredita-se que esta é uma oportunidade de expor as dificuldades
associadas ao tema morte e, consequentemente, ao contexto de cuidados paliativos,buscando
favorecer à assistência da equipe de saúde em tal contexto assim como à vivência e o
enfrentamento do paciente e familiares. Porém, esta participação não proporciona outras
vantagens diretas para o participante.
Vale ressaltar que, em qualquer etapa do estudo, você terá acesso ao profissional responsável
pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. O principal investigador é Ana Clara
Bastos, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFBa – Universidade
Federal da Bahia, que pode ser encontrado no endereço Rua Aristidis Novis, Estrada de São
Lazáro, 197, CEP 40210-730 - Salvador, Ba. Telefax.: +55 71 3283.6442/Cel.: +55 71
8707.1083.
É garantida a liberdade da retirada de consentimento a qualquer momento e deixar de
participar do estudo, sem qualquer prejuízo à continuidade de seu tratamento na Instituição.
As informações obtidas serão analisadas em conjunto com as de outros voluntários, não sendo
divulgada a identificação de nenhum participante.
Você terá direito de ser mantido atualizado sobre os resultados parciais das pesquisas, quando
em estudos abertos, ou de resultados que sejam do conhecimento dos pesquisadores.
Não haverá despesas pessoais para o participante em qualquer fase do estudo, assim como
não
haverá
compensação
financeira
relacionada
à
sua
participação.
134 Acredito ter sido suficientemente informado a respeito das informações que li ou que foram
lidas para mim, descrevendo o estudo “Cuidados paliativos na oncologia pediátrica:
significados de morte narrados pela família e pela equipe de saúde”.
Eu discuti com a pesquisadora Ana Clara Bastos sobre a minha decisão em participar nesse
estudo. Ficaram claros para mim quais são os propósitos do estudo, os procedimentos a serem
realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de esclarecimentos
permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta de despesas.
Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a
qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades ou prejuízo ou perda de
qualquer benefício que eu possa ter adquirido.
_______________________________________
Data
/
/
Data
/
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Assinatura do participante
_______________________________________
Assinatura da testemunha
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste
sujeito para a participação neste estudo.
_______________________________________
Data
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/
Assinatura do responsável pelo estudo
135 APÊNDICE C FIGURA 11: Mapa descritivo dos conteúdos narrados pela técnica de enfermagem Tina
136 FIGURA 12: Mapa descritivo dos conteúdos narrados pela enfermeira Jéssica
137 FIGURA 13: Mapa descritivo dos conteúdos narrados pela dentista Leila
138 FIGURA 14: Mapa descritivo dos conteúdos narrados pela psicóloga Poliana
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