Português Brasileiro, Português Moçambicano e as línguas crioulas

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Português Brasileiro, Português Moçambicano e as línguas crioulas de base
portuguesa
Autor(es):
Oliveira, Marilza de
Publicado por:
Associação Internacional de Lusitanistas
URL
persistente:
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/34453
Accessed :
14-Jun-2017 05:01:36
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VEREDAS 9 (Porto Alegre, 2008) 99-113
Portugues Brasileiro, Portugues
Mocambicano e as Iinguas crioulas
de base portuguesa
MARILZA DE OLIVEIRA
Universidade de Sao Paulo
Introdueao
Trabalhos como os de Galvez (1987) e Tarallo (l993 a ) , entre
outros, tern apontado diferencas morfossintaticas entre 0 Portugues
Brasileiro e 0 Portugues Europeu' a ponto de se postular a emergencia de duas gramaticas, na passagem do seculo XIX para 0 seculo
XX. A emergencia de uma nova grarnatica - a do Portugues Brasileiro - levanta a questao da origem das mudancas linguisticas que a
favoreceram.
A preocupacao pela origem das mudancas linguisticas que
vieram a configurar a gramatica do Portugues Brasileiro voltou' a
Esse texto foi parcialmente apresentado no XIV Congresso da Alfal, Monterrey 2005.
Saliente-se aqui 0 projeto de Mary Kato em colaboracao com Joao Peres intitulado Portugues Europeu e Portugues Brasileiro: unidade e diversidade na passagem do milenio
(PEPB2000).
3 0 debate sobre a origem crioula do PB e mais antigo. Francisco Adolpho Coelho ja propunha, no seculo XIX, a origem crioula do PB, hipotese alimentada por Mendonca (1933)
I
2
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MARILZA DE OLIVEIRA
reacender as discussoes dos linguistas em torno da hipotese de origem crioula (GUY 1981, HOLM 1987, BAXTER e LUCCHESI
1997, entre outros) e da hipotese da 'deriva' (NARO e SCHERRE,
1993, 1999). Em geral, a hipotese crioula apega-se as questoes socio-historicas brasileiras, tendo em vista a presenca macica de escravos africanos no territorio brasileiro. Os africanos trazidos na
condicao de escravos eram provenientes, basicamente, da costa ocidental da Africa: a Costa da Mina (Guine) e Luanda (Angola). Os
"Mina" eram, em sua grande maioria, falantes das linguas do grupo
linguistico kwa (sobretudo 0 ioruba ou nag6) e se instalaram na Bahia. Os "Luanda", falantes das linguas banto (com predominio do
quimbundo e do quicongo), tiveram como porta de entrada 0 Rio de
Janeiro e dai foram direcionados para outras regioes. Nessa linha de
pensamento, 0 contato entre africanos e portugueses explicaria a
formacao do Portugues Brasileiro.
Situacao similar e encontrada em Mocambique. Segundo
Goncalves (2004), Mocambique e urn pais de larga diversidade linguistica. Alem do Portugues, lingua oficial, falam-se mais de 20
linguas do grupo banto (doravante LBs). 0 portugues e falado como
L2 por cerca de 40% da populacao e como L1 por apenas 3% da
populacao. Apesar de a presenca do povo portugues no pais remontar ao seculo XV (1498), a difusao da lingua so se implementou a
partir de 1975, data da declaracao de independencia de Mocambique. 0 portugues, essencialmente uma lingua urbana, e adquirido
como L2 fundamentalmente por via escolar e e usado em algumas
situacoes diarias.
Os delineamentos agora feitos sugerem, guardadas as devidas diferencas, a existencia de elementos socio-historicos coincidentes entre 0 PM e PB: 0 contato de individuos que tern 0 banto 4
como lingua materna com a lingua portuguesa, assumida como lingua oficial e, portanto, destinada a ser lingua-alvo a ser adquirida
em contexto de aprendizagem de L2. Ha, porem, que se salientar
que os africanos de linguas banto no Brasil tiveram uma presenca
"descompassada", em tempos distintos, e "descontlnua", em lugares
e Raimundo (1933). Do lado oposto acham-se Silva Neto (1986), Melo (1981), Camara Jr.
(1972, 1985).
4 Entende-se "banto" como urn grupo de linguas e nao como uma lingua especifica.
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distintos, ao contrario dos falantes das Iinguas banto na Africa que
tern presenca compassada e continua (AFRANIO BARBOSA, c.p.).
1. Caracterizando as Iinguas crioulas: uma abordagem
universalista
Coelho (1881, apud MUYSKEN and VEENSTRA 1994), ao
tratar da semelhanca entre os diferentes tipos de linguas crioulas, refutou a hipotese da influencia do substrato na sua formacao, preferindo explicar a semelhanca a partir de aspectos universais da capacidade linguistica humana. Outros estudos (MUYSKEN e SMITH 1990)
contestam a falta de influencia do substrato, mas reconhecem seu efeito estruturallimitado.
Muysken e Veenstra assinalam a existencia de dois tipos de
universais: os de processamento e os de constituicao, Os de processamento englobam as esferas da gramaticalizacao e da aprendizagem de uma segunda lingua. Tern uma base psicolinguistica e sao
interpretados como estrategias que 0 falante usa na situacao de contato linguistico.
Os universais constitutivos sao propriedades universais e
pertencem ao dominio da teoria da gram atica. Ha duas maneiras de
explicar os universais constitutivos do crioulo: pelo processo de aquisicao de uma L2 e pelo processo de aquisicao de uma L 1.
Dentro da teoria da aquisicao de L1, 0 crioulo e resultado da
exposicao da crianca aos dados do pidgin. As suas capacidades inatas transformam 0 input (pidgin) recebido de seus pais em lingua
natural, 0 crioulo. As linguas crioulas sao simi lares devido ao carater universal da capacidade linguistica inata e sao simples porque
refletem as estruturas linguisticas mais basicas, 0 crioulo tambem
surge da simplificacao inerente ao processo de aquisicao de uma
lingua como L2. A semelhanca entre os crioulos deriva, nessa perspectiva, de propriedades universais relacionadas com 0 processo de
aquisicao linguistica. 0 crioulo resulta da cristalizacao de algum estagio na sequencia desenvolvimental devido a deficiencia no acesso
a lfngua-alvo.'
5
Trata-se de uma teoria de aprendizagem imperfeita de segunda lingua.
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Nas duas ultimas decadas, a teoria do processo de aquisicao de
uma lingua como L2 tern sido a tonica dos trabalhos que defendem a
hip6tese crioula para a formacao do PB: "Urn processo de transmissao
irregular de L2 para L1 em que a L2 foi alterada devido a problemas
de acesso it lingua alvo (isto e, a lingua do grupo dominante) e, possivelmente, it influencia das lfnguas matemas dos falantes desta L2"
(BAXTER e LUCCHESI 1997, p. 74). Os autores assumem que 0 PB
e resultado da aquisicao imperfeita do portugues como L2 pelos africanos devido it transmissao irregular das formas aprendidas.
A discussao a respeito da hipotese crioulista deve fazer as
contas com a definicao das linguas crioulas. Tomamos como ponto
de partida a proposta de Bickerton (1984) segundo 0 qual as linguas
crioulas apresentam uma opcao nao-marcada em cada dominio da
Gramatica Universal. Seconsiderarmos que entre os exemplos de
traces linguisticos que caracterizam os crioulos de maneira geral estao 0 uso de uma preposicao locativa generalizada, frequentemente
na, e a presenca de construcoes de objeto duplo, podemos hipotetizar que essas duas construcoes sao opcoes nao-marcadas. Elas serao
objeto de reflexao no ambito das linguas crioulas de base portuguesa, no Portugues Mocambicano, e no Portugues Brasileiro. A hip6tese assumida, entretanto, e a de que 0 Portugues Brasileiro, bern
como 0 Portugues Mocambicano, nao e originario de uma lingua
crioula, pois a segunda geracao ja esta exposta aos dois sistemas, a
lingua natural dos pais e 0 portugues, desfazendo 0 quadro assumido para 0 estabelecimento do crioulo.
2. Verbos dativos e verbos de movimento: Crioulo de
Cabo Verde e Kriyol
Segundo Silva (1956), no crioulo de Cabo Verde a ordem
dos constituintes sentenciais e invariavelmente Suj+V+OI+OD. 0
objeto indireto nao e encabecado por preposicao. A relacao entre
verbo e objeto indireto se faz pela adjacencia estrita desses elementos. A construcao com objeto duplo e atestada no crioulo caboverdiano (1) e no Kryiol (2) (KIHM, 1994):
1. luau da _ kabole agua (Joao deu ao cavalo agua)
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2. Mininu manda _ si marne urn karta (0 menino manda sua
mae uma carta)
Para Kihm, a ordem rigida (meta+objeto afetado) e a ausencia de preposicao sao motivadas pela construcao de objeto duplo em
algumas linguas de substrato, Manjaku (3), Balanta (4):
3. A piban natson banyan. (Ele apresentou anfitriao as pessoas)
4.
U das afula maa fmangaa. (Voce corta menina uma roupa)
No Kryol a preposicao portuguesa para, realizada pa, pode
ocorrer em construcoes que envolvem a direcionalidade relacional:
5. N fasi 11m: boo (eu fiz isso para voce).
Contrariamente ao objeto indireto, 0 complemento dos verbos de movimento no Crioulo de Cabo Verde e introduzido por preposicao. Ha uma alternancia entre a preposicao em e a preposicao
para, que se resolve em termos do traco [+ permanente] marcado na
preposicao para (7) e ausente na preposicao em (6). lei 0 Kryol exibe a variante nula, alem de pa," com valor direcional (8, 9):
6.
M ta ba na kaza (Vou acasa)
7. El ba pa kaza (Ele foi para casa)
8.
Si bu bay _ fera konpra bo tiya sinku kilu di arus.
for afeira, compra sua tia cinco kilos de arroz)
9.
Leba arus pa kasa. (Leva arroz para casa).
(S~
voce
A preposicao na, tambem registrada no Kryol, e locativa por
excelencia codificando as relacoes espaciais: BE-INSIDE (i sta na
kwartu = ele/a esta no quarto); BE-ON-THE-SURFACE (i sta na
mesa = ele esta na mesa), BE-AT-A-LOCATION (i sta nafera = e-
Kihm salient a que pa herda 0 significado de percurso e de agente da passiva da preposiportuguesa por:
/ yentra pa janela (Ele entrou pela janeIa); Kif asasinus yera ba komendadu pa um branku
(Aqueles assassinos foram comandados por um branco).
6
~a.o
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lela esta na feira). Entretanto, pode ser marginalmente usada para codificar 0 papel meta ou beneficiario: 7
10. E enterga n na pulisya. (eles entregaram-me apolicia).
Os dois crioulos analisados optam pela forma nao-marcada
no contexto de objeto indireto. Quanto ao contexto de verbo de movimento, surgem construcoes marcadas. Os autores sugerem que na
resulta da fusao do substrato com a lingua lexificadora; 0 elemento
pa e da lingua lexificadora (para).
3. 0 Portugues Moeambicano (PM): dados de
aqulsieao
Os estudos realizados por Goncalves (1996, 2002, 2004) assinalam que no processo de aprendizagem do portugues, os mocambicanos apagam a preposicao em complementos verbais ditransitivos que exibem tipicamente 0 trace [+humano]. Uma consequencia imediata do apagamento da preposicao e 0 alcamento do
objeto indireto para a posicao de sujeito nas sentencas passivas,
como vimos no PB do sec. XIX:
11. Demonstrou _ as outras mulheres
feminino.
0
papel do destacamento
12. Os jovens sao dados responsabilidades de familia.
Segundo a autora, 0 apagamento da preposicao e a apassivado objeto indireto resultam do contato com as LBs. Propoe que
o conhecimento da Ll (LBs) direciona a aquisicao da L2. Duas caracteristicas das LBs parecem orientar 0 processo de aprendizagem
do portugues como L2, a incorporacao no verbo da preposicao el
das LBs e a existencia de uma c1asse nominal de trace [+humano].
Nesse sentido, a supressao da preposicao no PM e resultado da fixacao do parametro da Ll estendido para L2.
~ao
Com base na percepcao do trace [+humano] no complemento dativo precedido de a e no clitico dativo lhe, os mocambicanos
Na tambem e marca do aspecto progressivo. Ex.: N nabibi binyu (Eu estou bebendo binho). Com alguns verbos, pode expressar apenas 0 futuro:n na sibi (eu saberei).
7
I'
1
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generalizam a regra: os nominais de trace [+humano] sao precedidos da preposicao a e sao retomados pelo pronome [he. Essa generalizacao explica a extensao do uso da preposicao a e de [he para a
funcao sintatica de objeto direto:"
13. Eles elogiam a uma pessoa.
14. Elogiaram-Ihe muito.
o clltico [he nao e interpretado como evidencia morfologica do Caso dativo, mas como a cliticizacao de urn argumento [+humano].
Quanto ao complemento do verbo de movimento introduzido pela preposicao em, Goncalves & Chimbutane (2004) observam
que em algumas LBs urn afixo pode ter valor locativo direcional ou
locativo situacional. E 0 caso da lingua Tonga, em que -oi pode ser
urn locativo situacional ou urn sufixo direcional (NGUNGA, 2004,
p. 134-40):
15. Libuku lomo aba baderani (0 livro esta na cadeira)
16. Athu anodowa Qmundani (as pessoas vao a machamba)
A semelhanca fonol6gica entre 0 afixo -ni das LBs e a preposicao em (e suas formas articuladas) pode ter favorecido a escolha de em ao inves da preposicao a.' Recupera-se assim 0 locativo ni, associando-o a preposicao em. Em urn primeiro momento, a preposicao e interpretada como marcador de localizacao e, segundo os
autores, aparece presa no nome de trace [+locativo], como no exemplo abaixo:
17. levar mandoim levar para [no-mandjacaze] (Albertina)
A presenca de duas preposicoes sinaliza que em e primeiramente adquirido como urn afixo situacional e que para eprocessado
como preposicao locativo-direcional. Em urn segundo momento, 0
elemento em passa a ser interpretado como preposicao e passa, portanto, a ser usado com verbos de movimento, i.e. em passa a ser
8
9
Esse efeito tambem e verificado noPB.
Lembramos aqui 0 uso da preposicao ni no PH: Pensei ni voce.
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subcategorizado pelo verbo, independentemente do fato de este ser
estativo ou de movimento: V PP.
Com a exposicao a mais dados da lingua-alvo, surgem as variantes a e para (18-19) na introducao de complementos dativos e
as variantes em e a encabecando 0 complemento de verbos de movimento (20):
18. Se falei a ele ou se fiz este tipo de pergunta ...
19. Contam anedotas para os miudos.
20. Queria ir a escola ... e precise ir na escola ...
A questao esta em saber como surge a variante para, ausente
na lfngua-alvo como introdutora de objeto indireto e se a preposicao
em nestes casos e residuo da forma locativa presa ao nome, caracteristica da L1.
4. Uso variavel da preposieao no Portugues Brasileiro
Em algumas variedades do PB, como 0 falar mineiro da Zona da Mata (SCHER 1996) e 0 falar carioca (GOMES 1996, 2003),
os complementos verbais dativos podem ser introduzidos pela preposicao a, para ou zero:
21. entregar urn livro para/ao pai'"
22. entregar _
0
pai urn livro
Nas duas variedades a supressao da preposicao e favorecida
quando 0 PP se acha adjacente ao verbo; as preposicoes a e para
nao sofrem efeito da posicao do complemento. Os achados de Gomes a respeito da fala carioca" mostram que a variante zero esta
presente na fala de informantes de baixa escolaridade, ao passo que
0 exemplo (7) e marcado de formalidade. E posslvel falar aqui em mudanca qualitativa.
As consequencias disso para 0 PB nao sao tao drasticas, dado 0 aumento expressivo do uso
da preposicao para atestado no sec. xx (60% no PEUL, Berlinck 1999). 0 uso da variante
zero ficou restrito as classes populares.
II Como dissemos na introducao, 0 Rio de Janeiro foi porta de entrada para falantes das
Iinguas banto.
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o uso da variante a cresce a medida em que aumenta 0 grau de escolaridade, resultado, portanto, da intervencao da escola.
Apesar da pressao escolar no processo de preenchirnento da
preposicao, 0 que se observa e 0 avanco de para que vai desbancando a preposicao a. Para passou a ser usada por falantes de todas
as faixas etarias e tern nas faixas etarias mais baixas 0 maior percentual de uso, indicio de uma mudanca em tempo real.
A variedade carioca tende, portanto, a inibir 0 uso da variante zero, por meio da preposicao para. 0 uso da preposicao a e cada
vez menos presente e parece se especializar no contexto de verbos
leves, em que 0 argumento tern traces semanticos abstratos.
A mudanca acima delineada mostra seus primeiros sinais no
seculo XIX. Berlinck (1999) observou 0 aparecimento da preposicao
para em pecas teatrais (7,0% na l", e 17,0% na 2 a . metade do seculo
XIX) e Oliveira (2002) atestou pouquissimas ocorrencias dessa preposicao em cartas enviadas aos jomais do seculo XIX: a (95, I %), para (1,4%) e zero (3,5%). Essa diferenca percentual do uso de para se
explica pelo fato de os jomais serem mais conservadores e imitarem
ou importarem textos-modelo portugueses. Explica-se ainda pelo fato
de Berlinck incIuir os verbos de movimento, ao passo que Oliveira os
excIuiu. Vejam-se alguns exemplos de variacao:
23
0
motivo da venda ha de agradar ao comprador.
24
0
motivo da venda nao desagradara _
0
comprador.
25. pedindoao Excelentissimo governo compra de faxinais.
26. Pretende-se entregar uma carta para a Sra...
Oliveira observou a reorganizacao dos constituintes sentenciais nas construcoes passivas, em que 0 elemento alcado para a posicao de sujeito e 0 objeto indireto e nao 0 direto:
27. Os senhores assinantes serao entregues dos seus exemplares.
o alcarnento do objeto indireto a posicao de sujeito indicia a
existencia da variante zero, ainda que nao tenha encontrado na amostra dados dessa variante com verbos ditransitivos.
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Dutro contexto que apresentou os primeiros sinais de mudanca no seculo XIX foi 0 de verbos de movimento, que passaram a
apresentar variacao entre a preposicao a e em (Oliveira, op.cit.):
28. Ontem cheguei a esta Sao Paulo.
29. Chegando eu em Curitiba com uma boiada...
Como explicar as variantes nula e para em complementos
dativos e a variante em em complemento do verbo de movimento no
PB? Ainda que os dados das duas linguas crioulas de base portuguesa aparentemente permitam alimentar a hipotese crioulista do
PB para explicar a construcao de objeto duplo e do uso de em com
verbos de movimento, nao elucidam 0 uso de para em contextos dativos, ausente do Portugues Europeu.
5. Portugues Moeamblcano e Portugues Brasileiro:
crioulos?
Kroch (2001) enfoca 0 contato linguistico, tido como uma
forca atuante para a mudanca sintatica, na medida em que a aquisiyao da lingua-alva como L2 pode ser facilitadora de falhas na
transmissao de traces linguisticos.
A aquisicao imperfeita, resultante do contato, pode ser decorrente da interferencia de traces gramaticais da lingua materna
durante 0 processo de aquisicao de segunda lingua. Esses traces
gramaticais "estrangeiros" passam a fazer parte dos dados lingulsticos primaries de que se vale a crianca para fixar 0 parametro da sua
lingua-alvo induzindo a rnudanca linguistica.
Partindo do pressuposto de que a crianca fixa 0 parametro de
forma irreversivel, Kroch sustenta que, quando a alteracao do input
induz a ernergencia de gramaticas mutuamente incompativeis, 0 aprendiz pode internalizar os diferentes valores, operando com mais
de uma gramatica. Esta alternancia de valores representa urn momento de instabilidade que se resolve no abandono de uma gramatica em favor da outra. Assim, a competicao entre opcoes gramaticais
incompativeis leva a mudanca linguistica (KROCH 1994), a qual,
por sua vez, leva a alteracao de frequencia no uso de certas formas,
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a medida que a mudanca gramatical se propaga atraves da
comunidade de fala.
E nesse
sentido que Baxter & Lucchesi (1997) propoem pensar 0 PB como urn caso de crioulizacao leve, resultado da transmissao linguistica irregular, entendida como simplificacao de estruturas
gramaticais por algum tipo de "deficiencia" no acesso a lingua-alvo.
Para os autores, no processo de transmissao da lingua as novas geracoes, as formas nao marcadas aumentam em frequencia e "ganham" generalizacao paradigmatica,
Entretanto, a analise dos dados aqui observados sugere que,
ainda que no processo de aquisicao do portugues como L2 os mocambicanos produzam formas nao-marcadas, como nas linguas crioulas, essas formas nao se cristalizam ou se generalizam. As formas
nao-marcadas sao substituidas por formas marcadas a medida que
os falantes sao expostos a mais dados lingUfsticos da lingua-alvo.
De fato, passam a produzir formas que caracterizam a lingua-alvo,
como e 0 caso do uso da preposicao a em complementos dativos. E
ainda, esses mesmos falantes usam a preposicao para encabecando
o objeto indireto, construcao ausente da Lie da lingua-alvo. Como
explicar 0 uso de para em contextos dativos? 0 uso de em com verbos de movimento e residuo da L I? A resposta para essas questoes
pode estar na re-analise de construtos verbais.
Oliveira (2004), analisando dados extraidos da amostra de
cartas de leitores publicadas em jornais brasileiros do seculo XIX,
observou 0 uso de para na introducao de adjuntos com valor final:
30....hoje que por Deliberacao de Sua Majestade Imperial foi dada [a praca] para 0 Estabelecimento da Academia do Curso
Juridico,
A presenca da variante inovadora em (30) e indicio de que a
extensao do uso de para [+meta], com complementos dativos, tenha
ocorrido a partir da reanalise de deverbais como objeto indireto em
estruturas em que 0 verdadeiro argumento dativo nao esta realizado
lexicalmente e pode ser tornado como urn argumento [f-arbitrario]:
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SMI deu a praca [aos paulistas] para estabelecer a Academia do
Curso Juridico
>
SMI deu a praca [aos paulistas] para 0 estabelecimento da Academia...
>
SMI deu a praca para a Academia.
>
SMI deu a praca para os academicos,
Tem-se assim 0 seguinte processo de reanalise, em que
ponto de partida e uma oracao final:
para+S
--7
--7
para+deverbal
para+N[+humano]
para estabelecer
--7 para
demia --7 para os academicos
0
--7
0
para+N[-animado]
estabelecimento
--7
para a aca-
A elipse do nucleo deverbal cria 0 contexto propicio para a metonimia em que a nocao de continente [academica] prevalece sobre a
de conteudo [academicos], 0 desfazimento desse processo metonimico gera a nova estrutura do objeto indireto que passa a ser introduzido pela preposicao para [para os academicos],
Quanto ao emprego de em com verbos de movimento, Oliveira (2002) propos 0 seguinte percurso: estado > existencialapresentativo > movimento. Essa proposta baseia-se na constatacao
do uso da preposicao em com verbos apresentativos, como aparecer e
comparecer, alern, naturalmente, dos contextos puramente estativos:
31. Apareceu no Distrito da Aplicacao urn pardo.
32. As pessoas [...] deverao comparecer no consist6rio da Igreja.
Instituido 0 usa de em com verbos apresentativos, essa preposicao e passivel de ser empregada com 0 verbo chegar, que, para
alem de indicar movimento, codifica a nocao apresentativa, como
em (29) mais acima. Dessa forma, 0 verbo chegar acionou 0 usa da
preposicao em com verbos de movimento, estendendo-o para verbos
como ir e levar.
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A analise aqui proposta sugere que as preposicoes do PB e
do PM nao sao exatamente aqueles elementos produzidos no contato linguistico com os falantes de linguas banto, ou seja, 0 contato
Iinglifstico nao introduziu novas preposicoes ou novos usos das antigas preposicoes por transmissao lingulstica irregular. A alteracao
do input responsavel pelo aparecimento de gramaticas mutuamente
incompativeis pode ser motivado por urn processo natural de
gramaticalizacao de itens.
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