Reportagem - Mimetismo e Camuflagem

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COMCIÊNCIA Nº 153
10/11/2013
Entre cobras, lagartos e cacatuas – estratégias da natureza que confundem e
surpreendem
Por Giselle Soares e Cristiane Delfina
A cacatua Snowball é uma celebridade mundial. O pássaro, que vive em um santuário de aves
nos Estados Unidos, ganhou fama após aparecer, há poucos anos, em um vídeo em que
dançava de maneira sincronizada ao som de "Everybody", do grupo americano Backstreet
Boys e já apareceu em programas de grande audiência, como o Late Show, no canal Animal
Planet e até mesmo em um comercial da rede fast food Taco Bell. O comportamento inusitado
chamou atenção dos pesquisadores Aniruddt Patel e John Iversen do Instituto de
Neurociências de La Jolla, na Califórnia, e Micah Bregman, da Universidade da Califórnia em
San Diego, e resultou no artigo “Investigating the human-specificity of synchronization to
music”, escrito em parceria com Irena Schulz e Charles Schulz, do santuário Birdlovers Only
Rescue Service, onde Snowball vive, publicado nos anais da 10ª Conferência Internacional
sobre Percepção Musical e Cognição, realizada em 2008 em Sapporo, no Japão. Foi o primeiro
caso documentado de um animal que, sem treinamento, podia se mover de acordo com a
batida da música.
http://www.youtube.com/watch?v=OHq4bYJbsBs
birdloversonly.org/docs/Patel.pdf
Por meio do estudo com Snowball, a equipe de Patel chegou à conclusão de que a capacidade
de aprendizagem vocal demonstrada por humanos, papagaios, golfinhos e outras espécies
fornece a base motora e auditiva para a sincronização com o ritmo da música. Adena
Schachner, da Universidade de Harvard, também realizou estudos com Snowball e com Alex,
um papagaio-cinzento que também demonstrava habilidade de "dançar", e os resultados foram
publicados em 2009 no artigo “Spontaneous motor entrainment to music in multiple vocal
mimicking species” na revista Current Biology. Além da pesquisa com Alex e Snowball,
Schachner analisou vídeos do YouTube para buscar evidências de outros animais que
demonstrassem essa mesma capacidade. Assim como os estudos de Patel, o artigo da
pesquisadora sugere que as espécies que aparentemente possuíam a habilidade eram
capazes de reproduzir os sons que escutam por imitação, o que os pesquisadores chamam de
mimetismo vocal.
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0960982209009154
Laura Kelley, da Universidade de Cambridge explica, no artigo "Vocal mimicry in songbirds”
que o mimetismo vocal consiste na capacidade de copiar a vocalização de outras espécies ou
sons ambientes, e que é muito comum em pássaros. Os pesquisadores ainda se debruçam
sobre hipóteses que expliquem a aptidão, pois aparentemente ela não confere vantagens de
adaptação evolutiva como o mimetismo "tradicional" de um camaleão, por exemplo.
www.mta.ca/~raiken/Courses/3401/Assignments/starter%20papers/Kelley%20et%20al
%2008.pdf
Mimetismo e camuflagem
O termo "mimetismo" tem origem na expressão grega mimetés, que significa imitação. A
coordenadora do Laboratório de Fisiologia Comparativa da Pigmentação do Instituto de
Biociências da USP, Maria Aparecida Visconti, define o mimetismo na natureza como a
presença, em indivíduos de determinada espécie, de características que os confundem com
indivíduos de outra espécie. Segundo Visconti, essa semelhança pode se dar principalmente
no padrão de coloração, mas outras particularidades como a forma do corpo e a presença de
determinadas substâncias, conferem a esses organismos alguma vantagem adaptativa.
Muitas vezes o mimetismo é confundido com a camuflagem ou cripticidade, em que o
organismo se mistura com o meio em que vive. "Pode ser um predador, que dessa forma
consegue se aproximar de sua presa sem que esta perceba, ou pode ser um recurso das
presas, que conseguem se esconder mais facilmente de eventuais predadores", explica
Visconti.
Uma espécie que apresenta mimetismo e camuflagem é o bicho-pau, também conhecido em
algumas partes do Nordeste como mané-magro, objeto de pesquisa de Nathália Coelho
Vargas, mestre em biologia animal pela Universidade Federal de Viçosa e professora do curso
de Ciências Biológicas da Faculdade Cathedral de Boa Vista, em Roraima. Ela esclarece que
esses insetos liberam uma secreção amarelada e viscosa para assustar seus predadores,
como se fossem venenosos, e ainda se confundem com os galhos onde se encontram.
"Quando ameaçado, o bicho-pau balança o corpo com movimento semelhante dos galhos. Eles
se camuflam por coloração crítica, que pode se alterar de acordo com o ambiente onde se
encontram, como outra forma de defesa", explica Vargas. Ela lembra, ainda, que existem
diversos tipos de mimetismos, que podem ser classificados quanto ao valor adaptativo que
beneficia a espécie imitadora ou quanto às diferentes funções que desempenham na vida do
organismo. "Mimetismo não é nada mais e nada menos que uma semelhança física ou
comportamental, é um mecanismo adotado por uma espécie que imita outra com a finalidade
de proteção contra seus respectivos predadores", complementa a pesquisadora, em
consonância com a fala de Visconti.
Vargas aponta outros exemplos das vantagens que essas adaptações proporcionam a diversas
espécies de animais e plantas, como de orquídeas, aranhas, lagartas e borboletas. As flores da
orquídea Ophrys apifera mimetizam fêmeas de abelhas, liberando um odor para atrair os
machos. Assim, quando o zangão tenta copular com a flor, ele se enche de pólen e contribui
para a reprodução da orquídea. A lagarta Euchelia jacobaea, berrantemente colorida com
faixas amarelas e negras, é rejeitada por aves insetívoras após um contato mínimo, devido a
secreções nauseantes que emanam. Vargas explica que as vespas que trazem o mesmo
padrão de coloração têm igualmente um gosto nauseoso, por causa de seus órgãos digestivos.
As aves, após terem atacado vespas ou lagartas daquelas espécies, rejeitam qualquer inseto
com o mesmo tipo de padrão cromático.
O estudo desses mecanismos de adaptação é importante para a compreensão das relações
ecológicas entre os animais e o meio em que vivem, do próprio conceito de evolução de
Charles Darwin e dos mecanismos de coloração e termorregulação enquanto atributos
essenciais para a manutenção das populações em ambientes naturais. Citando estudos do
biólogo evolutivo e geneticista inglês Ronald Fisher (1930), Elynton Alves do Nascimento,
doutor em ciências na área de entomologia pela USP, afirma em sua tese que o mimetismo é a
melhor aplicação pós-darwiniana do conceito da seleção natural, tendo contribuído muito para
o avanço das ciências naturais por chamar atenção para a importância das observações
ecológicas na interpretação do material depositado em museus.
www.ffclrp.usp.br/imagens_defesas/02_05_2013__15_49_03__45.pdf
O desequilíbrio dos ambientes afeta diretamente espécies que dependem deles para se
proteger, pois pode impedir sua livre circulação "disfarçada" entre as formas, cores e texturas
conhecidas. No caso de indivíduos mímicos, se as espécies originalmente venenosas (ou
perigosas, por outras razões) são extintas, não servirão mais como referências evolutivas a
serem evitadas. Ou seja, as "cópias" também ficam ameaçadas.
O pesquisador brasileiro Renan Janke Bosque, doutorando pela Universidade do Mississipi
pelo programa Ciência sem Fronteiras, desenvolve uma pesquisa que objetiva contribuir para a
compreensão da evolução do mimetismo, utilizando as serpentes com o padrão coral como
modelo. Segundo ele, diversas hipóteses têm sido levantadas para explicar o aparecimento
desse padrão de coloração. "A mais aceita é que o padrão coral serve como um sinal de
advertência de periculosidade para os potenciais predadores. Dessa maneira, a serpente se
beneficia dessa sinalização, pois evita uma tentativa de predação. Porém, uma das premissas
para que o mimetismo tenha sucesso como estratégia adaptativa é que modelo e mímico
apresentem a mesma distribuição geográfica", elucida Bosque.
Com sua pesquisa, Bosque pode concluir que o gênero Oxyrhopus (serpente coral falsa)
apresenta uma distribuição geográfica associada ao gênero Micrurus, a "verdadeira" coral, uma
das serpentes mais venenosas do Brasil. Entretanto, essa sobreposição não é coincidente para
todos os tipos de coloração encontrados nesses gêneros, indicando que outras possíveis
explicações, que não o mimetismo, podem levar ao aparecimento dessa coloração em
Oxyrhopus.
Foto 1 Oxyrhopus trigeminus - PARNA Sete Cidades PI. Autor da foto: Guarino Rinaldi Colli
Foto 2: Micrurus ibiboboca - FLONA Araripe CE. Autor da foto: Guarino Rinaldi Colli
Seja em cobras corais, lagartas, ou orquídeas, o mimetismo e a camuflagem se configuram
como surpreendentes estratégias desenvolvidas para ludibriar predadores e sobreviver às
adversidades.
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