Mídias segmentadas e masculinidades no rock nacional da década de noventa1 LAGE, Rafael2 Universidade Federal Fluminense / Niterói - RJ Resumo: O artigo investiga construções de masculinidades e negociações por autonomia no circuito médio de rock brasileiro da década de noventa. O recorte se dá em vista do ambiente híbrido de selos independentes, gravadoras mainstream e mídias segmentadas vivenciadas neste circuito (FRAGA, 2007). Durante esta década, tal ambiente midiático viabilizou a produção de temáticas masculinizadas e sexuais. Analisaremos bandas de rock formadas neste período, como Raimundos, Mamonas Assassinas e Velhas Virgens, e seu endereçamento a mídias segmentadas como a MTV. Questiona-se de que maneira a relação destes artistas com determinadas mídias especializadas proporcionou um tipo de estética masculina e sexual. Nossa hipótese é de que a relativa autonomia presente no circuito musical desta década acionou uma construção midiatizada que idealiza o controle da produção musical. Tal construção estaria relacionada ao imaginário de superioridade e auto-confiança masculina e à divisão de trabalho por gênero na sociedade capitalista (CONNELL, 1997). Palavras-chave: Anos noventa; rock brasileiro; mídias segmentadas; masculinidades Introdução O artigo investiga construções de masculinidades, negociações por autonomia e mídias segmentadas ligadas ao rock n’ roll. Trata-se, neste estudo, de observar produções onde determinados artistas idealizem algum tipo de controle sobre sua obra (REGEV, 2013; JANOTTI, 2007; DIAS, 2000); bem como pensar de que maneira – a partir de tal ideal - eles se utilizam de estéticas e tecnologias musicais para negociar construções de masculinidades em meio ao circuito médio de rock brasileiro dos anos noventa (FRAGA, 2007). Este circuito contou com uma série de mídias segmentadas, tais como o canal musical MTV ou fanzines e colunas em jornais de grande circulação, e vivenciou uma produção roqueira masculina e sexualizada. 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do IV Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016. 2 Doutorando e mestre pelo Programa da Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). E-mail: [email protected] A escolha pelo eixo temático relacionado à autonomia artística deve-se ao fato de reconhecermos um amplo espectro de vetores que podem influenciar diretamente nas construções musicais. São estéticas que envolvem disputas por autoridade e prestígio, e dependem de estratégias de consumo ligadas “à capacidade de negociação de autonomias criativas, mesmo que em tensão permanente com coerções tecnológicas, técnicas e econômicas” (JANOTTI, 2007, p. 11). Tais estratégias podem envolver uma série de componentes estéticos. Uma das maneiras de se vivenciar tais componentes é a utilização da música na construção e negociação de gênero sexual. A musicóloga Susan McClary (1991) debate sonoridades e sexualidade, mostrando que determinadas associações podem valorar construções de gênero masculino e feminino. A autora aborda criticamente uma série de estudiosos musicais, como por exemplo, Edward T. Cone, que cita o “problema” na música “Polonesa em Lá Maior” que, segundo Cone, é “repleta de cadências femininas”, mas, tocada pelo músico Chopin, “surge vigorosa, agressiva e masculina” (MCCLARY, 1991, p. 10). As associações entre música e sexualidade acontecem de diversas formas em diferentes gêneros musicais, e podem ser utilizadas para conferir signos de autenticidade. Especificamente quanto ao gênero musical rock n’ roll, uma série de construções sociais e históricas o tornaram um tipo de música muito associada ao ato sexual. Paul Friedlander (2013) aborda os símbolos acionados pelo rock desde seus primórdios, baseados nas raízes do rhythm & blues, onde “o amor e os relacionamentos sexuais eram os temas mais comuns” (FRIEDLANDER, 2013, p. 35). Tal simbologia sexual do rock é abordada também por Frith & McRobbie (2005), que afirmam que este tipo de música “tem sido motivo de pânico moral desde que Elvis Presley primeiramente girou seus quadris em público” (FRITH, MCROBBIE, 2005, p. 317). O rebolado de Elvis era ousado3 e sofreu censura na mídia, como ocorrido no programa Ed Sullivan Show, que em janeiro de 1957, filmou o cantor “apenas da cintura para cima, numa tentativa de ‘proteger’ as famílias norte-americanas do apelo sexual de Elvis” (HOLZBACH, 2013, p. 109). 3 < www.youtube.com/watch?v=sGZm7EOamWk >. No Brasil, o rock é um gênero musical que desde seu início apresenta questões relacionadas a sexualidade, seja nas figuras femininas de Celly Campelo e Wanderléia; no masculinizado “tremendão” Erasmo Carlos; ou na geração do rock anos oitenta, que, de forma gradativa, relativamente livres da censura advinda da ditadura militar que vigorou nos períodos anteriores, iam experimentando canções com temáticas sexualizadas. Por exemplo: em 1986, a banda Camisa de Vênus lançava o disco “Viva”, que continha a canção “Silvia” (“todo homem que sabe o que quer / pega o pau pra bater na mulher / Ô Silvia / Piranha”)4, suscitando revolta de feministas da época que acusavam a música de machista (SACRAMENTO, 2006, p. 82). Em 1987, o Ultraje a Rigor lançava o disco “Sexo!”, com diversas canções de sucesso que utilizavam a linguagem do humor para abordar o tema (“Eu Gosto de Mulher”; “Pelado”; “Sexo”). A partir daí, o rock nacional continuaria a utilizar-se gradativamente de letras sexualizadas ou com palavrões. O próprio Ultraje a Rigor produziria uma composição (“Filha da Puta”, em 1989), para desafiar o fim da censura5 e, posteriormente, em 1991, os Titãs lançariam a canção “Clitóris”6, “cuja veiculação foi amplamente censurada pelas rádios” (DIAS, 2000, p. 105). Nos anos 90, tal produção musical sexualizada cresceria numericamente e também em ousadia, através de músicas repletas de palavrões e alusões pornográficas. Gradativamente, bandas como Raimundos, Mamonas Assassinas, Virgulóides e Funk Fuckers passariam a atingir meios de comunicação segmentados como o canal de videoclipes MTV Brasil, além de rádios e revistas especializadas. Algumas músicas destas bandas fizeram grande sucesso, apesar de suas letras polêmicas. Por exemplo: ALEXANDRE (2013) descreve a trajetória de “Selim”7, dos Raimundos, “declaração de 4 < www.youtube.com/watch?v=1apBbBsdV54 >. 5 < www.youtube.com/watch?v=NIcMCrnqp7M > Uma resenha no site Whiplash afirma que a canção foi “construída para tentar ver se a censura realmente havia sido banida”, e que a música “acabou sendo banida de diversas rádios, com medo de que a censura voltasse”. < http://goo.gl/An3ybI >. 6 < www.youtube.com/watch?v=AOK8KNigztE >. 7 < www.youtube.com/watch?v=kSI1_VOrGc8 >. “Eu queria ser o banquinho da bicicleta / Pra ficar bem no meio das pernas / e sentir o seu ânus suar / eu queria ser a calcinha daquela menina / pra ficar bem perto da vagina / e às vezes até me molhar”. amor carnal no calão mais baixo” (ALEXANDRE, 2013, p. 63). Segundo o autor, ao longo de 1994, a canção tornou-se hit “em rádios roqueiras e na MTV” (idem) e finalmente emplacou “na rede Transamérica de rádios, o que ‘puxou’ as outras FMs pop” (p. 64). Logo após, outra banda estourava nacionalmente com um hit também repleto de alusões sexuais e palavrões: em 1995, os Mamonas Assassinas emplacavam “Vira, Vira”8, que tornou-se a canção nacional mais executada do ano9. A partir destas duas bandas, surgiram uma série de artistas com propostas musicais semelhantes. ALEXANDRE (2013) relata uma crescente onda de bandas lançadas por grandes gravadoras após o estouro dos Raimundos e Mamonas Assassinas. Eram jovens apresentando composições repletas de “guitarras pesadas e letras com palavrões e referências a maconha e a masturbação” (ALEXANDRE, 2013, p. 132). Algumas destas bandas nunca chegaram a atingir o estrelato, mas adentraram todo um circuito segmentado e especializado em rock nacional. Tal circuito se constituía “numa teia bastante sólida formada por uma imprensa alternativa, pela MTV e por festivais regionais e usando as demo-tapes em fitas cassete como veículo oficial” (ALEXANDRE, 2013, p. 32). Analisaremos, neste artigo, a relação de alguns artistas deste circuito com a mídia segmentada deste período. A segmentação da mídia aqui abordada refere-se a um tipo de especialização temática. No caso específico, especializada no rock nacional produzido nos anos 90. No entanto, seu alcance é bem fluido: por vezes, tais mídias podem trabalhar com ideias de cultura alternativa e adentrar veículos de grande circulação, como o caderno “Rio Fanzine”, veiculado na época pelo jornal O Globo; ou as colunas “Indie” e “Radical”, integrantes do jornal O Estadão (ALEXANDRE, 2013, p. 42). Porém, com grande ou pequeno alcance, a característica que une as produções especializadas aqui debatidas é seu conteúdo relacionado à produção dita independente10. 8 < www.youtube.com/watch?v=ncBOr635jK8 >. “Roda, roda e vira, solta a roda e vem / me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém / roda, roda e vira, solta a roda e vem / neste raio de suruba / já me passaram a mão na bunda / e ainda não comi ninguém”. 9 < http://goo.gl/okBF2T >. 10 Música independente é um “termo vago o suficiente para abarcar artistas e grupos bastante diferentes esteticamente, unidos por uma certa posição periférica no mercado – seja como estratégia política Procuraremos, neste trabalho, entender a relação de construções de masculinidades com tal produção midiática. Nossa hipótese é de que, através deste circuito repleto de mídias segmentadas, os artistas em questão desenvolveram uma ideia de autonomia masculina, relacionada à divisão de trabalho por gênero na sociedade capitalista (CONNELL, 1997, p. 43). Iniciaremos o artigo analisando o período do surgimento de algumas destas bandas, apresentando detalhes relevantes sobre estes grupos; para em seguida, observarmos determinadas mídias segmentadas, como a MTV. Raimundos, Mamonas Assassinas e o circuito médio de rock brasileiro A indústria do século XX passou por diversas transformações estruturais ligadas a novas tecnologias de produção (TROTTA, MONTEIRO, 2008; FRAGA, 2007; VICENTE, 2002; DIAS, 2000). Os modos midiáticos e mercadológicos de produção musical sofreram “uma grande modificação a partir das novidades tecnológicas, principalmente as tecnologias digitais de gravação e reprodução e as possibilidades de distribuição trazidas pela rede” (FRAGA, 2007, p. 12). Durante a década de noventa, muitas empresas musicais precisariam adaptar estratégias mercadológicas à nova conjuntura digital que se iniciava. Com isso, o mercado fonográfico da época passaria a trabalhar em uma relação de dupla via entre pequenas e grandes empresas: enquanto as pequenas trabalhavam em novos segmentos e descobriam e testavam a viabilidade de novos artistas, a grande indústria concentraria seus esforços em artistas de renome e/ou retorno financeiro garantido, “normalmente escolhidos dentre aqueles que já provaram sua viabilidade comercial em indies” (VICENTE, 2002, p.8). A relação híbrida de cooperação entre grandes gravadoras e pequenos selos favoreceu o surgimento de um circuito médio de rock nacional independente (FRAGA, 2007). Trata-se de uma rede cultural de trabalho que viabilizava novos artistas e também recebia bandas e cantores que haviam sido dispensados por gravadoras. Desta forma, tal circuito continha grupos que lançavam discos por grandes empresas e contavam com divulgação em rádios, revistas especializadas e MTV; mas também se apresentavam em espaços alternativos, pequenas casas de shows e festivais independentes. Este circuito abrangeu desde bandas iniciantes como Chico Science & Nação Zumbi e Raimundos, consciente ou como contingência profissional” (TROTTA, MONTEIRO, 2008, p. 2). até o cantor Lobão, que criou o selo Universo Paralelo e distribuiu o CD “A Vida é Doce” nas bancas de jornais, atingindo “a marca das 100 mil cópias vendidas” (FRAGA, 2007, p. 11). Alguns selos musicais conseguiram boas respostas midiáticas e mercadológicas, levando parte do “novo rock brasileiro às rádios e, em boa parte dos casos, com boa resposta nas lojas de discos” (ALEXANDRE, 2013, p. 59). O selo Banguela foi um destes empreendimentos que atingiram repercussão positiva: através do primeiro album dos Raimundos11, vendeu 100 mil exemplares (ALEXANDRE, 2013, p. 64), rendendo disco de ouro à banda. Assim, o primeiro lançamento do grupo atingiu grande repercussão, sendo divulgado “em rádios roqueiras e na MTV” (ALEXANDRE, 2013, p. 63). O disco continha muitos palavrões, alusões sexuais e letras pornográficas, de uma forma que ainda não havia sido abordada no rock nacional12. Como exemplos, podem ser mencionadas canções como “Puteiro em João Pessoa”13; “Minha Cunhada”14 e “Carro Forte”15; além do já citado hit Selim. Com o sucesso dos Raimundos, uma enxurrada de bandas misturando rock e letras sexualizadas surgiria. O grupo de maior repercussão desta leva foi o Mamonas Assassinas, que atingiu rapidamente o estrelato logo após os Raimundos. No ano de 1995, a banda lançava seu primeiro disco16, apresentando hits como “Pelados em 11 < www.youtube.com/watch?v=Fvza_7TyHQ8 >. 12 Nas décadas anteriores, os artistas do rock nacional também se utilizavam de temáticas sexuais e masculinas. Mas, a partir dos anos 90, estas temáticas ficaram mais agressivas, com letras abertamente pornográficas. 13 < www.youtube.com/watch?v=FC5D4dCktBA >. “Ela pegou no meu pau / pôs a boca e depois ficou de quatro”. 14 < www.youtube.com/watch?v=eRk9h1cmImc >. “E quando o meu pinto se sentir um pouco frouxo / vou te botar de quatro e aí pôr no seu cu”. 15 < www.youtube.com/watch?v=aQY_kpiingM >. “Da mulher eu faço o carro forte / dos peito, faço o farol / dos pentelho, a instalação / do mijo dela eu fabrico a gasolina / do cu, faço a buzina / e do pinguelo, o freio de mão / e do meu pau eu faço a manivela / toca na buceta dela e tira o carro do sertão”. 16 < www.youtube.com/watch?v=02N3imWFFSg >. Santos” e “Robocop Gay”, além do já citado “Vira Vira”. Alexandre (2013) pontua o contexto em que a banda surgiu, afirmando que o grupo pegou a ascendente de um período que colocou o Brasil entre os seis maiores consumidores de música do mundo. E quando “Vira vira” começou a tocar no rádio, ela o fez na esteira do rock-pesado-com-palavrões dos Raimundos, da corrente da mistureba, do MPopB17 (ALEXANDRE, 2013, p. 94). Infelizmente, os Mamonas Assassinas tiveram curta duração, devido a um trágico acidente de avião18, deixando apenas o sucesso de seu primeiro disco e alguns álbuns póstumos. Porém, após o estouro dos Raimundos e Mamonas Assassinas, diversos grupos surgiram, a maioria sendo lançada por pequenos selos independentes. Eram bandas que transitavam pelo circuito médio (FRAGA, 2007) da época, enviando clipes para a MTV, tocando em festivais independentes e atingindo rádios segmentadas. Dentre estas bandas, podemos citar: Poindexter19, Velhas Virgens20, Tequila Baby21, Virgulóides22 e Funk Fuckers23. As bandas possuem sonoridades diferentes, mas singulares características em comum: ambas faziam rock pesado, bem-humorado, repleto de palavrões e alusões sexuais. Algumas destas bandas tiveram carreiras relativamente sólidas no circuito do rock independente; outras, não duraram mais de dois discos, mas tiveram clipes na MTV, músicas em rádios segmentadas e divulgação em fanzines e revistas alternativas. Os artistas se endereçavam ao circuito médio de rock nacional (FRAGA, 2007), que os permitia trabalhar ideais de autonomia e autenticidade. Parte de tais ideais era possibilitada pelas mídias segmentadas deste período. Analisaremos a seguir algumas destas mídias e tais processos de negociações por autonomia. 17 O autor usa o controverso termo “MPopB” para abarcar uma infinidade de artistas que misturavam gêneros musicais diversos no Brasil, de Mamonas Assassinas e Raimundos a Skank e Jota Quest. 18 < http://goo.gl/OgZhH4 >. 19 < www.youtube.com/watch?v=k5dNOaN9zIM >. 20 < www.youtube.com/watch?v=dJjc97ISbA4 >. 21 < www.youtube.com/watch?v=vfNn-25ivcs >. 22 < www.youtube.com/watch?v=ZvtvAF3OSzs >. 23 < www.youtube.com/watch?v=rtnfi348-Yw >. “Uma profusão de mídias especializadas”: da MTV às colunas de jornais A produção roqueira aqui analisada vivencia diversas disputas por autonomia musical. É comum vê-los em intensas negociações por possíveis liberdades criativas, citando e criticando o poder de veto de produtores, gravadoras ou meios de comunicação. Por exemplo: os Raimundos possuem relatos de tentativas de censura às letras e mudanças na sonoridade quando procuravam gravadoras: "várias delas nos procuraram querendo mexer no nosso som, censurar as letras e diminuir a intensidade”, relata o ex-vocalista Rodolfo a uma reportagem no site Wiplash24. O guitarrista da banda, Digão, afirma algo parecido sobre seu início: “Não havia espaço para uma banda que tocasse punk rock e fizesse música com palavrão. Tinha tudo para dar errado... queriam mudar o som, tirar os palavrões”25. Segundo a reportagem no Wiplash 26 ,o lançamento de um videoclipe no canal musical MTV (“Nega Jurema”27) - antes mesmo do álbum de estreia sair - foi o pontapé midiático inicial dos Raimundos, pois “o som era impróprio naquela época para tocar em certas rádios FMs”. As oportunidades criadas pela MTV foram fundamentais para o circuito independente nacional deste período. O canal televisivo funcionou como porta de entrada para muitos artistas. Em uma reportagem do Jornal do Commercio de 199828, a banda Funk Fuckers dizia que não tocavam no rádio por causa de suas letras, mas que eram aceitos na MTV: "é a única emissora que passa de tudo, cara, o clipe da gente tá rolando lá". Nesta matéria, o grupo evidencia a importância de sua autonomia musical relatando que, antes de chegar a uma grande gravadora (a BMG), lançaram duas demos, e que, como se tratava de “um produto alternativo, não precisava passar pelo crivo de ninguém” e, justamente devido a isso, “nunca aconteceu problemas com a enxurrada de palavrões que infestam as letras das canções da banda”. 24 < http://goo.gl/T77QE8 >. 25 < http://goo.gl/fzqixA >. 26 < http://goo.gl/T77QE8 >. 27 < www.youtube.com/watch?v=Nhjy5-w8poo >. 28 < http://goo.gl/9YxG0a >. Os artistas deste circuito tiveram seus clipes divulgados em programas específicos da MTV, como o “Banda Antes29”, “Demo MTV30” e “Gás Total31”. Por exemplo: o programa “MTV No Ar” apresentou o Dotô Jeka, surgido em meados de 1996, misturando música caipira com rock e letras sacanas32. A reportagem da MTV dava informações sobre a banda, com entrevista e aparições ao vivo no estúdio. Outro grupo com letras sexualizadas, só que mais pesado, era o Poindexter, que também teve espaço na programação do canal: um programa33 apresentado pelo VJ Gastão Moreira ressaltava que a banda “fez uma dedicatória ‘pras minas’... uma letra até certo ponto ofensiva...”. Este programa também disponibilizou entrevista e trechos da banda em estúdio, apresentando o clipe “Pras Mina” ao final. A grande abertura da MTV a bandas novatas deve-se ao caráter segmentado desta mídia. O canal musical surgiu nos Estados Unidos em 1981, mas só chegou ao Brasil em 1990. FRAGA (2007) explica que, ao chegar ao Brasil, a MTV “se apresenta como um meio de comunicação segmentado que tem como objetivo atingir o público jovem” (p. 9). Ariane Holzbah (2013) reitera o caráter de apelo jovem do canal. Segundo a autora, a busca da MTV por esse público se deu por iniciativa do Grupo Abril, que viabilizou a chegada do canal ao Brasil, que precisava “suprir a demanda de um canal voltado para o público jovem, o que até então era inexistente no país” (p. 153). Holzbah explica que, no início, a MTV ainda possuía pouco material nacional, e por isso, financiou a produção de videoclipes, buscou vídeos feitos pelo programa global Fantástico e “filmou vários shows para poder transformar seus trechos em videoclipes” (p. 156)34. 29 < http://arquivomtv.blogspot.com.br/2012/02/banda-antes.html >. 30 < www.youtube.com/watch?v=POPQjvWWfyM >. 31 < http://arquivomtv.blogspot.com.br/2012/02/gas-total.html >. 32 Em uma reportagem da Folha de São Paulo em 1996, a banda explica as letras de seu disco, evidenciando o caráter sexual e masculinizado do album: < http://goo.gl/J9d2UL >. 33 < www.youtube.com/watch?v=EUV7vIfWl2c >. 34 Ariane Holzbah (2013) analisa a segmentação da MTV “não como uma emissora transgressora que ‘revolucionou’ a cultura musical ou a televisão, mas sim a partir de uma continuidade marcada pelo advento dos canais especializados de televisão por assinatura... Longe de se constituir como um fator FRAGA (2007) também aborda o problema da escassez inicial de produção de videoclipes nacionais em 1990. Segundo ele, a saída foi a MTV Brasil investir em produções musicais alternativas, e que uma das formas encontradas para alcançar tal objetivo foi assumir uma “segmentação a partir de programas especializados em diversos estilos de rock, como o rock alternativo (Lado b), heavy metal (Fúria), rap (Yo!) e o hardcore (Gás total)” (p. 9). O autor explica que a alternativa segmentada da MTV permitia, nos anos 90, “a possibilidade de consolidar uma cadeia midiática específica para o rock brasileiro, ainda próxima ao mainstream35, mas de caráter segmentado” (idem). A importância da emissora para este circuito também é ressaltada por Alexandre (2013), que observa os primeiros quatro anos da MTV, quando “ainda era muito mais falada do que vista” (p. 45). Porém, como afirma o autor, sua importância e legitimidade “já era seminal: muitas pautas da Bizz, atrações de festivais e novidades nas rádios eram fruto das apostas da emissora” (p. 45). A MTV parece ter sido o maior canal de divulgação das bandas abordadas aqui. Porém, não era o único. Este período contou com uma profusão de mídias especializadas, desde sessões de críticas de demo-tapes nos fanzines até “programas televisivos que recebiam bandas novas” (ALEXANDRE, 2013, p. 43). Era um circuito de mídias que “se retroalimentava, porque os jornais falavam dos zines que falavam das revistas que tinham endereços dos zines que divulgavam as bandas” (p. 43). Alexandre dá o exemplo dos fanzines36 como canais fundamentais de divulgação deste circuito. Eram revistas ou jornais feitos à mão, por fãs ou profissionais ligados ao circuito: “alguns deles tão benfeitos, senão melhores, quanto os veículos da grande imprensa” (p. 41). Alguns destes zines foram parar em jornais de grande circulação, e mesmo assim continuaram a apresentar informações sobre o circuito do rock independente nacional: O Globo tinha o Rio Fanzine (de Tom Leão e Carlos Albuquerque, surgido, de homogeneização e pasteurização da cultura midiática, a MTV investiu em uma estratégia de distinção com tudo que havia até então na televisão e, também, na cultura musical” (p. 130). 35 Mainstream musical seria um mercado “historicamente protagonizado pelos grandes conglomerados internacionais” (TROTTA; MONTEIRO, 2008, p. 2). 36 “Fanzine” é uma contração do termo fan magazine, “revista de fã” (ALEXANDRE, 2013, p. 41). na verdade, em 1986) ocupando as gloriosas páginas centrais do Segundo Caderno dominical... o Zero Hora de Porto Alegre tinha a coluna Remix de Marcelo Ferla. Até o vetusto Estadão tinha o Radical, de Marcel Plasse, minha coluna Indie dentro do suplemento Zap!” (ALEXANDRE, 2013, p. 42 e 43). Alexandre (2013) cita também alguns programas televisivos “que recebiam bandas novas como o Matéria Prima, de Serginho Groisman, ou o seu sucessor, adequadamente batizado de Fanzine, com Zeca Camargo, ambos na TV Cultura” (p. 43). Portanto, diversos protagonistas e agentes intermediários integravam, de forma direta ou não, esta rede midiática. Era um circuito musical permeado por profissionais variados que tanto poderiam trabalhar em nichos quanto em produções mainstream. Os artistas integrantes deste circuito endereçavam suas músicas a um tipo de consumo que tanto poderia se dar através da divulgação de zines, fitas-demo, TV segmentada ou até mesmo chegar a algum grande programa de TV. Trata-se de uma produção musical formatada e direcionada à indústria da época: mesmo as canções mais recheadas de palavrões e consideradas machistas ou imorais, eram produzidas para serem consumidas em meio a este mercado. Mas, de que forma estes artistas lidaram com tal circuito midiático? De que maneira negociaram mercadologicamente construções de masculinidades? Parte da resposta a esta pergunta parece estar relacionada a um determinado ideal de autonomia das bandas deste circuito. Ao acreditarem que suas músicas chegariam a um canal de TV, de rádio, ou a uma revista que não cerceariam suas letras ou canções ruidosas, tais artistas trabalharam um ideal autônomo relacionado à masculinidade (CONNEL, 1997). Tal masculinidade, em tese, não teria medo de soar pornográfica ou misógina, pois seria apta a desafiar qualquer padrão ou dogma social. Este desafio se daria, então, em peitar gravadoras e mídias mainstream. Abordaremos a seguir alguns casos de tal relação. “Impróprios para FMs”: autonomia, autenticidade e masculinidades O rock é um gênero musical que contém uma forte carga histórica e simbólica de autonomia. Fomentado nos EUA por gravadoras independentes que lançavam discos de blues, o gênero foi criado em um circuito de produção musical com relativa autonomia. Paul Friedlander (2013) ressalta que a história do rock diz respeito ao “crescimento de pequenas gravadoras independentes e o sucesso delas em produzir músicas fora do mercado” (p. 37). O alcance de tais empreendimentos era limitado e raramente atingia um grande público, já que eles “não tinham uma rede de influência necessária com os responsáveis pelas estações de rádio para assegurar a execução” de suas gravações (p. 39). No entanto, apesar de toda dificuldade e embates mercadológicos, a relativa autonomia destas gravadoras parece ter fomentado uma simbologia de rebeldia, resistência e autenticidade relacionada a este gênero musical. Tal simbologia ainda hoje é apropriada pelos artistas do rock. Podemos ilustrar tal construção simbólica de autenticidade através de um dos grupos do circuito aqui abordado: os Velhas Virgens. A banda surgiu na cidade de São Paulo, tendo lançado seu primeiro disco em 1995, intitulado “Foi bom pra você?”37. A partir daí, eles produziram, de forma independente, uma extensa discografia38 misturando rock com letras sacanas e pornográficas. Os Velhas Virgens sempre ressaltam sua relação entre autenticidade musical e endereçamento aos meios de comunicação. Em sua autobiografia (DIAS, GOZZI, 2005), eles se descrevem como uma banda “indigesta, proscrita nas rádios comerciais, mas com um público fiel” (p. 47). Em um dado momento, assumem que foi a “fama de alucinados, bêbados e cafajestes que nunca deixou nenhuma gravadora nos contratar” (p. 78). A relação da banda com os meios de comunicação e a liberdade criativa pode ser observada em um discurso proferido por Paulão, seu vocalista. Em um show, o cantor afirma que Ser independente é difícil pra caralho... mas a gente não pode se deixar dominar pela porra do poder capitalista, dos meios de comunicação e das gravadoras... a gente tem que botar pra fuder mesmo, porque o meu pau é maior do que o deles... a gente toca rock n’ roll mesmo, é tudo fora de moda, rock n’ roll, putaria, sexo... vão se fuder vocês da imprensa que não gostam de rock n’ roll39. O discurso do vocalista denota uma associação entre a simbologia do rock n’ roll e o macho que peita todas as dificuldades e consegue o que deseja; e também, uma certa autenticidade suscitada por tais associações: o rock seria tão “fora de moda” quanto o 37 < http://goo.gl/5hnz8X >. 38 < http://goo.gl/J4NXWY >. 39 < www.youtube.com/watch?v=Hyms3RlQmxQ >. sexo e a putaria, e isso não os impediria de estar ali participando de tais práticas. A fala do cantor demonstra uma rebeldia roqueira e também uma posição de enfrentamento à indústria da música através da autenticidade do rock. Dentro deste discurso, os meios de comunicação e gravadoras surgiriam como possíveis censores, que teoricamente poderiam tolher a autonomia do grupo; e a solução seria resistir, insistir e não se deixar dominar. O discurso de autonomia artística, no entanto, é uma ideia fluida que pode até funcionar na busca por legitimação e valoração criativa; mas que pode ser bastante relativizado. Motti Regev (2013) debate a questão discursiva e valorativa do pop-rock, explicando que alguns modos de valoração musical desenvolvem idealizações sobre “arte autônoma”. Segundo ele, no caso específico do pop e do rock, isto significaria “autonomia perante interesses comerciais e demandas mercadológicas” (p. 72). O autor critica esta ideia, ressaltando que o pop-rock, surgido como parte essencial das indústrias culturais, simplesmente não pode ser “não-comercial” (IDEM). Logo, muito da autonomia levantada por bandas como Velhas Virgens, Raimundos e Funk Fuckers se insere em uma questão discursiva e valorativa; mas ainda assim, comercial. Apesar de controverso, esse discurso de autonomia e independência mercadológica parece se relacionar com um determinado “papel masculino” relegado ao homem. Connell (1997) debate a questão da superioridade e auto-confiança masculina. A autora aborda a divisão de trabalho por gênero na sociedade capitalista, afirmando que é “parte da construção social da masculinidade que sejam homens, e não mulheres, que controlem as principais corporações e as grandes fortunas privadas” (p. 37). Segundo Connell, é esta construção social masculina que leva os homens a herdar da sociedade patriarcal um dividendo “em termos de honra, prestígio e do direito de mandar” (p. 43). Desta forma, é a luta por poder, superioridade e independência que caracteriza o imaginário masculino replicado por muitas das bandas de “rock de macho”. Considerações finais A música é um grande campo de elaboração e negociação de valores afetivos e de gênero sexual. Em relação aos artistas analisados aqui, a inserção dos mesmos em um circuito segmentado e intermediário os levou a peitar a indústria musical através de ideais de autonomia masculina. Os selos independentes e outros canais especializados, como MTV, fanzines e revistas possibilitaram que sua música fosse endereçada ao público consumidor de tais mídias segmentadas. Isso permite que determinados artistas trabalhem com relativa – e fluida - autonomia artística em relação ao mercado musical. Ao sustentarem seu discurso de independência em relação à indústria, estes artistas performatizam construções sociais masculinas patriarcais. A masculinidade se relaciona diretamente à ideia do patriarca que domina a produção capitalista; é o homem que se apropria de modos mercadológicos, mas os domina e reconfigura de acordo com sua vontade. Em tese, o fato de não encontrar facilmente espaço para este tipo de produção musical não seria um problema para este macho autônomo. De acordo com seu discurso, cedo ou tarde, com insistência, ele criaria suas próprias condições de trabalho, em busca de seu suposto “direito de mandar” (CONNELL, 1997, p. 43) herdado da sociedade patriarcal. Este ideal autônomo estaria, portanto, histórica e simbolicamente ligado à construção social do papel masculino nas sociedades ocidentais contemporâneas. Tal masculinidade pode surgir em meio a uma combinação de posicionamento mercadológico, estético, histórico e ideológico construído socialmente. Bibliografia ALEXANDRE, Ricardo. Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar: 50 causos e memórias do rock brasileiro (1993-2008). 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