Ato I CENA I ARMANDA Como, minha irmã? Mas que besteira! Você pretende abrir mão do nome de solteira? Solteira – uma palavra sonora, doce, emocionante – e você pretende abrir mão disso pra casar – que coisa mais vulgar! HENRIQUETA É. ARMANDA É? Só esse É chega? Basta só ésse É? E você acha que uma pessoa normal pode ouvir um É desses sem te achar insensata? HENRIQUETA Mas, ora minha irmã, um casamento é só um casamento Por que esse teu ódio ao casamento, esse furor? É um ato de amor. ARMANDA Um horror! 11 HENRIQUETA Como? ARMANDA Eu disse horror! Você não sente um arrepio de horror ao pronunciar essa palavra repugnante? HENRIQUETA Arrepio, sim, mas não de horror. De espectante. ARMANDA A mim a palavra casamento só me traz visões imundas, submissões inúteis, contato repelente – não consigo entender você contente. HENRIQUETA Pra mim a palavra lembra apenas marido, casa, filhos: existe nisso algo de assustar? ARMANDA Mas uma mulher precisa se realizar. HENRIQUETA E tem realização maior, pra alguém da minha idade, do que amar e ser amada, poder casar com o homem que deseja e construir com ele uma vida de compreensão e de felicidade? ARMANDA Meu Deus, que aspiração mesquinha, que pobreza! 12 Uma vida menor, insignificante, sem beleza: teu sonho é mudar fraldas, idolatrar um macho e lhe servir de capacho. Um lar só pode satisfazer às pessoas grosseiras, à gentalha vulgar. Põe teus sentimentos em objetivos mais amplos, em prazeres mais nobres. Despreza carinhos tolos, orgasmos da matéria, e pensa em coisa séria. Exemplo não falta – aí está mamãe a quem todos chamam sábia e devotam admiração. Não seguir seu exemplo é degeneração. Mas não; prefere ser escrava de um homem, toda riqueza interior a ele confia, quando, como eu, devia se casar com a filosofia. A filosofia nos eleva acima da fraqueza humana e entrega à razão o comando supremo, submetendo às suas leis a inclinação passional que faz de cada um de nós um nojento animal. Aqui (aponta a cabeça) é que brilham as chamas da virtude, aqui é que estão os sentimentos nobres pertos dos quais teus desejos normais são horrivelmente pobres. HENRIQUETA O céu, querida irmã, que, como você sabe, é Todopoderoso não faz o bolo humano por igual gostoso. Cada ser, cada espírito, é uma fatia que nem sempre vem com a calda da filosofia. 13 Se teu espírito se inclina, melhor, se eleva, às alturas rarefeitas das especulações metaintelectuais, o meu, coitado, só está à vontade nas coisas triviais. É melhor porém não discutir as intenções celestes, eu sinto: é melhor cada uma de nós seguir seu próprio instinto. Você, cheia de inteligência e energia, fica morando no cume da filosofia: eu, que, sem tristeza, reconheço me faltar o talento, ficarei morando aqui, bem baixo, no chão do casamento. Embora propondo realizações contrárias, a minha atitude, quero esclarecer, é bem conciliadora, pois estaremos ambas imitando nossa progenitora. Você, o espírito científico, que não vacila nem erra; eu, o lado sensual, sensorial, sentimental, mais fraco e terra-a-terra. Você, a luz cultural, toda preocupação séria: eu, a simples leviandade da matéria. ARMANDA É o lado melhor que a gente deve imitar numa pessoa, nunca a maneira como ela cospe, tosse ou se assoa. HENRIQUETA Mas esse lado existe e é fundamental. Se a mamãezinha não tivesse cedido ao lado material do grosseiro marido, acho que minha irmãzinha nem teria nascido. Ninguém vem à luz do dia 14 por conceitos de filosofia. Olha, falando grosseiramente apesar de ser mulher: me atraem certas baixezas – não temo até certas durezas. Se você acha que fora do espírito tudo o mais é imundo, acaba suprimindo algum pequeno sábio que queira vir ao mundo. ARMANDA Discutir com você é tempo perdido. Ninguém tira de tua cabeça a idéia sinistra de um marido. Mas pelo menos me diz quem você está cercando – não vai me responder que pretende Cristóvão. HENRIQUETA E por que razão não pode ser Cristóvão? Por acaso é aleijado? Tem cabeça grande, pé chato, é mal-educado? ARMANDA Não: é bonito, elegante, muito bem-educado. Mas só uma mulher à toa quereria o que já é de uma outra pessoa. Acho que ninguém ignora que Cristóvão suspira por mim não é de agora. HENRIQUETA Sei, Armanda. Mas suspiros de amor são coisas levia- 15 nas e você não vai descer a baixezas humanas. Você renunciou ao casamento para sempre no dia em que se apaixonou pela filosofia. Confesse, se Cristóvão não te interessa, que te interessa então que eu me interesse? ARMANDA O domínio que a razão tem sobre o nosso desejo não nos faz insensíveis à lisonja e ao cortejo. Não quero pra marido o teu belo senhor mas acho-o indispensável como meu seguidor. HENRIQUETA Jamais impedi que ele dedicasse suas adorações a teu talento, teu espírito, tuas mil perfeições. Confessar, meus limites não me faz infeliz: só consegui Cristóvão porque você não o quis. ARMANDA Mas você não acha, irmã, muito arriscado aceitar um amante assim despeitado? Será que um sentimento novo o amor antigo corta? A chama que ardia por mim estará completamente morta? HENRIQUETA Ele me disse, Armanda: é por mim que ele delira. 16