PAISAGENS DO CERRADO: ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE VEREDA Idelvone Mendes Ferreira (Professor Doutor do Curso de Geografia da Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão, Pesquisador do NEPSA, Caixa Postal 056, 75701-970, Catalão, GO, e-mail: [email protected]) Termos para indexação: Cerrado, Aspectos conceituais, Vereda. Introdução Este texto propõe apresentar os conceitos que possam configurar os aspectos percebidos das paisagens de Vereda, dando ênfase às áreas de Veredas que ocorrem na região do Sudeste do Estado de Goiás. Para falar de Vereda deve-se considerar, também, sua importância fitofisionômica e sua inserção na dinâmica das paisagens do Cerrado do Brasil Central. Dentre as diferentes fitofisionomias que compõem a paisagem do Cerrado, a Vereda constitui importante subsistema representativo dessa paisagem única do Brasil, possuindo, além do significado ecológico, um papel sócio-econômico e estético-paisagístico que lhe confere importância regional. O ambiente de Vereda destaca-se quanto ao aspecto de constituírem refúgios fauno-florísticos, onde várias espécies de seres vivos, principalmente da fauna e da flora, são encontradas e dependem desse ambiente para sua sobrevivência. Além disso, constituem ambientes de nascedouros das fontes hídricas do Planalto Central Brasileiro, que alimentam os cursos d’água que formam a rede hídrica local e regional, configurando-se como o “berço das águas” do Cerrado e do Brasil. Material e métodos Nesta etapa, empregou-se a técnica de leitura e compilação, fazendo um arquivo/banco de dados armazenados em arquivos de computação, para consultas constantes. Num segundo momento, foi feito a interpretação dos dados e informações obtidos, os quais, também foram armazenados em arquivos, para suporte às revisões e pesquisas bibliográficas. Parte-se do princípio que a leitura de qualquer temática deve ser feita mediante uma reflexão radical - buscar a origem do problema; crítica - colocar o objeto do conhecimento em um ponto de crise e total inserir o objeto da nossa reflexão no contexto do qual é conteúdo. Dessa forma, utilizou-se os seguintes recursos: a compilação, a correlação, a semântica e o normativo. 1 A pesquisa empírica foi realizada na região Sudeste do Estado de Goiás, no período de 2002 a 2007, área caracterizada pela existência de extensos chapadões recobertos por solos bem estruturados, onde pôde-se perceber a existência de modelos típicos de Veredas, através de entrevistas com os moradores visando a percepção dos mesmos quanto ao uso e conceito de Vereda e a importância desse ambiente em suas vidas. Resultados e Discussões Tecnicamente, a Vereda se constitui num subsistema típico do Cerrado Brasileiro. Individualizam-se por possuírem solos hidromórficos, como brejos estacionais e/ou permanentes, quase sempre com a presença de buritizais (Mauritia vinifera e/ou M. flexuosa) e floresta estacional arbóreo-arbustiva e fauna variada, configuradas em terrenos depressionários dos chapadões e áreas periféricas. Uma das primeiras descrições de Vereda foi feita por Martius e Spix (1828, p. 109), em sua viagem pelo Brasil (1817-1820), retratada em “Viagem pelo Brasil”, como sendo “[...] as regiões situadas mais alto, mais secas, eram revestidas de matagal cerrado, em parte sem folhas, e as vargens ostentavam um tapête de finas gramíneas, todas em flôr, por entre as quais surgiam grupos espalhados de palmeiras e moitas viçosas.” Essa descrição demonstra um conhecimento das caracterísitcas físicas do ambiente do Cerrado e seus subsistemas, incluindo ai uma descrição de Vereda, decorrente de pesquisas que demonstram uma percepção natural das paisagens de então, porém caracterizando o período de seca das paisagens do Cerrado. O escritor regionalista Guimarães Rosa, (1986), em sua obra Grande Sertão: Veredas, (publicada no início dos anos 1950), faz uma descrição perceptiva do ambiente de Vereda: [...] Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, sucuri geme. Cada sucuriú do grosso: voa corpo no veado e se enrosca nele, abofa – trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos atrás de touceiras de buritirama. Mas o sassafrás dá mato, guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita, uma, duas, três vezes, rouco roncado. Jacaré choca – olhalhão, crespido do lamal, feio mirado na gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas não pousa, por causa de fome de jacaré e de piranha serrafina. Ou outra – lagoa que nem abre o olho, de tanto junco. Daí longe em longe, os brejos vão virando rios. Buritizal vem com eles, buriti se segue, segue. (Rosa, 1986, p. 29-30) 2 Esta definição demonstra uma percepção de quem realmente vivenciava o ambiente de Vereda. Através de sua leitura, consegue-se visualizar as características e os componentes que integram as mesmas. Mesmo quem não conhece o ambiente real de uma Vereda, consegue imaginar as características que o compõem pela riqueza dos detalhes na descrição do autor. Pereira (1956, p. 406) descreve os buritizais como sendo ora mata pluvial marginal interior, ora como capão característico das grandes baixadas inundáveis, principalmente dentro da área territorial planáltica “[...] cuja vegetação da mata paludosa que nele esponta freqüentemente na forma de buritizais – depois de uma chapada extensa e seca, nos baciões de solo argiloso, negro e compressível”. Pela descrição do autor, pode-se afirmar que Vereda é sinônimo de buritizal, e que os ambientes formadores da mesma são característicos e estão subordinados às condições de litologia, relevo, solo, clima e tempo para se que forme. Segundo Silveira Bueno (1974, p. 4227), no Grande Dicionário Etmológico-Prosódico da Língua Portuguesa, onde define Vereda como “Caminho, estrada, atalho, azinhaga, picada senda. É um feminino sacado do masculino veredus, latim tardio, significando cavalo de posta, isto é, que servia aos mensageiros para levar as mensagens, os avisos, o correio como hoje se diria.” Considerando essa definição, o termo Vereda significa caminho estreito por onde correm as águas. Terminologia bem apropriada para configurar a paisagem de Vereda das áreas de chapadões do Brasil Central, onde correm os cursos d’água formadores dos ambientes de Vereda. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na coleção Geografia do Brasil – Região Centro-Oeste (1977, p. 72), faz uma descrição do Cerrado, incluindo, superficialmente, a Vereda como ambiente “onde se pode considerar que esteja o core desse domínio vegetacional, cuja paisagem também se compõe de florestas-galerias a sublinharem os cursos sinuosos dos rios, e se completa com ilhas-de-mato dos capões e as aglomerações de buritis, ambas de forma isolada e circunscrita a pontos de lençol d’água aflorante”. Já o Projeto RADAMBRASIL (1981), faz um estudo fisionômico-ecológico da vegetação da região do Cerrado, considerando como sendo áreas de Tensão Ecológica, definindo-as como sendo encraves em tipos característicos da vegetação, geralmente associadas às matas ciliares. Como se observa, tanto o IBGE como o RADAMBRASIL não deu a merecida atenção e importância ao subsistema de Vereda. Fazem descrições superficiais, não considerando a 3 complexidade desse ambiente, nem conseguem perceber as mesmas como sendo as principais fontes e nascedouros das águas na região do Cerrado. Por serem instituições governamentais, reforçam, com suas descrições superficiais, o desconhecimento desses ambientes e, muitas vezes, o estímulo às práticas de degradação dos mesmos. No Dicionário do Brasil Central, Bariani Ortêncio (1983, p. 454) diz que “[...] esse termo (vereda) é empregado nas regiões Centrais do Brasil para designar agrupamentos de matas cercadas de campo, com pindaíbas e buritis, em tiras pelo Cerrado.” Apesar de ser um estudioso das questões regionais, também esse autor não dá a merecida atenção ao ambiente das Veredas. Usa de seu conhecimento apenas para descrever superficialmente o ambiente que a constitui, não considerando sua inserção nos ambientes do Cerrado. Boaventura (1988), ao caracterizar Vereda na região do Noroeste Mineiro, chama a atenção para a necessidade de sua proteção em função de sua fragilidade, como descreve: “Genericamente as veredas se configuram como vales rasos, com vertentes côncavas suaves cobertas por solos arenosos e fundo planos preenchidos por solos argilosos, freqüentemente turfosos, com elevada concentração de restos vegetais em decomposição. Em toda a extensão das veredas o lençol freático aflora ou está muito próximo da superfície. As veredas são, portanto, áreas de exudação do lençol freático e, por isto mesmo, em todas as suas variações tipológicas, são nascentes muito suscetíveis de se degradarem rapidamente sob intervenção humana predatória”. Esse estudioso das Veredas tornou-se referência no Brasil. Seus estudos têm demonstrado conhecimentos acerca das reais condições desse ambiente, inclusive propôs modelos de tipos de Veredas que são utilizados como padrão para outros estudiosos e tem servido como alerta para a necessidade urgente de preservação dos mesmos. Segundo Lima (1991, p. 213), a “Vereda funciona como um filtro, regulando o fluxo de água, sedimentos e nutrientes, entre outros terrenos mais altos da bacia hidrológica e o ecossistema aquático”. Pode ainda servir de refúgio para a fauna, numa área de ocupação agrícola e pecuária muito intensa, porém, a preservação das Veredas se impõe, sobretudo, pelo fato de que o equilíbrio dos mananciais d’água depende diretamente disto. Essa regulagem determina sua contribuição para o curso d’água, cuja área saturada se expande ou contrai, dependendo das condições da umidade depositada, ou seja, das precipitações e da capacidade de retenção e escoamento do solo. 4 Para Eiten (1993), quando estuda a vegetação do Cerrado, descreve o ambiente de Vereda como sendo específicas de áreas brejosas e “são comuns ao longo os fundos de vales no Brasil Central em vez de floresta galeria, [...]. Ocorrem somente onde o chão é permanentemente brejoso”. A questão principal que se apresenta, é o fato de que as características inerentes ao subsistema das Veredas não são levadas em consideração para seu enquadramento na legislação pertinente e a conseqüente fiscalização ambiental. Isso decorre da pouca capacidade perceptiva dos estudiosos desses ambientes, e de sua importância enquanto componente da paisagem do Cerrado. Considerações Como se pode perceber, a grande maioria das descrições ou conceituações auferidas às Veredas é desprovida de significância perceptivas, uma vez que estas definições são feitas de fora, sem que o observador participe ou vivencie a paisagem. Geralmente estas definições são feitas considerando uma documentação pré-existente, não sendo extraídas de observação de campo, onde o observador possa se sentir como parte integrante da mesma. Muito mais, talvez, pela necessidade de ocupar esses ambientes para deles usar seus recursos, especialmente a água. Nesse contexto, as visões/percepções de Vereda são variadas e representam as experiências de vida de cada um, reflexos de seus contextos culturais, uma vez que as pessoas somam experiências passadas, presentes e, provavelmente, futuras na construção e interpretação do meio onde vivem ou sobrevivem. Chama-nos a atenção o fato de o morador local (Cerradeiro) ter uma percepção mais evidenciada e completa do ambiente de Vereda. Para Ele, a Vereda está presente em sua vivência cotidiana, faz parte de sua vida e de suas lembranças, visto que dela depende vários aspectos de sua vida cotidiana. Para os técnicos, teoricamente com um nível de conhecimento mais elaborado, a conceituação/percepção é segundo terminologias técnicas, não conseguindo expressar a vivência cotidiana do ambiente, obtida sem a preocupação da perpetuação da paisagem em sua vivência, decorrente dos mesmos não mais estarem convivendo, na maioria das vezes, diariamente com o ambiente de Veredas de forma direta. Aparentemente, quando uma paisagem vivenciada é alterada, não se perde apenas um lugar, mas 5 uma parte ou um todo das lembranças, afetando a continuidade da vida do indivíduo, o que se pode chamar de desconstrução de uma paisagem vivenciada, de um especo construído. Tipificar as conseqüências das interferências do homem no ambiente das Veredas, ainda é um caminho estreito, uma vez que o espaço temporal é curto, considerando que a intervenção, de fato, começou a ocorrer no final da década de 1960 com a implantação da vias rodoviárias estruturantes, cabendo, assim, estudos mais aprofundados sobre o assunto. As transformações que vêm ocorrendo na sociedade moderna decorrem das modificações no espaço produzido pelo sistema econômico dominante. Carlos (1996, p. 105-106), afirma que o processo de reprodução envolve a produção da vida material em seu sentido amplo, em cada momento histórico surgem novas perspectivas para sua realização. Afirma ainda que “[...] a unificação das trocas não é um fenômeno meramente econômico ou mesmo político, posto que o capitalismo se modifica mudando o mundo, reproduzindo constantemente novos valores, uma cultura, comportamentos, desejos, etc., a partir de uma rede sempre mais complexa de trocas, estabelecendo a predominância do espaço sobre o tempo”. Isto nos mostra o quanto são desiguais e contraditório esse processo de intervenção no espaço geográfico. O espaço tem uma monumentalidade que pode ser entendida como elemento revelador da história de um determinado lugar, produzindo, como conseqüência, “novos” conceitos. As Veredas presentes na região do Cerrado são subsistemas jovens - Holocênicas, ainda em processo de evolução, portanto, qualquer tipo de intervenção é altamente prejudicial a esse processo evolutivo, consequentemente novos conceito se estruturarão. O Buriti (Mauritia vinifera), espécie de palmácea presente nas Veredas, deve ser considerado como seu símbolo maior, pela sua pujança e aspecto estético-paisagístico, é extremamente sensível, não suporta as transformações inseridas no ambiente decorrentes das práticas antrópicas, devendo ser entendido enquanto componente ecossistêmica em equilíbrio. Nesse contexto perceptivo, Vereda, então, são áreas brejosas que ocorrem na região do Cerrado em sintonia com o caminho das águas, em cuja composição fitopaisagística esteja, sempre, a presença do buriti (Ferreira, 2003). Outro aspecto é que esse sistema configura-se como o berço das águas do Cerrado, consequentemente do Brasil, visto que as quatro maiores bacias hidrográficas brasileiras (Amazônica, Platina, Araguiaia-Tocantins e Sanfranciscana) têm suas nascentes nessa região. 6 Portanto, para nós, Vereda significa a capacidade do individuo perceber o caminho necessário à sobrevivência dos ambientes do Cerrado. A proteção dos mananciais e nascentes é de fundamental importância para a manutenção da qualidade e quantidade de um curso d’água, visto que à preservação dos subsistemas nas nascentes dos cursos d’água, evitando o desmatamento ou outras intervenções degradantes, reflete diretamente na sobrevivência das Veredas e na sua conceituação, ainda muito pouco estudadas. Referências BOAVENTURA, R. S. Preservação das Veredas – síntese. In: ENCONTRO LATINO AMERICANO RELAÇÃO SER HUMANO AMBIENTE. Anais... Belo Horizonte: FUMEC. 1988. CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. 150 p. EITEN, G. Classificação da vegetação do Brasil. Brasília: CNPq, 1983. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Geografia do Brasil – Região Centro-Oeste. Rio de Janeiro: IBGE, 1977. FERREIRA. I. M. O afogar das Veredas: uma análise comparativa espacial e temporal das Veredas do Chapadão de Catalão (GO). 2003. 242 f. 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