Administração Pública Democrática: Gestão e Controle

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COLETÂNEA 5
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Bibliotecária responsável: Sônia Bernini – CRB 9/1210
Centro Universitário Curitiba.
Administração Pública Democrática: Gestão e Controle. / Coordenação: Viviane Coêlho de
Séllos-Knoerr, Eloete Camilli Oliveira; organização: José Mário Tafuri, Sandro Mansur
Gibran. Curitiba: Centro Universitário Curitiba, 2015. – (Coleção pesquisando direito; v.5)
ISBN 978-85-87875-29-7
1. Direito. 2. Administração pública. 3. Democracia. I. SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho.
II. OLIVEIRA, Eloete Camili. III. TAFUTI, José Mário. IV. GIBRAN, Sandro Mansur.
CDD (20. ed.) – 340
Coordenadores
VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR
ELOETE CAMILLI OLIVEIRA
Organizadores
JOSÉ MARIO TAFURI
SANDRO MANSUR GIBRAN
COLETÂNEA 5
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE
AENA
2015 | Curitiba
Campus Milton Vianna Filho: Rua Chile, 1.678 - Rebouças - CEP 80220-181
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Site: www.unicuritiba.edu.br
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO
DE BENS PÚBLICOS
ARIANA KONFIDERA COELHO E PAULO HENRIQUE MARTINS DE SOUSA .................................19
SOBERANIA E BIOPOLÍTICA EM GIORGIO AGAMBEN
BENJAMIM BRUM NETO E BORTOLO VALLE ...................................................................................45
A
LICITAÇÃO
PÚBLICA
E
SUA
FINALIDADE
DE
PROMOVER
O
DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL
CAMILA BACKES E LUCIANO ELIAS REIS ........................................................................................75
LEI 11.441 DE 04 DE JANEIRO DE 2007: FORMA DE DESAFOGAR O PODER
JUDICIÁRIO ATRAVÉS DO SERVIÇO NOTARIAL
CATIANE DEOLA JACOBOSKI E ADRIANA MARTINS SILVA ..........................................................101
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL
CHRISTIANY DOMINGUES DA ROCHA E REGINA MARIA BUENO BACELLAR ............................125
DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
CLEITON HENNING DA FONSECA E ROOSEVELT ARRAES .........................................................147
DA (IM)POSSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO
TRIBUTÁRIO MEDIANTE GARANTIA EM EXECUTIVO FICAL
GUILHERME REIS GONÇALVES E THIAGO DALSENTER ..............................................................169
A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DO PODER LEGISLATIVO E O
PLEBISCITO COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO
DEMOCRÁTICO
GUSTAVO BOLETTA VIEIRA E ROOSEVELT ARRAES ...................................................................201
ADOÇÃO MONOPARENTAL: UMA ABORDAGEM DA NOVA CONCEPÇÃO
FAMILIAR DENTRO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
HELUANA APARECIDA MARIA E ADRIANA MARTINS SILVA ........................................................235
EMPRESAS PÚBLICAS ESTATAIS NO CONTEXTO DA PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
JULYA CARNEIRO LOBO E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE ...........................................................265
O PAPEL DO ESTADO FRENTE À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
KALINA MARIAH ARAUJO DE ALVARENGA E ADRIANA MARTINS SILVA ....................................291
PERFIL DA ATIVIDADE PROFISSIONAL EM ENFERMAGEM NO DIREITO
BRASILEIRO
LARISSA LIE YAMAZAKI E MARIA DA GLORIA COLUCCI ...............................................................317
AS
(IN)CONSTITUCIONALIDADES
CONTRATAÇÕES
PÚBLICAS
DO
ARGUIDAS
REGIME
NAS
DIFERENCIADO
AÇÕES
DIREITAS
DE
DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4645 E 4655
LUCAS PAULINO DA SILVA E ANA LUIZA CHALUSNHAK ..............................................................337
O ABUSO DE DIREITO NAS RELAÇÕES DE HIPOSSUFICIÊNCIA E SEU
IMPACTO NA MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO
MARCELA BATISTA FERNANDES E ALAISIS FERREIRA LOPES ..................................................365
POLUIÇÃO MARÍTIMA NOS PORTOS BRASILEIROS PELA ÁGUA DE LASTRO
RAFAEL JOPPERT CARVALHO DE SOUZA E MARIA DA GLORIA COLUCCI ...............................393
IMPOSTO
DE
RENDA
NEGATIVO:
O
FUNDAMENTO
LIBERAL
DOS
PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA
RAYZA MAICZAK CARDOSO E NELSON SOUZA NETO .................................................................413
PRINCÍPIO
DA
CAPACIDADE
CONTRIBUTIVA
COMO
CRITÉRIO
DE
DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO
ROBERT THOME NETO E MAURICIO DALRI TIMM DO VALLE ......................................................443
A AUTONOMIA PSÍQUICA DO PACIENTE IDOSO NA ELABORAÇÃO DO
TESTAMENTO VITAL NO DIREITO BRASILEIRO
VICTOR HUGO SCHMIDT E MARIA DA GLORIA COLUCCI .............................................................469
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
INTRODUÇÃO
A Coletânea “Administração Pública Democrática: Gestão e Controle” contém
artigos científicos resultantes de pesquisa conjunta de alunos e professoresorientadores do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA. Abordando temas atuais e de relevante interesse jurídico-social, os
artigos resultam de Trabalhos de Curso, apresentados e indicados para publicação,
por comissão examinadora composta por docentes da Instituição de Ensino.
Inicialmente, a função social da propriedade e a possibilidade de usucapião
de bens públicos, são abordadas por Ariana Konfidera Coelho e Paulo Henrique
Martins de Sousa, ao analisarem as situações quando estes bens estão vagos e não
destinados a um fim público, bem como se há alguma alternativa legal ao uso destes
bens pelos particulares, em especial após o advento de julgados que reconheceram
a prescrição aquisitiva em prol do particular, indo em sentido contrário ao disposto
pela Súmula 340 do STF que veda a usucapião sobre qualquer espécie de bem
público.
A soberania e biopolítica em Giorgio Agamben, é a base do estudo
desenvolvido por Benjamim Brum Neto e Bortolo Valle, ao investigar o conceito de
soberania e o de biopolítica a partir de obra de Giorgio Agamben, bem como as
articulações entretidas por eles e o alcance das análises que essa articulação
possibilita. Analisaram a relação de complementaridade que Agamben identifica em
Michel Foucault e Hannah Arendt, de modo a possibilitar um estudo conjunto dos
efeitos do poder soberano e da biopolítica. Passaram a uma investigação dos
principais conceitos agambenianos que tomam corpo a partir das considerações já
feitas, dando-se destaque às suas reformulações conceituais críticas, que servem
como um verdadeiro diagnóstico do presente, tanto da situação jurídica como
política das sociedades ocidentais. Buscam através dos estudos apresentados,
aproximar Direito e Filosofia, a fim de compreender alguns dos problemas teóricos e
práticos que a sociedade possa enfrentar.
A promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade a
ser alcançada pelas licitações está prevista no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993, é
temática apresentada por Camila Backes e Luciano Elias Reis. Enfatizam que o
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Estado deve, por meio do procedimento licitatório, atingir este fim juntamente com a
observância do princípio da isonomia entre os participantes e a seleção da proposta
mais vantajosa. Ressaltam que a sua realização é legal e não fere as finalidades da
isonomia nem da seleção da proposta mais vantajosa.
A Lei 11.441 de 04 de janeiro de 2007, visando a forma de desafogar o poder
judiciário através do serviço notarial, faz parte do estudo desenvolvido por Catiane
Deola Jacoboski e Adriana Martins Silva, para os fins de aproveitar a estrutura e
competência dos Tabelionatos de Notas. Demonstram o que vem a ser um
Tabelionato de Notas e como ele funciona, procurando fazer com que as pessoas
percebam a importância econômica e social que ronda o serviço extrajudicial, como
ele pode ajudar a desafogar o Poder Judiciário, prestando um serviço ágil, eficaz,
menos custoso, capaz de solucionar o problema econômico das partes e também
auxiliar na resolução do dilema da quantidade de processos aguardando uma
solução pelas mãos do Poder Judiciário.
Christiany Domingues da Rocha e Regina Maria Bueno Bacellar, demonstram
a importância dos recursos naturais para a existência dos seres humanos, visto que
diz respeito à garantia da vida humana em que todos dependem do meio ambiente
para sobreviver, por intermédio da educação ambiental como instrumento para a
efetividade do desenvolvimento sustentável. Destacam a preocupação com a
proteção ambiental só foi percebida com a escassez dos recursos naturais e o
agravamento da qualidade ambiental. Enfatizam que a partir da busca por este
equilíbrio que surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, que visa a
satisfação das necessidades atuais sem comprometer as necessidades das futuras
gerações. Ressaltam que o meio ambiente ecologicamente equilibrado representa
um direito fundamental do homem na Constituição da República de 1988 como
pressuposto à sadia qualidade de vida.
Através da análise do discurso da segurança no Estado Democrático de
Direito, Cleiton Henning da Fonseca e Roosevelt Arraes, delimitam o atual
paradigma estatal, pois é atribuído a ele uma diversidade de sentidos, assim
estando em uma zona de incerteza. Delimitando o conteúdo do Estado Democrático
de Direito. Apresentam os fundamentos e os reflexos do discurso da segurança,
esse discurso legitima ações que podem ser enxergadas em dois planos: o primeiro
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
é o declarado onde se legitimam ações contrarias ao Estado Democrático de Direito,
um exemplo é o Direito Penal do Inimigo, o segundo é velado onde utiliza-se da
retórica baseada na segurança para legitimar ações de Estado de Exceção em plena
vigência do Estado Democrático de Direito, em tempos de normalidade, utilizando de
poderes especiais para agir, sem o respeito a certos direitos e garantias
fundamentais previstas na Constituição.
Enfatizando os argumentos em prol da suspensão da exigibilidade do crédito
tributário por meio do oferecimento de garantias previstas no ordenamento jurídico
pátrio, Guilherme Reis Gonçalves e Thiago Dalsenter, ressaltam em especial a
fiança bancária e o seguro garantia, ambas revestidas deste poder em razão do
altíssimo grau de liquidez e certeza, assim como o ocorre com o depósito integral
em dinheiro. Apresentam renomados doutrinadores e alguns precedentes judiciais
pertinentes ao objeto em apreço – flexibilizando a aplicação do artigo 151 do Código
Tributário Nacional –, ainda impera, sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça, a
quem compete a última palavra sobre a matéria, a negativa da suspensão em foco,
ante a taxatividade do artigo 151 supra e do enunciado da Súmula nº 112/STJ.
Destacam a importância do monitoramento contínuo do Poder Judiciário frente a
estas garantias em virtude de uma eventual nova redação agraciada ao explorado
artigo, bem como da auspiciosa evolução trazida pelo novo Código de Processo Civil
(Lei nº 13.105/2015), equiparando em dinheiro ambas as garantias.
Gustavo Boletta Vieira e Roosevelt Arraes enfatizam o estudo a respeito da
crise de representatividade do poder legislativo e o plebiscito como forma de
participação popular no processo democrático, sendo que, os indicativos
encontrados foram a debilidade partidária, a corrupção partidária e carência de
credibilidade política e a falta de identificação entre representantes e representados.
Sob o contexto deste problema, analisaram a necessidade de um maior
fortalecimento da participação popular, no processo democrático, a partir das formas
de participação previstas em lei, especialmente através do plebiscito, o qual é a
forma mais direta de participação popular.
Ao analisar os parâmetros sobre a ausência de dispositivos normativos
constitutivos, nos diplomas legais, que legitimem a adoção por pessoas solteiras,
Heluana Aparecida Maria e Adriana Martins Silva, determinam seus estudos no
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
sentido de que mesmo com a paridade da adoção atribuída aos solteiros,
estabelecida pelo artigo 42, do Estatuto da Criança e do Adolescente, inexistem
regras especificas que salvaguardem os interesses particulares destes legitimados,
já que estes irão constituir a entidade familiar monoparental por adoção, entidade
esta
que
aumenta
expressivamente
diante
da
sociedade
contemporânea.
Fundamentam a respectiva análise, na necessidade de leis específicas que
determinem sua estruturação, a fim de proporcionar segurança jurídica, para que
não haja necessidade de se recorrer a leis gerais para embasar as teses de adoção
por pessoas solteiras, diante dos princípios constitucionais estabelecidos em nossa
Constituição Federal de 1988, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente,
que proporcionem direitos e garantias que viabilize todo o processo.
Demonstrando a importância dos serviços públicos no contexto da saúde e a
importância desse direito na perspectiva constitucional e infraconstitucional, Julya
Carneiro Lobo e Luiz Gustavo Andrade, apontam que não é possível desvincular
serviço público na área da saúde com os princípios que regem esse campo, a fim de
alcançar a lógica da prestação do serviço público de saúde por empresas públicas.
Através do estudo apresentado, exploram a esfera da administração indireta,
caracterizando-a até modular os aspectos da empresa pública. Como modelo de
instituição para estudo, chegou-se a EBSERH, denominada de Empresa Brasileira
de Serviços Hospitalares, e citou-se a problemática que a envolve através da
discussão da constitucionalidade dos incisos da lei que a criou pela Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4895/STF, concluindo que tais incisos da Lei 12.550/2011 de
fato incidem em inconstitucionalidade por vícios materiais.
A intervenção estatal frente à situação de violência doméstica contra a criança
e o adolescente, é a temática de estudos desenvolvidos por Kalina Mariah Araujo de
Alvarenga e Adriana Martins Silva, ao apresentarem investigação teórica e
experiência prática. Traçam um paralelo entre a origem da família e da evolução dos
direitos fundamentais da criança e do adolescente com a violação de tais direitos,
relacionando-a com a violência e, por fim, as formas de resolução de tais conflitos,
considerando que não se trata de uma situação rara na realidade atual brasileira.
Larissa Lie Yamazaki e Maria da Glória Colucci analisam o perfil da atividade
profissional em enfermagem no direito brasileiro, é objeto de estudos apresentados,
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
tendo em vista a própria cultura da sociedade brasileira, que vê tal profissão como
atividade submissa à Medicina, praticada por pessoas de baixa classe econômica e
exercida praticamente por figuras femininas, tendo em vista que, tais pensamentos
refletem diretamente na proteção jurídica que a profissão recebe, pois, uma
profissão pouco valorizada é ignorada pelos legisladores. Desse modo, a lei vigente
- Lei nº 7.498 de 1986, regulamentada pelo Decreto nº 94.406 de 1987 -, apesar de
representar à época um avanço para a Enfermagem, é abrangente e incompleta. Por
isso, é preciso reformular a base legal da atividade, dando-lhe a devida cautela, sem
esquecer que a figura do enfermeiro é reflexo de dois importantes direitos
fundamentais previstos constitucionalmente no Brasil: direito à liberdade profissional
e direito social à saúde.
Abordando os aspectos (in)constitucionais do regime diferenciado de
contratações públicas, instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, Lucas
Paulino da Silva e Ana Luiza Chalusnhak, analisam circunstancias que envolveram
infraestrutura da Copa das Confederações de Futebol 2013, Copa do Mundo de
Futebol 2014, Jogos Olímpicos e paraolímpicos de 2016. Demonstraram como
funciona
o
controle
de
constitucionalidade
através
de
ação
direta
de
inconstitucionalidade no Brasil, as principais inovações e princípios norteadores do
RDC, e as principais argüições e defesa relatadas nas Adins 4645 e 4655, ajuizadas
no Supremo Tribunal Federal, juntamente com posições divergentes da doutrina.
Marcela Batista Fernandes e Alaisis Lopes Ferreira apontam a importância do
tema envolvendo o abuso de direito nas relações de hipossuficiência e seu impacto
na morosidade do poder judiciário, tendo em vista, o aumento progressivo do
número
de
demandas
judiciais,
principalmente
aquelas
ajuizadas
por
hipossuficientes, o trabalhador e o consumidor por excelência, e como a forma de
interpretação da legislação vigente dá margem ao ajuizamento de demandas
indevidas, para tanto, analisa-se as normas protetivas do Direito do Consumidor e
do Direito Trabalhista. Enfatizam que, por ser atual, não há doutrinas publicadas que
analisem especificamente a discussão proposta, razão pela qual a principal fonte de
pesquisa é a jurisprudência.
As modificações das relações de emprego e
consumeristas, atualmente, fundamentam ações indevidas, aquelas em que a
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
condição de hipossuficiência tem sido invocada por quem não o é e utilizada para
obtenção de proveito econômico ilícito.
Enfatizando estudo acerca dos riscos ao meio ambiente marítimo, em
especial a invasão de espécies exóticas, por conta do uso da água de lastro sem o
devido gerenciamento, bem como as principais medidas adotadas pela comunidade
internacional em prol do combate a esta prática, que já é considerado uma das
quatro maiores ameaças aos oceanos, Rafael Joppert Carvalho de Souza e Maria
da Glória Colucci, elucidam a importância do tema em questão. Apresentam o
conceito de poluição e demonstram a necessidade de tutela do meio ambiente
através do Direito Ambiental e seus princípios, diante de um estudo acerca dos
riscos da bionvasão, por intermédio da Convenção da Água de Lastro de 2004 e a
NORMAM 20/DPC.
Visando elucidar o imposto de renda negativo, tendo como fundamento liberal
dos programas de transferência de renda, Rayza Maiczak Cardoso e Nelson Souza
Neto, apresentam como um programa de transferência de renda apontado por
vertentes políticas liberais. Destacam, portanto, a possível convergência entre o
estado mínimo e a realização de uma distribuição de renda. Expõe os aspectos
relacionados à justiça e a necessidade dos valores éticos e morais na realização de
regras e princípios de direito uma vez que estes elementos fundamentam legalmente
a existência de programas de transferência de renda na sociedade. Destacam o
sistema
tributário
redistribuição,
nos princípios
apontando
a
da
função
igualdade,
destes
nas
capacidade
contributiva
intervenções
estatais
e
de
transferência, visto que a proposta do Imposto de Renda Negativo, como seu próprio
nome aduz, se determina pelo conceito de capacidade contributiva inexistente.
Analisando a essência do princípio da capacidade contributiva na ordem
tributária, paralelo, sempre, ao preceito maior da igualdade, Robert Thomé Neto e
Maurício Dalri Timm do Valle, enfatizam uma perspectiva doutrinária crítica, a
relação direita entre igualdade e capacidade contributiva, bem como seus limites,
suas espécies e aplicabilidade. A capacidade contributiva como subprincípio, está,
indiscutivelmente, na essência do princípio maior da igualdade, ao passo que é uma
efetiva ferramenta de materialização da igualdade no universo tributário. Não
obstante a isso, apresentam a necessária relação existente entre capacidade
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
contributiva e os princípios do ‘mínimo existencial’ e da ‘proibição dos efeitos de
confisco’, na medida em que estes últimos exercem papel limitador não só à
capacidade contributiva, mas, também, ao Estado e ao Legislador.
Victor Hugo Schmidt e Maria da Glória Colucci, elucidam a temática pertinente
a autonomia do paciente na elaboração do testamento vital à luz do estatuto do
idoso, analisando o perfil etário da população brasileira, destacando-se o aumento
da sua expectativa média de vida, segundo dados do IBGE, se relaciona à condição
do paciente idoso e suas vulnerabilidades. Apontam aspectos importantes da Lei nº
10.741 (Estatuto do Idoso), descrevendo, de forma sucinta, sua estrutura, divisões e
subdivisões, ressaltando-se, em seguida, os direitos relacionados à liberdade e à
autonomia da pessoa idosa. Por fim, descrevem o conceito de Testamento Vital e
sua atual situação no País, bem como, as ações do profissional de saúde diante da
autonomia do paciente idoso quando a vontade deste é declarada por intermédio do
citado instrumento e sua relação com o Direito e com a Moral.
A pesquisa realizada no âmbito do desenvolvimento do Trabalho de Curso
pelos alunos concluintes do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA, não pode ter os seus resultados restritos à banca
examinadora, devem ser compartilhados e quiçá estimular outros profissionais a
prosseguir na pesquisa, buscando o aprofundamento das conclusões aqui expostas.
Desejamos que a leitura dos temas abordados, envolvendo a “Administração
Pública Democrática: Gestão e Controle”, reforcem os ideais de cidadania e justiça,
indispensáveis para a sociedade atual.
ELOETE CAMILLI OLIVEIRA
Doutora pela UFPR. Mestre pela PUCPR. Professora adjunta nível III da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE UNICURITIBA, professor titular – UNICURITIBA, Supervisora do setor de Registro
dos Trabalhos de Conclusão de Curso do UNICURITIBA.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
JOSÉ MARIO TAFURI
Mestre e Especialista pela PUCPR. Professor Adjunto do UNICURITIBA,
Representante dos Coordenadores no CONSEPE- UNICURITIBA, Coordenador do
Curso de Direito – UNICURITIBA.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO
DE BENS PÚBLICOS
THE SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY AND THE POSSIBILITY TO THE
CONCESSION OF ADVERSE POSSESSION ON PUBLIC ASSETS
Ariana Konfidera Coelho1
Paulo Henrique Martins de Sousa2
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Usucapião. Aspectos Gerais 2.1 A questão de terras no Brasil 2.2 A
função social da propriedade à luz da Constituição Federal de 1988 3 Bens Públicos 3.1
Classificação dos bens públicos 3.2 Caraterísticas dos bens públicos 3.3 Uso dos bens públicos pelos
particulares 3.4 Bens Públicos em espécie- terras devolutas 4 Considerações Finais. Referências
RESUMO
Objetiva-se analisar a possibilidade de usucapião dos bens denominados públicos, quando estes
bens estão vagos e não destinados a um fim público, bem como se há alguma alternativa legal ao
uso destes bens pelos particulares, em especial após o advento de julgados que reconheceram a
prescrição aquisitiva em prol do particular, indo em sentido contrário ao disposto pela Súmula 340 do
STF que veda a usucapião sobre qualquer espécie de bem público. A partir de um breve histórico
sobre a questão de distribuição de terras no Brasil à luz da função social, refletir sobre a real
necessidade da Administração Pública se resguardar de alguns bens, ao mesmo tempo em que
inúmeras famílias não possuem acesso à propriedade.
Palavras-chave: usucapião, função social da propriedade, bens públicos
ABSTRACT
The objective is to examine the possibility of adverse possession of public assets when those assets
are vague and not intended for a public purpose, and if there is any legal alternative to the use of
1
Acadêmica de Direito da Unicuritiba. [email protected]
Professor de Direito na Graduação e na Pós-Graduação; Doutorado em andamento em Direito das
Relações Sociais (UFPR); Mestre em Direito das Relações Sociais(UFPR); Parecerista ad hoc de
revistas jurídicas científicas, avaliador e pesquisador. [email protected]
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
these assets by individuals, in particular after the advent of judgments that recognized the acquisitive
prescription in favor of private, going in the opposite direction to the provisions by Precedent 340 of
the Supreme Court that prohibits the prescription of any kind of public assets. From a brief history of
the land distribution issue in Brazil in the light of the social function, reflect on the real needs of public
administration to guard against some assets at the same time that many families do not have access
to property.
Keywords: adverse possession, social function of property, public assets
1 INTRODUÇÃO
A usucapião é uma das socialmente mais importantes formas de aquisição de
bens imóveis na atualidade. Com ela o legislador permite que uma situação de fato,
que se alongou por determinado espaço temporal, se transforme em situação de
direito – por meio da declaração judicial capaz de confirmar o domínio da coisa. Para
tanto, deve-se exercer a posse de forma “contínua, inconteste, mansa e pacífica,
com a intenção de ter a coisa como sua” (PENTEADO, 2008, p. 267), pelo espaço
de tempo determinado em lei.
Do estudo acerca do tema, permeando entre o direito civil e o administrativo,
verifica-se que parte da doutrina entende que os bens públicos não são passíveis de
sofrer usucapião, tese confirmada inclusive pela Súmula 3403 do Supremo Tribunal
Federal. Entretanto, com o advento de recentes julgados que versam sobre essa
temática, em especial a Apelação 1.0194.10.011238-3/0014 julgada pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, questiona-se acerca de quais são os motivos que justificam
“Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem
ser adquiridos por usucapião.” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula da Jurisprudência
Predominante do Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Jurisprudência. Brasília, DF, 13 dez.
1963. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=340.NUME.%20NAO%20S.FL
SV.&base=baseSumulas>. Acesso em 20 mai. 2015.
4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. (5. Câmara Civil). Ação reivindicatória.
Detenção. Inocorrência. Posse com "animus domini". Comprovação. Requisitos demonstrados.
Prescrição aquisitiva. Evidência. Possibilidade. Evidência. Precedentes. Negar provimento. Apelação
Cívil nº 1.0194.10.011238-3/001 – MG. Apelante: Departamento de Estradas Rodagem Estado Minas
Gerais – DER/MG. Apelado: Claudio Aparecido Gonçalves Tito e outros. Relator: Desembargador
Barros Levenhagen. Coronel Fabriciano, 15 de maio de 2014. Disponível em:
<http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=88AAE22
7802B5D842B1B029DD63AEB03.juri_node2?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10
&numeroUnico=1.0194.10.0112383%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em 21 mar.
2015.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
tais soluções adotadas pelo Poder Judiciário no que tange ao reconhecimento da
usucapião em terras da Administração Pública que estão abandonadas.
Assim, tem-se por objetivo analisar a possibilidade do particular usucapir os
bens denominados públicos, pertencentes aos entes da Administração Pública,
quando estes bens estão vagos e descumprindo a função social da propriedadegarantia fundamental, prevista no artigo 5º inciso XXIII da Constituição Federal, que
surge como um limitador à atuação do particular, em favor do interesse coletivo.
Ademais, verificar a real necessidade da Administração Pública se utilizar da
tutela protetiva legal no que se refere a propriedade, e se isto não fere direitos
individuais. O que vem contribuir para um estudo crítico acerca do impacto da
aplicação desse instituto, no sentido de aprofundar a forma como as instituições
jurídicas pátrias devem posicionar-se a respeito quanto aos casos de semelhante
conflito.
2 USUCAPIÃO. ASPECTOS GERAIS
A usucapião é modo originário de aquisição de propriedade que favorece o
possuidor em detrimento do proprietário, pois sacrifica “este com a perda de um
direito que não está obrigado a exercer.” (GOMES, 2008, p.187). Desta forma, a lei
legitima aquele que exerce alguns dos poderes de domínio em desfavor do
proprietário que deixou de exercê-los.
Há quem veja na usucapião uma punição dada pelo Estado ao proprietário
ante sua inércia em relação à propriedade, denominada corrente subjetiva. (WALD,
2009, p. 193) A outra corrente, denominada objetiva, fundamenta a usucapião na
segurança e na utilidade social, no sentido de dar estabilidade à propriedade, bem
como proteção às situações dominiais. A usucapião é, portanto, um meio de sanar
os vícios, defeitos e incertezas em torno da propriedade. (GOMES, 2008, p. 187188)
No direito brasileiro há mais de uma modalidade de usucapião, que se
diferenciam basicamente pela questão temporal exigida por lei para a caracterização
da propriedade. Dentre as diferentes modalidades, há características comuns, que
são a posse qualificada, a coisa e o tempo.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em relação à posse, tendo em vista que não é pacífico no ordenamento
brasileiro qual a teoria adotada, se a Teoria Subjetiva de Friedrich Karl Von Savigny
ou a Teoria Objetiva de Rudolf Von Ihering, é importante fazer uma breve
diferenciação entre ambas. Para Savigny a essência da posse está na intenção do
possuidor de ter aquela coisa como sua, sendo necessário além da vontade
(animus) o domini. Para Ihering, o importante é como a sociedade vê o possuidor em
relação à coisa, sendo irrelevante a vontade daquele que possui, estando animus e
domini contido um em outro. Apesar disto, nos casos concretos é conferida a
proteção possessória às situações com e sem o animus domini. (FACHIN, 1988, p.
31)
Tais teorias contribuem para que seja verificada, nos casos concretos
analisados por meio dos julgados da Apelação Cível 7493367 5 do Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná e Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001 do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, quais os direcionamentos utilizados pelos julgadores ao
justificar a posse para a usucapião. Neste, o relator justifica seu voto, dentre outros
argumentos, pela diferenciação entre posse e detenção baseada na Teoria
Subjetiva, quando relata que a posse, sem o animus de tê-la como sua, constitui-se
simples detenção, o que não é o caso nos autos, tal como demonstrado nas provas
apresentadas.
Também no julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, analisa-se
os elementos da posse para a concessão da usucapião, utilizando-se a teoria de
Savigny para a verificação da qualificação da posse para a ocorrência da prescrição
aquisitiva. In verbis: “posse ininterrupta do referido imóvel, [...] com intenção de dona
e pelo lapso temporal exigido”. Assim, verifica-se que nestes dois casos, os
julgadores adotaram a teoria de Savigny no que tange ao conceito de posse.
5
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (17. Câmara Cível). Ação de usucapião especial
urbano. Pedido julgado improcedente. Imóvel pertencente à autarquia municipal. Sociedade de
economia mista. Bem passível de aquisição por usucapião. Imóveis ocupados por particulares há
aproximadamente três décadas, sem oposição. Posse exercida de forma mansa, pacífica, ininterrupta
e com animus domini. Transferência do imóvel ao município como forma de redução do capital que
não tem o condão de obstar pedido de reconhecimento de domínio. Preenchimento dos requisitos
necessários à aquisição da propriedade. Recurso provido. Apelação Cívil nº 7493367 – PR (07493367). Apelante: Marilene Gimenes. Apelados: URBS – Urbanização de Curitiba S/A e Município de
Curitiba. Relator: Lauri Caetano da Silva. Curitiba, 01 de junho de 2011. Disponível em:
<http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19761575/apelacao-civel-ac-7493367-pr-0749336-7/inteiroteor-104554056>. Acesso em 20 mar. 2015.
22
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A posse necessária para a usucapião é aquela qualificada, isto é “contínua,
inconteste, mansa e pacífica, e com intenção de ter a coisa como sua.”
(PENTEADO, 2008, p. 267) Contínua significa que o possuidor deve permanecer por
um lapso temporal ininterrupto no exercício do domínio. Inconteste, que a posse não
poderá ser objeto de questionamentos judiciais ou extrajudiciais, isto é, não deve ser
de interesse de outra pessoa ou do Estado, Município, União, etc. A posse também
deverá ser justa, socialmente visível, não violenta, clandestina nem precária. Posse
violenta é aquela que se obtém com o uso da força, seja esta força dirigida a pessoa
do possuidor, sua família ou a partir do bem. Posse clandestina é a posse que não é
pública, a posse onde se esconde a figura do possuidor. A posse precária é aquela
obtida por meio do abuso de confiança, normalmente partindo de um contrato, em
que há o descumprimento de alguma cláusula contratual. (PENTEADO, 2008, p.
472)
Quanto ao objeto da usucapião, este deverá ser coisa hábil (res habilis):
significa que o bem tem que ser possível de ser adquirido pela usucapião. De modo
geral, os bens públicos, os bens de família e os bens penhorados não podem ser
usucapidos. (PENTEADO, 2008, p. 269-270)
Evidentemente que os chamados bens públicos de uso comum (ruas,
estradas, rios navegáveis) são sempre inalienáveis. [...] discute-se, ainda,
se a inalienabilidade de uma coisa implica em sua imprescritibilidade. E a
resposta é pela negativa. O gravame imposto, no direito privado, sobre
determinado bem, é indiferente àquele que está usucapindo. Com isso não
se quer afirmar que a inalienabilidade está ligada ao proprietário, tão
somente, porém, a proibição de alienação não obsta a usucapião de
terceiro. A expressão ‘insuscetíveis de apropriação’ traz à tona a discussão
sobre a imprescritibilidade dos bens públicos, especialmente as chamadas
terras devolutas. (WALD, 2009, p. 61)
Em relação ao tempo, é necessário que transcorra certo espaço temporal
para que se consolide a situação jurídica. Esse domínio sobre a coisa deve se dar
na “ausência de interrupção, suspensão ou causa obstativa de contagem deste
tempo.” (PENTEADO, 2008, p. 270)
23
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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2.1 A QUESTÃO DE TERRAS NO BRASIL
Em que pese o instituto da usucapião tenha origem no direito romano, é
necessário fazer uma breve análise histórica da questão de terras no país, tendo
como plano de fundo a usucapião.
O Brasil herdou o instituto das Sesmarias da Coroa portuguesa. Tal instituto
consistia num modo de obrigar os possuidores de terra a produzir, e os detentores
de força de trabalho a trabalhar para os proprietários, sob pena de expropriação,
açoite ou desterro. Pode-se dizer que a Sesmaria foi a primeira lei agrária da
Europa. “A lei de sesmaria assumiu integralmente a ideia da propriedade como o
direito de usar a terra e, mais do que isso, a obrigação de nela lavrar.” (MARÉS,
2003, p. 27-30)
As sesmarias no Brasil, ao contrário do modelo original europeu, que visava
dar a terra àquele que a quisesse produzir, foi concedida àquele que tivesse
condições financeiras de explorar o trabalho alheio, seja por escravos ou por
trabalhador livre, sendo então ocupadas pelos próprios sesmeiros, que eram a
autoridade responsável pela concessão das terras, e que aos poucos concederamna para seus próximos, amigos e familiares, criando verdadeiros latifúndios para a
manutenção da elite local.
Assim, não respeitaram as terras indígenas e nem a extensão recomendada,
que era “de tamanho não tão grande que não pudesse o beneficiário mesmo
aproveitar.” (MARÉS, 2003, p. 61). Na versão brasileira as sesmarias foram negadas
a quem quisesse trabalhar e produzir.
Em 1822, tal modelo agrário foi substituído, visto não mais coincidir com o
modelo de respeito à propriedade como direito absoluto imposto pelo pensamento
liberal capitalista dos séculos XVIII e XIX. Este período de transição, até que um
novo modelo fosse incorporado, perdurou por 28 anos. Aqueles que possuíam o
documento de aquisição de propriedade sesmarial permaneceram como titulares
das terras. Neste período, àquele que fizesse a terra produzir, era concedida a
propriedade, visto tratar-se de um período de recessão, com a decadência na
comercialização do açúcar bem como de ouro e diamantes. (GALEANO, 2010, p.
187)
24
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Somente em 1850 com a Lei Imperial de Terras, foi conceituado um novo
instituto: o das terras devolutas. Essa nova lei só foi estabelecida devido ao novo
período de ascensão econômica brasileira: a produção e comercialização do café,
sendo do interesse daqueles que efetivamente detinham o poder dificultar o acesso
à terra. (GALEANO, 2010, p. 187) Terras devolutas passaram a ser aquelas terras
que não foram adquiridas legalmente, em relação às quais não havia direito de
propriedade definido, nem se gerava domínio e não se possuía título de
reconhecimento de propriedade.
Existiam, portanto, três situações jurídicas distintas em relação à terra
naquele momento: 1) os imóveis ocupados pela Coroa, com ou sem um título; 2) os
bens dos particulares que pudessem comprovar sua titulação; e 3) enorme
quantidade de terra com situação jurídica indeterminada, que significa que estavam
abandonadas ou ocupadas por particulares sem título da propriedade. Somente esta
terceira modalidade é que ficou qualificada como terra devoluta ou devolvida.
(JUSTEN FILHO, 2009, p. 948)
“Devoluta é a terra que devolvida ao Estado, esse não exerce sobre ela o
direito de propriedade, ou pela destinação ao uso comum, ou especial, ou pelo
conferimento de poder de uso ou posse a alguém.” (PONTES DE MIRANDA, 2001,
p. 523). Não se levou em conta se havia domínio de outrem, seja de indígenas, de
escravos libertos ou de colonos. Aquele que adquiria a terra teria o direito de retirar
quem estivesse ilegalmente vivendo nela, com auxílio inclusive da força policial.
Ademais, tais terras só poderiam ser adquiridas por meio de compra, e como não
era do interesse político a aquisição das terras pela maioria da população de baixa
renda, os preços eram altos e inacessíveis aos trabalhadores livres. Em resumo,
retirou-se qualquer direito do cidadão de reivindicar por terras devolutas.
Isto porque as elites temiam perder mão-de-obra, haja vista que os escravos
libertos e os colonos recém-chegados da Europa e Ásia iriam preferir, caso
estivesse acessível a estes, trabalhar em terras próprias a vender sua mão-de-obra
aos detentores de terras. Diante deste cenário, a elevação do preço das terras
devolutas foi medida arquitetada para manter um sistema de mão-de-obra barata e
evitar a marcha dos trabalhadores para os campos. (MARÉS, 2003, p. 71)
25
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A marcha para o interior do país só ocorreu por interesse alheio, sendo que
os trabalhadores alargavam as fronteiras a mando dos latifundiários, que foram
tomando posse dos grandes espaços vazios selva adentro. Os latifundiários
ampliaram de tal forma suas propriedades que entre 1850 e 1860, “65 latifúndios
brasileiros absorveram uma quarta parte das novas terras incorporadas à
agricultura.” (GALEANO, 2010, p. 188)
Este sistema de transferência de direitos originários de terras devolutas
contaminou o direito nacional ao ponto de que jamais a doutrina e a jurisprudência
tenham aceitado a usucapião de bem público, sob o argumento de que se trata de
bem indisponível. Segundo Marés, este argumento não se sustenta, pois para a
caracterização da usucapião é necessário o uso privado do bem, que, se
caracterizado, anularia o uso público. (MARÉS, 2003, p. 75-76). Além disso, as
terras devolutas estão disponíveis para o Estado vendê-las, logo não há uso, nem
destinação social sobre as mesmas, argumentação inconsistente em relação à
negativa de usucapião.
A partir da criação dos Estados em 1891, as terras devolutas passaram a ser
da responsabilidade dos mesmos, que detiveram competência legislativa para
alterar e Lei de Terras e com isso, mantiveram o injusto sistema latifundiário local e
as disputas entre terras e ocupações ilegais.
O Decreto-Lei n. 9.760 de 1946 confirmou a definição de terras devolutas
trazidas pela Lei de Terras de 1850, no sentido de que “são as terras públicas a que
não foi dada destinação de uso público (uso comum do povo, uso especial) ou
particular, embora, por sua história sejam públicas por ‘devolução’.” (PONTES DE
MIRANDA, 2001, p. 527). Pode-se afirmar que as terras devolutas de 1850
correspondem aos imóveis dominiais de hoje (JUSTEN FILHO, 2009, p. 949),
inclusive aplicando àquelas o mesmo regime dos bens dominiais.
Foi neste contexto que a Súmula 340 do STF foi editada, sendo publicada em
1963, na vigência do Código Civil de 1916 e baseada em julgados repetitivos
bastante antigos (Recurso Extraordinário 4369-SP de 19436; Recurso Extraordinário
6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Bens públicos. Usucapião. Inadmissibilidade.
Recurso extraordinário nº 4369 – SP. Recorrente: Municipalidade de São Paulo. Recorrida: Margarida
da Silva. Relator: Ministro Bento de Faria. São Paulo, 21 de setembro de 1943. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=116150>. Acesso em 21 mar.
2015.
26
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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7387-SP de 19467 e Recurso Extraordinário 51265-MG de 19638). Logo, verifica-se
que o Código Civil de 1916 apenas manteve o disposto na Lei de Terras de 1850,
bem como a Súmula repetiu aquilo já anteriormente estabelecido.
O Estatuto da Terra promulgado em 30 de novembro de 1964 previa em seu
texto a reforma agrária, na tentativa de corrigir as injustiças sociais, porém não
alterava a garantia da propriedade privada, que continuava a ser vista como um
direito inviolável, acima de todos os demais direitos, um direito absoluto. A grande
modificação foi a de prever a possibilidade de desapropriação da terra quando não
cumprida a função social, ainda que num primeiro momento essa previsão não tenha
trazido grandes alterações por conta da interpretação que fôra feita de lei. Porém, foi
a partir desse instrumento legal que a Constituição de 1988 trouxe a questão da
função social da propriedade como princípio, elencado entre os diretos e garantias
fundamentais, previsto no artigo 5º, XXIII. (MARÉS, 2003, p.110)
2.2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1988
A Constituição Federal, ao garantir o direito à propriedade, também determina
que esta propriedade atenda à função social, seja do ponto de vista dos direitos
fundamentais, seja do da ordem econômica. A função social da propriedade é
preceito que impõe ao titular da propriedade atuação de forma que não ofenda a
comunidade em geral, determinando obrigações, sujeições ou ônus, tais como a
manutenção de um ambiente sadio e equilibrado, respeito ao patrimônio histórico e
cultural, paz, etc.
7
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for
a sua natureza, ex-vi dos arts. 66 e 67 do Código Civil e leis posteriores. Jurisprudência. Reforma do
acórdão recorrido. Recurso extraordinário nº 7387 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorrido:
Antônio Ribeiro Gato e outros. Relator: Ministro Laudo de Camargo. São Paulo, 19 de agosto de
1946. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=526887>. Acesso em 21 mar.
2015.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Construção de barracões e pequenas propriedades
em terras de domínio patrimonial do Estado. A mero “detentio” de terras públicas não gera posse útil
“ad interdicta” ou “ad uso capionem.” Recurso Extraordinário nº 51265 – MG. Recorrente: Laminação
de Ferro S.A – LAFERSA. Recorrido: Gabriel José Pereira e outros. Relator: Ministro Hermes Lima.
Brasília, 30 de agosto de 1963. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=150194>. Acesso em 21 mar.
2015.
27
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Os preceitos legais que asseguram a função social da propriedade são limites
ao poder do proprietário, sendo normas de ordem pública. (GOMES, 2008, p. 11).
Esta função consiste: 1) na privação de alguma das faculdades exercidas por aquele
que detém o domínio; 2) no estabelecimento de condições para que o proprietário
exerça suas faculdades; 3) no atendimento a certos direitos econômicos e coletivos
em relação aos bens produtivos. (GOMES, 2008, p. 125)
A função social relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, por
conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o
seu exercício. E por uso da propriedade é possível apreender o modo com
que são exercitadas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de
propriedade. (FACHIN, 1988, p. 17)
O regime jurídico da propriedade privada é subordinado ao Direito Civil, mas
também ao Direito Constitucional. No âmbito privado, o princípio da função social
limita os atos do proprietário a fim de que não prejudique o interesse social. Já no
âmbito constitucional, é consagrada a tese de que existem várias propriedades, por
exemplo, a pública, a privada, a social etc., e para cada uma delas o princípio da
função social atua e limita diferentemente.
Para a propriedade privada a Constituição Federal de 1988 impõe limitações
ao caráter absoluto, exclusivo e perpétuo. As limitações constituem qualquer ato que
afete o direito de propriedade e têm como espécies: 1) as restrições, que limitam o
caráter absoluto; 2) as servidões, que limitam o caráter exclusivo; e 3) a
desapropriação, que limita o caráter perpétuo da propriedade.
A Constituição Federal, em seu artigo 186 define os requisitos para que o
imóvel rural cumpra a função social: 1) aproveitamento racional do solo; 2) utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3)
observação das disposições que regulam as relações de trabalho; 4) exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O artigo 184, por sua vez, prevê a desapropriação do imóvel que não cumpra
a função social, modalidade de desapropriação que tem como fim a reforma agrária,
de modo a possibilitar que esta terra seja adquirida por alguém que a fará produzir,
uma forma de corrigir as injustiças sociais, que afinal seria o objetivo principal da
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Carta Magna. Essa desapropriação é de competência exclusiva da União (MARÉS,
2003, p. 124), e o então proprietário será indenizado com títulos da dívida agrária.
Assim, a usucapião de bem público, no qual são garantidos todos os direitos
de proprietário (como usar, fruir e alienar), não seria possível. No entanto, em
determinadas situações, há a necessidade de legitimar algumas ocupações que
atendam às condições estabelecidas pela lei do ente proprietário daquela terra,
convertendo a propriedade em favor dos ocupantes desfavorecidos de propriedade.
Seria uma forma de atender ao preceito do artigo 170, III, da Constituição Federal do
Brasil, isto é, da função social da propriedade. (MEIRELLES, 2011, p. 586.)
3 BENS PÚBLICOS
O artigo 98 do Código Civil vigente estabelece que bens públicos são os bens
de domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público, que por
sua vez são aquelas descritas no artigo 41 do mesmo Codex. Apesar da divergência
doutrinária acerca da conceituação de tal tema, pode-se dizer que bens públicos são
“os bens jurídicos atribuídos à titularidade do Estado, submetidos a regime jurídico
de direito público, necessários ao desempenho das funções públicas ou
merecedores de proteção especial”. (JUSTEN FILHO, 2009, p. 900)
Além daqueles bens pertencentes à União, Estados, Distrito Federal,
Municípios e as suas respectivas autarquias e fundações, também são considerados
públicos os bens do particular afetados à prestação de um serviço público, no
espaço temporal que perdurar a afetação. “O conjunto dos bens públicos formam o
domínio público, que inclui tanto bens móveis quanto imóveis.” (MELLO, 2011, p.
931)
A expressão domínio público comporta mais de um significado, podendo ser
definido como: os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno
(União, Estados, Municípios, Distrito Federal e autarquias); num conceito menos
amplo, designar os bens afetados a um fim público, compreendendo os bens de uso
comum e os bens de uso especial; e em sentido muito restrito pode significar apenas
os bens destinados ao uso comum do povo. (DI PIETRO, 2011, p. 672-673)
29
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A interpretação da segunda parte do artigo 98 do livro civilista leva ao
entendimento de que os bens dos entes da Administração Indireta, a saber, as
sociedades de economia mista e empresas públicas, (previstas no artigo 173,
parágrafo 1º, II da Constituição Federal), não são bens públicos enquanto não
exercerem atividade de interesse eminentemente público. (GASPARINI, 2011, p.
943)
A análise quanto à inclusão ou não destes bens é pertinente devido ao
posicionamento dos tribunais em conceder ou não a usucapião sobre os bens das
empresas públicas. No sentido de não considerar os bens das sociedades de
economia mista como bens públicos é o entendimento do Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná no julgamento da Apelação Cível 7493367.
Neste julgamento tem-se concedida a usucapião sobre bens da URBSUrbanização de Curitiba, sociedade de economia mista, pois esta não deu
destinação pública ao imóvel, visto que ciente quanto à utilização do bem para fins
de moradia por particulares, se absteve de intervir na posse no sentido de promover
sua desocupação. “Se alguém é privado da posse e se mantém inerte, age de modo
a deixar que a função social da propriedade milite em prol de outrem.” (MARÉS,
2003, p. 73)
Ressalta o julgado que no momento da compra do imóvel, o mesmo não
estava regularmente integrado ao patrimônio do vendedor, mas que o adquirente
também não se assegurou das condições daquele bem no momento da compra e
venda, sendo ônus do comprador tal verificação. Ademais, no momento da
transação, a prescrição aquisitiva já estava operada em favor do possuidor, sendo o
argumento de o bem integrar os bens públicos irrelevante, devido ao fato da
propriedade da Administração Pública ser posterior à posse de terceiro. Uma vez
presentes os requisitos para a usucapião, esta foi reconhecida.
Deste modo, a depender do conceito de quais bens integram o domínio
público, pode-se resumir que serão bens públicos os bens pertencentes às pessoas
jurídicas de Direito Público interno, sendo todos os demais considerados bens de
particulares, tese confirmada também pelos precedentes do Superior Tribunal de
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Justiça no Recurso Especial 120.702 – DF9 e Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná na Apelação Cível 240.998-110.
Aqui verifica-se que muito embora a Súmula 340 do STF estabeleça a
impossibilidade de usucapião dos bens públicos de qualquer espécie, já há
entendimento no sentido de que os bens das sociedades de economia mista que
estejam sem destinação pública podem ser adquiridos por meio da usucapião,
sendo, portanto, uma afronta ao disposto pela Súmula, caso não seja conceituado
quais bens integram o patrimônio público.
3.1 CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS
O Código Civil de 2002 faz uma divisão tripartite dos bens públicos, de acordo
com a destinação ou afetação dos bens, que consiste na “preposição de um bem a
um dado destino categorial de uso comum ou especial, assim como a desafetação é
sua retirada do referido destino.” (MEIRELLES, 2011, p. 922)
Logo, segundo o artigo 99, são classificados em: 1) bens de uso comum, que
podem ser utilizados por todos, como mares, ruas, estradas e praças; denominados
também de bens do domínio público; 2) bens de uso especial, tais como as
repartições públicas, os locais onde se realiza a atividade pública; também
denominados de bens patrimoniais indisponíveis; 3) bens dominicais ou dominiais,
que são as terras ou terrenos em geral, sobre os quais o Estado possui senhoria,
seja direito real ou direito pessoal, também denominados bens patrimoniais
disponíveis. Além disso, constitui também bem público quando a lei não dispor em
9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (4. Turma). Usucapião. Sociedade de Economia Mista. CEB.
O bem pertencente à sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. Precedente.
Recurso conhecido e provido. Recurso Especial nº 120.702 – DF (1997/0012491-6). Recorrente:
Ailton Bento da Silva – Espolio. Recorrido: Companhia Energética de Brasília - CEB. Relator: Ministro
Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 23 de junho de 2001. Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/318534/mod_resource/content/1/%28STJ%29%20REsp%
20120702%20-%20Ruy%20Rosado%20de%20Aguiar.pdf>. Acesso em 20 mar. 2015.
10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (9. Câmara Civil. Tribunal de Alçada). Ação de
usucapião extraordinária. Bem pertencente à sociedade de economia mista. Possibilidade de ser
usucapido. Precedentes no STJ. Anulação da sentença de primeiro grau. Recurso conhecido e
provido. Apelação Cível nº 240.998-1. Apelante: Pedro Moreira e outro. Apelado: Companhia de
Desenvolvimento de Curitiba – CIC. Relator: Desembargador Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira.
Curitiba, 02 de março de 2004. Disponível em:
<http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6372249/apelacao-civel-ac-2409981-pr-0240998-1/inteiroteor-12491154>. Acesso em 20 mar. 2015.
31
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
contrário, o patrimônio das pessoas jurídicas de Direito Público com estrutura de
Direito Privado. (MEIRELLES, 2011, p. 565)
Os bens de uso comum são os bens de domínio público do Estado, isto é, “o
conjunto das coisas móveis e imóveis de que é detentora a Administração Pública,
afetados quer a seu próprio uso, quer ao uso direto ou indireto da coletividade,
submetidos a regime jurídico de direito público.” (DI PIETRO, 2011, p. 673) São
exemplos os mares, as praias, os rios, as estradas, as ruas, as praças, as áreas
verdes e de lazer. (GASPARINI, 2011, p. 946)
Os bens de uso especial são os bens móveis e imóveis destinados à
execução dos serviços públicos, isto é, o espaço utilizado pela Administração
Pública para executar tal serviço. (DI PIETRO, 2011, p. 672) A utilização destes
bens, isto é, o uso e o gozo, é exercida pelas pessoas que detém sua propriedade: a
União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquia e fundações públicas.
Ao contrário dos bens de uso comum e especial, os bens dominicais, por não
terem afetação pública, são bens de patrimônio disponíveis, portanto, alienáveis. A
afetação, conforme exposto anteriormente, significa dar ao bem uma destinação,
seja para o uso comum ou especial. Desta forma, ou os bens serão afetados e se
classificarão como bens de uso comum ou de uso especial; ou serão desafetados e
serão classificados como bens dominicais.
Pode-se dizer que os bens desta categoria são “a parcela de bens que
pertence ao Estado em sua qualidade de proprietário”. Neste viés, submetem-se ao
regime jurídico de direito privado, parcialmente derrogado pelo direito público. (DI
PIETRO, 2011, p. 678-679)
3.2 CARACTERÍSTICAS DOS BENS PÚBLICOS
Sob o aspecto jurídico, à luz da destinação, há dois grupos de bens: os do
domínio público do Estado, incluindo os de uso comum e uso especial; e os de
domínio privado do Estado, donde estão os bens dominicais. Cada uma das
modalidades possui regime jurídico próprio, sendo que para os bens do domínio
público
do
Estado
aplicável
a
previsão
legal
quanto
a
inalienabilidade,
impenhorabilidade e imprescritibilidade.
32
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Inalienabilidade está definida pelo Código Civil nos artigos 100 e 101, significa
que tais bens não podem ser objeto de relação jurídica privada, seja compra e
venda, doação, permuta, dentre outros; sendo, portanto, bens fora do comércio.
Adentram esta classificação os bens de uso comum do povo e os bens de uso
especial, podendo, para os dois casos, considerar a inalienabilidade como absoluta,
enquanto durar a afetação.
Impenhorabilidade consiste na impossibilidade de leiloar os bens para que os
credores sejam adimplidos, assim como a impossibilidade de gravar os bens com
direitos reais de garantia, pois há formas específicas para a satisfação do crédito
contra o Poder Público inadimplente. Neste sentido, disciplina o artigo 100 da
Constituição Federal, a exclusão quanto à possibilidade de penhora de bens
públicos pertencentes à União, Estados e Municípios.
A imprescritibilidade significa que os bens públicos, independentemente de
qual categoria pertençam, não são suscetíveis de usucapião. A imprescritibilidade
está prevista no artigo 102 do Código Civil e também na Súmula 340 do STF. Esse
precedente foi construído a partir de posicionamento repetitivo, baseado na previsão
trazida pelo Código Civil de 1916 quanto à impossibilidade da usucapião sobre os
bens públicos.
Os bens dominicais podem ser alienados, desde que haja lei autorizativa para
tal. A Constituição e a legislação ordinária preveem normas restritivas em relação
aos bens dominicais. Dentre estas, importante destacar: a) a impossibilidade das
terras devolutas serem alienadas ou cedidas a título gratuito, sendo permitido
somente em casos excepcionais (Decreto-lei 9760, artigo 2030); b) quando for
possível ocorrer a alienação de bem imóvel, será exigível a prévia avaliação, assim
como a demonstração do interesse público, sendo realizada por meio de licitação e
autorização legislativa (Lei 8666/1993, artigo 17); e, c) que as terras devolutas ou
arrecadadas pelos Estados por ações discriminatórias são indisponíveis (art. 225,
parágrafo 5º, Constituição Federal).
A dúvida quanto à possibilidade da usucapião traz como ponto importante de
discussão o tema dos bens dominicais, devido ao seu caráter de bens sem
destinação (afetação), qualidade que fere o princípio constitucional da função social
da propriedade; isto é, dar à terra destinação que atenda aos interesses de toda a
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
coletividade e não apenas do proprietário, exigência a ser cumprida com rigor pelos
particulares, mas que é dispensada à Administração Pública.
Mesmo após a consolidação do entendimento jurisprudencial acerca da
impossibilidade de usucapir qualquer bem público, inclusive os dominicais,
confirmada com o advento da Súmula 340 do STF, as Constituições de 1934, 1937 e
1946 ainda previam exceções, como o caso da usucapião pro labore, quanto ao
direito à propriedade àquele que cultivasse a terra com seu próprio trabalho e o de
sua família. A Constituição de 1967 não mais vem versar sobre a usucapião, mas
valorizar o trabalhador do campo que utilizasse a terra para sua morada e
sobrevivência, permitindo que lei federal concedesse a legitimação de posse, antes
alicerçada quanto ao direito de preferência na aquisição do bem pelo valor histórico,
de terras com até 100 hectares que se tornassem produtivas.
A Lei 6.969/ 81 previa a usucapião especial, que consistia na possibilidade de
tornar-se proprietário de terras devolutas situadas em área rural, desde que exercida
e posse durante cinco anos sem interrupção nem oposição. Essa mesma legislação
também estabelecia outros requisitos para a usucapião pro labore, como não possuir
outra propriedade e que a área não pudesse ultrapassar 25 hectares. (DI PIETRO,
2011, p. 680)
Os bens públicos, por força de legislações anteriores, e atualmente
confirmados pela Súmula 340 do STF somada ao artigo 183, parágrafo 3º da
Constituição Federal, não podem ser adquiridos por usucapião, estejam em áreas
rurais ou urbanas.
O questionamento que o presente trabalho se propõe a fazer baseia-se em
recentes julgados. Num deles, confirmado em sede de Apelação, concedeu a
usucapião em imóvel “pertencente” anteriormente à autarquia do Departamento de
Estradas e Rodagem de Minas Gerais. Nesse julgamento, Apelação Cível
1.0194.10.011238-3/001 – MG, há a confirmação da posse, em face ao atendimento
dos requisitos legais para tal, seja a posse contínua, ininterrupta, pacífica, pública e
revestida com o animus domini, por mais de 30 anos, afastando desta forma a mera
detenção.
Quanto ao fato do imóvel ser um bem público, portanto, imprescritível (devido
pertencer a uma autarquia estadual), o fundamento para a concessão da usucapião
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
deve-se à argumentação de que o imóvel usucapiendo não está inserido em área de
domínio público, bem como ao fato de tal bem não estar afetado à prestação de
nenhum serviço público, estando assim sem nenhuma destinação social, além da
presença de lei autorizativa para o assentamento de famílias que estão no local.
Dependendo do conceito de domínio público adotado, pode-se entender que
é possível a usucapião de bem dominical. Se adotar o conceito mais amplo, que
engloba os bens das pessoas jurídicas de direito público interno, políticas e
administrativas, tal concessão iria contra lege, visto que os bens da autarquia
estadual estariam dentre aqueles incluídos no domínio público.
Outrossim, no conceito menos amplo os bens de domínio público
compreenderiam os bens de uso comum e os bens de uso especial, sendo admitida
tal concessão somente à luz da falta de destinação pública do imóvel. No conceito
mais restritivo, que só admite bens de domínio público como aqueles bens de uso
comum do povo, a medida de conceder usucapião seria acertada, visto que não se
trata de um bem de uso comum do povo.
Assim, pode-se concluir que, por exclusão, o julgador tem por base a doutrina
que considera que os bens da autarquia não integram os bens de domínio público,
sendo, portanto ou um bem dominical ou um bem de uso especial sem destinação
pública adequada.
3.3 USO DOS BENS PÚBLICOS PELOS PARTICULARES
A utilização dos bens públicos por particulares é possível, sendo que para
cada modalidade é permitido um tipo de utilização. As formas de uso especial dos
bens públicos podem ocorrer pela autorização de uso, permissão de uso e
concessão de uso como direito real resolúvel, entre outros. Aos bens de uso comum
pode haver a autorização de uso, permissão de uso; aos bens de uso especial pode
haver a concessão de uso; e aos bens dominicais a concessão de direito real de
uso, concessão de uso especial de moradia e autorização de uso.
A autorização de uso é ato unilateral e discricionário, na qual a Administração
permite ingerência individual sobre um bem público, outorgado em caráter
transitório, podendo ser com ou sem prazo determinado de uso, que independem
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
tanto de lei autorizativa quanto de licitação. É ato precário, deste modo, pode ser
revogado a qualquer momento. Confere poucos poderes e garantias ao usuário, que
tem a faculdade e não o dever de utilizá-lo. Por exemplo, a ocupação de terrenos
baldios.
A permissão de uso é ato unilateral no qual a Administração faculta ao
particular a utilização de determinado bem público, podendo conter ou não
condições, ser gratuito ou remunerado, por tempo certo ou indeterminado.
Entretanto, quando o interesse público exigir, a permissão poderá ser revogada.
Pode recair sobre bens de qualquer natureza. Ocorre por exemplo com as bancas
de jornal, fato que faz com que essa modalidade não necessite de lei autorizativa,
mas que dependa de licitação. (MEIRELLES, 2011, p. 571). Não é uma faculdade do
particular utilizar, mas sim uma obrigação, sob pena de não utilizando perder a
permissão.
As diferenças entre a utilização e a permissão são: a autorização é uma
faculdade de uso privativo, atendendo ao interesse do beneficiário, ao passo que a
permissão implica a utilização para fins coletivos; por consequência, a precariedade
é mais acentuada na autorização; e por fim, na autorização, o permissionário tem a
faculdade de uso, já na permissão é uma obrigatoriedade o uso, sob pena de
revogado o seu uso. (DI PIETRO, 2011, p. 697)
A concessão de uso é um contrato administrativo com um particular para
utilização do bem de acordo com destinação específica. A utilização dos bens
dominiais pelo particular é caracterizada pelo uso dos instrumentos de direito
privado, tais como a locação, arrendamento e o comodato. (JUSTEN FILHO, 2009,
p. 941). Entretanto, é um contrato de direito público, sinalagmático, podendo ser
oneroso ou gratuito, comutativo e intuitu personae, isto é, não pode ser transferido a
outrem sem autorização da Administração.
A concessão pode ser do tipo concessão especial de uso para fins de
moradia. Consiste na figura jurídica criada por meio da Medida Provisória
2.220/2001 para legalizar a ocupação irregular de terrenos públicos pela população
de baixa renda. Sendo, pois, concedido para o indivíduo que até 31 de junho de
2001 tivesse em sua posse área de até 250 metros quadrados em área pública
urbana, utilizando como moradia e que não possuísse ou fosse concessionário de
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
outro imóvel urbano ou rural. É um direito real sobre coisa alheia, resolúvel, que
pode ser concedido, inclusive, de forma coletiva, mediante termo administrativo ou
sentença judicial. (MEIRELLES, 2011, p. 575-576)
É possível traçar um paralelo com a usucapião especial prevista no artigo 183
da Constituição Federal, visto que os requisitos para a obtenção, a posse pelo prazo
de cinco anos e a vedação à transmissão aos herdeiros são idênticos aos daqueles
institutos, podendo ser entendido como uma alternativa legislativa à “usucapião” de
um bem público.
A outra modalidade é a concessão de direito real de uso, que consiste na
utilização de bem público dominical, por meio de um contrato gratuito ou
remunerado concedido ao particular para que utilize o terreno público para fins de
edificação, urbanização, industrialização, ou outra atividade de interesse social.
Depende de autorização legal para ocorrer. (MEIRELLES, 2011, p. 577) Seu
surgimento se deve a uma forma da própria Administração e seus entes utilizarem
os imóveis uns dos outros; e depois, com a emenda feita pela Lei 11.481/2007 no
Decreto-lei 271/1967, como forma de “regularização fundiária de interesse social,
urbanização,
industrialização,
edificação,
cultivo
da
terra,
aproveitamento
sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios
de subsistência [...].”
Assim, observa-se que a doutrina do direito administrativo conceitua e permite
algumas formas do particular utilizar-se de bens públicos, modalidades em que só se
transfere a posse e outras que transfere inclusive a propriedade. Desta forma, o
entendimento advindo com a Súmula 340 do STF, que se consolidou em 1963 é de
certa forma contornado com institutos mais atuais de utilização de tais bens, trazidos
pela legislação administrativista, que vigoram desde 1993.
3.4 BENS PÚBLICOS EM ESPÉCIE- TERRAS DEVOLUTAS
As terras devolutas são espécie de terras públicas, que integram os bens
dominicais, sendo definidas como “aquelas que não estão destinadas a qualquer uso
público nem incorporadas ao domínio privado.” Por não terem destinação, poderiam
ser classificadas como terras disponíveis, integrando assim os bens dominicais.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Entretanto, a Constituição Federal de 1988, no artigo 225, parágrafo 5º, estabelece
que as mesmas são indisponíveis. Tal dispositivo constitucional merece uma análise
mais aprofundada, pois, ao considerá-las indisponíveis, inclui as terras devolutas no
mesmo regime jurídico que os bens de uso comum e especial.
Quanto à definição do que sejam as terras devolutas e as terras arrecadadas
pelos Estados por ações discriminatórias, importante salientar que “não significa que
as terras devolutas deixem de sê-lo depois de arrecadadas.” (DI PIETRO, 2011, p.
723-724) Elas serão indisponíveis mesmo enquanto não forem afetadas, e quando
afetadas integrarão os bens de uso especial.
Ainda, ao mencionar terras devolutas ou terras arrecadadas pelos Estados
por ações discriminatórias, que são aquelas já incorporadas ao patrimônio público,
gera a dúvida quanto à aplicabilidade de tal dispositivo aos dois casos, ou se ao
contrário, as terras devolutas podem ser consideradas disponíveis antes de serem
incorporadas ao patrimônio público.
Logo, em relação às terras incorporadas não há dúvida quanto a
impossibilidade de usucapião. Já em relação às outras, surgem controvérsias na
jurisprudência e nos Tribunais Superiores. Para o STJ, Recurso Especial 674.558 RS11, cabe ao poder público provar que se trata de terra devoluta, não sendo a
simples ausência de registro imobiliário causa suficiente para tal prova. Para o STF,
Recurso Extraordinário 72020 – SP12, no entanto, cabe ao particular fazer tal prova.
“Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado, presunção juris
tantum de que sejam terras devolutas, cabendo a este provar a titularidade pública do bem. Caso
contrário, o terreno pode ser usucapido.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (4. turma).
Usucapião. Faixa de fronteira. Possibilidade. Ausência de registro acerca da propriedade do imóvel.
Inexistência de presunção em favor do estado de que a terra é pública. Recurso especial nº 674.558 RS (2004/0071710-7). Recorrente: União. Recorrido: Nair Nogueira de Vasconcelos – Sucessão.
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 13 de outubro de 2009. Disponível em:
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12 “Não cabe ao estado provar que determinada gleba é devoluta: cabe a quem afirma no domínio
particular o ônus da prova [...]”.BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Usucapião. Alegação
de serem devolutas as terras. Afirmativa de que o imóvel entrou para o domínio particular, em face
das provas, e admissibilidade de sua ulterior aquisição por usucapião. Inexistência de ofensa a direito
federal ou de dissídio pretoriano. Recurso extraordinário não conhecido. Recurso Extraordinário nº
72020 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorridos: Renato de Oliveira Ferreira Coelho e sua
mulher. Relator: Ministro: Rodrigues Alckmin. São Paulo, 11 de setembro de 1973. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=167800>. Acesso em 20 mar.
2015.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
As terras devolutas passam por procedimento administrativo e judicial para
sua demarcação, separando o que é público daquelas na posse dos particulares,
que no fim do processo terão o título de legitimação da posse em benefício daqueles
que preencherem os requisitos já expostos em item anterior. O procedimento judicial
é subsidiário ao administrativo e somente é iniciado nos casos de dispensa ou
ineficiência deste e nos casos de alteração de áreas posteriormente ao início do
processo ou em caso de pessoas que não atenderam ao chamamento
administrativo. É pelo rito sumaríssimo e por meio de sentença a questão da
concessão da propriedade para o particular requisitante, definido o restante das
áreas como terras devolutas.
O procedimento administrativo inicia-se com o chamamento dos interessados
que estejam nas áreas discutidas naquele processo. Os particulares apresentam
seus títulos de domínio. Das terras com títulos incertos ou duvidosos tem-se iniciada
fase judicial. Dos inequívocos, será iniciada a próxima fase de demarcação, isto é, a
delimitação das terras e o consequente registro daquelas legitimadas em favor do
particular e a definição daquelas devolutas. (DI PIETRO, 2011, p. 726-727)
Diante de todo o exposto, verifica-se que a manutenção das terras devolutas
como terras impossíveis de usucapir é mais uma questão de manter o status quo
trazido desde a Coroa do que de fato uma necessidade do Estado. Há diversas
propriedades dos entes da Federação que não estão destinadas a nenhuma função
pública e sobre as quais a Administração nem sequer conhece como de sua
propriedade.
Ainda, devido ao fato do Brasil não ter realizado uma distribuição equitativa de
terras, verifica-se que são mantidos os grandes latifúndios, bem como permanece
inacessível à grande população de baixa renda o acesso à propriedade, seja devido
aos altos custos, seja devido a manutenção das terras devolutas e dos bens
dominicais no poder da Administração, que, nos casos das ações de usucapião são
intimados a manifestar-se quanto ao interesse na propriedade a ser usucapida.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problemática lançada tem como base as recentes soluções adotadas por
magistrados no que tange ao reconhecimento da usucapião em terras da
Administração Pública, bem como as situações fáticas – como domínio e posse que
basearam tais decisões. Quanto ao conceito de posse, como não é definido qual
teoria se aplica, nos casos concretos é conferida a proteção possessória nas posses
com e sem o animus domini, bem como a concessão da usucapião,
independentemente da teoria da posse adotada.
A presente discussão teórica teve como objetivo abrir questionamentos
acerca da real necessidade da Administração Pública ainda se resguardar dos bens
dominicais para compor seu patrimônio. Quanto à questão de terras no Brasil, se as
terras devolutas necessitam mesmo dessa tutela protecionista, principalmente
devido ao advento do princípio constitucional da função social da propriedade que
também deveria ser aplicada aos bens público, com os mesmos critérios daqueles
dispensados aos particulares.
Neste mesmo sentido do atendimento à uma função social, é possível a
interpretação de que a concessão especial de uso para fins de moradia, que ocorreu
por meio da Medida Provisória 2.220/2001, com objetivo de, através do atendimento
da função social da propriedade, dar direito à moradia às populações de baixa
renda, pode ser interpretada como uma brecha legal à proibição da usucapião
A usucapião é, portanto, uma forma de reequilibrar as relações sociais,
restabelecendo a função social da propriedade. Da análise do principal julgado sobre
o tema, a usucapião foi concedida devido ao entendimento de que o bem em
questão, que seria de propriedade do DER-MG (autarquia estadual) não integrava
os bens de domínio público e estava descumprindo sua função social.
Apesar do entendimento sumulado quanto à impossibilidade da usucapião
sobre os bens públicos, verificou-se que é possível a usucapião de bens públicos da
Administração Pública Indireta, quando tais entes não dão destinação correta aos
bens. Igualmente, é possível verificar a prescrição aquisitiva de acordo com o
entendimento dos julgadores acerca do que sejam bens de domínio público, isto é,
se este adota um conceito mais ou menos amplo, considerando como domínio
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
público todos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno
(União, Estados, Municípios, Distrito Federal e autarquias), ou se se adota um
conceito intermediário de acordo com a afetação do bem, compreendendo os bens
de uso comum e os bens de uso especial, ou se no sentido muito restrito onde
somente os bens de uso comum do povo seriam considerados de domínio público.
Deste modo, verifica-se que a impossibilidade de usucapião sobre os bens
públicos é entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal (Súmula 340), com
base em julgados bastante antigos, antes da égide da Constituição Federal de 1988
e do Código Civil de 2002. Daí, provavelmente, a contemporânea viragem
jurisprudencial que vem ocorrendo, ainda timidamente em nossos tribunais.
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autarquia municipal. Sociedade de economia mista. Bem passível de aquisição por
usucapião. Imóveis ocupados por particulares há aproximadamente três décadas,
sem oposição. Posse exercida de forma mansa, pacífica, ininterrupta e com animus
domini. Transferência do imóvel ao município como forma de redução do capital que
não tem o condão de obstar pedido de reconhecimento de domínio. Preenchimento
dos requisitos necessários à aquisição da propriedade. Recurso provido. Apelação
Cívil nº 7493367 – PR (0749336-7). Apelante: Marilene Gimenes. Apelados: URBS –
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reivindicatória. Detenção. Inocorrência. Posse com "animus domini". Comprovação.
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Precedentes. Negar provimento. Apelação Cívil nº 1.0194.10.011238-3/001 – MG.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
SOBERANIA E BIOPOLÍTICA EM GIORGIO AGAMBEN
SOUVERAINETÉ ET BIOPOLITIQUE CHEZ GIORGIO AGAMBEN
Benjamim Brum Neto13
Bortolo Valle14
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Sobre a politização da vida 2.1 Poder soberano e biopolítica em Michel
Foucault 2.2 Animal laborans e Homo sacer 3 A modernidade política segundo Giorgio Agamben
3.1 O paradoxo da soberania 3.2 A soberania como bando 3.3 Homo sacer: sobre a sacralização da
vida 4 Considerações finais. Referências.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo investigar o conceito de soberania e o de biopolítica a partir de
obra de Giorgio Agamben, bem como as articulações entretidas por eles e o alcance das análises que
essa articulação possibilita. Em função disso, primeiro analisa-se a relação de complementaridade
que Agamben identifica em Michel Foucault e Hannah Arendt, de modo a possibilitar um estudo
conjunto dos efeitos do poder soberano e da biopolítica. Em seguida, passa-se a uma investigação
dos principais conceitos agambenianos que tomam corpo a partir das considerações já feitas, dandose destaque às suas reformulações conceituais críticas, que servem como um verdadeiro diagnóstico
do presente, tanto da situação jurídica como política das sociedades ocidentais. O presente texto
trata-se, portanto, de uma tentativa de aproximar Direito e Filosofia, a fim de compreender alguns dos
problemas teóricos e práticos que tanto juristas quando cidadãos em geral possam enfrentar.
Palavras-chave: Agamben, soberania, biopolítica, direito, política
de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisa “A justiça política e o Direito
Eleitoral no Estado Democrático de Direito”. E-mail: [email protected]
14 Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1983),
Especialização em Filosofia da Educação (1984) e em Didática do ensino Superior (1986), ambos
pela PUCPR. Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e
doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999).
Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor da Faculdade
Vicentina de Filosofia e professor titular do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Tem
trabalhado com as disciplinas de Filosofia e Direito, Filosofia Antiga e Medieval, Filosofia da
Linguagem e Filosofia da Mente. As pesquisas em desenvolvimento têm sido nucleadas sobre o
pensamento de Wittgenstein, mais especificamente sobre a questão do "inefável", bem como sobre o
tema da religião no autor. Participa de Grupo de Pesquisa em Epistemologia com ênfase na questão
do método e da verdade.
13Acadêmico
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
RÉSUMÉ
Le présent travail a pour but de rechercher le concept de souveraineté et celui de biopolitique à partir
de l´oeuvre de Giorgio Agamben, ainsi comme leur articulation et la portée des analyses que cette
articulation permet. Pour ce faire, d´abord, on analyse le rapport de complémentarité qu´Agamben
identifie chez Michel Foucault et Hannah Arendt, de façon à permettre un étude conjoint des effets du
pouvoir souverain et de la biopolitique. Ensuite, on passe à l´analyse des principaux concepts
agambeniens qui prennent corps à partir des considérations déjà faites, em mettant em relief les
refonte conceptuelles critiques, qui servent comme un véritable diagnostique du présent, soit dans les
situations juridiques, soit dans les situations politiques des sociétés occidentales. Le présent texte
vise donc d´un essaye de rapprocher le Droit de la Philosophie, afin de comprendre quelques
problèmes théoriques et pratiques auxquels les juristes et es citoyens peuvent faire face.
Mots-clés: Agamben, souveraineté, biopolitique, droit, politique
1 INTRODUÇÃO
A temática que aqui nos propomos a partir de Giorgio Agamben é um debate
direto com Michel Foucault. Ao menos a partir do diagnóstico que Agamben nos
fornece em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, a vida está implicada no
direito numa relação de violência. Isso por que vida e direito só são articulados sob a
forma da soberania, que já Foucault definia como “poder de fazer morrer ou deixar
viver”. Mas essa soberania, tanto para Agamben quanto para Foucault, esse modo
de capturar a vida, de dela lançar mão como objeto privilegiado, não é algo que está
no passado. Sobretudo em Agamben, não há uma distinção essencial entre
soberania e biopolítica. Ao contrário, se fizermos uma leitura paralela de Agamben e
Foucault, observamos que enquanto Foucault parece deixar propositalmente aberta
a relação entre biopolítica e soberania (DUARTE, 2015)15, Agamben, ao trazer o
debate de Foucault para o estudo da máquina jurídico-política do ocidente, enxerga
uma continuidade entre ambas as formas de poder. Essa negação de Agamben de
que haja uma separação, mesmo que teórica (de direito), do poder soberano com a
biopolítica acarretará consequências bastante drásticas para o seu pensamento, e o
distanciará de forma definitiva das pretensões foucauldianas.
15André
Duarte argumentará que a biopolítica em Foucault deve ser entendida em sua plasticidade
própria, largo o suficiente para compreender um amplo dispositivo histórico-político, que abarcaria
distintos modos de governação da vida, seja por meio de políticas estatais, violentas ou não, seja por
meio de induções comportamentais promovidas pelo mercado neoliberal.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
De todo modo, voltando-nos para a realidade histórica, certo é que nunca
houve e nunca haverá uma sociedade em que apenas o poder soberano estará
presente; tampouco houve ou haverá uma sociedade em que apenas a biopolítica
estará presente. É essa relação entre soberania e biopolítica, portanto, como um
desdobramento da relação entre direito e vida, que se faz pertinente de ser pensada.
Também em relação a Hannah Arendt a hermenêutica, em sua forma pura e
simples, é ultrapassada. Apesar de suas intensas análises sobre o totalitarismo,
faltou-lhe a biopolítica para que a real natureza dessa questão fosse explicitada. É aí
que entra Foucault, que teria se debruçado bastante sobre a biopolítica, mas jamais
realizara o nexo essencial que ele guarda com os campos de concentração
propriamente ditos. Esse argumento de Agamben ganha ainda mais peso quando
lemos em Homo sacer que o campo de concentração é o paradigma da biopolítica
contemporânea (AGAMBEN, 2010, p. 116). É verdade que Foucault realiza um
estudo sobre o nazismo e sobre o racismo de Estado, mas, para Agamben, as
análises de Foucault nesse aspecto não foram até o essencial. Por sua vez, o
campo, como fruto da exceção declarada pelo chefe do poder executivo, consiste,
sobretudo a partir de Carl Schmitt, numa previsão jurídica normativa teoricamente
fundamentada. Isso significa que é preciso de fato realizar um estudo conjunto dos
campos de concentração, da biopolítica e do embasamento jurídico que, juntos,
permitiram que a democracias contemporâneas tivessem esse sutil limiar com o
totalitarismo e suas técnicas de governo. A vida, nesse cenário biopolítico, nunca é
apenas um dado biológico. De antemão, a vida aparece como uma tarefa política,
uma política que se ocupa da vida, uma biopolítica. Como bem nos lembra
Agamben, a diferença entre democracia e totalitarismo é uma questão de grau, e
não uma questão de natureza, e o que caracteriza o totalitarismo do século XX é a
identidade dinâmica entre vida e política (AGAMBEN, 2010, p. 111). É preciso,
portanto, se avaliar as técnicas de governo, os dispositivos que de fato compactuam
com essa política e esse direito que capturam a vida, controlam-na, desfazem-se
dela ou simplesmente abandonam-na à própria sorte.
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2 SOBRE A POLITIZAÇÃO DA VIDA
Michel Foucault e Hannah Arendt são dois dos maiores filósofos do século XX
e ambos, cada um de sua forma, teorizaram os fenômenos políticos de que foram
contemporâneos. É no interior da diversificada obra de cada um desses autores que
Agamben irá encontrar o fundamento para toda a sua investigação jurídico-política
de maior envergadura presente no projeto Homo sacer. O fenômeno comum ao
francês e à alemã que servirá de ponto de partida para Agamben é o da politização
da vida.
Mas o que poderíamos chamar de “limiar da modernidade biológica” de uma
sociedade se situa no momento no qual a espécie entra como questão em
suas próprias estratégias políticas. O homem, por milênios, permaneceu o
que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de uma
existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em
questão a sua vida de ser vivente (FOUCAULT, 1976, 188).
Para Arendt, Foucault e Agamben, portanto, o ingresso da vida biológica no
centro da política, processo esse que Agamben denomina politização da vida,
corresponde ao evento importantíssimo da história política ocidental. Decisivo,
porém, é o fato de que essa vida nua tenha saído das margens e tenha passado a
ocupar o centro da política (AGAMBEN, 2010, p. 16), confundindo-se com o espaço
político ele mesmo. Esse último fenômeno é responsável por uma transformação
radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico. Segundo
Agamben,
Somente em um horizonte biopolítico, de fato, será possível decidir se as
categorias sobre cujas oposições fundou-se a política moderna
(direito/esquerda; privado/público; absolutismo/democracia etc.), e que se
foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa
verdadeira zona de indiscernibilidade, deverão ser definitivamente
abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o significado que
naquele próprio horizonte haviam perdido (AGAMBEN, 2010, p. 112).
É no entrecruzamento desses dois autores, que dialogam diretamente
(Foucault) ou indiretamente (Arendt) com a biopolítica que Agamben produzirá seus
trabalhos.
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2.1 FOUCAUL: DO PODER SOBERANO À BIOPOLÍTICA
No curso que deu no Collège de France em 1976, “Em defesa da sociedade
(Il faut défendre la société)”, a questão sobre a qual Foucault se debruçou foi sobre
possibilidade de se lançar mão do princípio da guerra para a decriptação das
relações de poder (SPECTOR, 1997, p. 196). Essa hipótese, a qual Foucault chama
de “hipótese Nietzsche”, foi inspirada pela falta de um modelo adequado para a
compreensão do poder político. Até então, todas as referências e estudos dedicados
à questão do poder político incorriam nos vícios das teorias jurídico-filosóficas. A
questão tradicional, segundo Foucault, era: como que o direito pode conter o poder?
Ou ainda: como o direito pode legitimar os atos do soberano? Essas são as
questões que estiveram sempre presentes nas reflexões sobre o poder, e que
ganharam destaque com a reativação do direito romano no meio da Idade Média
(FOUCAULT, 1997, p. 23). Para Foucault, no entanto, muito antes de se perguntar
sobre o que é o poder, trata-se de perguntar pelo “como do poder” (FOUCAULT,
1997, p. 21). Isto é, Foucault está interessado em investigar os tipos de poderes que
são capazes de produzir discursos de verdade, ou ainda, sobre os efeitos de
verdade emitidos por esses poderes. Logo, o poder, conforme entendido por
Foucault, goza de um sentido muito mais amplo e analítico que a noção tradicional
de poder.
Em A vontade de Saber, primeiro volume da História da sexualidade,
publicado no mesmo ano em que pronunciou o curso “Em defesa da sociedade”,
Foucault retoma esse mesmo problema das construções jurídico-políticas, que
fazem uso de uma noção de poder necessariamente negativa, repressiva. Dessa
conjuntura histórica, Foucault destaca como principal característica do poder
soberano o direito de vida e de morte, provavelmente proveniente da antiga pátria
potestas que concedia ao pai de romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos
como bem entendesse. O mesmo valia para os escravos nesse registro histórico.
Em ambos os casos, a lógica era a de que da mesma forma como o pai deu/permitiu
a vida, a ele era concedido o direito de retirá-la (FOUCAULT, 1976, p. 177). As
modernas doutrinas políticas, no entanto, como bem lembra Foucault, já não levam
essa lógica tão ao pé da letra. Os teóricos clássicos já não consideram que esse
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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poder soberano possa ser exercido de forma absoluta e incondicional na lógica
privada romana (FOUCAULT, 1976, p. 177). A moderna doutrina da soberania entende
que o exercício de direito de vida e de morte sobre os súditos se dá de uma forma
indireta, quando o “corpo” do soberano, sua existência ou sua autoridade estão
ameaçados. É por isso que o mais correto seria afirmar que ao soberano é lícito
expor a vida dos súditos num caso de ameaça externa.
Para sua defesa própria, portanto, o soberano é legitimado a fazer guerra. Já
quando a vida do soberano sofre uma ameaça interna, entende-se preenchida a
condição para que o soberano exerça sobre a vida do súdito um poder direto, o
poder de fazer morrer. A partir dessa observação Foucault conclui que o poder
soberano é um poder de “fazer morrer ou deixar viver” (FOUCAULT, 1976, p. 178), pois
o poder sempre se exerce sobre a vida a partir da morte, a partir da possibilidade de
subtraí-la, de eliminá-la.
Tendo em vista essa caracterização do poder soberano, é preciso se levar em
conta um princípio geral que guiou Foucault em suas pesquisas sobre o mesmo: os
edifícios jurídicos de nossa sociedade foram elaborados à requisito e em benefício
do poder real. “Dito de outra forma, creio que o personagem central, em todo o
edifício jurídico ocidental, é o rei. O Rei é o que está em questão, é do rei, de seus
direitos, de seu poder, dos limites eventuais de seu poder” (FOUCAULT 1997, p. 23).
Logo, a teoria do direito, criada inteiramente em torno do poder real, tem como
problema central a questão da legitimação da soberania. Com efeito,
Dizer que o problema da soberania é o problema central do direito nas
sociedades ocidentais significa que o discurso e a técnica do direito tiveram
essencialmente por função dissolver, no interior do poder, o fato da
dominação, para fazer aparecer no lugar dessa dominação, que se queria
reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da
soberania e de outro, a obrigação legal de obediência (FOUCAULT, 1997, p.
24).
A partir disso, Foucault enxerga a necessidade de se inverter a análise do
discurso do direito. É preciso, segundo o francês, ir além da realeza, desse sujeito
centralizador do direito. A análise do poder no âmbito jurídico não deve se deter ao
estudo da lei. Também são veículos importantes do direito o conjunto de aparelhos,
instituições, regramentos que aplicam o direito. Ou seja, o direito é veiculado e
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
realizado tanto por relações de soberania, cuja função é a legitimação do poder,
quanto relações de dominação em suas múltiplas formas. É esse lado, das relações
de dominação, que interessa à Foucault nesse momento. E por dominação não se
deve entender essa relação entre rei, na posição central, e súditos, como se
estivéssemos a falar de uma relação de obediência, nem de dominação num sentido
global, no sentido de que há grupos que dominam outros grupos.
Para conseguir essa expansão de seu campo de análise para além da
tradicional
análise
da
soberania,
Foucault
estabelece
algumas
premissas
metodológicas que podem ser resumidas da seguinte forma: apreender o poder na
extremidade de suas manifestações jurídicas, isto é, no local em que ele é menos
jurídico; apreender o poder em sua face mais externa, direta e imediata, tendo em
vista seus efeitos reais; o poder deve ser visto em forma de rede, como algo que
transita entre os indivíduos, e não necessariamente se aplica a eles; a análise deve
seguir sempre o sentido ascendente, ou seja, a partir dos mecanismos infinitesimais
(de baixo) até as formas de dominação globais; por fim, na base, as redes de poder
não dão origem a ideologias, mas a instrumentos efetivos de formação de acúmulo
de saber, dentre eles, métodos de observação, técnicas de registro, de
procedimentos, de investigação e de pesquisa (FOUCAULT, 1997, p. 25-30).
Diante
dessa
metodologia,
que
Foucault
retoma
e
reformula
incessantemente16, o filósofo se afasta da teoria marxista “segundo a qual o Estado,
composto de um aparelho repressivo e de um aparelho ideológico, é instrumento de
opressão da classe dominante” (SPECTOR, 1997, p. 69)17. Isso significa que a análise
desempenhada por Foucault não parte de uma contradição fundamental encontrada
no seio de sociedade, tal como de proletários e detentores dos meios de produção,
como se essa contradição correspondesse a uma lei do funcionamento histórico das
sociedades. Ao contrário, Foucault parte do poder em sua multiplicidade,
heterogeneidade e difusão, sem conceber estruturas prévias e fixas de ordenação
social. Mesmo as instituições, tão analisadas e comentadas por Foucault, nada mais
são do que produtos históricos, resultado do corpo a corpo, dos funcionamentos e
16Uma
das características da obra foucauldiana é essa disposição em retomar seus escritos
precedentes, sem que haja uma mudança radical em sua abordagem. Trata-se, antes, de um trabalho
árduo e constante de refinamento de suas análises.
17“(…) selon laquelle l´État, composé d´un appareil répressif et d´un appareil idéologique, est
l´instrument d´oppression de la casse dominante“.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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não funcionamentos das relações sociais entretidas. As instituições correspondem à
cristalização das relações de força presentes no campo social, e que podem, aí sim,
servir de amparo à dominação. A forma como Foucault aborda as instituições,
portanto, não é compatível com a análise das superestruturas das teorias marxistas
(SPECTOR, 1997, p. 69).
A dedução, segundo Foucault, é sempre a perspectiva mais fácil. Sendo a
mais fácil, o filósofo desconfia dela, por ser também a mais apressada e a menos
criteriosa. “Eu creio que qualquer coisa pode ser deduzida do fenômeno geral da
dominação da classe burguesa” (FOUCAULT, 1997, p.28). Ou seja, para Foucault,
não se trata de negar que haja uma classe burguesa ou que ela de fato exerça uma
dominação global. Ele só não está de acordo com essa metodologia descendente
(por dedução) dos fenômenos, que em última instância tem como princípio de
inteligibilidade último um sujeito como causa, algo como um sujeito da história. Logo,
se há técnicas de dominação exercidas pela classe burguesa, Foucault nos orienta a
investigar a forma pela qual essas técnicas se tornaram interessantes para ela, isto
é, sem ver a classe burguesa como a instauradora de técnicas. É preciso se buscar
antes os efeitos, do que propriamente as causas. O raciocínio de Foucault parte da
constatação da existência de mecanismos de controle que se tornaram técnicas
economicamente profícuas e politicamente úteis (FOUCAULT, 1997, p. 29). A partir
dessa utilidade e dessa rentabilidade das técnicas é que elas se apresentam como
interessantes para a burguesia, as quais passam a fazer uso das técnicas.
Em suma, é preciso se desvencilhar do modelo do Leviatã, desse modelo de
um homem artificial, que englobaria todos os indivíduos reais, e cujos cidadãos
seriam o corpo, mas cuja alma seria a soberania. É necessário estudar o poder fora
do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela
instituição do Estado; trata-se de analisar a partir das técnicas e táticas de
dominação (FOUCAULT, 1976, P. 30)18.
A partir de sua metodologia própria, Foucault nos mostra que o poder político
extrapola a teoria jurídica. Ele a ultrapassa, a transborda. A partir dos séculos XVI e
18“En
somme, il faut se débarrasser du modèle du Léviathan, de ce modèle d´un homme artificiel, à la
fois automate, fabriqué et unitaire également, qui envelopperait tous les individus réels, et dont les
citoyens seraient le corps, mais dont l´âme serait la souveraineté. Il faut étudier le pouvoir hors du
modèle du Léviathan, hors du champ délimité par la souveraineté juridique et l´institution de l´État ; il
s´agit de l´analyser à partir des techniques et tactiques de domination”.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
XVII (que na periodização foucauldiana corresponde à época clássica), Foucault
detecta a emergência de uma nova configuração de poder que ilustra bem isso:
trata-se de emergência do poder que incide sobre a vida.
A introdução da biopolítica como chave de leitura da política contemporânea
foi feita por Foucault ao grande público em 1976, no último capítulo de A vontade de
saber. O conceito também foi aprofundado no curso que Foucault ministrou no
mesmo ano no Collège de France, Em defesa da sociedade, quando serviu de
suporte crítico do modelo jurídico de análise do poder. Mas a biopolítica, assim como
o poder disciplinar – outra forma de poder que parecia não poder ser explicada pelo
direito – estava comprometida não com o registro da norma, do jurídico, mas do
normalizador. É a partir desse poder normalizador que Foucault irá dedicar seus dois
próximos cursos ministrados na mesma instituição.
Esse poder normalizador, por sua vez, não poderia ser investigado da mesma
forma que o poder jurídico. Por essa razão, Foucault recorre ao conceito de
“dispositivo”, que faz referência a uma rede heterogênea de poder, saber que são os
responsáveis pela produção da experiência dos indivíduos no que diz respeito a
determinados temas. É assim com sua formulação do dispositivo da sexualidade.
Como explica Spector, a sexualidade para Foucault aparece como um problema
central, pois ela se encontra no ponto de encontro dos dois níveis de atuação do
poder normalizador, que é anatomopolítica e a biopolítica, isto é, a disciplina e a
regulação, ou ainda, o corpo individual e a espécie (SPECTOR, 1997, p. 69).
Segundo Agamben, Foucault teria o mérito de realizar essa grande
descoberta do caráter biopolítico da política moderna, mas lhe faltara um estudo
mais aprofundado que o permitisse articular a biopolítica ao fenômeno totalitário, o
que o teria levado a não abordar o principal fenômeno biopolítico da modernidade
que é o campo de concentração. Esse é um paço que só será possível com as
precisas análises de Arendt.
2.2 DO ANIMAL LABORANS AO HOMO SACER
Hannah Arendt é uma inspiração para Agamben em inúmeros sentidos. A
começar pela distinção que a autora faz em A condição humana entre oikos e pólis,
53
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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a primeira correspondendo ao domínio da zoé, a segunda ao domínio da bíos.
Conforme já visto com Foucault, a modernidade política no ocidente é marcada pela
inversão dessas categorias clássicas, de modo que a zoé, a vida nua segundo
Agamben, se torna o objeto privilegiado do poder. No entanto, assim como faltara a
Foucault a análise das categorias jurídicas em seu trato da biopolítica, Arendt jamais
dera o passo decisivo de unir as análises de A condição humana a seu Origens do
totalitarismo. Esse passo, dado finalmente por Agamben, é fundamental para o
desvelamento da verdadeira natureza do campo de concentração, que não deve ser
entendido exclusivamente do ponto de vista jurídico, isto é, como um local onde o
direito se aplica desaplicando-se, ou ainda, onde a lei é existente (continua a viger),
mas não é aplicada (enforced); o campo de concentração para Agamben não é
apenas um lugar onde os que nele residem estão com suas garantias fundamentais
suspensas, mas é um espaço de produção da vida nua, vida essa que nada mais é
do que o produto por excelência dessa política da biopolítica.
Para além, ainda, dessa frutífera análise do fenômeno totalitário, Arendt
contribui para pensarmos a distinção entre política e violência, tendo sobretudo
como pano de fundo histórico uma política que se dá necessariamente como
violência. Arendt, conforme afirma Duarte, entende que por detrás da confusão
tradicional entre poder e violência - e ainda outras noções como força (force),
autoridade (authority), vigor (strengh) – esconde-se a questão crucial de quem
domina quem (DUARTE, 2010, p. 305). O encadeamento lógico das noções poder,
dominação, obediência, coerção e violência é um vício da tradição que acaba por
ofuscar o “fenômeno essencial não violento da geração do poder por meio da ação
coletiva concertada” (DUARTE, 2010, p. 305). As análises de Arendt, portanto,
pretendem, assim como as de Agamben, trazer à luz a diferença essencial entre a
“política radicalmente democrática, considerada em termos da participação coletiva
e do discurso persuasivo entre uma pluralidade de agentes, e a violência [...] que
destrói o livre curso das relações de poder entre os cidadãos” (DUARTE, 2010, p.
305). Violência e poder, contrariamente ao que afirma a tradição política, são
inversamente proporcionais à medida que quanto maior a legitimidade de um poder,
menos violento ele será; o mesmo vale para o sentido contrário: quanto menor a
54
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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legitimidade do poder instituído, maior dispêndio de violência será necessário para
manter o poder estabelecido (DUARTE, 2010, p. 305).
Tanto Agamben quanto Duarte entendem que ultrapassar o texto de Arendt e
unir seus escritos à noção de biopolítica não implicaria um conflito fundamental com
o espírito arendtiano; ao contrário, essa interpretação pouco ortodoxa dos textos de
Arendt permitiria a adesão a um de seus principais ensinamentos políticos, que é o
comprometimento com a compreensão do próprio presente. Nesse sentido, afirma
Duarte que
A noção de biopolítica [...] permite demonstrar que a reflexão de Arendt
ilumina as principais crises políticas da modernidade tardia, nas quais
experimentamos a política sob diferentes modalidades da violência, seja ela
a violência extraordinária do totalitarismo, ou a violência ordinária levada a
cabo por meios burocrático-policiais nas democracias realmente existentes
(DUARTE, 2010, p. 308).
Além disso, a hipótese mais radical e interessante que podemos extrair de
uma leitura conjunta de Arendt e de Agamben diz respeito “às fundamentais
diferenças fenomênicas existentes entre o Estado democrático de direito e o Estado
totalitário” (DUARTE, 2010, p. 308). Não se trata de afirmar que entre as
democracias liberais e o totalitarismo haja uma identidade, uma natureza comum.
Antes, o que Agamben parece identificar, e que é possível de se projetar para os
trabalhos de Arendt, é que há um “vínculo biopolítico entre a violência política
contemporânea, em suas formas totalitárias, e a glorificação dos ideias e valores do
animal laborans” (DUARTE, 2010, p. 315-316)19. Isso leva Duarte a afirmar que
“tanto no totalitarismo quanto nas democracias liberais de massa e mercado, ainda
sobre graus e modalidades totalmente distintos, o que vemos é a redução do
homem como agente político à figura do animal laborans e do homo sacer”
(DUARTE, 2010, p. 309). Novamente, enxergamos essa dimensão da zoé
assumindo o lugar do que a bíos detinha no pensamento político clássico.
A condição humana, Arendt “argumenta que a Revolução industrial, ao trazer a ampliação sem
precedentes do âmbito das necessidades naturais e do trabalho e do consumo, trouxe consigo a
transformação do homo faber, o tipo de homem moderno concebido como fabricante artesanal de
obras duráveis, no animal laborans, o homem contemporâneo concebido como trabalhador
constantemente empenhado na manutenção do ciclo vital da espécie e da própria sociedade em que
vive”.
19Em
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Se para Agamben o campo de concentração é o paradigma político da
modernidade, para Arendt o totalitarismo - fenômeno que inaugurou a técnica do
campo tal como o concebemos hoje - é visto ao mesmo tempo como uma ruptura e
como cristalização dos fenômenos políticos precedentes. Segundo Duarte, trata-se,
de um lado, de uma ruptura, “pois o considerou como fenômeno político sem
precedentes históricos, irredutível às formas de dominação políticas previamente
registradas pela tradição do pensamento político, tais como as ditaduras, tiranias e
despotismos” (DUARTE, 2010, p. 310). Por outro lado, Arendt jamais faz do
totalitarismo e de suas técnicas um evento supra histórico. O totalitarismo não é um
“acidente no percurso da realização crescente da liberdade” (DUARTE, 2010, p.
311); antes, ele é “a resultante de uma série de condições históricas e sociais que
dizem respeito ao coração mesmo da política na modernidade, as quais tornaram
possível a conjugação da ciência, da tecnologia e da burocracia administrativa”
(DUARTE, 2010, p. 311).
É a partir dessa historicidade do fenômeno totalitário que surge o dever de
nos atentarmos às presenças de elementos políticos que funcionam como radicais
livres que a depender da conjuntura podem reagir e desencadear novos fenômenos
totalitários. Já ao final de suas conspirações sobre o totalitarismo, Arendt nos
adverte sobre a insuficiência da derrota do nazismo e do stalinismo, o que por si só
“não eliminaria a tentação de recorrer a soluções totalitárias enquanto ainda
estivermos diante de massas humanas desprovidas de voz e de um lugar próprio no
mundo” (DUARTE, 2010, p. 311-12).
O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que
hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes
massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a
pensar em nosso mundo em termos utilitários. Os acontecimentos políticos,
sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os
instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. (...)
Os nazistas e bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de
extermínio, que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso
de população, das massas economicamente supérfluas e socialmente sem
raízes, são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência. As soluções
totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários
sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível
aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem
(ARENDT, 1987, p. 510-511).
56
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Mas quando se pretende conectar o pensamento de Arendt à biopolítica, o
percurso necessário é aquele por meio do qual a autora elucida a transformação
histórico-ontológica do agente político em animal laborans. O que Agamben chama
de politização da vida tem seus germes num processo que Arendt detecta a partir do
século XIX que diz respeito a uma política que é comprometida com o “crescimento
não natural do natural” (unnatural growth of the natural) (DUARTE, 2010, p. 310). A
partir dessa fórmula enigmática, Arendt parece estar se referindo a redução do
homem ao ciclo repetitivo do seu próprio funcionamento vital que se deu sobretudo
nas modernas sociedades industriais de massa, nas quais o trabalho contínuo
garante a sobrevivência do trabalhador e da espécie mediante a produção voltada
ao consumo imediato. A partir desse modo de produção, que transforma a vida num
ciclo infernal de trabalho e consumo, os indivíduos passam a ter cada vez menos
espaço, disponibilidade e disposição para ter suas interações no espaço público
(onde a política de fato tem lugar). É dessa forma que se deve compreender o
processo por meio do qual o espaço público foi gradualmente convertido no espaço
privado das trocas econômicas (DUARTE, 2010, p. 316). Em tal sociedade, o direito
ao trabalho converte-se em necessidade de trabalhar, pois é um pressuposto da
própria existência. De acordo com Arendt,
A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e resultou
na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária.
Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega
num instante em que só se pode ser contraproducente. A sociedade de
trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras
atividades superiores e mais significativas em benefício das quais valeria a
pena conquistar essa liberdade. (...) O que se nos depara, portanto, é a
possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem
a única atividade que lhes resta. Certamente, nada poderia ser pior
(ARENDT, 1995, p. 12-13).
A dimensão biopolítica, portanto, do trabalho de Arendt está nesse ciclo
vicioso de uma política que tem como objetivo o incremento da vida e da felicidade
do animal laborans. Como já se viu com Foucault, no entanto, essa preocupação,
esse cuidado com a vida do animal laborans vem acompanhado da multiplicação
das repressões violentas e dos genocídios, que não se dão necessariamente em
suas formas diretas. Basta lembrarmos que a fórmula da biopolítica é “fazer viver e
57
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
deixar morrer”. Como afirma Duarte, “a tese arendtiana de nossa atual experiência
da política, que a assume em termos do controle administrativo e do constante
incentivo das necessidades vitais do animal laborans, tem como correlato o
assassinato em pequena, média ou larga escala” (DUARTE, 2010, p. 323).
A partir de uma reflexão sobre aqueles que foram abandonados à própria
sorte, isto é, sobre a experiência dos internos dos campos de concentração, dos
refugiados e dos apátridas, Arendt conclui pela impossibilidade de se fundar uma
verdadeira política sobre a mera vida ou mesmo sobre a natureza humana. Esse
fundamento na nudez humana é condição suficiente para que haja a redução do
animal laborans à condição de vida nua do homo sacer. A concepção de política
para Arendt, portanto, é apartada de qualquer substrato natural ou qualquer coisa
que já se conceba misteriosamente dada de antemão; a política para Arendt tem a
ver com a construção de um “mundo comum”, artificial, e tem por pressuposto uma
pluralidade humana, uma pluralidade de agentes (DUARTE, 2010, p. 324-325). Um
bom exemplo dessa ideia de artificialidade contra natureza está na explicação que
Arendt dá sobre sua concepção de igualdade:
A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera
existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto
é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais; tornamo-nos
iguais como membros de um grupo, por força da nossa decisão de nos
garantirmos direitos reciprocamente iguais. A nossa vida política baseia-se
na suposição de que podemos produzir a igualdade através da organização,
porque o homem pode agir sobre o mundo comum e muda-o e construí-lo
juntamente com os seus iguais e somente com os seus iguais (ARENDT,
1987, p. 325).
É também com essa necessidade de se afastar do simplesmente natural, que
Arendt constrói sua célebre afirmação de que a cidadania é “o direito a ter direitos”,
tendo em vista que a eficácia dos direitos humanos está vinculada ao pertencimento
dos homens a uma comunidade por eles construída, e que essa comunidade o
reconheça, o dignifique e o proteja (DUARTE, 2010, p. 325).
A partir dessas linhas gerais do pensamento de Arendt, Agamben pode somala às análises biopolíticas de Foucault, e pensar a violência que faz parte da política
estatal contemporânea ao caráter biopolítico que a possibilita e fundamenta.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3 A MODERNIDADE POLÍTICA SEGUNDO GIORGIO AGAMBEN
Até agora, pudemos constatar a pertinência do diagnóstico biopolítico de
Foucault e das considerações pertinentes à violência com Arendt. A partir de agora,
o que pretendemos adentrar alguns conceitos de Agamben que não são tão
evidentes e que colocam problemas a todos os leitores de primeira mão de sua obra.
Nesse sentido, abordaremos, primeiro, a questão do paradoxo da soberania. Em
segundo lugar falaremos da soberania como bando. Por fim, falaremos do homo
sacer, dessa figura extremamente enigmática e da qual Agamben lança mão como
paradigma de compreensão da modernidade.
3.1 O PARADOXO DA SOBERANIA
Segundo Agamben, o paradoxo da soberania se anuncia na frase “o soberano
está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. Essa afirmação
ganha sua máxima compreensão se aliada à ideia de Schmitt de que o soberano é
aquele que declara o estado de exceção e, portanto, é aquele que detém a
capacidade de suspender o ordenamento jurídico, o que não o exclui totalmente do
próprio ordenamento, que precisa de uma decisão sobre essa suspensão para saber
se a constituição será in toto suspensa (AGAMBEN, 2010, p. 22).
A noção de exceção, que ilumina todo o raciocínio de Schmitt e que já foi
aprofundada quando dele tratamos, entra agora em cena também em Agamben. O
problema da exceção, amplamente trabalhado em Homo sacer, é exemplarmente
explicado em Estado de exceção, onde Agamben o relaciona ao problema da
soberania, situado por sua vez no debate entre Schmitt e Benjamin. É aqui que o
“antídoto” benjaminiano, ao qual fizemos referência na seção dedicada à Schmitt
aparece em sua plenitude. De acordo com Agamben, a diferença do trato que cada
um desses autores confere à violência é essencial para se compreender o problema,
pois a soberania da lei é insuficiente e não pode prescindir da violência para
conservar sua potência (tal como o quer Kelsen). O estatuto da violência, que pode
ser averiguado em seu comentário à Hobbes, é essencial para Agamben tendo em
vista que
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A violência do estado de natureza nunca é um estágio superado, uma
ameaça removida nos primórdios da vida política: antes pelo contrário, ela é
constitutiva da polis como seu princípio interno, de modo que se mantém
presente como possibilidade permanente da decisão soberana sobre o
estado de exceção (GIACÓIA, 2008, 40).
O estado de exceção, como já visto, consiste num “momento de suspensão
radical do direito em função de sua própria conservação” (BOLTON, 2012, p. 163),
isto é, numa pragmática da decisão soberana, da auctoritas. Agamben fornece uma
explicação breve desse aspecto da auctoritas na seguinte passagem:
No caso extremo – ou seja, aquele que melhor a define, se é verdade que
são sempre a exceção e a situação extrema que definem o aspecto mais
específico de um instituto jurídico – a auctoritas parece agir como uma força
que suspende a potestas onde ela agia e a reativa onde ela não estava
mais em vigor. É um poder que suspende ou reativa o direito, mas não tem
vigência formal como o direito (AGAMBEN, 2004, p. 121).
Segundo Schmitt, a legitimidade sobre o estado de exceção é proveniente de
si mesma enquanto ela se manifesta como verdadeiro poder constituinte, que
mesmo sendo fora da lei, conserva consigo algo de jurídico. Segundo Bolton,
A topologia da soberania configurada aqui mostra que a exceção é o
‘exterior’ que o próprio ordenamento jurídico abre em seu “interior” toda vez
que a soberania não será mais que a pragmática da decisão capaz de
articular o “fora” com o “dentro” do direito em um só movimento (BOLTON,
2012, 163).
Mas essa é apenas uma das versões da história. Agamben acrescenta à
análise da soberania em sua relação com o estado de exceção as críticas de
Benjamin. Segundo Agamben, Benjamin em Para uma crítica da violência, 1921
(BENJAMIN, 2011) visava assegurar a possibilidade de uma violência absolutamente
“fora” (ausserhalb) e “além” (jenseits) do direito. Com isso, Agamben entende que
filósofo pretende desativar a dialética do que ele chama de “violência mítica”,
substituindo-a por uma violência sem fim algum. Essa violência mítica, segundo
Benjamin, se desdobra em “violência fundadora” (rechtsetzende Gewalt) e “violência
conservadora”
(rechtserhaltende
Gewalt)
do
direito,
as
quais
constituem
60
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
dialeticamente uma repetição, uma circularidade (AGAMBEN, 2004, p. 84). Para
enfrentar essa circularidade dialética, isto é, essa alternância entre fundação e
conservação do direito, é que Benjamin formula uma terceira figura, que ele
chamará de “pura” (reine) capaz de acabar com essa circularidade e instaurar uma
nova época histórica. Essa violência pura – ou divina, como ele também a chama, e
que na esfera humana é revolucionária – não põe, nem conserva o direito, mas o
depõe (Entsetzung des Rechts).
Essa violência pura, sem fim, pura medialidade, é o que instaura uma espécie
de interrupção messiânica20 através da qual se quebra a circularidade da violência
mítica sobre a qual se desenvolve a soberania.
Agamben ainda destaca uma segunda crítica à teoria schmittiana da
soberania. Em Sobre o conceito de História (BENJAMIN, 1987, p. 222-223), 1940,
Benjamin faz uma outra distinção que podem ser lidas em conjunto com as duas
formas de violência elencadas no texto de 1921. Benjamin afirma em sua oitava tese
sobre o conceito de história o seguinte:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que
vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos
que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso,
nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia
da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do
progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato
de que os episódios que vivemos no século XX "ainda" sejam possíveis, não
é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o
conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante
assombro é insustentável (BENJAMIN, 1987, p. 222-223)
Verificamos aqui a referência a um “verdadeiro estado de exceção”. Com
efeito, é essa a proposta de Benjamin, isto é, a de instaurar o verdadeiro estado de
exceção que leve em conta uma outra versão da história- uma história não
20O
tema do messianismo é bastante complexo e não teremos tempo de abordá-lo em detalhes na
presente pesquisa. Em breves palavras, esse tema do messianismo é presente em diversos
pensadores da época, sobretudo entre os judeus, que aguardam ainda a vinda de Cristo. Em Walter
Benjamin, Hannah Arendt e até mesmo em Franz Kafka, o tema do messianismo ganha contornos de
ação revolucionária. Trata-se, antes, de uma espécie de ação originária, revolucionária e criativa,
capaz de inovar no mundo, do que propriamente a vinda de Cristo à terra.
61
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
jupteriana (FOUCAULT, 1997, p.60)21 - uma versão que seja contada pelos oprimidos,
e não pelos opressores. Esse verdadeiro estado de exceção tem uma função
análoga à da violência pura do ensaio de 1921: se antes o objetivo era a interrupção
da circularidade dialética entre as duas formas de violência mítica, instauradoras e
mantenedoras da lógica da soberania, o verdadeiro estado de exceção pretende
abolir qualquer formação soberana, suspendendo a suspensão mesma do direito,
que é a característica fundamental da soberania segundo Schmitt. 22 O verdadeiro
estado de exceção, proposto por Benjamin, que implica uma nova concepção de
história e uma quebra da lógica da soberania, vem se contrapor ao estado de
exceção fictício, que é o proposto, segundo Benjamin, por Schmitt, o qual não abre
espaço para mudanças reais, mas apenas a manutenção do status quo, a
manutenção da soberania enquanto tal.
Logo, enquanto Carl Schmitt buscava legitimar a introdução da violência
anômica (que extrapola os limites legais) por meio da noção de exceção, a qual está
vinculada à própria definição de soberania para o jurista, Benjamin estaria realizando
exatamente o movimento contrário, a saber, não o de capturar e legitimar pelo direito
o uso de uma violência supra ou extralegal, mas justamente o de libertá-la do direito,
de excluí-la do ordenamento como uma previsão normal. Esse também parece ser o
raciocínio de Agamben. A resistência, a luta contra esse direito que alia soberania e
biopolítica não se dá por meio estritamente legais, mas por meio de ações políticas.
Portanto, Agamben está plenamente de acordo com Benjamin quanto à necessidade
de se assegurar que haja poderes que extrapolem o jurídico. O direito não deve,
como pretende Kelsen - e a própria teoria do Estado democrático - exaurir as
possibilidades de resistência e de ação política. Pelo contrário: Agamben entende
que é preciso questionar essa potência da máquina jurídica, que nas sociedades
democráticas contemporâneas só tem se reforçado.
O que Agamben faz, portanto, é denunciar essa estrutura de exceção, que
está mais presente no cotidiano dos Estados do que imaginamos. Se o campo se
tornou a técnica de governo dos Estados totalitários, não devemos nos enganar e
21De
uma forma geral, pode-se dizer que a história, até tarde e ainda em nossa sociedade, foi uma
história da soberania, uma história que se manifestou na dimensão e em função da soberania. É uma
história “jupteriana”. “D´une façon générale, on peut donc cire que l´histoire, jusque tard encore dans
notre société, a été une histoire de la souveraineté. C´est une histoire ‘juptérienne’”.
22Basta lembrar que soberano, para ele, é aquele que decide sobre o estado de exceção.
62
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
achar que só o campo de concentração nazista ou stalinista compactuem dessa
lógica soberana-biopolítica. Para Agamben, as prisões em condições desumanas, as
favelas sem condições habitacionais algumas, e também a situação dos apátridas,
dentre tantos outros exemplos, consistem em decisões biopolíticas soberanas. Não
fazer valer a lei para um certo tipo de vida, ou ainda, selecionar quais vidas
merecem o respaldo jurídico: esse é reflexo mais evidente do paradoxo da
soberania.
3.2 A SOBERANIA COMO BANDO
Até agora, a questão da soberania foi apresentada em sua relação intrínseca
ao problema da exceção, que revela em última instância o paradoxo da soberania.
Como veremos agora, o dispositivo da exceção será retomado por Agamben pela
noção de bando, a fim de tornar esses paradoxos jurídico-políticos uma verdadeira
condição da política ocidental, como um verdadeiro dado ontológico. Conforme
vimos
A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso particular que é
excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção
não está, logo, sem relação alguma com a norma; ao contrário, esta [a
norma] se mantém em relação com o aquele [o caso] sob a forma de
suspensão. A norma se aplica à exceção se desaplicando, se retirando dela.
Por consequência, o estado de exceção não é caos que precede o
ordenamento jurídico, mas a situação que resulta de sua suspensão
(AGAMBEN, 2010, p. 25)
Para caracterizar ainda mais precisamente essa exceção, Agamben recorre à
noção de bando (AGAMBEN, 2010, p. 35)23, sugerida pelo filósofo Jean-Luc Nancy,
para mostrar como se dá essa relação ininterrupta entre algo que é “entregado a
uma separação” e o seu pressuposto. A noção de bando é usada por Agamben
como uma estrutura histórico-ontológica que ilustra a operação realizada pela
exceção soberana. É um termo que guarda em si uma aporeticidade semântica
capaz de expressar a dupla vinculação da exceção. O que está em jogo no bando é
23Como
bem lembra Agamben, trata-se de uma noção proveniente do antigo termo germânico que
designa tanto a exclusão da comunidade quando o comando e a insígnia do soberano.
63
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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a captura e a exclusão da vida, uma exclusão-inclusiva da vida. O que Agamben
chama de bando, portanto, é a potência da lei de manter-se na própria privação, de
aplicar-se, desaplicando-se. O banido não é apenas posto fora da lei e como se a
esta indiferente fosse, mas é abandonado e colocado em risco num umbral de
indistinção entre interior e exterior, direito e fato, bíos e zoé.
É a partir da noção de bando que Agamben parece expor em sua forma mais
explícita o paradoxo da soberania: “não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2010, p. 35)
Isto é, uma vez que consideramos que a exceção é a estrutura da soberania, esta já
não pode mais ser concebida exclusivamente numa acepção puramente política,
nem mesmo puramente jurídica. A soberania, tendo sua estrutura pensada a partir
da exceção, não pode ser pensada como o resultado de uma potência externa ao
direito (Schmitt), nem a uma norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen). A
soberania é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si
através da própria suspensão (AGAMBEN, 2010, p. 35). A relação originária da lei para
com a vida a partir dessa caracterização da soberania em função da exceção não é
a de aplicação, mas a de a-bando-no, o que quer dizer que a lei só pode ser
aplicada porque ela se suspende e em última instância a vida resta à mercê do
(abandonada ao) poder. O bando, portanto, nada mais é do que uma outra forma de
se referir à relação de exceção:
Não é a exceção a que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendose, dá lugar à exceção e só desse modo se constitui como regra, mantendose em relação com ela. O particular ‘vigor’ da lei consiste nessa capacidade
de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamamos relação de
exceção a essa forma extrema de relação que inclui algo só por meio de
sua exclusão (AGAMBEN, 2010, p. 35).
Disso podemos reter que é a capacidade da regra de suspender a si mesma o
que a constitui como regra, ao contrário da exceção, que não se subtrai à regra. Ao
se auto suspender, a regra entraria num estado que Agamben, novamente na esteira
de Nancy, afirma como sendo o da “vigência sem significado”. É a esse particular
“vigor” da lei, a essa capacidade de continuar vigente, embora sem produzir seus
efeitos, que a lei é constituída como lei. “Vigência sem significado”, “pura forma de
lei” e “forma vazia da relação”: são essas outras formas pelas quais Agamben se
64
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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refere à essa relação de exceção, ou ainda, de bando. Para o italiano, é preciso se
pensar para além disso tudo, é preciso se pensar verdadeiramente o estado de
exceção sem uma referência à lei; é necessário se pensar uma configuração na qual
lei e vida se encontrem numa zona de indiscernibilidade, o que configuraria o estado
de exceção desejável por Agamben (e não aquele fictício e dependente da lei como
em Schmitt).
Por caracterizar o estado de exceção a partir da estrutura ontológico-política
do bando é que o problema jurídico-político da exceção soberana se torna um
problema estritamente biopolítico. Para o italiano, o bando consiste num dispositivo
biopolítico que inclui a vida no ordenamento jurídico apenas na forma de uma
exclusão. Isso significa que para Agamben a exceção é o segredo mais íntimo da
soberania, sua forma mais originária. Isso também significa que Agamben apenas
toma a definição de soberania de Schmitt como ponto de partida, colocando agora a
soberania não mais como a capacidade daquele que se diz soberano em declarar o
estado de exceção, mas como uma estrutura originária pertencente ao direito por
meio da qual ele próprio é capaz de capturar a vida. Com efeito, deixa-se de contar
com a existência de um sujeito que realiza as operações que Schmitt atribui ao
soberano, como a da decisão sobre o estado de exceção, isto é, da aplicação ou
não da lei. A soberania em Agamben, assim como a relação de exceção, aparecem
como uma qualidade do próprio direito (CASTRO, 2012, p. 61).24
Toda essa caracterização feita por Agamben da soberania operacionalizada
pela exceção a partir da estrutura ontológico-político do bando implica que sua
concepção de biopolítica seja bastante diferente da de Foucault. Enquanto este
reserva a noção de biopolítica para designar a configuração histórica do poder que a
partir do século XVIII começa a invadir a vida inteiramente (o que em termos
agambenianos é traduzido como “politização da zoé”), para Agamben, a biopolítica
constitui a estrutura histórico-ontológica da política no ocidente. Para o italiano, falar
24Ser
uma qualidade intrínseca ao direito não quer dizer exclusiva a ele. Como bem nota o professor
Edgardo Castro, essa relação de bando, que equivale à relação de exceção, é um conceito que
transcende a problemática da qual se ocupam especificamente as páginas de Homo sacer. Essa
mesma estrutura perpassa todos os âmbitos do pensamento do nosso tempo, com destaque para o
caso da linguagem: “também ela [a linguagem] funciona como um mecanismo de exclusão-inclusiva.
Como a lei pode ser aplicada na medida em que está em relação com um não aplicável; na língua
(langue), distinta da palavra (parole), os termos têm sentido independentemente de sua denotação e
podem aplicar-se aos casos singulares na medida em que mantêm-se com eles em uma relação de
pura potência”.
65
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
em política no ocidente implica falar em biopolítica. Por sua vez, estabelecer essa
co-originariedade entre política e biopolítica tem por consequência a necessidade de
se pensar a soberania e a vida nua de forma simétrica e numa íntima cumplicidade.
A partir dessa cumplicidade entre política e biopolítica no ocidente, isto é,
dessa relação intrínseca e necessária entre poder soberano e vida nua, Agamben se
vê autorizado a enunciar uma de suas grandes teses: a relação política originária é o
bando, relação essa que foi desnudada sobretudo na modernidade com o fenômeno
do campo de concentração (AGAMBEN, 2010, 176). Nesse sentido é que a
biopolítica ocupa o lugar de matriz originária sobre a qual se funda o ocidente. Além
disso, dessa mesma constatação, Agamben lança mão de uma das grandes
contribuições das análises feitas por Foucault, que diz respeito ao aspecto
eminentemente produtivo do poder, a fim de elucidar sua segunda grande tese: “o
rendimento fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como
elemento político original e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé e
bíos” (AGAMBEN, 2010, p. 176). Dessa forma, a vida nua não é concebida como um
dado natural, mas um produto do poder soberano. Assim, não há que se falar - ao
menos para Agamben - numa vida isenta às malhas do poder (uma conclusão que
compartilha com Foucault), numa vida pré-estatal, pré-contratual tal como os
mitologemas liberais costumam propor. A vida na reflexão agambeniana está sempre
já capturada, já inscrita no registro, nos códigos e nos dispositivos do biopoder.
Resta dizer que a noção de bando é usada por Agamben numa tentativa de
redirecionar a questão da soberania para além da relação de exceção e afastá-la
das teorias contratualistas. Apesar de prescreverem a mesma coisa (o bando e a
relação de exceção), o primeiro consiste numa chave para se transpor o problema
da soberania, que em princípio é um problema da filosofia política, para a dimensão
da filosofia primeira, isto é, para a ontologia. É nesses termos que Agamben
continuará explorando o paradoxo da soberania, e entrevendo sua possível
superação através do Benjamin chama de messianismo, e que na verdade diz
respeito à uma nova forma de se pensar a história, de pensar a relação dos homens
com o tempo e, assim, de se abrir espaço para uma nova forma de ação política, de
uma ação política inovadora e revolucionária.
66
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3.3 HOMO SACER: SOBRE A SACRALIZAÇÃO DA VIDA
Já em no ensaio de 1921, Para uma crítica da violência, Walter Benjamin intui
a necessidade de se indagar sobre o dogma da sacralidade da vida, o que
habitualmente se tratou como uma questão do domínio da antropologia. Seu
interesse, no entanto, pela sacralidade da vida, já aparece de certa forma vinculado
à questão da soberania. Com efeito, tendo em vista sua tentativa de desconstrução
do problema jurídico-político da soberania é que Benjamin chega à questão da
sacralidade da vida, o que faz desta, por si só, uma das questões centrais da
política.
A retomada de Agamben desse ensaio permite que o italiano reinscreva o
problema da biopolítica como um processo articulado à questão da sacralidade no
ocidente. No ensaio Elogio da profanação, Agamben afirma que
Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos
deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos
homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas
em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse
ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava
exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas
propriamente ‘sagradas’) ou infernais (nesse caso eram simplesmente
chamadas ‘religiosas’). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava
a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez,
significava restituí-las ao livre uso dos homens (AGAMBEN, 2007, p. 65).
A partir de tal citação podemos inferir o status que a figura do homo sacer
(AGAMBEN, 2006, 142)25 possui na obra de Agamben, notadamente no que diz
respeito à sua “especial indisponibilidade”. Essa figura que ele resgata do contexto
jurídico romano é usada como paradigma para denunciar a ambivalência da
sacralidade da vida. Segundo o filósofo, essa ambivalência está associada à própria
duplicidade do sacer que significa tanto “augusto, consagrado aos deuses”, como
25A
primeira ocorrência do termo Homo sacer nas obras de Agamben não foi na série que leva esse
nome que se iniciara em 1995 com a publicação do primeiro volume “Homo sacer: o poder soberano
e a vida nua I”, mas no livro “A linguagem e a morte”. Nesse sentido: “Por esta razão o sagrado é
necessariamente uma noção ambígua e circular (sacer significa, em latim, abjeto, ignominioso e, ao
mesmo tempo, augusto, reservado aos deuses; e sacros são a lei, e igualmente, aquele que a viola
(...)). Aquele que violou a lei, em particular o homicida é excluído da comunidade, é, pois, repelido,
abandonado a si mesmo e, como tal, pode ser morto sem delito: homo sacer ist est quem populus
iudicavit ob maleficium; neque faz est eum immolari, sed qui occidit paricidi non damnatur”.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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“maldito, excluído da comunidade”. Esse caráter ambíguo do sacer já fora descrito
por Émile Benveniste, linguista célebre e referência de vários trabalhos de Agamben,
que, no entanto, se deteve aos aspectos antropológicos e culturais do problema
(AGAMBEN 2010, p. 79)26. Agamben segue, então, a pista de Benjamin, e transpõe
a questão da sacralidade para a reflexão jurídico-política em torno do problema da
soberania. É essa leitura inspirada em Benjamin que permite a Agamben entender
que o homo sacer está, por definição, numa dupla e aporética condição: é
insacrificável e ao mesmo tempo matável.
(...) o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da
violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável
que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem
como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma
condenação, nem como um sacrilégio. Subtraindo-se às formas
sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir
humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana (...)
(AGAMBEN, 2010, p. 84)
A impossibilidade do sacrifício e a possibilidade de ser vítima de um homicídio
que não constitui crime representa, na perspectiva de Agamben, que o sacer se
defina também por uma relação de dupla exclusão: de um lado, uma exclusão do
direito divino (insacrificável), e por outro uma exclusão do direito humano
(matabilidade). O sacer, portanto, é objeto de violência que excede tanto a esfera do
direito quanto a do sacrifício, isto é, ele é subtraído à esfera do profano e do
religioso ao mesmo tempo, o que, segundo Agamben, o implica numa zona de
indistinção (AGAMBEN, 2010, p. 87). Uma das interpretações para essa sacralidade é
que ela seria, talvez, a forma originária de implicação da vida nua na ordem jurídicopolítica, o que concederia ao termo homo sacer o significado de uma relação política
originária, isto é, a vida como objeto de uma exclusão inclusiva, a vida abandonada,
à mercê do soberano (AGAMBEN, 2010, p. 86). Com efeito, conclui Agamben, decisivo
é, porém, que esta vida sacra tenha desde o início um caráter eminentemente
político e exiba uma ligação essencial com o terreno sobre o qual se funda o poder
soberano (AGAMBEN, 2010, p. 100). Isso porque homo sacer e soberano são opostos
26As
obras de consulta citadas por Agamben são Essais sur le sacrifice de Hubert e Mauss, 1899,
Völkerpsychologie, de Wundt, 1905, e ainda Formes élémentaires de la vie religieuse de Emile
Durkheim, 1912.
68
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
simétricos, na medida em que ambos consistem em conceitos-limites e residem na
zona de indistinção da soberania. Por um lado, o homo sacer é aquele que pode ser
morto por qualquer um, sem punição prevista para seu homicida, e que tampouco
não pode ser sacrificado; por outro, o soberano é aquele que pode matar
impunemente, e que ao exercer seu poder não realiza sacrifício algum. Dupla
suspensão, portanto, para ambos, do direito humano e do direito divino.
A figura do homo sacer é paradigmática para a compreensão do processo que
levou ao acirramento, na modernidade, entre política e biopolítica.
A sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política
contemporânea, que, como tal, desloca-se em direção a zonas cada vez
mais vastas e obscuras, até coincidir com a própria vida biológica dos
cidadãos. Se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem
sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.(
AGAMBEN, 2010, p. 113).
Essa citação pode ser entendida como um diagnóstico da modernidade a
partir dessa noção de sacralidade. A modernidade estaria longe de um afastamento
das formas do sagrado (SAFATLE, 2007)27. Ao contrário, Agamben é um autor que
enxerga na modernidade a consumação de aspectos teológicos, dentre eles a
consumação da figura do sacer. É isso que Agamben quer dizer quanto diz que “a
sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea”. A isso
se soma a afirmação da expansão dessa sacralidade “a zonas cada vez mais vastas
e obscuras até coincidir com a própria vida do cidadão”, o que torna a todos
virtualmente sacri, isto é, o que abandona todos os cidadãos a um ordenamento
jurídico-político que pode implantar a qualquer tempo e por qualquer razão uma
zona de exceção.
27Max
Weber possui um conceito de secularização do qual Agamben não compartilha. O italiano
segue as vias da secularização abertas por Carl Schmitt, Walter Benjamin e Georges Bataille, autores
esses que não concebem a secularização a partir da decadência do teológico como fonte da verdade,
dando lugar à um (ou mais) processo(s) de racionalização, como no caso de Weber, mas enxergam a
modernidade como a consumação última do teológico. Como se o sagrado, de forma mais sutil, e por
isso de forma mais ardilosa, estivesse presente em todas as esferas de nossas vidas da maneira
mais presente possível. Na contramão disso temos Hans Blumemberg, autor que critica
veementemente a ideia de secularização, a qual diminuiria o papel da modernidade em sua ruptura
com a tradição, notadamente a tradição medieval.
69
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GESTÃO E CONTROLE
Por sua vez, é justamente por meio desse caráter de sacralidade da vida,
tomada em sua ambivalência mais própria, que podemos compreender a relação
entre biopolítica e totalitarismo, tal como proposta por Agamben. A biopolítica é
possível como chave hermenêutica do totalitarismo para Agamben porque essa zona
de exceção, que nunca será declarada formalmente, é sempre existente com
respeito a uma certa classe de cidadãos. Para essa população, da qual “é preciso
defender a sociedade” - para usarmos uma expressão foucauldiana - o estado de
exceção é permanente, é a regra. É isso que teria faltado às análises de Hannah
Arendt, que se deteve num conceito mais clássico de totalitarismo, e não se deu
conta de que o totalitarismo contemporâneo só é possível de ser pensado a partir da
biopolítica. Para Agamben, não há totalitarismo sem biopolítica. O totalitarismo
moderno não pode ser compreendido a partir da noção de adversários políticos,
como se se tratasse de uma relação de amigo e inimigo do Estado. O totalitarismo
moderno se caracteriza pela possibilidade do extermínio massivo de cidadão
considerados como simples seres viventes pertencentes a uma população que por
alguma razão não são integráveis à sociedade que o Estado pretende defender. Não
se trata, portanto, de se defender de um povo, de uma nação, mas de uma
população.
É por isso que a biopolítica é tão importante para a compreensão do
totalitarismo moderno para o Agamben: nele, não se quer eliminar indivíduos em
função de questões políticas, mas por questões biológicas (como no caso do judeu,
do croata, do palestino, do muçulmano). É por isso que uma das conclusões do
primeiro livro da série Homo sacer é que “o campo, e não a cidade, é hoje o
paradigma biopolítico do ocidente” (AGAMBEN, 2010, p. 176). Não é a cidade, pois por
definição as disputas na cidade são disputas políticas, mas o campo o que elucida a
política moderna em sua essência.
A partir dessa leitura que Agamben faz da modernidade e das manifestações
biopolíticas da modernidade é que se evidencia a relação de bando como a relação
constitutiva da política ocidental, e não do regime de representação das teorias
contratualistas. “O campo – diz o filósofo – é o espaço que se abre quando o estado
de exceção começa a se tornar a regra” (AGAMBEN, 2002, p. 49). O campo é para
Agamben o local onde a sacralidade no ocidente se torna mais evidente.
70
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GESTÃO E CONTROLE
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que pretendemos aprofundar na presente pesquisa foram os fundamentos
teóricos do pensamento de Giorgio Agamben, isto é, seus temas e conceitos
políticos centrais. Longe de pretendermos esgotar o potencial crítico desses
conceitos, entendemos que as noções e deslocamentos aqui trabalhados são
essenciais para aqueles que pretendem refletir sobre a política contemporânea.
Sobretudo no que diz respeito aos direitos humanos, Agamben parece fornecer
instrumentos críticos extremamente pertinentes e radicais, de modo que seu leitor se
sente de fato impelido a recolocar em questão aquilo que nos aparece como
evidente. Exemplo disso é a advertência que Agamben faz em seu Estado de
exceção de que não é por acaso que os direitos humanos, enquanto resultado de
políticas liberais, surjam num contexto em que cada vez mais vidas são colocadas
em risco e expostas à morte. Mais sintomático ainda é o fato de que os Estados, que
são os instituidores e deveriam ser os garantidores dos direitos humanos passaram
a ser os maiores violadores de direitos humanos no século XX. Agamben nos leva,
portanto, a desacreditar que haja algo como uma democracia propriamente dita ou
um Estado totalitário puro. A partir dos teóricos estudados, o que se depreende é
que há dispositivos e técnicas políticas que ganharam força no ocidente e que se
tornaram úteis à manutenção da lógica perversa da soberania e que estão presentes
em praticamente todos os estamos ditos democráticos.
Esse trabalho foi especialmente dedicado ao estudo das fontes filosóficas da
biopolítica e da soberania – isto é, da política em seus aspectos contemporâneos
mais urgentes. Teve-se por objetivo, primeiro, mostrar a partir de Foucault de que
forma a noção jurídica de poder veio perdendo força explicativa dos fenômenos
políticos contemporâneos. Nesse sentido, mostramos que o pensamento a partir do
edifício da soberania é limitado e que é necessária uma reflexão a partir do poder
em sua diversidade de manifestação. Disso decorre a “descoberta”, primeiro da
disciplina e em seguida da biopolítica, que, juntos, passam a constituir novos
paradigmas de compreensão da realidade atual. Mas se Foucault lapidou
exemplarmente a noção de biopolítica, coube à Hannah Arendt pensar o campo de
71
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
concentração e os fenômenos totalitários, que ao ver de Agamben são o resultado
da promíscua relação existente entre poder soberano e biopolítica.
Num segundo momento do artigo, pretendeu-se aprofundar alguns dos
principais conceitos trabalhados por Agamben no início de sua obra propriamente
política, notadamente o problema do paradoxo da soberania, a reformulação da
questão da exceção em bando e por último o caráter enigmático da figura paradigma
da política contemporânea para Agamben é que o homo sacer.
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74
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A LICITAÇÃO PÚBLICA E SUA FINALIDADE DE PROMOVER O
DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL
THE PUBLIC BIDDING AND ITS PURPOSE OF PROMOTING NATIONAL
DEVELOPMENT SUSTAINABLE
Camila Backes 28
Luciano Elias Reis 29
SUMÁRIO
Resumo Abstract 1 Introdução 2 Desenvolvimento sustentável 2.1 Desenvolvimento sustentável
no ordenamento jurídico 2.2 Desenvolvimento nacional sustentável como direito fundamental 3
Finalidades da licitação: promoção do desenvolvimento nacional sustentável 4 Licitações
sustentáveis 4.1 Legalidade da adoção de critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios
4.2 Em quais momentos os critérios sustentáveis devem ser utilizados 5 Conflito entre as
finalidades da licitação? 5.1 Sustentabilidade e isonomia 5.2 Sustentabilidade e vantajosidade 6
Conclusão Referências
RESUMO
A promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade a ser alcançada pelas
licitações está prevista no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993. Logo, o Estado deve, por meio do
procedimento licitatório, atingir este fim juntamente com a observância do princípio da isonomia entre
os participantes e a seleção da proposta mais vantajosa. O conceito de desenvolvimento sustentável
tem como ideia principal aquele que consegue atender as necessidades do presente, mas sem
comprometer as futuras gerações de atenderem as suas próprias necessidades. O desenvolvimento
sustentável foi recepcionado pelo ordenamento jurídico pátrio e é considerado um direito fundamental
da terceira dimensão. As licitações sustentáveis levam em consideração critérios de sustentabilidade,
através da utilização do poder de compra do Estado, sendo este um instrumento de implementação
de políticas públicas. A sua realização é legal e não fere as finalidades da isonomia nem da seleção
da proposta mais vantajosa.
Palavras-chave: licitação, desenvolvimento, desenvolvimento nacional sustentável, finalidades,
promoção.
Acadêmica da graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba. Email:
[email protected]
29 Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito de Curitiba; Mestre em Direito Econômico pela
PUC-Paraná; Especialista em Direito Administrativo e em Processo Civil pelo Instituto de Direito
Romeu Felipe Bacellar; Presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da
OAB PR; Professor Universitário.
28
75
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GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
The promotion of national development as sustainable new purpose to be achieved by bidding is
provided for in Article 3 of Law no. 8,666 /1993. Therefore, the State must, by means of competitive
bidding procedure, achieve this order along with the observance of the principle of equality between
the participants and the selection of the most advantageous tender. The concept of sustainable
development has as main idea that fails to meet the needs of the present without compromising the
future generations to meet their own needs. Sustainable development has been approved by legal
parental rights and is considered a fundamental right of the third dimension. Bids sustainable take into
account criteria of sustainability, through the use of the purchasing power of the State, this being an
instrument for the implementation of public policies. Its implementation is legal and does not violate
the purposes of isonomy nor the selection of the most advantageous tender.
Keywords: bidding, development, national development sustainable, purposes, promote.
1 INTRODUÇÃO
O dilema de continuar com o consumo, mas ao mesmo tempo promover o
desenvolvimento nacional sustentável vem ganhando forças atualmente. Seria o
caso de pensar em fomentar as práticas de consumo, mas sustentavelmente, ou
seja, garantindo o crescimento da atual geração e concomitantemente dando
oportunidade às futuras gerações de utilizarem dos mesmos recursos.
O desenvolvimento nacional está previsto no artigo 3º, inciso II, da
Constituição Federal, encontrando-se no rol dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil.
O artigo 3º da Lei 8.666/1993, conhecida como Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, harmoniza-se com o acima exposto ao ter sua redação alterada
pela Lei 12.349/2010, apresentando a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável como mais uma finalidade da licitação.
A definição para um conceito de desenvolvimento sustentável iniciou-se no
ano de 1987, pela Organização das Nações Unidas – ONU, através do relatório
Brundtland, e a partir desse relatório vários estudos acerca do tema vêm sendo
feitos.
Mas como promovê-lo? Uma boa maneira é usar das políticas públicas que
incentivem um desenvolvimento econômico, mas sustentável. Sendo assim, nada
melhor que o próprio poder público utilizar de sua força para o bem de todos. Sabese que o Governo Brasileiro movimenta, com a aquisição de compras e contratações
76
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GESTÃO E CONTROLE
de serviços, cerca de 15% do seu Produto Interno Bruto – PIB.30
Portanto, é
considerado um grande consumidor desse mercado. Para poder contratar esses
bens e serviços, a Administração Pública deve adotar o procedimento licitatório,
previsto no Artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que assim dispõe:
“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e
alienações serão contratados mediante processo de licitação pública”. Essa
obrigatoriedade é necessária porque os recursos dispostos vem dos impostos pagos
pela população, sendo assim mister que os gastos públicos sejam destinados da
melhor maneira possível e visando à melhor qualidade.
Decorrente da obrigatoriedade de licitar e de ditar (dentro dos limites legais)
as normas para contratar com ela, surge a possibilidade de utilizar as licitações para
promover o desenvolvimento sustentável. Assim, leva-se em conta o seu grande
poder de compra para criar a oportunidade de incentivar condutas ambientalmente
éticas e fazer que tais condutas tornam-se comuns na sociedade. Deste modo,
surge mais uma finalidade da licitação: promover o desenvolvimento nacional
sustentável.
Esse tema tem relevância grandiosa, pois implica mudanças não só por parte
do Poder Público em todas as fases do procedimento licitatório e, posteriormente, da
contratação, mas também por parte dos fornecedores que devem adaptar-se e aos
seus produtos/serviços de acordo com normas sustentavelmente corretas.
Nota-se, portanto, que além de ser observado o princípio da isonomia e a
seleção da proposta mais vantajosa, a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável deve ser igualmente observada em todas as fases licitatórias. Porém, a
adoção de medidas sustentáveis ainda gera muitas dúvidas. Será que isso é legal?
Fere o Princípio da Isonomia? E a observância da proposta mais vantajosa?
O presente artigo pretende, num primeiro momento, abordar sobre o tema do
desenvolvimento sustentável, apresentando o seu conceito, como foi recepcionado
pelo ordenamento jurídico e sua previsão como direito fundamental.
Posteriormente, será demonstrada uma breve explanação sobre a finalidade
licitatória da promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Logo após, será
30
BRASIL,
Ministério
do
Meio
Ambiente.
Licitação
sustentável.
Disponível
em:
<http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixos-tematicos/item/526&gt>. Acesso em: 30
de mar. de 2015.
77
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GESTÃO E CONTROLE
apresentado o conceito de licitações sustentáveis, o porquê do seu surgimento, se é
legal adotar critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios e em quais
momentos os critérios sustentáveis devem ser utilizados.
Por fim, pretende-se analisar se existe conflito entre as finalidades licitatórias,
se a utilização do princípio da sustentabilidade fere os princípios da isonomia e da
vantajosidade, ou seja, se a observância daquele durante todo o procedimento,
exclui estes.
2 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O conceito de Desenvolvimento Sustentável começou a ser difundido no ano
de 1987, através do Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum, organizado pela
Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das
Nações Unidas – ONU:
O desenvolvimento sustentável não é um estado permanente de harmonia,
mas um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, a
orientação dos investimentos, os rumos do desenvolvimento tecnológico e a
mudança institucional estão de acordo com as necessidades atuais e
futuras. (...) Assim, em última análise, o desenvolvimento sustentável
depende do empenho político.31
De acordo com o Relatório: “o desenvolvimento sustentável é aquele que
atende as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as
gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”.32
Entre os dias 3 a 14 de junho de 1992, aconteceu a Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92 ou Eco 92), estabelecendo
27 (vinte e sete) princípios para a implementação do desenvolvimento sustentável.
De acordo com o princípio 8:
31
COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues>.
Acesso em: 20 de ago. de 2014.
32 COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues>.
Acesso em: 20 de ago. de 2014.
78
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GESTÃO E CONTROLE
Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais
elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões
insustentáveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas
adequadas.33
A partir de sua análise, percebe-se o papel do Estado como responsável por
promover práticas sustentáveis de produção e consumo, na qualidade de
consumidor, através de políticas públicas.
A ideia de adotar práticas sustentáveis para a produção e para o consumo
deu início aos vários conceitos de desenvolvimento sustentável. Para Ignacy Sachs
(2008, p. 36):
O desenvolvimento sustentável obedece ao duplo imperativo ético da
solidariedade com as gerações presentes e futuras, e exige a explicitação
de critérios de sustentabilidade social e ambiental e de viabilidade
econômica. Estritamente falando, apenas as soluções que considerem
estes três elementos, isto é, que promovam o crescimento econômico com
impactos positivos em termos sociais ambientais, merecem a denominação
de desenvolvimento.
Para Daniel Ferreira, em seu livro A licitação pública no Brasil e sua nova
finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, o
desenvolvimento é triplamente sustentável, nos seus vieses econômico, social e
ambiental (FERREIRA, 2012, p. 52).
A sustentabilidade econômica, ressalta-se, deve levar em consideração:
(...) uma eficiência mínima dos sistemas econômicos no esforço de
assegurar, de forma contínua, o aumento do PIB e do PPC34,
retroalimentando a economia e assim fazendo surtir os efeitos benéficos,
adrede referidos, no tecido social (FERREIRA, 2012, p. 53).
A sustentabilidade social, para o autor, é mais complexa por sua dimensão
psicológica. Ele apresenta outro lado dessa sustentabilidade, observando que
33
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro de 3 a
14 de Junho de 1992. Declaração da ECO-92 sobre ambiente e desenvolvimento. Disponível em:
<http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em 24 de set. de 2014.
34 Para esclarecimento, PIB é o produto interno bruto enquanto PPC é a paridade do poder de
compra.
79
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somente ela é que autoriza a perpetuação da espécie humana, sendo a
“responsável pela manutenção dos micro-universos sociais, aqueles referidos e
referíveis apenas por meio da cultura, de modo a garantir sua identidade”
(FERREIRA, 2012, p. 53). Entende também que a sustentabilidade econômica é
reforçada pela sustentabilidade social e vice-versa.
Por fim, a sustentabilidade ambiental:
Deve ser assumida como um freio, não no sentido de atrasar o avanço na
direção do desenvolvimento, mas de dar a temperança necessária à
escolha da velocidade e dos caminhos eleitos no rumo à
ecossocioeconomia do amanhã (FERREIRA, 2012, p. 55).
A partir das considerações acima, inicia-se uma ideia tríplice do que é o
desenvolvimento sustentável, criando uma harmonia entre meio ambiente,
sociedade e economia.
Contudo, o autor Juarez Freitas, em seu livro Sustentabilidade: direito ao
futuro, entende que a sustentabilidade é multidimensional, nos seus vieses ético,
jurídico-político, social, econômico e ambiental (FREITAS, 2011, p. 337).
Para ele, é o conceito de desenvolvimento sustentável:
É o princípio constitucional que determina, independentemente de
regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do
Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento
material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime,
ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar,
preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro,
o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância
homeostática com o bem de todos (FREITAS, 2011, p. 51).
A partir dos conceitos expostos, percebe-se uma influência do relatório de
Brundtland em todos eles, visando à satisfação das necessidades das gerações
atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem suas
próprias necessidades.
80
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2.1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
O direito ao desenvolvimento está referenciado, em primeira análise, no
preâmbulo da Constituição Federal, comprometendo-se a construir um Estado
Democrático assegurando esse direito a todos os brasileiros.
Em seguida, a Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso II, objetiva
garantir o desenvolvimento nacional e cumulativamente construir uma sociedade
livre, justa e solidária (inciso I); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais (inciso III) e promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (inciso IV).
Manoel Messias Peixinho e Suzani Andrade Ferraro sustentam que o:
Direito ao desenvolvimento nacional é norma jurídica constitucional de
caráter fundamental, provida de eficácia imediata e impositiva sobre todos
os poderes do Estado e, nesta direção, não pode se furtar a agir de acordo
com as respectivas esferas de competência, sempre na busca da
implementação de ações e medidas de ordem política, jurídica ou
irradiadora que almejam a consecução daquele objetivo fundamental.35
Deste modo, o reconhecimento do desenvolvimento nacional como princípio
constitucional fundamental e impositivo, servirá de base para a aplicação das
normas tanto constitucionais como infraconstitucionais, além de servir de base para
suas interpretações, impondo-se perante todos os poderes.
É importante salientar, ainda, que a Constituição Federal dispõe em seu texto
referências ao desenvolvimento tecnológico e econômico (artigo 5º, inciso XXIX), ao
desenvolvimento econômico e social (artigo 21, inciso IX), ao desenvolvimento
urbano (artigo 21, inciso XX), ao desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços
públicos de saúde (artigo 35, inciso III), ao desenvolvimento geoeconômico e social
(artigo 43), ao desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País
(artigo 151, inciso I), ao desenvolvimento de acordo com os planos regionais (artigo
35
PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como
direito fundamental. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, Belo Horizonte, 16., 2007. Belo
Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. p. 6963. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf.>. Acesso em:
21 out. 2014.
81
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GESTÃO E CONTROLE
159, inciso I, alínea “c”), ao desenvolvimento regional (artigo 163, inciso VII), ao
desenvolvimento social e econômico fomentado pelo turismo (artigo 180), ao
desenvolvimento das funções sociais da cidade (artigo 182), ao desenvolvimento
equilibrado do País (artigo 192), na área da saúde, ao desenvolvimento científico e
tecnológico (artigo 200, inciso V), ao desenvolvimento cultural do País (artigo 215, §
3º), na área da cultura, ao desenvolvimento humano, social e econômico (artigo 216A) ao desenvolvimento científico (artigo 218), por meio do mercado interno, ao
desenvolvimento cultural e socioeconômico (artigo 219), e, por meio de recursos do
PIS, ao desenvolvimento econômico (artigo 239, § 1º).
2.2
DESENVOLVIMENTO
NACIONAL
SUSTENTÁVEL
COMO
DIREITO
FUNDAMENTAL
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi promulgada em 1986,
determinando em seu artigo 1º que:
O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do
qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do
desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele
desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
possam ser plenamente realizados. 36
Este
documento
veio
para
formalizar
o
desenvolvimento
como
“interdependente a indivisível aos demais direitos humanos” (SOARES, 2010, p.
470).
De acordo com Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, para que algum direito
seja considerado fundamental, necessita-se a presença de três elementos: o Estado,
o indivíduo e o texto normativo regulador entre o Estado e o indivíduo (DIMOULIS;
MARTINS, 2009, p. 21-23).
Com base no acima exposto, percebe-se que, apesar do direito ao
desenvolvimento sustentável não estar expressamente previsto no rol do artigo 5º da
36
Declaração sobre o direito ao desenvolvimento 1986. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015.
82
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Constituição Federal, enquadra-se nos requisitos sendo assim considerado um
direito fundamental.
Para Gustavo Henrique Justino de Oliveira, o direito ao desenvolvimento se
enquadra na terceira dimensão dos direitos fundamentais, por se relacionar aos
valores atinentes à solidariedade e à fraternidade (OLIVEIRA, 2009. p. 13-14).
Conforme Ferreira Filho:
Note-se, ademais, que esses direitos não são direitos individualizáveis, nem
têm como o titular o ser humano. Este titular são os povos, as nações, os
Estados, as coletividades, conforme se prefira. Igualmente, sua
fundamentalidade não decorre da eminente dignidade humana (salvo mui
longínqua e vagamente), mas sim de uma convicção quanto à sua
importância (FERREIRA FILHO, 2010, p. 90).
Se a Administração Pública deixar de adotar medidas que visem ao fomento
das diversas áreas, como do microempreendedorismo, da preservação ambiental,
da inclusão social e da salvaguarda dos direitos trabalhistas, estará violando o
direito fundamental ao desenvolvimento nacional sustentável, portanto, os
interessados podem cobrar a satisfação desse direito fundamental37 perante o Poder
Público.
Para Daniel Ferreira, o fato do direito ao desenvolvimento se tratar de um
direito fundamental, em sua face poderá ser invocado o princípio da vedação ao
retrocesso38, com o significado de impedir que os poderes públicos recuem naquilo
que realiza ou prestigia a concretização deste direito. Em síntese, se alguma postura
legislativa fosse assumida favorecendo o direito fundamental ao desenvolvimento, o
37
FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais,
desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade
socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos. p. 59.
38 O princípio da proibição do retrocesso social, para o professor José Joaquim Gomes Canotilho,
pode ser formulado da seguinte maneira: “o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e
efectivado através de medidas legislativas (“lei da segurança social”, “lei do subsídio do desemprego”,
“lei do serviço de saúde”) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais
quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou
compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e
simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.” CANOTILHO, J. J. Gomes, 1998
apud FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais,
desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade
socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos.p. 58.
83
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
retrocesso injustificado pode ser objeto de impugnação administrativa ou judicial
(FERREIRA, 2012, p. 57).
3 FINALIDADES DA LICITAÇÃO: PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
NACIONAL SUSTENTÁVEL
O próprio artigo 3º da Lei nº 8.666/93 elenca as finalidades do procedimento
licitatório, sendo elas: a seleção da proposta mais vantajosa, a isonomia entre os
participantes e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Deve-se
conseguir chegar a esses objetivos respeitando os princípios norteadores da
licitação.
Não existe hierarquia entre as finalidades, todas têm a mesma importância e
servem para ajudar na legalidade do procedimento licitatório. Portanto, as três
finalidades devem ser atingidas conjuntamente. Não é suficiente a efetivação de
somente uma ou duas, sob a pena da licitação não ser considerada válida.
A Medida Provisória nº 495/2010 converteu-se na Lei nº 12.349/2010
apresentando a ideia de que o desenvolvimento nacional sustentável é um meio de
fomento público através das contratações públicas. Com isso o artigo 3º da Lei nº
8.666/1993 instituiu a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como
nova finalidade licitatória.
O Decreto nº 7.746/2012 regulamentou o artigo 3º da supracitada Lei,
estabelecendo normas gerais para a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável.
De acordo com seu parágrafo 4º são diretrizes de sustentabilidade:
I – menor impacto sobre recursos naturais como flora, fauna, ar, solo e
água;II – preferência para materiais, tecnologias e matérias-primas de
origem local;III – maior eficiência na utilização de recursos naturais como
água e energia;IV – maior geração de empregos, preferencialmente com
mão de obra local;V – maior vida útil e menor custo de manutenção do bem
e da obra;VI – uso de inovações que reduzam a pressão sobre recursos
84
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
naturais; e VII – origem ambientalmente regular dos recursos naturais
utilizados nos bens, serviços e obras.39
Diante do exposto, percebe-se que, com a inclusão da promoção do
desenvolvimento nacional sustentável como terceira finalidade legal da licitação,
surge uma nova função social a ser observada pela lei.
Para Daniel Ferreira, a nova função social da licitação passa a configurar
“como uma obrigação genérica e ordinária, da qual o gestor público apenas poderá
se desonerar por justa causa, devidamente motivada e comprovada” (FERREIRA,
2012, p. 39), e, caso contrário “estará a descumprir uma finalidade (de três) para a
licitação, contaminando-a de vício insanável” (FERREIRA, 2012, p. 39).
Segundo Luciano Elias Reis, as licitações devem ser examinadas também
como um instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável (e
não só como um processo com caráter puramente econômico). Sendo assim, os
certames deverão perquirir aspectos ambientais, sociais e econômicos relacionados
às propostas e aos licitantes.40
A inserção da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como
finalidade da licitação leva a crer que as compras governamentais podem ser
instrumento para fomentar a sustentabilidade no âmbito nacional. Entretanto:
(...) a conscientização do “poder de compra” governamental é
imprescindível para que todos os entes políticos assumam que,
isoladamente ou em conjunto, interferem de forma profunda na condução
dos negócios privados (FERREIRA, 2012, p. 41).
Deste modo, tanto os contratos como as licitações podem estimular a
adaptação voluntária da indústria, do comércio e da prestação de serviços à
satisfação do desenvolvimento nacional sustentável (FERREIRA, 2012, p. 45).
39
PRESIDÊNCIA da República. Decreto nº 7746 de 05 de junho de 2012. Diário Oficial da União.
Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7746.htm>. Acesso em: 19 de
agosto de 2014.
40 REIS, Luciano Elias. I Seminário Ítalo-Brasileiro: Inovações regulatórias em direitos
fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade. Inovações legislativas nas contratações
administrativas para a incrementação da responsabilidade socioambiental por intermédio do fomento
da pesquisa científica e tecnológica. p.116-117.
85
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4 LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS
Após verificar as diversas referências ao desenvolvimento durante todo o
corpo do texto constitucional, surge a ideia da Administração Pública promover o
desenvolvimento por meio das licitações sustentáveis.
Há na doutrina, muitas referências sobre o conceito de licitações sustentáveis.
Para Rachel Biderman, as licitações sustentáveis podem ser conhecidas
como “compras públicas sustentáveis”, “ecoaquisição”, “compras verdes”, “compra
ambientalmente amigável” e “licitação positiva”.41
A licitação sustentável é uma solução para integrar considerações
ambientais e sociais em todos os estágios do processo da compra e
contratação dos agentes públicos (de governo) com o objetivo de reduzir
impactos à saúde humana, ao meio ambiente e aos direitos humanos. A
licitação sustentável permite o atendimento das necessidades específicas
dos consumidores finais por meio da compra do produto que oferece o
maior número de benefícios para o ambiente e a sociedade. 42
Para Eduardo Bim, a licitação sustentável é:
Influenciada por parâmetros de consumo menos agressivos ao meio
ambiente. É a licitação que integra critérios ambientais de acordo com o
estado da técnica, ou seja, com o melhor para o meio ambiente de acordo
com a atual ciência num preço razoável (BIM, 2013, p. 186).
Na visão de Marçal Justen Filho, pelo fato do desenvolvimento sustentável
significar o crescimento econômico norteado pela preservação do meio ambiente “a
licitação deve ser estruturada de modo promover o crescimento econômico nacional
em termos compatíveis com a proteção ao meio ambiente” (JUSTEN FILHO, 2012b,
p. 443).
41
BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicas
sustent%C3%A1veis.pdf>. p. 22.
42 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicas
sustent%C3%A1veis.pdf>. p. 22.
poder de compra
Disponível em:
poder de compra
Disponível em:
86
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A definição de licitação sustentável, para Juarez Freitas é a seguinte:
(...) são os procedimentos administrativos por meio dos quais um órgão ou
entidade da Administração Pública convoca interessados – no seio do
certame isonômico, probo e objetivo – com a finalidade de selecionar a
proposta mais vantajosa, isto é, a mais sustentável, quando almeja efetuar
pacto relativo a obras e serviços, compras, alienações, locações,
arrendamentos, concessões e permissões, exigindo, fase de habilitação, as
provas indispensáveis para assegurar o cumprimento das obrigações
avençadas (FREITAS, 2011, p. 257).
O Ministério do Planejamento tem a seguinte definição para as licitações
públicas sustentáveis:
É a criação de uma política de contratações públicas que leve em
consideração critérios de sustentabilidade, ou seja, critérios fundamentados
no desenvolvimento econômico e social e na conservação do meio
ambiente através da utilização do poder de compra do Estado como
instrumento de implementação de políticas públicas, visando, dar exemplo
aos consumidores, induzir o comportamento de outros consumidores,
reduzir a geração de resíduos, fortalecer o mercado de bens e serviços
ambientais, maior ecoeficiência no processo produtivo, além de apoiar a
inovação tecnológica.43
As licitações sustentáveis podem impulsionar a geração de emprego e renda para a
população de um município, sendo assim um fator de desenvolvimento local. Rachel Biderman
explica essa prática em algumas cidades do sul do Brasil, onde, por exemplo:
Prefeituras adquirem merenda escolar orgânica, de pequenos produtores
familiares da cidade, gerando emprego e renda para a população rural e
alimentação saudável para os estudantes do sistema público de ensino. 44
Uma mudança em direção à produção e ao consumo sustentável é outro
objetivo importante das aquisições sustentáveis. (...) Se a maioria dos
compradores públicos optar por produtos mais sustentáveis, uma demanda
maior estimulará uma oferta maior, que conduzirá por sua vez a um preço
mais baixo. Aquisições públicas podem ajudar a criar um grande mercado
para negócios sustentáveis, aumentando as margens de lucro dos
43
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Contratações públicas sustentáveis. 2011. Disponível em:
<http://www.abntonline. c o m . b r / Ro t u l o / Da d o s / I m a g e s / f i l e / Co n t r a
ta%C3%A7%C3%B5es%20 P%C3%BAblicas%20Sustent%C3%A1veis. pdf>. Acesso em: 04. nov.
2014. p. 2.
44 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
Disponível em:
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 56.
87
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
produtores por meio de economias de escala e reduzindo seus riscos. Além
disso, as autoridades públicas, atores poderosos do mercado, podem
incentivar a inovação e, consequentemente, estimular a competição da
indústria, garantindo aos produtores recompensas pelo melhor desempenho
ambiental de seus produtos, por meio da demanda do mercado ou de
incentivos concretos. 45
O Poder Público na sua função de consumidor deve promover o
desenvolvimento nacional sustentável optando por adquirir bens ou serviços corretos
do ponto de vista ambiental. Quanto maior a procura nesse aspecto, maiores serão
as ofertas e, consequentemente, a população irá se adaptar com essas novas
práticas.
Segundo o Governo Brasileiro, por meio do site do Ministério do Meio
Ambiente, trata-se do tema da seguinte forma:
As compras e licitações sustentáveis possuem um papel estratégico para os
órgãos públicos e, quando adequadamente realizadas promovem a
sustentabilidade nas atividades públicas. Para tanto, é fundamental que os
compradores públicos saibam delimitar corretamente as necessidades da
sua instituição e conheçam a legislação aplicável e características dos bens
e serviços que poderão ser adquiridos.
O governo brasileiro despende anualmente mais de 600 bilhões de reais
com a aquisição de bens e contratações de serviços (15% do PIB). Nesse
sentido, direcionar-se o poder de compra do setor publico para a aquisição
de produtos e serviços com critérios de sustentabilidade implica na geração
de benefícios socioambientais e na redução de impactos ambientais, ao
mesmo tempo que induz e promove o mercado de bens e serviços
sustentáveis.46
Com a prática de medidas que visem à aquisição de bens ou serviços com
critérios de sustentabilidade, direcionando os 15% do PIB para a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável, o País iria crescer em termos de negócios
com qualidade, eficiência e um meio ambiente preservado. Tudo isso surtiria efeitos
na qualidade de vida das pessoas.
45
BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
Disponível em:
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 24.
46 BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Licitação sustentável. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixos-tematicos/item/526&gt>. Acesso
em: 30 mar. 2015.
88
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4.1 LEGALIDADE DA ADOÇÃO DE CRITÉRIOS SOCIOAMBIENTAIS NOS
PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS
Muitas dúvidas surgem em relação à adoção de critérios socioambientais nos
procedimentos licitatórios. Seria essa adoção legal, não ferindo outros princípios
assegurados pela Lei de Licitações?
A permissão para inserir o desenvolvimento sustentável pelo viés ambiental
está prevista no artigo 225 da Constituição Federal. Outra previsão encontra-se no
artigo 170, do mesmo diploma legal, que elenca os princípios da ordem econômica,
sendo um deles o disposto no inciso VI: “Defesa do meio ambiente, inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.47
Deste modo, a atividade econômica deve ser voltada à preservação do meio
ambiente e à diminuição dos danos a ele causados, ficando o Estado como o
responsável pelas políticas públicas para assegurar o desenvolvimento econômico
sustentável com a prática consciente das atividades e a preservação ambiental.
A noção de responsabilidade socioambiental se encontra decantada na Lei
das leis e aponta para um dever jurídico genérico, acometido a todos
indistintamente, no sentido de harmonização das expectativas de
crescimento, especialmente econômico, com os impactos de tanto, no meio
social e ambiental. Logo, de forma a garantir o desenvolvimento nacional
anunciado como objetivo fundamental da República. 48
Sendo a Constituição Federal a Lei das Leis e assim hierárquica e superior às
outras normas, todas as leis por ela recepcionadas devem ser interpretadas de
acordo
com
os seus
princípios.
Portanto,
a
observância
de
garantir o
desenvolvimento nacional sustentável não irá de encontro com o ordenamento
jurídico atual.
47
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>.
Acesso em: 12 nov. 2014.
48
FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais,
desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade
socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos.p. 44.
89
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O Tribunal de Contas da União vem ajudando no desenvolvimento e
aplicação das Licitações Sustentáveis, por meio de seus julgados. São alguns
acórdãos pertinentes ao tema:
O TCU deu ciência à (omissis), acerca das seguintes situações: a) não
adoção integral das normas de sustentabilidade ambiental nas aquisições
de bens e serviços, o que afronta o art. 5º da IN/SLTI-MP nº 01/2010; b) não
separação dos resíduos recicláveis descartados dando o destino adequado,
o que afronta o preconizado no Decreto nº 5.940/2006. (Tribunal de Contas
da União, itens 1.8.1 e 1.8.3, TC-042.106/2012-5, Acórdão nº 7.416/2013-2ª
Câmara).
O TCU deu ciência à (omissis) a respeito das falhas/impropriedades a
seguir transcritas: a) ausência de aplicação de penalidades a empresas que
não mantiveram os lances apresentados no âmbito de processos licitatórios
na modalidade pregão, na forma eletrônica, em desacordo com o art. 7° da
Lei n° 10.520/2002; b) realização de licitação sem observância dos critérios
de sustentabilidade ambiental na contratação de obras e serviços de
engenharia, bem como na aquisição de soluções de tecnologia da
informação, em desacordo com a Instrução Normativa da Secretaria de
Logística e Tecnologia da Informação - SLTI/MPOG 01/2010 e art. 3º da Lei
nº 8.666/1993. (Tribunal de Contas da União, itens 1.7.3 e 1.7.4, TC022.374/2013-2, Acórdão nº 2.290/2014-2ª Câmara).
Recomendação ao (omissis) para que inclua critérios de sustentabilidade
ambiental em suas licitações que levem em consideração os processos de
extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias
primas, nos termos da Lei nº 12.187/2009 e da Instrução Normativa/SLTIMP nº 1, de 19.01.2010. Cita-se, como referência, o "Guia de Contratações
Sustentáveis da Justiça do Trabalho", do Conselho Superior da Justiça do
Trabalho-2014. (Tribunal de Contas da União, item 1.7.1.4, TC029.319/2013-7, Acórdão nº 6.708/2014-1ª Câmara).
Oportuno observar que o Tribunal de Contas competente, na forma da
legislação pertinente, tem a atribuição de controlar as despesas dos contratos e
demais instrumentos regidos pela Lei de Licitações, ficando os órgãos interessados
da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da
despesa e execução, conforme previsto no artigo 113 da referida Lei.
4.2 EM QUAIS MOMENTOS OS CRITÉRIOS SUSTENTÁVEIS DEVEM SER
UTILIZADOS
Outras dúvidas surgem em relação ao momento adequado para aplicar os
critérios de sustentabilidade no procedimento licitatório, o qual é composto por fases,
e cabe aqui demonstrar em quais delas poderá ser delimitado esse critério.
90
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Conforme exposto no artigo Licitações públicas sustentáveis, publicado na
revista de Direito Administrativo, de autoria de Flávio Amaral Garcia e Leonardo
Coelho Ribeiro, a sustentabilidade pode ser delimitada em quatro momentos do
procedimento licitatório: definição do objeto; fase de habilitação; julgamento das
propostas; obrigações do contratado (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 245).
Na fase da definição do objeto o administrador público delimita e especifica o
serviço, a compra ou a obra que pretende contratar. Desde que tecnicamente
fundamentado, é possível a inserção de critérios sustentáveis na escolha do objeto
(GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 245).
Contudo, é necessária cautela na sua definição e fundamentação a fim de
evitar violação ao princípio da isonomia. Conforme leciona Marçal Justen Filho,
somente há violação a referido princípio quando o ato convocatório:
a) estabelece discriminação desvinculada do objeto da licitação; b) prevê
exigência desnecessária e que não envolve vantagem para a
Administração; c) impõe requisitos desproporcionais com necessidades da
futura contratação; d) adota discriminação ofensiva de valores
constitucionais ou legais (JUSTEN FILHO, 2010, p. 71).
Em seguida, quanto à fase de habilitação, as suas exigências estão previstas
na própria Lei de Licitações, em seu artigo 27 e seguintes:
Art.27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados,
exclusivamente, documentação relativa a:
I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV – regularidade fiscal e trabalhista;
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição
Federal.49
O rol é taxativo, portanto, limita o poder de escolha do administrador e assim
dificultando para a inserção de exigências sustentáveis.
Em tese, somente dois dispositivos comportariam essas exigências. Seriam
eles os artigos 28, inciso V e artigo 30, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993:
49
BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.
91
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O art. 28, V, da Lei no 8.666/1993 exige na habilitação jurídica ato de
registro de autorização para funcionamento expedido pelo órgão
competente quando a atividade assim o exigir. Pode-se imaginar, por
exemplo, que uma determinada empresa para exercer uma atividade
empresarial precise de uma licença específica de um órgão ambiental.
O art. 30, inciso IV, da Lei no 8.666/1993 prevê a possibilidade, na
qualificação técnica, de exigir a prova de atendimento de requisitos
previstos em leis especiais. Percebeu o legislador, corretamente, que seria
impossível prever exigências de cada segmento econômico em um único
diploma legal. Assim, é por meio desse dispositivo que se admite que o
edital inclua exigências técnicas oriundas de outras normas, desde que, por
óbvio, sejam indispensáveis para demonstrar a capacidade do licitante
(GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 248).
Afora esses dois dispositivos legais, Flávio Amaral Garcia e Leonardo Coelho
Ribeiro não vislumbraram outros espaços para exigências autônomas de requisitos
sustentáveis na fase de habilitação (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 249).
Posteriormente, na fase de julgamento das propostas, passa-se a análise das
propostas e ofertas para então determinar o vencedor. O critério de julgamento
previsto no edital deverá ser observado e entre os tipos de licitação previstos no
artigo 45 da Lei nº 8.666/1993 estão: menor preço, melhor técnica, técnica e preço e
maior lance ou oferta.
Entende-se que é possível admitir a estipulação de requisitos sustentáveis no
julgamento das propostas somente nas licitações de melhor técnica ou técnica e
preço, enquanto fator diferenciado de pontuação técnica (GARCIA; RIBEIRO, 2012,
p. 249).
A possibilidade de inserir esses requisitos para o julgamento das propostas,
com a finalidade de pontuação diferenciada, deve estar expressamente prevista no
edital e de forma objetiva, a fim de evitar qualquer direcionamento e possibilitar a
ampla competição.50
Por fim, outra possibilidade de promover o desenvolvimento sustentável é por
meio das obrigações que deverão ser assumidas pelo futuro contratado. “É possível,
assim, que entre as obrigações do contratado estejam exigências em atenção à
50
Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o
responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios
previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele
referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle.
BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.
92
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
sustentabilidade ambiental da execução do objeto contratado” (GARCIA; RIBEIRO,
2012, p. 250).
O artigo 10 da Lei nº 12.462 de 2011, que introduziu o Regime Diferenciado
de Contratações, previu expressamente que:
Na contratação das obras e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser
estabelecida remuneração variável, vinculada ao desempenho da
contratada, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de
sustentabilidade ambiental e prazo de entrega definidos no instrumento
convocatório e no contrato.51
Portanto, possibilitou uma remuneração variável do contratado vinculado a
critérios de sustentabilidade ambiental, criando um incentivo econômico para o
contratado que utilizar desses padrões.
5 CONFLITO ENTRE AS FINALIDADES DA LICITAÇÃO?
As finalidades da licitação devem ser promovidas concomitantemente, porém,
é comum o pensamento de que ao observar e levar em consideração critérios para a
promoção do desenvolvimento nacional sustentável, as finalidades da isonomia e da
proposta mais vantajosa seriam prejudicadas e até inaplicadas.
A seguir será demonstrado se isso realmente ocorre ou se todas as
finalidades podem conviver umas com as outras para promover uma licitação
integralmente eficaz.
5.1 SUSTENTABILIDADE E ISONOMIA
O artigo 3ª, caput, da Lei nº 8.666/1993 prevê a isonomia como finalidade
licitatória, e o parágrafo 1º, inciso I, do mesmo diploma legal veda a inclusão de
cláusulas ou condições que restrinjam ou frustrem o caráter competitivo do certame.
51
BRASIL. Lei nº 12.462 de 04 de agosto de 2011. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12462.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015.
93
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Para Marçal Justen Filho (2012a, p. 58), existe diferenciação entre os
interessados para contratar com a Administração Pública, pois no caso concreto, se
não existisse essa diferenciação ela teria que contratar todos os interessados, ou
não contratar nenhum. Então é necessário fazer uma escolha com quem quer
contratar, deixando bem observado todas as regras e especificando o porque disso.
Essa conduta é válida desde que necessária e fundamentada pelo administrador
público.
Em caso de dúvida acerca de eventual ferimento do princípio da igualdade,
em primeiro lugar há de se verificar se há uma correlação lógica entre a
implantação de uma política de consumo sustentável pela Administração
Pública e a justificativa (transformar a licitação em atividade de
desenvolvimento econômico sustentável, com nítido caráter regulatório).
Havendo tal compatibilização, é de se afastar a tese de violação ao princípio
da igualdade (BARCESSAT, 2011, p. 74).
Pelo acima exposto, fica afastada a hipótese de violação ao princípio da
isonomia, pois a promoção do desenvolvimento nacional sustentável é obrigatória,
visto que está elencada como um dos objetivos fundamentais da República. Além
disso, todas as discriminações legais têm fundamentos na promoção do
desenvolvimento nacional sustentável.
5.2 SUSTENTABILIDADE E VANTAJOSIDADE
Uma dúvida muito frequente em relação às licitações e contratações que
envolvem as aquisições de bens ou serviços produzidos de forma ambientalmente
sustentáveis é em relação ao seu custo, já que muitas vezes é considerado mais
elevado.
Para Rachel Biderman, em primeira análise, os custos do produto sustentável
são mais caros, porém é necessário levar em conta o seu custo real, que não é
simplesmente o preço de compra pago pelo produto, mas sim os custos durante
todo o seu ciclo de vida (os de compra, operação, manutenção e disposição do
produto). “Quando examinamos o caso da licitação sustentável, assim que os custos
94
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
‘ocultos’ do ciclo de vida são levados em conta, as vantagens econômicas da
compra de produtos sustentáveis ficam óbvias”.52
Por exemplo, o preço das lâmpadas fluorescentes compactas é mais
elevado do que o das incandescentes convencionais, mas elas duram 10
vezes mais e consomem somente 1/4 da eletricidade que as
incandescentes. Por isso, oferecem economia em contas públicas durante
sua vida.
Na crise energética no Brasil, em 2001, conhecida popularmente como
“apagão”, houve grande migração em edifícios públicos e privados, bem
como nas residências, para o uso de lâmpadas mais eficientes sob o ponto
de vista energético, além de instalação de sistemas mais econômicos. Além
de ganhos econômicos, significa ganhos ambientais.53
Percebe-se então, que quando se fala em vantajosidade não deve ter como
único aspecto o viés financeiro, mas também a qualidade oferecida pela escolha do
produto sustentável.
Isso quer dizer que, apesar do custo inicial do produto sustentável ser
superior ao do tradicional, a vantajosidade será muito maior se levado em
consideração o ciclo de vida e a qualidade do meio ambiente. Assim sendo, não há
conflito entre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável com a
vantajosidade.
Isso é promover o desenvolvimento nacional sustentável, satisfazendo as
necessidades atuais, mas sem comprometer a qualidade de vida (em todos os seus
aspectos) da presente e futuras gerações.
6 CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que o desenvolvimento sustentável que o
Estado deve promover precisa levar em consideração todas as suas dimensões,
sendo elas econômica, social, ambiental, ética e jurídico-política. O conceito comum
52
BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 42.
53 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do
do governo para promoção do desenvolvimento sustentável.
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 43
poder de compra
Disponível em:
poder de compra
Disponível em:
95
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
de desenvolvimento sustentável é o apresentado no Relatório Brundtland, sendo
aquele que atende as necessidades do presente mas sem comprometer as
gerações futuras de atenderem suas próprias necessidades.
O direito ao desenvolvimento está presente no ordenamento jurídico,
referenciado no prêmbulo da Constituição Federal e, em seguida, em seu artigo 3º
inciso II, compondo um dos objetivos da República Federativa do Brasil, sendo
reconhecido como princípio constitucional fundamental e impositivo.
O
desenvolvimento
nacional
sustentável
é
considerado
um
direito
fundamental, enquadrando-se na terceira dimensão dos direitos fundamentais, que
diz respeito aos direitos de solidariedade. Por força disso, se a Administração
Pública deixar de adotar medidas que visem ao fomento do desenvolvimento
nacional sustentável, estará violando direito fundamental, portanto, os interessados
podem cobrar perante o Poder Público a satisfação desse direito.
Uma forma do Estado promover o desenvolvimento nacional sustentável é por
meio das licitações, portanto, a Medida Provisória nº 495/2010, converteu-se na Lei
nº 12.349/2010, apresentando a ideia de que o desenvolvimento nacional
sustentável é um meio de fomento público através das contratações públicas. Com
isso o artigo 3º da Lei nº 8.666/1993 instituiu a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável como nova finalidade licitatória, ao lado da seleção da proposta
mais vantajosa e da isonomia entre os participantes.
As licitações sustentáveis permitem a compra de produtos que oferecem o
maior número de benefícios para o ambiente e a sociedade, com parâmetros de
consumo menos agressivos ao meio ambiente. É uma política de contratações
públicas levando em consideração os critérios de sustentabilidade, promovendo o
desenvolvimento através do poder de compra do Estado.
A adoção de critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios é legal,
tendo respaldo nos artigos 225 e 170, inciso VI da Constituição Federal, e, pelo fato
de ser hierárquica e superior às outras normas, toda legislação infraconstitucional
deve ser interpretada de acordo com os seus princípios. Dessa maneira, a
observância de garantir o desenvolvimento nacional sustentável vai ao encontro com
o ordenamento jurídico atual.
96
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Esses critérios podem ser utilizados em quatro momentos do procedimento
licitatório, a saber: na fase da definição do objeto, em que o administrador público
delimita e especifica a compra, o serviço ou a obra que pretende contratar; Na fase
de habilitação que, em tese, somente os dispostos nos artigos 28, inciso V e 30,
inciso IV da Lei nº 8.666/1993 comportariam as exigências socioambientais; Na fase
do julgamento das propostas, onde serão analisadas as propostas e as ofertas para
então determinar o vencedor; E nas obrigações do contratado, sendo possível que
entre essas obrigações estejam previstas exigências em atenção à sustentabilidade
ambiental.
As finalidades licitatórias devem ser promovidas conjuntamente. Observou-se,
portanto, que promover o desenvolvimento nacional sustentável não viola o princípio
da isonomia entre os participantes pelo fato de que sempre vai haver alguma
diferenciação entre os interessados em contratar com a Administração Pública, pois
no caso concreto, se não existisse essa diferenciação, ela teria que contratar todos
os interessados, ou não contratar nenhum. Sendo assim, deve-se deixar bem claro
todas as regras e especificar o porque da escolha com quem deseja contratar.
Em relação à vantajosidade, percebeu-se que também não é violada pela
promoção do desenvolvimento nacional sustentável, pois é necessário levar em
consideração o custo real dos produtos sustentáveis, que não é o preço pago no
momento da compra desses produtos, mas sim os custos durante todo o seu ciclo
de vida (compra, operação, manutenção e disposição do produto), comprovando-se,
deste modo, serem muito mais vantajosos do que os produtos tradicionais. Ademais,
quando se fala em vantajosidade, não se deve ter como único aspecto o viés
financeiro, mas também a qualidade oferecida pelos produtos sustentáveis.
Por fim, conclui-se que a necessidade de políticas públicas visando promover
o desenvolvimento nacional sustentável é essencial atualmente. O Estado tem o
dever de cumprir com a nova função social da licitação para, por intermédio dela,
melhorar a qualidade de vida das pessoas no âmbito econômico, social e ambiental,
e deste modo garantir que as futuras gerações tenham o direito às mesmas
garantias conquistadas no presente.
Os cidadãos também devem fazer a sua parte na promoção do
desenvolvimento nacional sustentável, reavaliando as suas condutas do dia-a-dia e
97
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
fiscalizando as práticas do Poder Público. Promover o desenvolvimento nacional
sustentável, mais do que um direito, é um dever de todos.
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100
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
LEI 11.441 DE 04 DE JANEIRO DE 2007: FORMA DE DESAFOGAR O PODER
JUDICIÁRIO ATRAVÉS DO SERVIÇO NOTARIAL
LAW 11.441 OF 04 JANUARY 2007: UNBURDEN WAY OF JUDICIARY
THROUGH THE NOTARIAL SERVICE
Catiane Deola Jacoboski
Adriana Martins Silva54
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo encontrar uma maneira de desafogar o Poder Judiciário da
quantidade de processos, de aproveitar a estrutura e competência dos Tabelionatos de Notas,
através da Lei 11.441/07, que proporciona as partes se fazer valer dos princípios constitucionais da
eficiência, efetividade, celeridade. Sendo o objetivo a pesquisa, mostrar o que vem a ser um
Tabelionato de Notas e como ele funciona, procurando fazer com que as pessoas percebam a
importância econômica e social que ronda o serviço extrajudicial, como ele pode ajudar a desafogar o
Poder Judiciário, prestando um serviço ágil, eficaz, menos custoso, capaz de solucionar o problema
econômico das partes e também auxiliar na resolução do dilema da quantidade de processos
aguardando uma solução pelas mãos do Poder Judiciário. Deste modo usa-se como exemplo os
benefícios da Lei 11.441/2007, que autoriza as partes realizarem o divórcio por escritura pública
através dos serviços notarias.
Palavras-chave: serviço notarial, tabelionatos de notas, Poder Judiciário, tabelião e princípios.
ABSTRACT
This study aims to find a way to relieve the judiciary of the number of processes to take advantage of
the structure and competence of the notary public notes, by Law 11.441/07, which provides the parties
to enforce the constitutional principles of efficiency, effectiveness, speed. As the objective is research
showing what happens to be a Notes Notary and how it works, trying to make people realize the
economic and social importance that surrounds the extra-judicial service, as it can help relieve the
judiciary, paying an agile, efficient service, less costly, able to solve the economic problem of the
parties and also help resolve the dilemma of the number of processes waiting for a solution at the
hands of the judiciary. This way is used as example the benefits of Law 11,441/2007, which authorizes
the parties to carry out the divorce deed through notarial services.
.
54
Mestre em Direito Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada nas áreas cível
e empresarial. Atualmente é professora de Direito Civil, Família e Empresarial no Centro Universitário
Curitiba - UNICURITIBA. Professora na graduação de direito de Família e Sucessões e pósgraduação. Orientadora do Grupo de Pesquisa Direito da Personalidade no âmbito Global no Centro
Universitário UNINTER.
101
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Key Words: notary services, notary notes, the judiciary, notary and principles.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo mostrar alguns esclarecimentos sobre
a área notarial, mais especificamente sobre o Tabelionato de Notas. Pretende-se
demonstrar como essa singular atividade pode auxiliar o Poder Judiciário a livrar-se
de alguns processos, diminuindo assim a quantidade de ações que se forma na
porta do Judiciário.
Sabe-se que a falta de informação, o desconhecimento do que realmente
vem a ser o serviço prestado pelo notário, faz com que a população não saiba como
utilizar este tipo de serviço que, em muito, pode ajudar na vida das pessoas, nas
suas relações e negócios jurídicos. Pode-se dizer ainda que não só a população tem
esse desconhecimento, mas como muitos operadores do Direito também.
Embora os serviços notariais sejam exercidos em caráter privado, eles
provêm de delegação do Poder Público, e é indiscutível a sua presença no dia-a-dia
do cidadão. Pois, desde o nascimento até a morte, se faz necessário o trabalho dos
profissionais de notas e registros.
Este artigo vem demonstrar os principais aspectos da função notarial, com
destaque especial aos Tabelionatos de Notas, os conceitos e princípios, sua
importância, efetividade e de que forma podem ser úteis à sociedade e ao Poder
Judiciário.
O tema proposto neste trabalho será desenvolvido em três capítulos.
Para uma melhor compreensão do tema em estudo, optou-se pela apresentação de
um breve histórico sobre o Direito de família e o casamento, a seguir as formas de
dissolução do vínculo conjugal, e por último as origens do sistema de cartórios no
mundo, sintetizando a forma empregada pelos povos antigos, na utilização de
técnicas disponíveis na época para obter segurança nas relações jurídicas, e
também os princípios que orientam o serviço notarial, conceitos, sua natureza
jurídica, fé pública e segurança jurídica proporcionada pelos serviços praticados
pelos notários.
Busca-se enfatizar o caráter social da atividade, o papel da função notarial
102
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
como agente da paz social, como ela pode ser utilizada na busca da harmonia
social, na justiça preventiva, evitando litígios e auxiliando a desafogar o Poder
Judiciário.
O objetivo principal da pesquisa é mostrar como os Tabelionatos de Notas,
através do serviço extrajudicial, podem auxiliar na diminuição da quantidade de
demandas judiciais, observando dos princípios constitucionais da eficiência, eficácia,
celeridade, para que o usuário esteja satisfeito com o serviço prestado, dando a
certeza de que teve acesso à Justiça, mesmo que não efetivamente pelas mãos do
Poder Judiciário, usando como exemplo os benefícios da Lei 11.441/07, que
proporciona as partes o direito de realizarem o divórcio extrajudicial, de forma mais
rápida e eficaz.
2 DISSOLUÇÃO DO VINCULO CONJUGAL
Anteriormente o casamento era uma instituição insolúvel para a legislação
brasileira, pois somente era possível a dissolução do vínculo conjugal, nos casos previstos
em lei. Com o passar do tempo esse instituto foi evoluindo.
O Código Civil de 1916, somente admitia o desquite, ou seja, permitia a dissolução
da sociedade conjugal, mas não o casamento, mesmo que os casais demonstrassem o
interesse de deixar de serem unidos, ainda mantinham o vínculo matrimonial, os casais
continuavam ligados ou comprometidos moralmente, e aqueles que constituíam outra família
eram descriminados pela sociedade da época e pela igreja.
A sentença do desquite apenas autorizava a separação dos cônjuges,
pondo termo ao regime de bens. No entanto, permaneceria o vínculo
matrimonial. A enumeração taxativa das causas de desquite foi repetida:
adultério, tentativa de morte, sevícia ou injuria grave e abandono voluntário
do lar conjugal (art. 317). Foi mantido o desquite por mutuo consentimento
(art. 318). A legislação civil inseriu a palavra desquite para identificar e
diferenciar da simples separação de corpos.55
Portanto a sentença que destituía o casamento, não punha termo ao vínculo
conjugal.
55
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 09.
103
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Com o passar do tempo, surge a separação judicial, a qual a lei admitia o termino
da sociedade conjugal, pela separação de mútuo consentimento, ou pela separação
litigiosa, desde que transcorrido o prazo de um ano da data da realização do casamento.
A separação consensual é negócio jurídico bilateral, que tem como fim
precípuo legalizar a convivência dos cônjuges que viverem separados,
estabelecidas e reguladas as consequências da dissolução da sociedade
conjugal, tanto na ordem pessoal como na patrimonial. É fonte de direitos e
obrigações unitariamente entrosados numa situação jurídica indivisível e
inalterável, no conteúdo, pela vontade das partes. 56
Qualquer um dos cônjuges poderia requerer a separação, desde que fosse
comprovada a separação de fato a mais de um ano, alegando que não havia mais interesse
na vida em comum.
A Lei 6.515/77, instituída como Lei do Divórcio, vem para por fim ao
casamento, ao vínculo matrimonial, o qual ofereceu a possibilidade de separação do
casal que não tinham mais interesse de permanecerem casados. Pois o divórcio
dissolve o vínculo matrimonial, e a separação não tinha o mesmo poder, pois
somente rompia a sociedade conjugal.
Anteriormente era obrigatório fazer primeiro a separação judicial, após
decorrido o prazo de um ano, poderia converter em divórcio, e também a
possibilidade de requerer o divórcio direto se fosse comprovada a separação de fato
dos cônjuges a mais de dois anos.
O divórcio tem fundamento constitucional que o assegura, facultando duas
modalidades, cada uma a partir de uma causa objetiva: a) o divórcio direto,
para o qual a causa é a separação de fato dos cônjuges há mais de dois
anos; b) o divórcio por conversão, cuja causa é exclusivamente o transcurso
do prazo de um ano do transito em julgado da sentença da separação
judicial ou da decisão judicial da separação de corpos.57
Ainda nos dias de hoje, existem algumas pessoas que se encontram no
estado civil de separados judicialmente, que não converteram a separação em
divórcio.
Segundo Maria Berenice Dias, existe uma vantagem na separação judicial:
56
57
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 216.
LOBO, Paulo. Direito civil – famílias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 144.
104
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A única "vantagem" da separação judicial é a possibilidade de o casal
reverter à separação. No caso, de reconciliação, pode, a qualquer
tempo, ser restabelecida a sociedade conjugal "por ato regular do juiz",
resguardados os acentuais direitos de terceiros (1.577 e § único). O
pedido deve ser feito nos autos da separação (LD 46), norma que
continua em vigor por ser de conteúdo processual. Já os divorciados,
havendo arrependimento, precisam casar novamente. Ou seja,
separação, ao contrário do divórcio, dispõe do que se poderia chamar
de "cláusula de arrependimento". Esse único benefício mostra-se
deveras insignificante, até porque raros são os pedidos de reversão da
separação de que se tem notícia. Há a necessidade de contratar advogado
e, além das delongas para o desarquivamento do processo, indispensável é
a intervenção judicial. Tudo isso demanda tempo e dinheiro. Mais prático e
mais barato - além de mais romântico - é celebrar um novo casamento, que
até gratuito é (CF 226 §1º).58
O divórcio pode ser requerido por ambos os cônjuges de forma consensual,
ou por somente um deles de forma litigiosa, nada impedindo que no decorrer do
processo se torne consensual.
3 O DIVORCIO ATRAVÉS DA LEI 11.441/2007
A Lei 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que entrou em vigor no dia
05.01.2007, estabelece que o divórcio e a separação consensual, podem ser
requeridos por via administrativa, em Tabelionato de Notas, através de escritura
pública de divórcio.
Mas para isso é preciso preencher alguns requisitos, estarem de pleno
acordo, assistidas por um advogado ou defensor público, e que da união o casal não
tenha filhos menores de idade ou incapazes, estando tudo de acordo é preciso
comparecer a um tabelionato para assinarem a escritura pública de divórcio.
Desta forma, existe o princípio da menor intervenção estatal na vida privada
do cidadão, pois fica desnecessária a posição do Estado, ou seja, do Poder
Judiciário, o procedimento se torna mais célere e eficaz, de maneira que desafoga o
judiciário, não havendo a necessidade de homologação, sendo a escritura pública,
documento hábil para as devidas averbações.
58
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. ver., atual. São Paulo: RT, 2011. p.
289.
105
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O princípio da menor intervenção estatal na esfera da vida privada e
intimidade dos cidadãos ganhou novas regras com a lei nº 11.441/2007, que
veio facilitar e simplificar a dissolução do casamento, do inventario e partilha
de bens, possibilitando que sejam feitos através de escritura pública se
forem consensuais e não tiveram filhos menores. Esta lei deu nova redação
aos artigos 982, 983, 1.031, 1.124-A do código de processo civil, instalando
assim uma nova maneira de se dissolver o casamento.59
A real intenção da norma é tornar mais ágeis e céleres a separação e o
divórcio quando esses forem consensuais, permitindo assim, que o Poder Judiciário
tenha tempo para se dedicar às decisões de questões mais complexas, assim no
entendimento de Christiano Cassettari:
Dessa forma, abre-se uma possibilidade de duplo favorecimento para
ambos os lados: o jurisdicionado ganha uma nova forma de realizar
separação, divórcio e inventário muito mais ágil, e o Judiciário ganha mais
tempo para se dedicar às questões complexas, com a redução da
tramitação desses processos.60
A Emenda Constitucional nº 66 de 13 de julho de 2010, sugerida pelo
Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, com o principal objetivo de
regulamentar constitucionalmente os dispostos no Código Civil inserido através da
Lei 11.441/2007 que possibilita o divórcio, inventário e partilha pela via
administrativa.
Pois deu nova redação ao § 6º do artigo 226 da Constituição
Federal, que supriu o prazo da prévia separação judicial por mais de um ano, ou a
separação de fato por mais de dois anos.
O divórcio pode ser requerido a qualquer tempo após a realização do
casamento, podendo ser de forma consensual ou litigiosa, de cunho personalíssimo,
sendo as partes capazes, e é obrigatório as partes estarem assistidas por
advogados ou defensores públicos.
Com a Emenda Constitucional nº 66/2010, os artigos da referida lei foram
parcialmente revogados, pois passaram a contrair a lei maior. Portanto, o
artigo 1.124 A do código de processo civil, cuja nova redação havia sido
dada pelo artigo 3° da lei n° 11.441/07, que deve ser lida e entendida de
acordo com as novas disposições constitucionais, ou seja, que o instituto da
59
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 42.
CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública, 7. ed. atual. e
ampl. São Paulo: Método, 2015. p. 23.
60
106
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
separação judicial e administrativa não tem mais lugar em nosso
ordenamento jurídico, já que a nova redação do parágrafo 6° do artigo 226
da constituição acabou com a prévia separação ao divórcio, a conversão da
separação judicial (e obviamente a administrativa) e com todo e qualquer
prazo como requisito para se requerer e ser concedido o divórcio. 61
A principal finalidade da Ementa Constitucional 66/10, esta em retirar a tutela
do Estado sobre a decisão da vontade das partes, uma vez que a escritura pública
de divórcio não precisa ser homologada pelo Juiz, o Tabelião tem fé pública para
realização do ato e dos documentos por ele emitidos no seu Serviço Notarial, como
será exposto adiante.
4 O SERVIÇO NOTARIAL
A função notarial surgiu da necessidade de que as pessoas tinham de firmar
acordos de vontade, ou seja, a vontade jurídica, em um primeiro momento da
evolução humana, era, portanto, representada por símbolos e ações simbólicas.
Depois disso, a palavra tomou-se meio fundamental para a realização dos negócios.
Conforme Hercules Alexandre da Costa Benício 62, nesse período, tendo em vista o
pequeno número de relações negociais e sua simplicidade, a boa-fé e o respeito ao
testemunho dos particulares, a existência dos pactos e a satisfação das exigências
jurídicas eram presenciadas por assembleias populares, a fim de assegurar o que se
havia convencionado.
A palavra notário vem do Hebraico, notários ou notarin, posteriormente pela
linguagem egípcia começou a chamar de sofer e scriba. Aristóteles chamava os
servidores públicos que conforme sua atividade lavrava atos e contratos particulares
eram chamados em latim de notarri. Os italianos escreviam seus atos em tabuletas
de madeira emplastradas de cera, assim era chamado de tabelliones.63
Julia Claudia Rodrigues da Cunha Mota, relata que no Código Visigótico,
que proferia as escrituras chamava-se de conditor, não sendo necessariamente
61
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 42.
BENICIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do estado decorrente de atos
notariais e de registro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 41.
63 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
62
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 45.
107
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
oficial público, mas eram pessoas que naquela época sabiam escrever. João
Mendes de Almeida Junior complementa. "[...] de modo que os povos que usavam a
expressão ato autêntico empregaram o nome de notarius para determinar o oficial
público que lavrava contratos e testamentos e deram aos seus instrumentos o
mesmo caráter, a mesma força e os mesmos efeitos de uma sentença transitada em
julgado".64
A importância de designar um notário e registrador é fundamental "O Direito
existe não apenas para servir à justiça, mas também para eliminar a insegurança
das relações jurídicas. De nada adianta uma decisão justa, se ela não for segura e
eficaz".
Pode-se dizer que a função notarial e registral surgiu para prevenir tanto a
segurança injusta quanto a insegurança justa. A segurança injusta pode ser
verificada quando uma sentença equivocada, injusta, é proferida e à parte
interessada não é dado o direito de recorrer. Decisões assim são muito
comuns em sistemas ditatoriais. Tem-se uma segurança, pois não há risco
de alteração da decisão, mas completamente injusta. 65
Até a metade do século XVIII, a função dos notários era confundida com a
dos juízes, eis que até aquele tempo era necessária a intervenção judicial para dar
caráter público ao ato notarial, pois havia a necessidade de homologação dos
documentos por autoridade superior. E, como eram muitos os atos a serem
chancelados pelos juízes, eles passaram a delegar as funções notariais a escrivães
e chanceleres, que foram, com o tempo, tomando-se peritos na atividade que
desempenhavam, possibilitando constituir uma classe separada, autônoma e
independente, a classe dos oficiais públicos.
Com a instituição de um curso especial, na Universidade de Bolonha, os
autores reconheceram, na atividade notarial, o ponto central do ofício de notas do
tipo latino, a partir dai, a atividade melhorou cada vez mais, sendo a Escola de
Bolonha extremamente importante como marco para a história notarial.
64
ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963. p.
41.
65 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 46.
108
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Hoje o serviço notarial no Brasil é distinto como era na antiguidade, porém
tem raízes e ideologias semelhantes. A história se faz necessária para entender sua
importância e sua evolução. Júlia Claudia Rodrigues da Cunha Mota, busca fatos
antiguíssimos para demonstrar como os ancestrais usavam o serviço notarial.
A Babilônia possuía cadastros e arquivos com finalidade administrativa, que
eram consultados em caso de conflitos de terras. Por volta de 1750 a.C.,
aproximadamente, a notoriedade dominial se manifestava através do uso de
"pedras de limites" (koudourrous), demarcando o território e dando
publicidade a propriedade. Na época dos hebreus, a organização social era
simples, mas quando as transações foram se complicando, elas passaram a
se feitas às portas da cidade, sem intervenção alguma, mas diante dos
habitantes locais que serviam de testemunhas. 66
Antigamente, nos anos 600 a.C., competia aos notários, denominados
escribas, a função de receber os contratos de vontade das partes e selar todos os
atos por eles realizados, que deviam ser munidos do selo público. Atualmente, não é
diferente, ainda utiliza-se o selo como uma garantia a ideia de que o serviço foi
conferido e registrado, tendo como um dos objetivos evitar falsificação de
documentos.
O Governo do Estado do Paraná, com base na Lei Federal nº 10.169/2000
em seu artigo 8º, regulamentou a Lei nº 13.228/2001, criando um Fundo de Apoio ao
Registro Civil de Pessoas Naturais - FUNARPEN, determinando a obrigatoriedade
de aplicação do selo de autenticidade em todos os atos praticados pelos Tabeliães
de Notas, de Protesto, Registradores de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas,
Registro Civil de Pessoas Naturais, Registradores de Imóveis e Distribuidores, para
compensar os registradores civis das pessoas naturais pelos atos gratuitos por eles
praticados.67
A escrita é a maneira de expressar a aquisição e venda da propriedade,
contratos e outros documentos afins, era feita de várias formas, conforme a
necessidade e o recurso que tinham na época.
66
MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 47.
67 MARTINELI, Mário. Aplicação dos selos de autenticidade pelos cartórios o que é o funarpen.
Disponível em: <http://www.funarpen.com.br/ofundo> Acesso em: 04 maio 2015.
109
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Os medos, os assírios e os persas tinham escrita compostas por figuras, em
forma de ferro de lança ou de prego, originariamente impressos em
tabuletas de argila, espécie de terracota, ou gravados em pedra,
diversamente combinados, daí o nome de escrita cuneiforme.Os assírios
não possuíam tinta nem pincel, não tinham papyrus, como os egípcios, nem
peles preparadas, como os habitantes de Pérgamo, os gregos e os
romanos, mas, quando os assírios e os medos foram subjugados, as leis
persas passaram a prevalecer.Os persas foram os primeiros a estabelecer o
cadastro então a propriedade dos imóveis não podia ser transmitida sem ato
escrito.No Egito, não faltavam materiais, como pedras, madeira,
pergaminho, o que explica o desenvolvimento da arte de escrever. A
transmissão de propriedade no Egito opera-se em três atos, porém, desses
três, o segundo caiu em desuso, estando apenas o primeiro, como ato de
aquisição do domínio, e o terceiro, como ato de posse, ou seja, a venda e a
tradição. Posteriormente ao ato por dinheiro ou ato de aquisição, passou-se
a fazer a cifra ou quantia do preço. 68
Cada povo estabelece suas normas ou regras conforme suas culturas,
necessidades e características específicas, se for buscar como surgiu em cada
região podemos ver semelhanças e distinções. "Existem tantos notariados quantos
os direitos ou ordenamento jurídico e os tipos de sociedade, isto porque, sendo o
notariado uma instituição criada pela sociedade, atuando na própria sociedade e em
seu benefício, ele assume as características do meio onde surgiu".69
4.1. O NOTARIADO NO BRASIL
Na época do Brasil Colônia, os tabeliães eram nomeação pelo Rei, esses
cargos eram vitalícios, e possuíam venalidade, ou seja, podiam ser obtidos por
compra e venda ou sucessão, não necessitando de preparo e conhecimento
específico.
Muitos cargos da burocracia profissional podiam ser comprados ou
recebidos como recompensa oferecida pela Coroa, sendo fornecidos ainda
à viúvas ou órfãs como dote. "A frase 'algum cargo da justiça ou do tesouro'
era a resposta usual da coroa por qualquer requerente que apresentasse
uma folha de serviço cheia de méritos ou explorações militares como razão
para receber a recompensa".70
68
MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 48.
69 RODRIGUES, Pedro Nunes. Direito notarial e direito registral. Coimbra: Livraria Almedina, 2005.
p. 23.
70 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 69.
110
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Conforme ensinamentos de Ovídio Baptista da Silva, extrai-se que, no Brasil,
a partir de um determinado momento de sua história, o notariado perdeu a
independência que marcou seu nascimento para tomar-se um serviço subordinado
ao Poder Judiciário, na condição de uma serventia judicial. Tal não ocorreu com o
sistema notarial dos países de língua espanhola, que seguiram o modelo do
notariado adotado na Espanha.71
Com a Constituição Federal de 1967, estabeleceu substitutos dos tabeliães
a garantia do cargo "aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial,
na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei,
contem ou venham a contar cinco anos de exercícios, nessa condição e na mesma
serventia", até 31/12/1983.72
Com a Constituição de 1988 artigo 236, e complementado pela Lei
8.935/1994, foi alterado o regime da função notarial e registral no Brasil, passando a
regulamentar o ingresso aos cargos só através de concurso público.
Conforme constata João Mendes de Almeida Junior, em sua obra "Órgãos
da Fé Pública", os notários e/ou registradores estão presentes em todo o
mundo e nas diversas épocas. Dentre alguns países, o saudoso autor cita a
Rússia, Suíça, Dinamarca, Noruega, Grécia, Turquia, Suécia, Uruguai,
Chile, Argentina, Estados Unidos, Colômbia, Cuba e Inglaterra,
demonstrando a importância do notário, entre altos e baixos, mas sobretudo
extinguindo de vez o conceito deturpado de que os cartórios são uma
invenção da burocracia brasileira.73
Em 18 de novembro de 1994, passou a viger a Lei Federal n° 8.935, que
regulamentou a atividade notarial, conforme anunciado pelo art. 236, da Constituição
Federal.
Art. 236. Os serviços notariais e os de registro são exercidos em caráter
privado, por delegação do Poder Público.
71
SILVA, Ovídio Baptista. O notariado brasileiro perante a Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 81.
72 MOTA, op. cit., p. 70.
73 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de
acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 62.
111
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
§ 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e
criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá
a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2°. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos
relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3°. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso
público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique
vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de
seis meses.
A profissão notarial é dizer o direito, fazer com que as partes leigas ou não,
na área do direito procurem um profissional denominado tabelião, para que possam
expressar suas vontades de acordo com a lei, alguém imparcial, que tenha fé
pública, para que aquele ato de vontade decidido pelas partes, seja harmoniosa e
celebrada com êxito.
Não basta o tabelião ser a "voz do direito", é imprescindível ser ético na
realização de todos os seus atos, moral em suas atitudes e levando em
consideração os princípios notariais, para que possa ser visto perante a sociedade
como um profissional ético, capacitado, imparcial e de plena confiança.
Embora a determinação notarial do direito se conclua por meio de um ato,
convém que sua correspondente disposição para atuar não seja árdua nem,
instável (facile mobile), senão que, o mais possível, pronta, constante e
facilitada, resultando de uma persistente inclinação moral - a de dar a cada
um o que é seu (suum cuique tribuere), tal se define a virtude da justiça - e
do hábito intelectivo próprio para o conhecimento do suum da justiça: que é
o que se designa, propriamente, com o termo "prudência. 74
O ato notarial deve ser reconhecido perante a sociedade como prática
eficaz, autêntica, podendo prevenir litígios, agir antes que aconteça. "A decisão do
juiz é sobre fatos passados para reger no presente. A autenticação do tabelião é de
fatos presentes para reger no futuro".75
O notário não é apenas um profissional do direito, mas um jurista convergido
na titularidade da fé pública, um profissional garantidor do direito, com pessoalidade,
vocação, eficácia cívico e retribuição "Profissão é a atividade pessoal que se
74
75
DIP, Ricardo Henry Marques. Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. p. 40.
QUARTIER. Revista de direito notarial. Trim. v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.62
112
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
exercita habitualmente, por vocação e com espírito de serviço, em ordem ao bem
comum e como meio de prover as necessidades da vida".76
5 PARA QUE SERVE O SERVIÇO NOTARIAL E QUAIS SUAS ATRIBUIÇÕES
Na acepção de Walter Ceneviva, o serviço notarial constitui-se em atividade
prestada por notários ou tabeliães, pessoalmente ou por seus prepostos, sob a
responsabilidade dos primeiros, em locais denominados serventias, voltada ao
atendimento do povo em geral. Referida atividade é, pois, exercida por profissional
do Direito considerado agente público, podendo também exercê-la as autoridades
consulares brasileiras, na forma da legislação especial.77
A lei autoriza ao agente a redigir, formalizar e autenticar, com fé pública,
instrumentos que consolidam atos jurídicos extrajudiciais. Os serviços notariais
devem ser prestados de forma técnica e organizada. Eles garantem a publicidade
dos atos praticados nas serventias, a autenticidade no sentido de que possuem
presunção relativa de veracidade, dão segurança jurídica e plena eficácia às
relações negociais neles especificadas, podendo inclusive servir como prova em
juízo. Portanto, constitui-se em serviço com muitos benefícios a oferecer aos
solicitantes. Neste mesmo entendimento complementa Walter Ceneviva.
O serviço notarial se caracteriza em seus aspectos principais, como o
trabalho de compatibilizar com a lei a declaração desejada pelas partes nos
negócios jurídicos de seu interesse. Compatibilização participante e não
meramente passiva, pois a declaração transposta para o documento público
se destina a relatar limitações de direito, aceitas pelos participantes do ato. 78
Dessas afirmações pode-se compreender que o serviço notarial, não
obstante sua vinculação a fórmulas, é caracterizado em seu aspecto formal pelo fato
de prover legalidade à vontade manifestada pelas partes, e possibilita que esta,
conforme expressa, produza efeitos jurídicos.
Importa acrescentar que o serviço notarial deve estar imbuído de legalidade,
76
DIP, Ricardo Henry Marques. Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. p. 40.
CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2007.
p. 22.
78 Idem, p. 22.
77
113
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
uma vez que somente serve para fins lícitos. A legalidade não está expressa no art.
1 ° da Lei n° 8.935/94, mas pode ser visualizada de forma implícita entre as
características dos serviços notariais. Até porque a atividade notarial constitui-se em
prestação de serviço e sendo assim, devem ser respeitados os princípios
constitucionais.
Logo, é possível perceber que os fins do serviço notarial se misturam, ou
seja, a publicidade visa atribuir segurança às relações jurídicas, permitindo que
qualquer interessado possa ter acesso ao acervo das serventias notariais e de
registro. A autenticidade é qualidade de ato confeccionado por autoridade, criando
presunção juristantum de veracidade quanto a ele. A segurança transmite certeza
quanto ao ato e sua eficácia, afastando os riscos, e a eficácia significa que o ato
praticado produzirá os efeitos dele decorrentes, não necessitando de confirmação
por qualquer outra instituição.
Para compreender melhor essa interpretação, observa-se o pensamento de
Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza:
Vê-se que a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia são fins que
se entrelaçam e se completam, são interdependentes. A publicidade dos
atos é relevante porque a eles se atribui autenticidade; a segurança é
dependente e fim da publicidade e da eficácia; a eficácia, por seu turno, só
se atinge em razão da autenticidade e da publicidade. Várias outras
relações podem ser feitas entre os fins dos serviços notariais e registrais,
importando assinalar que, em síntese, o que se almeja é a segurança
jurídica.79
O tabelião é um prestador de serviços à comunidade na condição de
delegado do Poder Público, competindo a ele lavrar os instrumentos apropriados
para a realização do ato de vontade das partes, intervir nos atos e negócios
jurídicos, permitir sua redação ou redigir os instrumentos, lavrar escrituras e
procurações públicas, testamentos, instrumentos de protesto e demais atos
inerentes à função notarial.
O notário atua também como conselheiro, confidente e assessor jurídico das
partes e deve manter sigilo sobre as informações que lhe são trazidas. Deve, em
79
SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Os serviços notariais e registrais no brasil. Disponível
em: <http://jus.com.br/revista/texto/9629/os-servicos-notariais-e-registrais-no-brasil>. Acesso em
10.05.2015.
114
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
conformidade com a Lei, passar para as notas aquilo que lhe foi declarado e adaptar
a vontade das partes às normas de Direito, pois é fundamental que o tabelião tenha
conhecimentos diversos no que se relaciona à tarefa de bem orientar e aconselhar
as partes; é também imprescindível, praticamente na sua totalidade, conhecimentos
específicos nas diversas áreas do direito.
Para Walter Ceneviva:80 "O notário é a ponte entre a lei e a declaração, a
qual, sob o preceito de que os pactos são obrigatórios, cria a normatividade própria
do contrato por instrumento público, determinando os fins visados pelos
contratantes".
Os princípios fundamentais e as diretrizes básicas para o notariado, são
regulamentados na Lei Federal n° 8.935/94, que define a função do notário. É
também esta Lei que traz para o direito notarial brasileiro importantes inovações e
coloca um ponto final na discussão existente sobre ser o notário ou não funcionário
público. Sendo agente público a quem o Estado encarrega de exercer uma função
pública, na condição de particular, que executa serviço público em nome próprio, por
sua conta e risco, sendo assim, denominado como um profissional do direito.
O serviço notarial é, portanto, um serviço público, prestado em caráter
privado, sendo que cabe ao titular a administração e o gerenciamento da serventia,
incluindo a contratação de seus servidores, serviços prestados e realizados na
serventia. A delegação não pode ser subdelegada, é personalíssima. No entanto, é
permitido ao notário delegar às suas prepostas atividades determinadas, sob sua
supervisão e responsabilidade.
Os notários e registradores submetem-se não só ao sistema jurídico
normatizado próprio como também ao regramento imposto pela administração
pública", o poder delegante. São profissionais que exercem suas atividades em
recinto particular e mesmo não recebendo dos cofres públicos, o numerário por eles
recebidos têm a natureza de receita pública, deve ser criado e majorado por lei.
Os notários e registradores não são funcionários públicos, por defenderem
que a intenção contida na Constituição de 1988 foi de privatizar a prestação dos
serviços notariais, e estabelece que esses são desenvolvidos em caráter privado.
80
CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2007.
p. 22.
115
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Com a expressão caráter privado, a Magna Carta conduziu os notários e
registradores do direito público para o direito privado, deixando assim de fazerem
parte da estrutura do Estado, passando a ser colaboradores do Poder Público,
trabalham em local particular e assumem a contratação de seus funcionários sob o
regime da Consolidação das Leis Trabalhistas.
O artigo 3° da Lei n° 8.935/94 reforça tal posicionamento, quando diz que os
notários e registradores são "profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é
delegado o exercício da atividade notarial e de registro". E o artigo 50, da mesma lei,
fortalece o entendimento acima ao determinar que os nomeados a partir de sua
vigência, passam a se sujeitar ao Regime Geral da Previdência Social, que é o
regime próprio da iniciativa privada, diferente daquele aplicado aos funcionários
públicos.
Neste sentido, também se encontra o posicionamento de Romeu Felipe
Bacellar Filho81, afirmando ele que é nítida a diferença entre os serventuários da
justiça e os agentes delegados - como é o caso dos notários e registradores. Para o
professor Bacellar, os primeiros possuem vínculo direto e imediato com o Poder
Judiciário, que é responsável pelos atos de provimentos originários e derivados; já
os segundos possuem suas atividades reguladas por lei especial, cabendo ao Poder
Judiciário tão somente a fiscalização de seus atos, conforme o § 1º do artigo, 236 da
Constituição Federal, qual seja:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter
privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e
criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá
a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. (...)
Existem, por certo, no lado oposto ao da posição até agora exposta,
doutrinadores e juristas que entendem serem os titulares de serventias extrajudiciais
funcionários públicos.
Com esse pensamento, Luis Roberto Barroso, ao comentar o artigo 236 da
81
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre direito administrativo. Belo Horizonte:
Fórum. 2009. p. 146.
116
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Constituição Federal, afirma:82 "esse dispositivo não afeta, antes confirma, a
natureza pública do serviço. Assim titulares e auxiliares de tabelionatos e oficiais de
registros são funcionários públicos, inclusive para fins do artigo 327, do Código
Penal".
Essa posição, contudo, encontra-se minimizada, de acordo como dispositivo
do art. 175 caput da Constituição Federal é claro ao afirmar que o Estado é o titular da
prestação de serviços públicos. E o art. 236, da Magna Carta, por sua vez, dispõe
que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
Além disso, apesar de os titulares das serventias extrajudiciais serem
considerados "servidores públicos em sentido amplo", como exercem suas
atividades em caráter privado, por delegação do Poder Público, não são titulares de
cargos efetivos, como requer o inciso Il, do § 1º do art. 40, da Constituição Federal,
que trata da aposentadoria compulsória.
Reforçando o referido entendimento, cita-se o posicionamento do professor
Romeu Felipe Bacellar Filho:
A bem de ver, os notários e registradores jamais deveriam ser considerados
auxiliares da justiça. A autuação destes agentes delegados, destinada "a
garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos
jurídicos", precede à atividade judicial, não sendo auxiliar desta. Os atos
praticados por esta categoria de agentes delegados consagram a realização
espontânea do direito, ou seja, não cuidam eles de decidir litigiosidades ou
controvérsias. Desta forma não podem ser arrolados dentre os
serventuários da justiça do foro extrajudicial, eis que esta nominação não
mais lhes cabe, notadamente a partir da Constituição Federal de 1988.
Não são servidores públicos de qualquer espécie. Desde o regime anterior,
a doutrina nitidamente já distinguia os notários e registradores dos
servidores públicos, persistindo em tal entendimento.83
Pode-se concluir, portanto, quanto à natureza jurídica da atividade notarial,
que se trata de serviço público, prestado de forma privada, por particular, mediante
delegação do Poder Público.
Vencida essa primeira parte sobre o conceito, função notarial e natureza
82
BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo:
Saraiva, 1998. p. 366.
83 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre direito administrativo. Belo Horizonte:
Fórum, 2009. p. 146.
117
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
jurídica, passa-se a especificar cada atividade que faz parte do serviço extrajudicial
e suas competências.
Dessa
forma,
cabe
esclarecer
que
"serviço
extrajudicial"
é
uma
nomenclatura genérica utilizada para abranger os serviços prestados pelos tabeliães
de notas, tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos, tabeliães de
protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis, oficiais de registro de pessoas
naturais e de interdições e tutelas, oficiais de registro de títulos e documentos e civis
das pessoas jurídicas e oficiais de registro de distribuição, na forma que estabelece
o artigo 5° da Lei n° 8.935/94.
Tabelião de notas é o profissional aprovado em concurso público, titular de
serventia notarial, qual seja, Tabelionato de Notas, na qual são realizados os
serviços mais conhecidos da sociedade no que diz respeito ao serviço extrajudicial,
tais como: procurações públicas, escrituras públicas, atas notariais, reconhecimentos
de firma, autenticações, entre outros."
Portanto a atividade extrajudicial e tão ampla e muito importante a cada uma
das suas atribuições. Neste estudo, decidiu-se por focar nos Tabelionatos de Notas,
tendo em vista o objeto deste trabalho, qual seja a importância desta atividade
extrajudicial de notas e suas possibilidades de auxílio à diminuição de demandas a
cargo do Poder Judiciário.
Trata-se de uma atividade de muita valia nos dias de hoje, pois vem sendo
essencial à Justiça. Mas ainda há muita falta de informação sobre a atividade
desempenhada pelos tabelionatos de notas.
5.1 SEGURANÇA JURIDICA E A FÉ PÚBLICA DOS ATOS NOTARIAIS
A segurança jurídica é vital às relações negociais e ao ordenamento jurídico.
Conforme Ricardo Dip84, "os homens precisam saber em que se fiar, em que se ater,
quais as regras do jogo, as regras da vida jurídica em concreto".
A atividade notarial e registral constitui relevantes instrumentos jurídicos
preventivos, têm por finalidade conferir, objetivamente, segurança jurídica e,
84
DIP, Ricardo. Sobre a crise contemporânea da segurança jurídica. Registro de imóveis
(vários estudos). Porto Alegre, 2005. p. 96.
118
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
subjetivamente, a certeza que lhe corresponda, por meio de formas, prazos e
procedimentos.
Segundo Miriam Saccol Comassetto:
A função notarial se constitui em atividade jurídica desenvolvida pelo notário
ou tabelião, com o intuito de auxiliar os particulares, de forma imparcial, na
regulamentação de seus direitos subjetivos na busca de uma solução
adequada juridicamente e com o fim de conferir a esses atos segurança
jurídica.85
A certeza jurídica dos atos efetuados em serventias notariais traz como
consequência direta a prevenção de eventuais conflitos, que poderiam surgir em
tomo da relação jurídica perfectibilizada em cartório. O notário é profissional de
direito que se cerca de todos os cuidados possíveis para que na execução do ato
solicitado pelas partes não ocorram falhas, e ele possa assim proporcionar
segurança jurídica. Desempenha, portanto, esse profissional do direito, papel de
relevância na sociedade, eis que pelas mãos do Estado, através da atividade
jurisdicional e o instituto jurídico da coisa julgada, é possível a obtenção da certeza
jurídica a posteriori, uma vez que o Judiciário busca resolver o conflito já instaurado.
Entretanto, no que tange à atividade notarial, pode-se dizer que há a fixação do
direito a priori, a certeza jurídica é atingida sem a necessidade de surgimento de um
litígio.
Portanto, como dito anteriormente, a ação dos notários e registradores
precede à atividade judicial, e para realizar sua tarefa, o tabelião utiliza-se de
instrumentos públicos, dotados de fé pública, o usuário do serviço notarial por muitas
vezes reclama que se trata de um serviço burocrático, marcado pela exigência de
papéis, assinaturas e carimbos, deve-se lembrar que se trata de uma visão errônea.
Basta fazer uma reflexão da dita "burocracia" do serviço notarial, pois deve ser vista
com os olhos voltados à segurança jurídica, através da exigência dos papéis,
certidões, assinaturas e carimbos é que o profissional da área notarial pode atestar e
conferir autenticidade aos atos por ele praticados, sem medo de estar fazendo algo
errado.
85
CAMASSETTO, Miriam Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto
Alegre: Norton, 2002. p. 61.
119
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Trata-se, pois de uma atividade com tarefas detalhadas, organizadas, bem
distribuídas, realizadas de acordo com o disposto na legislação, de forma a
possibilitar que os atos jurídicos produzidos nas serventias possam garantir
autenticidade, segurança e eficácia jurídica.86
Dessa forma, a segurança jurídica preventiva oferecida pelo notário aos
documentos elaborados em sua serventia, de forma cuidadosa e célere, não pode
ser
considerada
sinônimo
de
burocratização
em
sentido
pejorativo,
mas
procedimento essencial que oferece segurança jurídica à sociedade.
Na função notarial, o notário ainda exerce também o poder de polícia
jurídica, o qual está relacionado com o princípio da legalidade, que deve levar em
consideração quando da prática de sua atividade. Esse poder de polícia refere-se ao
fato de que o notário preside os atos jurídicos daqueles que requerem seus serviços,
porém é fundamental a sua fiscalização de tais atos.
A fé pública notarial tem como depositário dominante o notário, ela é
conferida pela lei para atribuir valor jurídico a todo documento notarial e seu
conteúdo, e que somente pode ser contestada em juízo mediante provas
convincentes de falsidade. A fé pública notarial atesta a verdade das relações
subjetivas, dá segurança e certeza jurídica, pois mostra se a exata realidade dos
fatos, tornando-os verdadeiros.
A existência da fé pública é essencial para a sociedade que clama por
segurança e estabilidade nas relações jurídicas estabelecidas entre os indivíduos do
meio social.
Como se depreende, temos que atribuir à atividade notarial pelo seu agente
autêntico jurista-documentador, como sendo um serviço fundamental à
administração da justiça, em virtude da fé pública que envolve seu labor,
tanto em relação à eficácia probatória, como à força executiva, alcançando
sua plenitude via sentença judicial se instruído algum processo com atos
por ele praticado.87
A segurança e certeza jurídica são consequências da fé pública, implicam
86
CAMASSETTO, Miriam Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto
Alegre: Norton, 2002. p. 97.
87 REZENDE, Afonso Celso Furtado; CHAVES, Carlos Fernando Brasil. Tabelionato de notas e o
notário perfeito. 5. ed. Campinas, São Paulo: Millennium, 2010. p. 87.
120
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
severo regime de responsabilidades civil, administrativa e penal, no caso de
ocorrerem desvios, deslizes ou incorreções no serviço notarial. E a responsabilidade
civil dos notários e registradores, segundo Hércules Alexandre da Costa Benício 88,
“é subjetiva, mas direta do agente delegado, não cabendo responsabilidade civil
objetiva do Estado pela natureza jurídica dos notários e registradores”. Dessa forma,
cabe esclarecer que o fato desses profissionais possuírem fé pública, não quer dizer
que são considerados funcionários públicos. Todos os atos praticados pelos
tabeliães são dotados de fé pública, desde a autenticação de fotocópias, até
escrituras, certidões, atas notariais, protestos, registros, averbações, enfim, todo
serviço do cartório certificado pelo tabelião, é dotado de fé pública, pois é ela que
afirma a certeza e a verdade dos assentamentos que o notário pratica, afirma a
eficácia do negócio jurídico ajustado com base no declarado ou praticado pelo
registrador e pelo tabelião. É na figura do notário, pois, que a fé pública adquire
maior amplitude, pois a ele cabe a expressão da verdade. A população crê que ele
seja profissional correto, íntegro em tudo o que dita ou escreve, salvo incontestável
prova em contrário.
6 CONCLUSÃO
O objetivo geral deste estudo foi desenvolver uma análise da atividade
notarial, pôde-se concluir que desde o início da civilização os povos já utilizavam dos
meios disponíveis na época da atividade notarial e registral.
Ao tratar da efetividade da função notarial, verificou-se que a atividade
desempenhada pelo tabelião, dentro de sua competência, observados os preceitos
legais e princípios do direito notarial, é capaz de proporcionar segurança jurídica
para as partes, pois trata-se de uma atividade organizada, detalhada, que deve
cumprir certas formalidades, sendo realizada conforme o disposto na legislação,
tudo de forma a possibilitar que os atos jurídicos produzidos nas serventias possam
garantir autenticidade, segurança e eficácia jurídica.
Sendo, portanto a atividade notarial bem menos burocrática e morosa do
88
BENICIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos
notariais e de registro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 304-305.
121
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
que a própria Justiça, porque as atividades realizadas nos serviços extrajudiciais são
mais facilmente resolvidas e não vão bater nas portas do Judiciário.
Concluiu-se também, que a fé pública do tabelião é essencial para garantir a
certeza jurídica aos atos notariais, corresponde à certeza da realidade, confere
confiabilidade ao ato praticado, afirma a eficácia do negócio jurídico ajustado com
base no declarado ou praticado pelo notário.
Muitas têm sido as tentativas de desafogar o Poder Judiciário e é fato que
muitas foram colocadas em prática, como a Lei 11.441/07 que autoriza as partes a
realizarem o divórcio extrajudicial, não precisando da intervenção estatal, sendo
assim de forma mais rápida.
A intenção deste estudo foi mostrar que o serviço extrajudicial existe e pode
ser aproveitado nesse sentido, para desafogar o Poder Judiciário, que vem
apresentando bons resultados quando o assunto é afastar do Poder Judiciário
demandas que dele não precisam para serem resolvidas, como é o caso dos
inventários, partilhas, separações e divórcios efetuados em Tabelionatos de Notas.
Demonstra-se, portanto, que os serviços extrajudiciais podem sim funcionar
como medidas alternativas de solução de conflitos, principalmente os Tabelionatos
de Notas.
Por fim, entendeu-se que o serviço notarial faz parte do ordenamento
jurídico vigente, desempenhando importante papel junto à sociedade, no sentido de
prevenir litígios. Além disso, ele desempenha uma função importantíssima, uma vez
que a ele incumbe transmitir às partes a confiança no seu trabalho, na sua fé
pública, e só assim resolver a situação que lhe é apresentada proporcionando
segurança e eficácia jurídica a ela.
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realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por
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124
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO PARA A EFETIVIDADE DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
THE ENVIRONMENTAL EDUCATION AS A TOOL FOR SUSTAINABLE
DEVELOPMENT EFFECTIVENESS
Christiany Domingues da Rocha89
Regina Maria Bueno Bacellar90
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Importância da proteção do meio ambiente 2.1 Meio ambiente como direito
fundamental 2.2 Sociedade de risco 3 Educação ambiental 3.1 Ética ambiental 3.2 Princípio da
participação 3.3 Educação ambiental fundamentada na ética ambiental 4 Conscientização ambiental
como meio para a sustentabilidade 4.1 O desenvolvimento sustentável 4.2 Sociedade sustentável 4.3
Erradicação da pobreza à luz da educação 5 Considerações finais. Referências
RESUMO
O presente texto objetiva demonstrar a importância dos recursos naturais para a existência dos seres
humanos, visto que diz respeito à garantia da vida humana em que todos dependem do meio
ambiente para sobreviver. A relação entre o homem e o meio ambiente é remota, passou por várias
mudanças no decorrer dos tempos. A preocupação com a proteção ambiental só foi percebida com a
escassez dos recursos naturais e o agravamento da qualidade ambiental. Com isso, houve uma
valorização da natureza, e foi constatado a ligação da proteção do meio ambiente com um interesse
intergeracional. A partir disso, muitos têm buscado um novo modelo de desenvolvimento que prime
um ponto de equilíbrio entre o crescimento econômico tão almejado pela sociedade atual e a
preservação do meio ambiente. Pretende-se destacar que a partir da busca por este equilíbrio que
surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, que visa a satisfação das necessidades atuais
sem comprometer as necessidades das futuras gerações. Para tratar da questão, frisa-se o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental do homem na Constituição da
República de 1988 como pressuposto à sadia qualidade de vida. As dificuldades para a
implementação desse novo modelo são várias, portanto, alterações no comportamento da sociedade
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Advogada Consultora, possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985),
mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em
Ecologia e Direito Ambiental. Atualmente leciona no curso de graduação em Direito do Centro
Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação realizados pelas seguintes
Instituições de Ensino: UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Possui experiência nas áreas de Direito Civil,
Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direito de Energia/Regulatório. Membro das Comissões da
Mulher Advogada e do Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. Membro
da CAMFIEP - Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná.
89
90
125
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
devem ser levadas em consideração, assim como a devida conscientização às questões ambientais.
Não há como se alcançar o efetivo desenvolvimento sustentável sem promover a educação ambiental
em todos os níveis.
Palavras-chave: meio ambiente, educação ambiental, desenvolvimento sustentável
ABSTRACT
This article aims to demonstrate the importance of natural resources for the existence of human
beings, as regards the security of human life and everyone depends on the environment to survive.
The relationship between man and the environment is remote, has undergone several changes over
the time. Concern for environmental protection has only been realized with the scarcity of natural
resources and the deterioration of environmental quality. This let us to an appreciation of nature, and it
was found to protect the environment lead to an intergenerational interesting. From this, many people
have sought a new development model that prime a balance between economic growing as target by
the current society and the preservation of the environment. It is intended to highlight that from the
search for this balance that emerged the principle of sustainable development, which aims to satisfy
current needs without compromising the needs of future generations. To show the issue, claims the
ecologically balanced environment as a fundamental human right in the Constitution of 1988 as a
prerequisite to a healthy quality of life. The difficulties in the implementation of this new model are
numerous, so many changes in the behavior of society must be taken into account, as well as proper
awareness to environmental issues. There is no way to achieve effective sustainable development
without promoting environmental education at all other levels.
Keywords: environment, environmental education, sustainable development
1 INTRODUÇÃO
O meio ambiente é um tema de grande renome ultimamente, visto que é
dever de todos proteger os interesses ambientais. O que poucas pessoas se
atentam é que é direito fundamental de todos o meio ambiente sadio e
ecologicamente equilibrado.
No entanto, nota-se que muitas vezes esse direito fundamental é esquecido
para que seja alcançado o desenvolvimento econômico. Apesar de ser considerado
como instrumento para a melhoria na qualidade de vida da sociedade, a busca
incessante pelo lucro ocasiona em uma intensa degradação ambiental.
Ocorre que os fundamentos econômicos estão intrinsecamente ligados a uma
política de proteção ambiental e, tendo a natureza como fonte essencial para o
126
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
sistema de produção, poucos são os que se dão conta da escassez dos recursos
naturais, que são esgotáveis, enquanto as necessidades humanas são infinitas.
Desse modo, para que as futuras gerações não sejam prejudicadas por essa
degradação ambiental devido ao anseio da atual geração pela busca do crescimento
econômico, será necessária uma mudança de postura da sociedade, devendo
promover um novo modelo de desenvolvimento.
Com o objetivo de estabelecer um ponto de equilíbrio entre a extração de
recursos e a garantia do meio ambiente equilibrado foi que surgiu o princípio do
desenvolvimento sustentável, que visa a valorização da preservação do sistema
ecológico, sem deixar de lado a tutela do desenvolvimento econômico, de forma que
evite a devastação da natureza pelos seres humanos.
Para tanto, ressalta-se a necessidade da relação harmônica entre o ser
humano e a natureza, levando em consideração que esta é condição de sua
existência futura. Ainda, cabe salientar a relevância da busca pelo desenvolvimento
sustentável como um novo modelo de desenvolvimento, de forma que satisfaça as
necessidades atuais sem impedir a satisfação das gerações futuras.
Portanto, o presente trabalho possui o escopo de esclarecer a importância da
educação ambiental na busca pelo desenvolvimento sustentável, conciliando os
direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao
desenvolvimento com o crescimento econômico, como instrumentos de proteção
ambiental e pressupostos para a sadia qualidade de vida humana.
Todavia, para que tal modelo seja implantado, mudanças devem ocorrer no
estilo de vida dos indivíduos, devendo estimular a educação ambiental,
transformando valores de forma que gere a cultura do respeito à natureza.
2 IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
Desde os primeiros contatos do homem com a natureza já se notou que esta
lhe daria os meios para sua sobrevivência. Ocorre que a preocupação com a
proteção do meio ambiente pelo homem só teve início à medida em que se
constatou que os recursos naturais eram limitados e com a deterioração da
qualidade ambiental.
127
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Com isso, observou-se uma inquestionável relação de interdependência entre
o homem e a natureza, visto que não existe maneira de separá-los, pois o homem
depende da natureza para a sua existência.
Assim, não resta dúvida que a relação entre o homem e a natureza deve ser
levada em conta no que diz respeito ao meio ambiente, já que qualquer desgaste
poderá afetar toda a coletividade, devido a esta interdependência.
O homem pertence a um meio complexo e interdependente, não possui
controle da natureza, mas precisam estar em harmonia para sobreviver. Os recursos
naturais são finitos e seu desperdício pode levar à sua destruição. Visto isso, para a
coexistência com o meio ambiente, é necessário que todos os cidadãos tenham
consciência do estrago que têm causado, em nome da produtividade e do progresso
(AGUIAR, 1994, p. 20/21).
Com base nisso, há necessidade de se ultrapassar a ideia antropocêntrica, de
que o homem é o centro do universo, posto que não é apenas a atual geração que
está em questão. Pelo contrário, a preservação do meio ambiente está ligada a um
interesse intergeracional, o qual dispõe a necessidade de um desenvolvimento
sustentável com a proteção dos recursos naturais para as gerações futuras.
Conforme Morato Leite, “este novo paradigma da proteção ambiental, com
vistas às gerações futuras, pressiona um condicionamento humano, político e
coletivo mais consciencioso com relação às necessidades ambientais” (MORATO
LEITE, 2000, p. 78).
É nessa perspectiva que surgiu o chamado antropocentrismo alargado,
adotado pelo direito brasileiro no que concerne à proteção do meio ambiente.
Consiste em uma interação solidária entre o homem e a natureza, como garantia do
futuro de ambos, devendo priorizar a defesa do meio ambiente pela sua capacidade
funcional, já que a Constituição Federal estabelece o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida (art. 225).
Portanto, o meio ambiente deve ser preservado levando em consideração a
utilidade que possui frente ao homem, estando, assim, associado ao interesse
intergeracional, bem como pela importância da proteção do próprio sistema
ecológico, posto que a proteção do meio ambiente global consiste em uma
128
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
preocupação a tudo aquilo que rege a vida, abriga e a permite, colocando todos os
seres no mesmo grau de importância, permitindo uma perspectiva atual e vasta.
Todos os seres que compõem o meio ambiente, independentemente de sua
utilização para a sociedade, deviam ser resguardados. Para que isso fosse possível,
tornou-se fundamental uma cooperação entre os Estados para a formulação de
normas internacionais, de modo que se pudesse restabelecer o equilíbrio ambiental
lesado pelas atividades produtivas em todo o globo.
2.1 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O que se busca, sobretudo, é a inclusão da proteção ambiental no plano mais
elevado do caderno de direitos reconhecido aos cidadãos (CANOTILHO; LEITE;
Orgs, 2011, p. 118), tendo em vista que diz respeito à garantia da vida, não devendo
nenhum agente tratar o meio ambiente com desprezo, seja público ou privado, mas
considerar acima de qualquer outro direito.
Na Constituição Federal de 1988, o tratamento ao meio ambiente não se
concentrou em apenas um dispositivo, evidenciou sua importância em diversos
dispositivos constitucionais, mormente no Título “Da Ordem Social”, o qual foi
inserido ao lado de outros direitos fundamentais, como saúde, educação, seguridade
social, entre outros, não restando dúvidas quanto à fundamentalidade deste direito.
Isto se justifica, já num primeiro momento, ao se analisar a estrutura normativa do
caput do artigo 225 da Constituição Federal, quando faz menção ao fato de que
“todos têm direito”:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
Ademais, tal direito acarreta o aparecimento de outros direitos, como a sadia
qualidade de vida. Qualidade de vida, no que tange a preservar as condições sadias
do meio ambiente e as relações que garantem o pleno desenvolvimento de todas as
formas de vida. Segundo Édis Milaré, “a proteção do meio ambiente é pressuposto
129
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
para o atendimento de outro valor fundamental – o direito à vida” (MILARÉ, 2000, p.
213).
Nesse sentido, não se pode restringir este benefício apenas aos brasileiros e
estrangeiros residentes no país, devendo ser garantido a toda e qualquer pessoa,
assim como a proteção da dignidade da pessoa humana, vigorando o princípio da
universalidade, indo além da cidadania brasileira.
Logo, tendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um
direito de terceira geração, o qual não se destina especificamente aos interesses de
um indivíduo, mas uma preocupação de interesse geral, é fato que requer
prestações positivas da sociedade e do Estado.
Desse modo, se de um lado exige-se que o meio ambiente seja respeitado
pelo Estado, de outro é estipulado que a Administração Pública assegure o bem
jurídico ambiental. Por essa razão, a Constituição brasileira estabelece medidas a
serem tomadas pelo Poder Público para garantir o direito ao meio ambiente
equilibrado.
Sendo assim, o art. 225 é considerado a “mãe” de todos os dispositivos
ambientais da Constituição brasileira, estando diretamente ligado aos fundamentos
constitucionais da proteção à vida e saúde (art. 5º), à garantia da dignidade da
pessoa humana (art. 3º) e à função ecológica da propriedade (art. 186, II).
Desse modo, o constituinte quis evitar todas as formas de degradação
ambiental pelo Poder Público, seja direta ou indiretamente, agindo harmoniosamente
para a defesa e preservação do meio ambiente.
Ocorre que não é papel apenas do Estado garantir a preservação do meio
ambiente, mas deve atuar juntamente com a ação dos grupos sociais para que seja
realizada de forma eficaz e profilática. Assim, no que concerne à coletividade, a
Constituição brasileira faz menção à sociedade civil, constituída pelas ONGs.
Não obstante, a coletividade e o Poder Público devem, conjuntamente,
assegurar a defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado
almejado pela Constituição, de modo que não se permita o desequilíbrio ambiental.
130
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.2 SOCIEDADE DE RISCO
Há muito tempo o mundo se voltou à busca incessante pelo lucro. Atualmente
fala-se que passamos a viver a transição para uma sociedade de risco, em que os
riscos advindos das atividades econômicas são globais, atingindo todas as classes
sociais. Logo, não há o que se falar em tutela do meio ambiente sem expor o
problema do risco.
Com o desenvolvimento da sociedade há um aumento de riscos, já que a
competitividade nos processos de industrialização cada vez mais prioriza produções
em massa para suprir uma necessidade imediata da sociedade, sem levar em conta
os riscos e consequências das gerações futuras. É certo que o desenvolvimento traz
inúmeros benefícios à sociedade, porém, concomitantemente ocasiona riscos que
trazem prejuízos à comunidade como um todo.
Atualmente, “o modo de produção capitalista, ávido pelo crescimento
econômico, a prática desenvolvimentista de modelo expropriatório, a estruturação do
Estado e nossa organização político-social expõem o ambiente constantemente ao
risco” (TESSLER, 2004, p. 145). Enquanto não se comprovar de maneira irrefutável
as consequências que determinada atividade irá trazer ao meio ambiente, a
produção não para. O próprio Estado, especialmente quando diz respeito às
questões ambientais, procura esconder da opinião pública a existência dos riscos.
No mesmo sentido, aponta Morato Leite:
Como o desenvolvimento econômico ainda é foco das políticas públicas – o
discurso padrão das autoridades – há uma invisibilidade dos riscos
ecológicos. Referida invisibilidade decorre do fato de que o Estado utiliza
meios e instrumentos para ocultar as origens e os efeitos do risco ecológico,
com o intuito de minimizar suas consequências, ou melhor, objetivando
transmitir para a sociedade que a crise ambiental está controlada (MORATO
LEITE, 2009, p. 57).
Tendo a natureza como fonte de matéria prima para a produção industrial,
repara-se que são poucos aqueles que se conscientizam do fato de que os
causadores do risco hoje, serão as vítimas amanhã. Acontece que a busca pela
necessidade momentânea acaba por comprometer o bem-estar futuro.
131
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Como se pode observar, o crescimento econômico é muito almejado, está
juridicamente tutelado, mas se torna perigoso se não for estabelecido um ponto de
equilíbrio. Deve-se definir, portanto, quais atividades podem ser admitidas ou
proibidas de acordo com o risco que causa, verificando o grau de tolerabilidade de
se suportar o risco. Ao legislador, cabe sopesar os benefícios, concomitantemente
com os perigos supervenientes de determinada atividade, devendo ser vedada ou
não pela norma.
Pelos motivos já expostos, nota-se que o meio ambiente é mais do que um
condicionante da atividade humana, ele faz parte da vida de qualquer indivíduo.
Visto isso, resta conscientizar as pessoas da importância da preservação ambiental
e valorização de espaços naturais, o que só será possível a partir da educação
ambiental.
3 EDUCAÇÃO AMBIENTAL
3.1 ÉTICA AMBIENTAL
Tendo em vista que o Direito Ambiental engloba o comportamento humano
em face da natureza e seus recursos, a necessidade de se rever os valores da
sociedade conforme um novo modelo de desenvolvimento é evidente. Entretanto, tal
tarefa não se obtém com facilidade.
O Direito deve coexistir com a ética em todos os seus âmbitos, ainda que
existam situações divergentes, como algo considerado legalmente aceitável, mas
não do ponto de vista moral. No que diz respeito ao Direito, tem-se que a ética
possui diretrizes compatíveis com o Direito Natural.
Com isso, surge a ideia de uma nova ética, chamada ética ambiental, a qual
possui como parâmetro o comportamento da espécie humana considerado como
adequado e aceito socialmente, no que concerne ao próprio indivíduo e o meio
ambiente. Nesse sentido, Édis Milaré expõe:
Direito Natural e Ética, em suas origens, por vezes se confundem, porque
ambos estão próximos da matriz originária, isto é, a natureza. Por Ética
entenderemos, aqui, a ciência ou o tratado dos costumes que, pelo seu
caráter eminentemente prático, pode definir-se como exercício dos bons
132
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
hábitos e comportamentos morais, quer na vida individual, quer na social. A
Ética Ambiental realiza esse intento regulando as relações humanas
(individuais, profissionais, sociais, institucionais e políticas) com o
ecossistema do planeta Terra (MILARÉ, 2013. p. 146-147).
Assim, a ideologia de ética que prevalece atualmente, que prioriza o sucesso
pessoal e material, deve ser desestimulada, de modo que se possa alcançar o
desenvolvimento sustentável em busca do bem-estar social das presentes e futuras
gerações.
No entanto, para que isso se concretize, é necessária a interação de alguns
dos princípios ambientais como norteadores do desenvolvimento sustentável, para
que assim, se estabeleça uma nova linha de conduta, como o princípio da
participação.
3.2 PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO
O princípio da participação estabelece que deve haver uma cooperação entre
o Estado e a sociedade no que concerne às políticas ambientais, devendo cada
cidadão participar das decisões tomadas pelo Estado, tendo em vista a proteção do
meio ambiente como direito de todos.
Ademais, o princípio da participação está intimamente ligado ao direito de
informação. Existe a necessidade de a população ter acesso à informação e, dessa
forma, se conscientizar das questões que envolvem o meio ambiente. A esse
respeito, Elida Séguin orienta:
A comunicação e a circulação de informações permanentes permitem que
os microssistemas se entrelacem provocando a interação de pensamentos,
comportamentos e ações. Os embates ambientais objetivam atribuir caráter
público ao Meio Ambiente comum a indivíduos e grupos sociais, afastando a
odiosa idéia de que um ambiente ecologicamente equilibrado, permitindo o
desenvolvimento pleno, é privativo das elites. Para que as lutas ambientais
possam acontecer e serem vitoriosas, o direito e o acesso à informação da
população são imprescindíveis (SÉGUIN, 2002, p. 288).
Tudo isso, encontra-se diretamente relacionado a educação ambiental,
prevista na Constituição brasileira, em seu art. 225, §1º, VI, que dispõe que para a
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao
Poder Público promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Logo, a educação
ambiental fundamentada na ética ambiental é tema relevante no que tange à busca
pelo desenvolvimento sustentável.
3.3 EDUCAÇÃO AMBIENTAL FUNDAMENTADA NA ÉTICA AMBIENTAL
A educação ambiental é instrumento essencial na implementação de uma
política ambiental nos países em desenvolvimento. Entende-se por educação o
sustentáculo do Estado Democrático. É a partir da educação que se exerce
cidadania e se alcança a dignidade plena. A educação, então, é um meio de
preservação ambiental.
Nesse viés, a educação ambiental possui a capacidade de conscientizar o ser
humano do contexto em que vive, visto que a condição de sua existência integra o
meio ambiente, assim, surgindo a percepção da necessidade de uma mudança de
postura para que haja uma valorização de todos os ecossistemas.
A educação também é considerada um instrumento de defesa da cidadania. O
fácil acesso à educação é reconhecido dentro dos Direitos Humanos, e seria a forma
de atingir uma possível transformação social. Ocorre que, na realidade, o descaso
com a educação vem do próprio governo que, mantendo a sociedade em grau de
ignorância, não permite o pleno exercício da cidadania, dando margem à corrupção.
Em que pese haja previsão na Constituição Federal da República quanto a
promoção da educação ambiental em todos os graus de ensino, o que se verifica é a
omissão do Poder Público ao não impor tal determinação constitucional nas
instituições de ensino.
Por isso, a educação ambiental é importante na construção de uma cidadania
participativa, a qual seja capaz de conscientizar todos os indivíduos à adequação da
utilização sustentável do meio, a fim de conduzir à melhoria da qualidade de vida
juntamente com o equilíbrio do meio ambiente.
Pouco mais de dez anos depois da tutela constitucional, foi criada a Política
Nacional de Educação Ambiental, definida na Lei nº 9.795, de 27.04.1999, a qual
134
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
veio para dar continuidade em busca da eficácia dos artigos constitucionais que
abrangem a educação ambiental, porém de forma mais detalhada para que se possa
conduzir tais dispositivos suficientemente.
Além disso, a PNEA estabelece o conceito de educação ambiental, logo em
seu art. 1º, qual seja “processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade
constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências
voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo,
essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”.
Nessa perspectiva, tem-se que o processo educativo, no que concerne ao
meio ambiente, é uma possibilidade de solucionar os problemas que o próprio ser
humano criou, repensando no seu modo de agir, buscando uma renovação de
valores como forma de garantir sua vida no planeta. Ainda, como ideia principal se
define a Educação Ambiental como incumbência precípua do Poder Público na
promoção do exercício da cidadania (MILARÉ, 2013. p. 189).
Vale ressaltar que a educação ambiental como princípio constitucional é uma
exigência nacional, não englobando apenas o Poder Público, mas compreende uma
solidariedade da sociedade com o Estado na proteção ambiental, já que cabe a
todos o dever e o direito de zelar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum e fundamental à qualidade de vida das gerações atuais e
futuras.
Contudo, torna-se necessário uma mudança de postura ética ambiental,
devendo se voltar à consciência ecológica em todas as suas esferas, não apenas
sobre determinada espécie da fauna ou da flora, de um ecossistema específico
como se vê atualmente, como garantia da salvação da espécie humana nos tempos
que seguem.
Com a divulgação da chamada “Carta da Terra” pela UNESCO, no ano de
2000, já se demonstrava a crise ecológica que passava o homem, ilustrando a
necessidade de se estabelecer uma ética ambiental como essencial à sadia
qualidade de vida de todos os seres que compõem o planeta, tanto na atualidade
como no futuro, como dispõe:
Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época
em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo
135
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao
mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante,
devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de
culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade
terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma
sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos
direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz.
Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra,
declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande
comunidade da vida, e com as futuras gerações.
Portanto, a educação ambiental fundada nos conceitos éticos deve ser cada
vez mais estimulada, como maneira de se alcançar o desenvolvimento sustentável,
com vista à qualidade de vida de todas as gerações. Ademais, a importância de tal
ensino é fundamental à participação de todos e ao efetivo exercício de cidadania,
permitindo que se resolvam grande parte dos problemas ambientais no mundo.
Por fim, resta evidente que a ética ambiental é de tal relevância que
estabelece a própria existência da humanidade, visto que envolve o comportamento
e o caráter de toda a comunidade global, forçando a repensar sua organização
social.
4 CONSCIENTIZAÇÃO AMBIENTAL COMO MEIO PARA A SUSTENTABILIDADE
São poucos os que se atentam de que a destruição do meio ambiente ameaça
a existência dos indivíduos ao redor do mundo. Desse modo, são poucos também os
que se conscientizam ao fato de que o homem pertence ao meio e não o inverso.
Tal ideia compreende da impossibilidade de se alcançar a sustentabilidade de um,
sem o outro dar a devida importância à natureza.
No entanto, não se pode subestimar a capacidade das pessoas em superar
adversidades e se organizar socialmente. Tal organização é essencial na sociedade,
cabendo a todos agir de forma correta, de modo que se possa garantir a qualidade
de vida das presentes e futuras gerações.
136
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4.1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O princípio do desenvolvimento sustentável nasceu na Conferência de
Estocolmo de 1972, tendo em vista que a Declaração de Estocolmo sobre o Meio
Ambiente Humano dispõe dois princípios que fazem referência à combinação do
desenvolvimento com a tutela ambiental. São eles:
Princípios 4 – O homem tem a responsabilidade especial de preservar e
administrar judiciosamente o patrimônio da flora e da fauna silvestres e seu
habitat, que se encontram atualmente, em grave perigo, devido a uma
combinação de fatores adversos. Consequentemente, ao planificar o
desenvolvimento econômico deve-se atribuir importância à conservação da
natureza,
incluídas
a
flora
e
a
fauna
silvestres.
Princípio 13 – Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional
dos recursos e melhorar assim as condições ambientais, os Estados
deveriam adotar um enfoque integrado e coordenado de planejamento de
seu desenvolvimento, de modo a que fique assegurada a compatibilidade
entre o desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio
ambiente humano em benefício de sua população (ONU, 1972).
Em 1974 a ONU criou a Nova Ordem Econômica Mundial, por meio das
resoluções 3201 e 3202, as quais tratavam das disparidades entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento, mas também sobre o conflito entre a proteção
ambiental e o direito ao desenvolvimento.
As maiores discussões, naquele momento, diziam respeito ao fato de que os
países em desenvolvimento não causaram os danos ambientais hoje sentidos e, por
isso, não teriam a responsabilidade que os países de primeiro mundo têm, podendo,
portanto, buscar livremente seu desenvolvimento.
A efetiva expressão do desenvolvimento sustentável foi reconhecida em 1987,
após cerca de 900 dias de pesquisas e debates da Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento, criada pela Organização das Nações Unidas,
momento em que foi criado o Relatório Brundtland, também chamado “Nosso Futuro
Comum” (Our Commom Future) (FOLADORI, 2001).
Neste relatório o princípio definiu-se “como desenvolvimento que satisfaz as
necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de
satisfazer suas próprias necessidades” (ONU, 1987) (tradução nossa).
137
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Outro documento que contemplou o princípio em análise foi a Agenda 21,
resultante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento de 1992. Apesar do Relatório de Brundtland ter sido o primeiro
documento a mencionar o referido princípio, segundo Édis Milaré é a Agenda 21 que
é considerada como “a cartilha básica de desenvolvimento sustentável” (MILARÉ,
1997, p. 54), visto que, no que concerne às políticas ambientais, foi ela que colocou
o desenvolvimento sustentável no centro das atenções.
O desenvolvimento sustentável surgiu justamente pelo fato do mundo ter se
dado conta da escassez dos recursos naturais. Enquanto as necessidades humanas
são infinitas, exigindo cada vez mais da natureza, os recursos naturais são limitados.
Então, elaborou-se esse princípio para que as próximas gerações não sofram com a
falta de recursos naturais devido ao anseio da presente geração pela busca do
crescimento econômico.
Existem
duas
concepções
ideológicas
distintas
de
desenvolvimento
sustentável. Conforme a visão antropocêntrica, tem-se uma maior tolerância com
relação a sustentabilidade, de modo que proporcione a máxima apreensão de
recursos possível, dentro de seus limites de esgotamento. Já sob o aspecto
ecocêntrico, poderá haver exploração de recursos somente em situações que não
acarretem em modificações do meio.
Visto isso, e levando em consideração que a economia precisa de recursos
naturais para o seu desenvolvimento, o que se busca para permitir o crescimento
econômico seria a harmonização entre extração de recursos e a garantia ao
equilíbrio do meio ambiente, evitando a devastação.
No entanto, o crescimento não se confunde com o desenvolvimento. A
exploração dos recursos naturais daria ensejo ao crescimento imediato, ao mesmo
tempo que dificulta o devido progresso e a sobrevivência das próximas gerações.
Assim, para o ser humano manter uma vida com dignidade, o desenvolvimento deve
estar em harmonia com as esferas social, econômica e ambiental.
Desse
modo,
deve-se
compatibilizar
os
valores
constitucionais
de
desenvolvimento e preservação ambiental. O desenvolvimento econômico, previsto
no artigo 3º, inciso III da Constituição Federal de 1988, como objetivo fundamental,
138
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
juntamente com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225),
buscando o crescimento econômico sem que haja ameaça ao meio ecológico.
O desenvolvimento sustentável é uma diretriz a ser considerada na
formulação de políticas públicas, sendo assim, diretamente ligada à soberania
nacional, tendo em vista que todo país deve possibilitar a capacidade de tomar suas
próprias decisões ao formular suas políticas ambientais.
Ao se tratar do desenvolvimento sustentável como um direito de todos, devem
ser implementadas ações coordenadas para que seja atingido por todos os países, a
ponto de não se falar em desenvolvimento como algo independente da
sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável é algo a ser buscado por todos.
Também deve ser observado no âmbito judicial, analisando os riscos que
ocasionará ao meio ambiente. Nessa perspectiva, Vasco Pereira ensina que esse
princípio “estabelece a necessidade de ponderar tanto os benefícios de natureza
econômica como os prejuízos de natureza ecológica de uma determinada medida,
afastando por inconstitucionalidade a tomada de decisões insuportavelmente
gravosas para o meio ambiente” (PEREIRA DA SILVA, 2002, p. 73).
O reconhecimento do valor do bem jurídico ambiental deve ser considerado
tanto por usuários quanto não usuários dos recursos. Deve então haver um
parâmetro na determinação do limite que se pode apropriar, garantindo a
sustentabilidade e estabelecendo o ponto de equilíbrio entre economia e ecologia.
É necessário assimilar que a preservação ambiental está diretamente
relacionada à economia. Seu objetivo não é meramente ecológico, mas deve levar
em conta que os recursos são essenciais para sustentar o sistema de produção.
Contudo, além de esforços institucionais, se deve primar pela conscientização
ambiental, a fim de que ocorram mudanças no modo de vida dos indivíduos,
aderindo uma cultura de proteção ambiental. Nesse viés, o Tratado de Educação
Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global afirma:
Consideramos que a educação ambiental para uma sustentabilidade
eqüitativa é um processo de aprendizagem permanente, baseado no
respeito a todas as formas de vida. Tal educação afirma valores e ações
que contribuem para a transformação humana e social e para a preservação
ecológica. Ela estimula a formação de sociedades socialmente justas e
ecologicamente equilibradas, que conservam entre si relação de
interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidade individual e
coletiva em nível local, nacional e planetário.
139
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Não obstante o reconhecimento da causa ecológica pela população, todo
cidadão possui a responsabilidade de estar disposto a arcar com seus custos. Para
isso, compete ao Estado incentivar a integração entre mercado, Estado e sociedade
para a preservação de recursos naturais, cada um exercendo devidamente suas
funções.
Ainda, no que tange à relevância da conscientização das questões ambientais
por parte da população mundial, Alessandra Galli expõe:
Nesta conjuntura, a educação ambiental pode ser capaz de realizar o
resgate de valores éticos precípuos que sirvam de base para a formação de
pessoas mais conscientes de sua condição de parte integrante do meio,
cujas atitudes se reflitam positivamente no meio ambiente, que é indivisível;
pessoas que, em decorrência disso, têm direitos e responsabilidades para
com a natureza e todos os seus ecossistemas, os quais lhe permitem a
existência (GALLI, 2011, p. 37).
Entretanto, atualmente, deve-se levar em consideração que a sociedade está
voltada para a produção de bens e serviços com vistas ao mercado consumidor.
Isto, como preceito de que para alcançar o desenvolvimento humano, se pressupõe
que o aumento de consumo e consequente ampliação do mercado garantem uma
sensação de satisfação pela população.
4.2 SOCIEDADE SUSTENTÁVEL
A preocupação está em torno do consumismo. É certo que o consumo é
essencial para o desenvolvimento humano. Ocorre que existe uma diferença entre o
consumo e o consumismo. Enquanto o consumo é capaz de suprir as necessidades
individuais de cada um, sem que se afete o bem-estar da coletividade, o
consumismo transmite uma ideia de compulsividade, resultando numa ameaça para
o meio ambiente a nível global.
Com isso, há uma desestabilização no equilíbrio econômico e social,
aumentando a desigualdade, colocando em risco a harmonia de todo o ecossistema
na Terra. Por isso, a Agenda 21 destacou a necessidade de mudanças significativas
nos padrões de consumo e de produção. Sobre essa problemática, Édis Milaré
defende:
140
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
No que tange aos modelos de produção, o postulado básico se resume no
desenvolvimento e emprego de tecnologias limpas que implicam menos
consumo de matéria e energia, menor produção de resíduos com maior
capacidade de seu reaproveitamento e com menor volume para sua
disposição final (MILARÉ, 2013. p. 79).
O próprio sistema capitalista estimula constantemente o consumo, e
considera a natureza como uma fonte de energia e matéria-prima inesgotável. Posto
tudo isso, resta demonstrado a necessária mudança radical nos padrões de
produção sustentável e de consumo sustentável para que o desenvolvimento
sustentável seja uma realidade.
É proveitoso recordar que os recursos naturais, que são finitos e limitados,
não são capazes de suprir todas as necessidades ilimitadas e infinitas da espécie
humana. Nesse sentido, no que concerne à produção sustentável, deve-se
estabelecer uma racionalização do uso de energia e matéria-prima e a preservação
dos recursos dentro de seus limites naturais, levando em consideração que o
ecossistema é um só e todos dependem dele como única fonte do processo
produtivo.
Para a devida conservação dos recursos naturais, então, respeitando-se o
ecossistema em sua capacidade de se reestruturar, é essencial que haja uma
alteração dos estilos de vida, bem como os padrões de civilização, voltados ao
consumo consciente. Ainda, a produção deve contribuir de forma que se utilize
processos que atenuem os riscos ambientais quando da redução do acúmulo de
resíduos, uma produção limpa, visando também aumentar a validade dos produtos.
No que tange ao consumo sustentável, mais uma vez se ressalta a
importância da conscientização da sociedade como um todo, e o pleno exercício de
cidadania, são fatores indispensáveis em todos os países do mundo na busca pelo
desenvolvimento sustentável.
Por essa razão, o consumidor deve optar por produtos e serviços que estejam
em observância a qualidade ambiental e consequente integridade do sistema
ecológico, de modo que se evite o desperdício e, quando possível, que se procure
formas de sua reutilização.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4.3 ERRADICAÇÃO DA POBREZA À LUZ DA EDUCAÇÃO
Na incessante busca pelo desenvolvimento sustentável, estudos apontam
que, por um lado, os países desenvolvidos, que possuem renda mais elevada, são
os responsáveis por causar o desequilíbrio ambiental. Por outro lado, tem-se que a
pobreza, principalmente dos países subdesenvolvidos, é uma das maiores causas
da devastação ambiental.
O que se nota é que nos países mais pobres a dificuldade em se adotar
tecnologias limpas se torna maior pela falta de recursos econômicos, impedindo que
ocorram mudanças comportamentais no que diz respeito à proteção do meio
ambiente.
Isto se deve, também, por não se atender, nos países subdesenvolvidos, as
necessidades básicas da população. Assim, para que haja uma preocupação com
as condições do meio ambiente, é necessário levar em consideração as condições
econômicas e sociais de uma sociedade.
Não há como se exigir de uma comunidade que priorize a conservação do
meio ambiente com vistas ao bem-estar das gerações futuras quando as suas
condições básicas mais urgentes não lhes for proporcionado.
A relação entre a pobreza e a degradação do meio ambiente se dá por causa
dos diferentes níveis de renda da população, em que a condição de pobreza
interfere diretamente nas principais variáveis de sustentabilidade ambiental,
limitando, assim, o crescimento econômico. Países que possuem renda mais alta,
com maiores níveis de educação, no entanto, possuem padrões de consumo mais
limpas no que concerne ao meio ambiente. Consequentemente, aumentam a
qualidade ambiental, ocasionando a melhora da qualidade de vida.
Com isso, cabe ressaltar que o desenvolvimento sustentável traz não apenas
a ideia de preservação ambiental, mas também se prioriza a questão da dignidade
de vida do ser humano, a qual só se torna possível a partir do combate à pobreza.
Nesse viés, Clóvis Cavalcanti ensina:
Para se alcançar a sustentabilidade, mais ativos físicos têm de ser
repassados às futuras gerações. Para tornar esse repasse possível, as
atuais desigualdades no seio das gerações têm de ser reduzidas. Enquanto
a valoração, por si só, não pode solucionar os problemas da equidade
142
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
distributiva, ela poderia ao menos não contribuir para a manutenção das
desigualdades. Se contribuir para elas, será mais difícil alcançar a
sustentabilidade. É preciso que se desenvolvam novas técnicas no seio da
economia ambiental e da ecológica para evitar que elas se tornem parte do
problema da insustentabilidade. (CAVALCANTI (Orgs.), 2002, p. 91)
Nesse sentido, é fundamental a criação de meios que estimulem políticas
públicas de educação ambiental, de forma que não se busque apenas o crescimento
econômico, mas que se sobreponha a melhoria dos indicadores sociais, distribuindo,
assim, a renda com base nas necessidades fundamentais da população, para que
possa gerar a cultura do respeito ao meio ambiente, sem comprometer as gerações
futuras.
Ao conceituar o desenvolvimento sustentável como uma nova filosofia do
desenvolvimento, em outra obra, Clóvis Cavalcanti esclarece:
A modernização, não acompanhada da intervenção do Estado racional e
das correções partindo da sociedade civil, desestrutura a composição
social, a economia territorial, e seu contexto ecológico. Por isso,
necessitamos de uma perspectiva multidimensional, que envolva economia,
ecologia e política ao mesmo tempo. Isso, no fundo, é o ponto de partida da
teoria do desenvolvimento sustentável. Apesar da sua estrutura ainda
inacabada, aponta este conceito na direção certa. Quem não quiser se
perder no caminho, precisa mais do que boa vontade, ou financiamento
externo: precisa de ciência (CAVALCANTI, 2003, p. 29).
Portanto, como garantia da própria existência, os seres humanos devem
considerar o meio ambiente além de mera fonte de recursos para a produção
econômica. Deve-se primar pela valorização do meio ambiente, como forma de
sobrevivência com qualidade, sem a necessidade de preocupação com sua possível
escassez.
Para tanto, será por meio da educação ambiental que se atingirá uma vida
digna da sociedade, o respeito pela natureza, a cultura de proteção ambiental, bem
como a mudança dos padrões de vida, com vistas aos valores baseados na ética
ambiental, ao invés de se olhar apenas para o setor econômico.
Com isso, acarretaria na participação de todos os indivíduos na sociedade, de
forma organizada, com pleno exercício de cidadania, o que não ocorre atualmente.
Ademais, se todas as pessoas fossem educadas, seriam capazes de auxiliar na
143
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
promoção do desenvolvimento sustentável, defendendo o patrimônio ambiental
como um direito de todos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme exposto, é crescente a preocupação com o meio ambiente. O
movimento em torno do desenvolvimento sustentável é bem abrangente, tendo em
vista que, atualmente, aparenta ser um dos principais instrumentos para a proteção
ambiental.
Deixando de lado o radicalismo daqueles que propõem o esquecimento do
crescimento econômico, deve ser estabelecido um equilíbrio que possa reconhecer
a realidade econômica, ambiental e social do ser humano, essenciais à relação entre
produção econômica e a conservação dos recursos naturais, bem como à dignidade
da pessoa humana.
Com isso, torna fundamental uma cooperação entre os Estados, de acordo
com a previsão constitucional, para o progresso da humanidade91, transformando
princípios em ações concretas. A mudança de postura da sociedade deve ser global,
já que a degradação ambiental vai além das fronteiras.
Para tanto, se deve promover a ética juntamente com o Direito, de modo que
todos possam rever seus valores, baseando-se no respeito a natureza e levando em
consideração que todos fazem parte do meio ambiente, dele interdependem e
sofrem em decorrência da utilização inadequada dos recursos naturais. No entanto,
cada Estado deveria criar legislações adequadas de acordo com a sua população,
visto que se trata de questão de soberania nacional, devendo normatizar a bioética
para que possa ser difundida.
Outra questão importante diz respeito a educação ambiental fundamentada na
ética ambiental. Para que se alcance o desenvolvimento sustentável, é preciso
conscientizar os indivíduos da relevância do meio ambiente, a fim de garantir o
equilíbrio ambiental e maior qualidade de vida. Ocorre que isso só é possível por
meio da educação ambiental.
91
Cf. artigo 4º, IX, da Constituição da República.
144
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GESTÃO E CONTROLE
Portanto, tal processo educativo trata de uma possibilidade de solucionar as
preocupações atuais, devendo ser constantemente estimulado como forma de
assegurar a existência humana no planeta, promovendo o desenvolvimento
sustentável.
Ademais, uma questão relevante ao desenvolvimento sustentável é a tutela da
dignidade da pessoa humana, que só é possível a partir da erradicação da pobreza.
Ao se pensar na ideia de desenvolvimento, tem-se diversas variáveis que
influenciam na qualidade de vida da sociedade.
Em vista disto, é fundamental a formação de políticas que não eliminem o
crescimento econômico, mas que priorize a melhoria dos indicadores sociais
necessários à população, gerando, assim, a cultura de respeitar a natureza,
satisfazendo a geração presente, sem comprometer as futuras.
O Brasil, felizmente, já possui em seu ordenamento alguns instrumentos de
incentivo ao desenvolvimento sustentável. Todavia, há muito a ser feito. Para a
efetividade das leis, bem como a melhoria da qualidade de vida, é preciso o
fortalecimento da sociedade, de tal maneira que, por meio da educação ambiental,
ocorra uma mudança no caráter da comunidade, gerando uma sociedade
sustentável sem comprometer as perspectivas das futuras gerações.
REFERÊNCIAS
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institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 27 abr. 1999. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso em: 31 mar. 2015.
BRASIL. Ministério da Educação. Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Disponivel em:
<http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/tratado.pdf>.
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BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Carta da Terra. Disponível em:
<www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/carta_terra.doc>. Acesso em: 31
mar. 2015.
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato; (Orgs.). Direito
constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
CAVALCANTI, Clóvis. Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade
sustentável. São Paulo: Cortez, 2003.
CAVALCANTI, Clóvis; (Orgs.). Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e
políticas públicas. 4. ed. São Paulo: Cortez: Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
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FOLADORI, Guilhermo. Limites do Desenvolvimento Sustentável. Tradução de
Marise Manuel. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001.
GALLI, Alessandra. Educação ambiental como instrumento
desenvolvimento sustentável. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008.
para
o
LEITE, José Rubens Morato. Estado de Direito Ambiental: uma análise da recente
jurisprudência do STJ sob o enfoque da hermenêutica jurídica. Revista de Direito
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MILARÉ, Edis. Agenda 21: A Cartilha do Desenvolvimento Sustentável. Revista de
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MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
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<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-deestocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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meets the needs of the present without compromising the ability of future generations
to meet their own needs.”
PEREIRA DA SILVA, Vasco. Verde Cor de Direito. Coimbra: Editora Livraria
Almedina, 2002.
SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2002.
TESSLER, Luciane Gonçalves. Tutelas jurisdicionais do meio ambiente: tutela
inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento na forma específica. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2004. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual
Civil; 9).
146
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
THE SECURITY DISCOURSE IN DEMOCRATIC STATE OF RIGHT
Cleiton Henning da Fonseca92
Roosevelt Arraes93
SUMÁRIO
Resumo 1. Introdução 2. Evolução e Conceito do Estado Democrático de Direito 3. Discurso da
Segurança 4. Reflexos do Discurso da Segurança no Estado Democrático de Direito 5.
Considerações Finais Referências.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo demonstrar a relação do discurso da segurança no Estado
Democrático de Direito, procurando delimitar o atual paradigma estatal, pois é atribuído a ele uma
diversidade de sentidos, assim estando em uma zona de incerteza. Delimitando o conteúdo do
Estado Democrático de Direito, procurou-se compreender os fundamentos e os reflexos do discurso
da segurança, esse discurso legitima ações que podem ser enxergadas em dois planos: o primeiro é
o declarado onde se legitimam ações contrarias ao Estado Democrático de Direito, um exemplo é o
Direito Penal do Inimigo, o segundo é velado onde utiliza-se da retórica baseada na segurança para
legitimar ações de Estado de Exceção em plena vigência do Estado Democrático de Direito, em
tempos de normalidade, utilizando de poderes especiais para agir, sem o respeito a certos direitos e
garantias fundamentais previstas na Constituição. Sem limites claros e analise sobre os fundamentos
e objetivos da relação deste discurso da segurança no Estado Democrático de Direito há a chance de
ocorrer desrespeito e por consequência, desnaturalização e negação de paradigma do Estado
Democrático de Direito.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito, Discurso da Segurança, Direitos Fundamentais,
Direito Penal do Inimigo, Estado de Exceção.
92
Acadêmico de Direito no Centro Universitário Curitiba e integrante do grupo de pesquisa Justiça
Política no Estado Democrático de Direito.
93 Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004),
mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias
modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional,
eleitoral, penal e administrativo).
147
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
This research aims to demonstrate the security speech link on the democratic rule of law and seeks to
define the current state paradigm, it is assigned to it a variety of meanings, being in an area of
uncertainty. Delimiting the content of the democratic rule of law, we tried to understand the
fundamentals and the security discourse reflexes, this discourse legitimizes actions that can be sights
on two levels: the first is declared where legitimate actions contrary to the democratic rule of law an
example is the Criminal Law of the Enemy, the second is hidden where it is used based on the
security rhetoric to legitimize State of Exception of shares in full force the democratic rule of law, in
times of normality, using special powers to act without respect to certain rights and guarantees
provided for in the Constitution. Without clear boundaries and analysis on the fundamentals and this
discourse of security objectives in respect of democratic rule of law there is the chance of disrespect
and therefore denaturalization and denial of democratic rule of law paradigm.
Keywords: democratic rule of law, discourse of security, Fundamental Rights, Criminal Law of the
Enemy, State of Exception.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objeto a análise o discurso da segurança
dentro Estado Democrático de Direito, bem como entender a sua repercussão na
ordem jurídica.
O método escolhido para conhecer e analisar o tema foi o dedutivo, pois se
constrói uma premissa maior com o Estado Democrático de Direito, enquanto o
discurso da segurança ocupa lugar como premissa menor, de qual se faz um exame
lógico para extrair uma conclusão, entendendo assim seu papel e suas
consequências.
O Estado Democrático de Direito analisado nesta pesquisa, exige uma
democracia substancial em conjunto com princípios do tradicional Estado de Direito.
Em outras palavras é um modelo estatal onde o poder é exercido pelo povo de
forma direta ou por seus representantes, limitado ao respeito e à consideração aos
direitos fundamentais, observando ainda limites como a separação das funções do
poder e a primazia da lei sobre os atos discricionários.
Uma vez delimitada a premissa maior, cabe definir o conteúdo do discurso
político da segurança. Este tipo de discurso aparece em nosso dia-a-dia de maneira
quase natural. É improvável passar um dia sem que ao menos alguém invoque o
discurso para pedir providências ao Estado. Como consequência as tais
providências acabam tornando-se medidas que em alguns casos extrapolam os
limites e violam direitos e garantias fundamentais.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A segurança é um dever do Estado, porém para conseguir satisfazer os
anseios da coletividade, utiliza-se de ferramentas e meios inadequados. Dentro de
uma lógica de um Estado Democrático de Direito, muitas das ações que são
legitimadas pelo discurso da segurança são contrárias e, portanto, incompatíveis,
com a instituição definida na primeira parte do trabalho.
A segurança, como foi referido acima, é um dever a ser cumprido pelo
Estado, porém não é seu fim último, como era em modelos estatais anteriores, como
na teoria de Estado de Hobbes, no Estado Absolutista, sendo assim injustificáveis a
aplicação de justificativas de caráter mais violento, pois encontramo-nos em um
estado de normalidade jurídica e não em um Estado de Exceção.
Conforme se evidenciará a seguir, o discurso da segurança pode ser
encontrado em dois planos: o primeiro é quando o discurso é aplicado no plano
normativo ou declarado, como por exemplo o Direito Penal do Inimigo que se baseia
em uma busca por segurança cognitiva e elenca uma dualidade entre cidadão e
inimigo. O segundo é um plano de fato ou velado quando o discurso é utilizado para
legitimar ações de exceções em contexto de normalidade jurídica, como por
exemplo o Estado de Exceção de Agamben.
Delimitando os fundamentos e as ações que se balizam no discurso da
segurança, é necessário realizar um exame de compatibilidade com o Estado
Democrático de Direito obtendo-se assim uma conclusão. A par o discurso é que se
investigara se é possível a coexistência dos discursos e ações analisadas na
premissa menor dentro do atual paradigma de Estado partilhados pelos países
ocidentais.
2 EVOLUÇÃO E CONCEITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado de Direito é o antecessor do Estado Democrático de Direito, sendo
um conceito necessário para o desenvolvimento da pesquisa, identificando
características básicas desse instituto, para que sirva de alicerce para seu sucessor.
Porém, essa visão não é uníssona, para diversos autores se mantem o termo
Estado de Direito com conteúdo diverso de sua noção clássica e com conteúdo do
Estado Democrático de Direito, realizado essa ressalva passamos a sua evolução.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O Estado de Direito é um dos conceitos mais controversos da Teoria do
Estado, da política e especialmente no direito constitucional. Trata-se de um instituto
recente na história do ocidente, tanto que o termo surge apenas no século XIX.
Suas origens em culturas políticas-jurídicas diferentes gera uma dificuldade
em torno de um conceito analítico preciso.
Com isso em vista, Danilo Zolo lembra a lição de Carl Schmitt: “o termo
‘Estado de Direito’ pode significar coisas tão diversas como termo ‘direito’ e também
coisas tão diversas como são numerosas modalidades organizativas implícitas no
termo ‘estado’” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 7)
A advertência de Carl Schmitt, demonstra um caráter altamente volátil, sobre
as premissas utilizadas durante a pesquisa, para que se delimite um conceito
abalizado sobre Estado de Direito.
Para compreender a natureza do Estado de Direito, necessitamos levar em
conta suas origens com o Rechtssaat alemão, a Rule of Law inglês e o L’État legal
francês em suas linhas gerais.
A expressão Rechtssat surgiu no século XIX, isto é, o Estado de direito é
caracterizado pelo “compromisso entre a doutrina liberal, sustentada pela burguesia
iluminada, e a ideologia autoritária das forças conservadoras” (COSTA; ZOLO, 2006,
p. 11)
Os traços essenciais desse modelo, o caracterizam como um Estado liberal
de direito. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho: “o Estado de direito é um
Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança
públicas.” (CANOTILHO, 2011, p. 97, grifo do autor)
Ele continua apontando os traços jurídicos considerados essências desse
modelo estatal: “o Estado de Direito é um Estado liberal de Direito. Contra a ideia
de um Estado de Polícia que tudo regula e assume como tarefa própria a
prossecução da ‘felicidade dos súbditos’” (CANOTILHO, 2011, p. 97, grifo do autor)
A limitação dos poderes do Estado pelo Direito, estende-se ao próprio
soberano, ele é alcançado pelo império da lei, ou seja, ele perde essa condição e
passa a figurar como servidor público.
150
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
As atividades do Estado seguem dois princípios basilares que limitam seus
atos, o primeiro é o princípio da legalidade administrativa, onde os poderes públicos
são obrigados a atuar nos termos da lei e o princípio da proibição do excesso.
O sistema inglês, o Rule of law, tem aspectos marcantes, dentre eles a
igualdade jurídica, independentemente de suas condições materiais.
Essa
igualdade, segundo Danilo Zolo, se estende até mesmo ao poder soberano.
Nesse sentido: “a igualdade jurídica dos sujeitos se opõe, portanto, não a
atribuição de privilégios pessoais, mas também ao exercício arbitrário ou
excessivamente discricional do Poder Executivo. ” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 15)
A ideia deste modelo fica clara nas palavras de Wiliam Edward Hearn citado
por Zolo: “o vento e a chuva podem entrar na cabana do pobre, o rei não. Todo
cidadão inglês, não importa se funcionário público ou nobre, está submetido, de
igual modo à lei e aos juízes ordinários” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 14)
Além da igualdade, a partir da Carta Magna de 1215, existe a
obrigatoriedade da observância do devido processo legal previamente regulado,
onde os costumes e leis tem proeminência ao uso discricionário do poder.
Canotilho, adverte sobre a dificuldade de se falar desse modelo, entretanto
assinala quatro dimensões básicas:
Em primeiro lugar, na sequência da Magna Charta de 1215, a
obrigatoriedade da observância de um processo justo legalmente
regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua
liberdade e propriedade. Em segundo lugar, Rule of Law significa a
proeminência das leis e costumes do “país” perante a discricionariedade do
poder real. Em terceiro lugar, Rule of Law aponta para a sujeição de todos
os atos do executivo à soberania do parlamento. Por fim, Rule of Law, terá o
sentido de igualdade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos a fim
de estes aí defenderem os seus direitos segundo os princípios de direito
comum dos ingleses (Common Law) e perante qualquer entidade
(indivíduos ou poderes públicos). (CANOTILHO, 2011, p. 93-94, grifo do
autor)
O Rule of Law é um marco, pois ele é um sistema que comunga de ideias
essenciais ao Estado de Direito, mesmo não tendo a lei como fonte primordial do
Direito como no sistema baseado no direito romano.
O modelo de Estado de direito francês, se assentou na ideia de L’ Etat legal,
e pode ser descrito como uma ordem jurídica hierarquizada. Essa foi a formulação
151
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
inicial do conceito do Estado de Direito, um Estado constitucional que acabou por se
transformar em um Estado legal ou de legalidade.
André Ramos Tavares delineia essa concepção de Estado Legalista:
A estrutura do Estado, seu reconhecimento, legitimidade, funcionamento e
objetivos construíram-se, nesse momento, em torno da ideia da supremacia
da lei formal escrita. O Estado alicerçado na exaltação da lei, com todos os
consectários acima apontados, deve ser reconhecido, pois, como um
Estado “legalista” ou “legatário”. (TAVARES, 2014, p. 45)
Nesse modelo estatal existe a primazia da lei, sustentado por um duplo
ponto de vista da perspectiva política: a) os cidadãos têm o direito que a lei será
editada somente por órgão de representação legislativa, e este é vinculado à
vontade geral; b) a lei é fonte hierárquica superior, pelo fato de ser a manifestação
da vontade geral, assim os atos da administração devem obedecer um juízo de
conformidade, ou seja princípio da legalidade administrativa.
Após essas breves considerações sobre a origem do Estado de direito,
podemos extrair algumas linhas comuns desse paradigma.
Uma das linhas principais desse instituto é a limitação do poder, ou seja, o
objetivo de conter seus abusos. Estabelece-se assim um Estado organizado e
limitado pela ordem jurídica, para favorecer os princípios liberais emergentes, e
criando o princípio da legalidade (formal).
Diante as considerações, podemos descrever o Estado de direito como um
modelo de organização, no qual o meio político se submete as regras instituídas
pelo Direito (princípios e regras), para diluir o poder afim de coibir arbítrios, seja pela
separação dos poderes, seja pela legalidade. Danilo Zolo define:
Em termos analíticos, pode-se afirmar que o Estado de direito é uma figura
jurídico-institucional que resulta de um processo evolutivo secular que leva
à afirmação, no interior das estruturas do Estado moderno europeu, de dois
princípios fundamentais: o da “difusão do poder” e o da “diferenciação do
poder”. (COSTA; ZOLO, 2006, p. 31)
A definição de Zolo é um pouco abstrata, porém conseguimos encontrar
nesse conceito dois elementos chaves: o primeiro à limitação no poder
discricionário, em face do império da lei; o segundo as funções do Estado são
152
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
divididas (separação de poderes). Essas duas características comuns, estão
presentes no conceito de Jorge Miranda:
É o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece
juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (seja a
mera legalidade formal, seja – mais tarde – a conformidade com valores
materiais) se eleva a critério de ação dos governantes. (MIRANDA, 2002, p.
71)
Porém, no atual desenvolvimento do pensamento jurídico, com o movimento
de efetivação dos direitos fundamentais e valores democráticos, o instituto se vê em
crise, sendo aprimorado na versão do Estado democrático de direito (ou Estado
democrático constitucional).
O Estado democrático de direito é uma evolução substancial, uma vez que
une a democracia com o Estado de direito, de maneira que nem sempre condizem
com os ideais liberais do clássico Estado de Direito,
Portanto, é necessário a lição de José Joaquim Gomes Canotilho:
O Estado Constitucional, para ser um estado com as qualidades
identificadas, pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de
direito democrático. Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado
constitucional: Estado de direito e Estado democrático. Estas duas
qualidades surgem muitas vezes separadas. Fala-se em Estado de direito,
omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático
silenciando a dimensão de Estado de direito. Esta dissociação corresponde,
por vezes, à realidade das coisas: existem formas de domínio político onde
este domínio não está domesticado em termos de Estado de direito e
existem Estados de direito sem qualquer legitimação em termos
democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura
estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito.
(CANOTILHO, 2011, p. 93, grifo do autor)
A democracia segundo José Afonso da Silva é “realização de valores
(igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana.” (SILVA,
1988, p.7)
Para Norberto Bobbio o conceito de democracia é “conjunto de regras
(primarias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as
decisões coletivas e com quais procedimentos.” (BOBBIO, 2000, p. 30)
153
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O conceito de democracia de Norberto Bobbio e de vários outros autores
que adotam uma teoria procedimental é sintetizado por Luigi Ferrajoli na seguinte
passagem:
A democracia vem frequentemente concebida, de acordo com o significado
etimológico ou por intermédio como o poder do povo de assumir,
diretamente ou por intermédio de representantes, as decisões públicas.
Esta noção de democracia pode ser chamada formal ou procedimental,
pois identifica a democracia unicamente como fundamento nas formas ou
nos procedimentos idôneos a legitimar as decisões como expressão, direta
ou indireta, da vontade popular: porque a identifica, em outras palavras,
com fundamento no quem (o povo ou seus representantes) e no como (o
sufrágio universal e a regra da maioria) das decisões, independente de seus
conteúdos, isto é, daquilo que venha a ser decidido. (FERRAJOLI, 2014, p.
17, grifo do autor)
Embora os conceitos apresentados de democracia tenham um caráter
diferente, um se refere à substancia e outro traz uma concepção procedimental,
conforme será comentado adiante, a partir da visão de democracia substancial de
Ferrajoli.
Bobbio afirma que o “fim que nos move quando queremos um regime
organizado democraticamente é, numa única palavra, a igualdade” (BOBBIO, 2013,
p. 38)
Sobre a igualdade, fim último para um povo almejar e buscar uma
democracia, devemos lembrar a lição de Luigi Ferrajoli, que em nosso atual
paradigma constitucional, exige uma igualdade substancial:
[...] principio de estricta legalidad (o de legalidad substancial). O sea, con el
sometimiento también de la ley a vínculos ya no sólo formales sino
substanciales impuestos por los principios y los derechos fundamentales
contenidos en las constituciones. (FERRAJOLI, 2009, p. 53)
O Estado de Direito, atualmente é considerado como meio de proteção de
direitos subjetivos, uma vez considerando o séc. XX, marcado por duas guerras
mundiais e vários movimentos de afirmação de direitos, afim de evitar novas
atrocidades.
Norberto Bobbio afirma essa nova visão do Estado de Direito: “chamamos
de ‘Estados de Direito’ os Estados onde funciona regularmente um sistema de
154
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
garantias dos direitos do homem: no mundo existem, Estados de Direito e Estados
não de direito” (BOBBIO, 2004, p. 40)
Em aspectos políticos, assistimos à queda dos regimes socialistas, embora
alguns ainda resistam e também enxergamos várias crises em estados
democráticos.
Danilo Zolo assinala: “após o eclipse do ‘socialismo real’ e a crise dos
institutos representativos, a noção de Estados de Direito retorna ao Ocidente em
estreita ligação com a doutrina dos direitos subjetivos (ou “direitos fundamentais”)”
(COSTA; ZOLO, 2006, p. 4)
O Estado de direito hoje não se limita as características básicas de
dispersão e divisão de poder. Ele adquire um caráter estreitamente ligado aos
direitos fundamentais, que na visão de Luigi Ferrajoli é de garantir os direitos dos
mais débeis e fracos, amplamente difundido em sua teoria garantista.
Para ele os diretos subjetivos, tanto os de ordem liberal ou social, são
garantias dos cidadãos perante o poder estatal, respeitando os interesses dos mais
fracos como os dos mais fortes, garantindo a tutela dos grupos de minorias
marginalizadas e discrepantes, respeitando as maiorias integradas.
O pensamento desse autor chega ao ponto de atribuir novo significado a
democracia, numa distinção baseada em substancia e forma:
Llamaré democracia substancial o social al (estado de derecho) dotado de
garantías efectivas, tanto liberales como sociales, y democracia formal o
política al (estado político representativo), es decir, basado en el principio de
mayoría como fuente de legalidad. (FERRAJOLI, 2006, p. 864, grifo do
autor)
A democracia procedimental ganhou novo folego como teoria para contrapor
o ativismo judicial norte americano, essa teoria busca limitar o exercício de revisão
constitucional, com fundamento que as decisões de natureza política, estavam
sendo decidas pelo judiciário.
Segundo essa teoria, tem que se criar ferramentas e aperfeiçoar as
instituições democráticas, dando privilégio a direitos políticos, pois o poder judiciário
não detém legitimidade, considerada por eles como forma de proteção a
democracia.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Estefânia Maria de Queiroz Barboza e Katya Kozicki conceituam: “a
chamada “democracia procedimental” se funda na defesa do procedimento
democrático, na medida em que privilegia os direitos que garantem participação
política e processos deliberativos justos, independente do resultado a ser
alcançado.” (BARBOZA; KOZICKI, 2006)
A democracia procedimental, baseia na premissa que com um procedimento
adequado, fundamentado na justiça política, servira de alicerce para a melhoria do
status vigente.
A democracia substancial é pautada por conjunto de princípios que norteiam
desde a elaboração até a aplicação do direito posto, com vistas de efetivar princípios
consagrados nos textos constitucionais (direitos e garantias fundamentais),
conforme o conceito de democracia de José Afonso da Silva e Luigi Ferrajoli.
Luigi Ferrajoli assinala o nexo causal que demonstra a existência de uma
“democracia constitucional” ou substancial:
De fato, por força da mutação de paradigma gerada pelo constitucionalismo
rígido na estrutura das democracias, inclusive o poder legislativo e o poder
de governar são juridicamente limitados e vinculados com relação não
somente às formas, mas também à substancia do seu exercício. Estes
limites e vínculos são impostos a tais poderes pelos direitos
constitucionalmente estabelecidos, os quais identificam aquela que
podemos chamar de esfera do indecidível: a esfera daquilo que não é
decidivel, ou que não pode ser objeto de deliberação, desenhada pelos
direitos de liberdade, os quais têm o poder de tornar inválidas as decisões
com eles contrastantes, e a esfera daquilo que não pode não ser
decidido, ou que deve ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos
sociais, os quais impõem como devidas as decisões destinadas a satisfazêlos. Consequentemente, como estes limites e vínculos de conteúdo
contradizem a noção puramente política da democracia, fundada nas regras
somente formais que consentem a virtual onipotência das maiorias,
devemos admitir que as democracias constitucionais hodiernas não são,
segundo tal noção, democracias. (FERRAJOLI, 2014, p. 18-19, grifo do
autor)
A democracia procedimental, é visível principalmente nos Estados Unidos da
América, enquanto a substancial pode ser encontrada em nosso país, em que a
Constituição impõe ao nosso Estado a criação de garantias para tornar efetivo os
direitos fundamentais.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Baseado na evolução dos direitos humanos, ou sua vertente constitucional
positivada, ou seja, nos direitos fundamentais que se fixaram dentro do Estado de
Direito, tornando parte indissolúvel do mesmo.
Anteriormente, este modelo jurídico-institucional era visto a partir de uma
legalidade formal, que tem por objetivo limitar a atuação estatal, devido em muito as
origens liberais.
É necessário hoje, a existência de uma legalidade substancial, nela os
direitos fundamentais impõe um dever de respeito e consideração do Estado, que
deve trabalhar de forma a dar efetividade aos direitos presentes em cartas
constitucionais.
Os direitos fundamentais são imprescindíveis para essa formulação de
Estado Democrático de Direito, por isto foi proposto usar o conceito teórico e formal
do Luigi Ferrajoli:
Son <<derechos fundamentales>> todos aquellos derechos subjetivos que
corresponden universalmente a <<todos>> los seres humanos en cuanto
dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad
de obrar; entendiendo por <<derecho subjetivo>> cualquier expectativa
positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un
sujeto por una norma jurídica; y por <<status>> la condición de un sujeto,
prevista asimismo por una norma jurídica positiva, con presupuesto de su
idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que
son ejercicio de éstas. (FERRAJOLI, 2009, p. 19, grifo do autor)
Danilo Zolo sintetiza a prevalência desses direitos fundamentais afim de se
criar um Estado Democrático de Direito real e não apenas uma noção vazia, embora
não atinja todos os direitos tutelados pela nossa ordem constitucional ou tratados
internacionais que abordem direitos humanos:
Essa noção retorna como uma teoria político-jurídica que põe em primeiro
plano a tutela dos ‘direitos do homem’, aqueles direitos que uma longa
série de constituições nacionais e de convenções internacionais definiu no
decorrer dos séculos XIX e XX, em particular o direito à vida e à segurança
pessoal, à liberdade, à propriedade privada, à autonomia de negociação,
aos direitos políticos. (COSTA; ZOLO, 2006, p. 5, grifo nosso)
Concluindo, a noção mais adequada do Estado democrático de direito
possui estreita ligação com os direitos fundamentais, entendidos não somente os de
primeira geração, mas também das gerações subsequentes, que devem ser
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
compreendidos também a luz dos direitos humanos, pois mesmo com fontes
diferentes, partilham de uma finalidade comum.
A noção apresentada ao longo desse trecho, procura desenvolver o Estado
Democrático de Direito, dentro de um prisma de democracia substancial
desenvolvida por Luigi Ferrajoli.
Pois, se olharmos a uma concepção formal como apresentada por Paulo
Hamilton Siqueira Júnior: “no Estado Democrático de Direito o povo participa dos
negócios do Estado. ‘O mero Estado de Direito decerto controla o poder, e com isso
protege os direitos individuais, mas não garante a participação dos destinatários no
seu exercício.’” (SIQUEIRA JUNIOR, 2006, p. 165)
Diferente dessa acepção formal, Eugênio Pacelli de Oliveira, delimita uma
noção garantista de: “Estado Democrático de Direito orientada pela necessidade de
reconhecimento e afirmação da prevalência dos direitos fundamentais, não só como
meta de política social, mas como critério de interpretação do Direito.” (OLIVEIRA,
2014, p. 32)
Portanto, o Estado Democrático de Direito é aquele que além de promover a
dispersão do poder (separações de funções e princípio da legalidade), afim de evitar
abuso dos ocupantes de cargos do poder, deve basear-se na soberania do povo e
da efetividade aos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição,
uma vez que tais postulados são a tradução do exercício real da soberania popular,
exercido pelo poder constituinte.
3 DISCURSO DA SEGURANÇA
O discurso da segurança é recorrente no cotidiano de qualquer cidadão, os
meios de comunicação fartamente difundem notícias sobre o aumento de violência,
sobre grupos terroristas.
A importância dele para a presente pesquisa é que esse discurso é utilizado
para legitimar ações políticas que em determinados casos podem violar direitos
fundamentais.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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A segurança é um dever do Estado, decorrente do direito fundamental a
segurança, entretanto os meios para se garantir a segurança devem ser pautados
dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Agamben assinala o uso da segurança:
A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que
nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como
prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda
constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo...), mas
nunca seu propósito: governar as populações. (AGAMBEN, 2014)
Embora Agamben demonstre uma visão pessimista seu discurso não é uma
voz isolada, André Luís Callegari e Fernanda Arruda Dutra em pesquisa sob Direito
Penal do Inimigo, descreve a associação do uso político da segurança como forma
de legitimar ações do poder:
É de conhecimento de todos que durante muitos anos, especialmente nos
Estados autoritários, em nome da segurança nacional, a promoção do uso
da violência além dos limites impostos pelo Estado de Direito foi utilizada.
Novamente, hoje, alguns Estados têm adotado estratégias repressivas e
punitivistas, justificando o (ab)uso da violência em nome da segurança
nacional como forma de contenção do fenômeno criminal. A pressão social
provocada pela insegurança que ronda a sociedade tem servido como
justificativa para gerar a legitimação necessária para que o Estado aumente
sua “potestade”, ampliando seu espectro de controle penal (através da
criação de novos tipos penais e aumento de pena – no caso do direito penal
material) na luta contra a criminalidade suprimindo direitos e garantias ao
ponto de admitir-se a perda do status de pessoa, como defende Jakobs.
(CALLEGARI; DUTRA, 2007, p. 431-432)
Desta forma cabe a presente pesquisa delimitar minimamente os eventos
onde o discurso da segurança é manifestado, para posteriormente discutir quais
reflexos existem na aceitação de medidas baseadas em tal premissa.
Para essa pesquisa trataremos o discurso da segurança no plano abstrato,
como aquele discurso de segurança que legitima a positivação de medidas de
segurança através de lei, como ocorre no Direito Penal do Inimigo, em um segundo
plano velado, trataremos o discurso da segurança como ações sob aparência de
legalidade que agem como se estive-se dentro de um Estado de Exceção em
período de normalidade.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Portanto iniciaremos comentando o Direito Penal do Inimigo, onde o discurso
da segurança é positivado. O Direito Penal é área onde o poder encontra-se de
forma mais visível, portanto mais sucessível a abusos.
O discurso de um Direito Penal do Inimigo considera determinada categoria
ou sujeito como ser danoso/perigoso à sociedade devendo-se aplicar normas
diferentes para esses seres humanos.
Segundo professor Eugenio Raúl Zaffaroni:
Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do
caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado
absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, tornase incompatível com a teoria política do Estado de Direito. Com isso,
introduz-se uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que
admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais
internacionais do Estado de Direito, ou seja, com a teoria política deste
último. (ZAFFARONI, 2013, p.11, grifo nosso)
Baseando-se na premissa de Zaffaroni é possível constatar que a lógica de
inimigos da sociedade é incompatível com os postulados do Estado Democrático de
Direito, esta lógica é compatível com um modelo de Estado absoluto, portanto
incompatível em sua essência.
Francisco Muñoz Conde expressa o postulado de Günter Jakobs:
A necessidade de reconhecer e admitir que nas sociedades atuais junto a
um Direito Penal dirigido à única tarefa de restabelecer através da sanção
punitiva a vigência da norma violada pelo delinquente e a confiança dos
cidadãos no Direito (segurança normativa), inspirando em conceitos mais ou
menos flexíveis ou funcionais, porém respeitosos e adequados ao sistema
de garantias e limites do poder punitivo no Estado de Direito, havia outro
Direito Penal, um Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) , pelo qual o
Estado diante de determinado sujeitos, que de forma grave e reiterada se
comportam contrariamente às normas básicas que regem a sociedade e
constituem uma ameaça para a mesma, tem que reagir de forma muito mais
contundente para restabelecer a confiança no direito e no próprio sistema,
não de imediato pela segurança e confiança normativa e sim pela
“segurança cognitiva”. (CONDE, 2012, p. 25)
Conde assinala a mudança de paradigma do Direito Penal do Inimigo que
diferentemente do Direito Penal Clássico busca uma segurança normativa esse
modelo busca uma segurança cognitiva, porém como consequência dessa busca de
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
eficácia penal, criação de um binômio cidadão-inimigo, ensejando tratamento
diferenciado acaba por violar direitos fundamentais do sujeito.
Dentro de um Estado Democrático de Direito a eleição de determinadas
pessoas ou grupos como inimigos, deixando de aplicar as garantias fundamentais
descritas nas cartas constitucionais, culmina na formação de um ser paradoxal pois
ele não é um cidadão, cabendo em ultima ratio o status de coisa.
Isso faz lembrar do emblemático habeas corpus de Sobral Pinto que invocou
a lei de proteção de animais, pois o tratamento na época era tão desumano que nem
mesmo um animal deveria sofrer o que os pacientes sofriam.
Após essas breves considerações passamos a análise do Estado de
Exceção de Agamben, aquele Estado de Exceção velado.
O Estado de exceção é um instituto recente e pouco estudado, para explicar
o mesmo existem duas correntes que explicam esse instituto de crise: uma
considera que esse instituto é político, enquanto a segunda corrente enxerga como
entidade jurídica.
A princípio o Estado de Exceção positivado em nosso direito é um tema
pouco estudado, sendo assim um campo inexplorado. Agamben ao trabalhar o tema,
admite a inexistência de uma teoria do Estado de Exceção no direito público.
Segundo ele:
Tantos juristas quanto especialistas em direito público parecem considerar o
problema muito mais como uma quaestio facti do que um genuíno problema
jurídico. Não só a legitimidade de tal teoria é negada pelos autores, que
retomando a antiga máxima de que necessitas legem non habet, afirmam
que o estado de necessidade, sobre o qual se baseia a exceção, não pode
ter forma jurídica; mas a própria definição do termo tornou-se difícil por
situar-se no limite entre a política e o direito. (AGAMBEN, 2004, p. 11)
Porém, qual a natureza desse instituto? Agamben citando Saint-Bonnet,
demonstra uma opinião generalizada, onde ele constitui um “ponto de desequilíbrio
entre o direito público e fato político.” (AGAMBEN apud SAINT-BONNET , 2004, p.4)
A formulação mais aceita sobre o tema é a discutível teoria do Carl Schmitt,
que pode ser sintetizada, na expressão de que o soberano é aquele que tem poder
de decidir sobre o Estado de Exceção, ou seja dentro do campo político, soberano é
aquele que decide no período de instabilidade.
161
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Daniel Ivo Odon, assinala a visão de Carl Schimitt “o estado de exceção
como meio adequado à definição jurídica de soberania.” (ODON, 2012, p. 249)
O conceito de Schimitt não consegue explicar o tema em toda sua
profundidade, porem nos serve como ponto de partida, mostrando que hoje em dia é
necessário estabelecer limites a essa zona nebulosa entre direito e política.
Segundo Agamben “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal
daquilo que não pode ter forma legal.” (AGAMBEN, 2011, p.12) O tema do Estado
de Exceção paira sobre uma zona de incerteza, entre o político ou jurídico e
enquanto não houver limites razoáveis, ele pode servir a vontade dos ocupantes de
cargos eletivos do Estado.
Ivo Dantas, adverte: “muitas vezes, por detrás das justificativas de salvação
do Estado, ocultam-se interesses absolutamente privados, que pretendem utilizar,
em seu benefício, o recurso aos poderes extraordinários.” (DANTAS, 1989, p.29)
Para Agamben, hoje ocorre o que Dantas advertia, o uso abusivo dos
poderes extraordinários:
Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve
ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei;
as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário,
uma técnica de governo normal e permanente. (AGAMBEN, 2014)
O discurso da segurança segundo Agamben surge como técnica de governo
para criar um Estado de Exceção velado, mudando o paradigma do Estado
Democrático de Direito para um Estado de Exceção não declarado e perpétuo.
De acordo com o autor, a partir do decurso do tempo as instituições
democráticas se transformaram. Na medida que em sua origem nasceu para ser
excepcional, o Estado de Exceção transformou-se em regra:
A partir do momento que “o estado de exceção[...]tornou-se regra”
(Benjamim, 1942, p. 697), ele não só sempre se apresenta muito mais como
uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas
também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem
jurídica. (AGAMBEN, 2011, p. 18)
Vislumbrando essa mudança de paradigma, podemos dizer que existe dois
Estados de Exceções: um Estado de Exceção declarado e fundamentado em uma
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
normal constitucional que autoriza medidas e poderes extraordinários durante
determinado período e que suspende apenas alguns direitos fundamentais para
conseguir retomar ao ambiente normal, assim retornando a um estado democrático
existente, ocorrendo apenas uma suspensão do regime normal devido causas
extraordinárias.
O segundo é um Estado de Exceção velado, ou seja, não declarado nele a
partir do discurso da segurança que serve como fundamento e paradigma, o
governante age como se houve-se poderes especiais, indo para além dos limites
constitucionais, ensejando em alguns casos violações de direitos fundamentais.
Portanto, constado a existência de um Estado de Exceção não declarado e
Direito Penal do Inimigo são manifestações de um discurso da segurança, sua
relação e consequências no Estado Democrático a Direito serão analisadas a seguir.
4 REFLEXOS DO DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
Durante a pesquisa foi desenvolvido um conceito de Estado Democrático de
Direito e das formas de manifestações do discurso da segurança, deste modo cabe
realizar um exame de compatibilidade entre as formas de manifestações ventiladas
e esse paradigma de Estado.
O discurso da segurança na prática é aplicado como uma razão de Estado,
porém esse modelo de Estado de segurança onde o paradigma é a busca da
segurança, tem suas premissas de um modelo estatal hobbesiano, portanto um
Estado absoluto.
Bauman demonstra como o Estado encontrou sua razão de existência na
busca pela segurança do indivíduo, pois segundo ele encontra-se em decadência
devido sua vulnerabilidade, após a rápida globalização de mercados abertos:
O Estado, por exemplo, tendo encontrado sua raison d'être e seu direito à
obediência dos cidadãos na promessa de protegê-los das ameaças à
existência, porém não mais capaz de cumpri-la (particularmente a promessa
de defesa contra os perigos do segundo e terceiro tipos) - nem de reafirmála responsavelmente em vista da rápida globalização e dos mercados
crescentemente extraterritoriais -, é obrigado a mudar a ênfase da "proteção
contra o medo" dos perigos à segurança social para os perigos à segurança
pessoal. O Estado então "rebaixa" a luta contra os medos para o domínio da
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
"política de vida", dirigida e administrada individualmente, ao mesmo tempo
em que adquire o suprimento de armas de combate no mercado de
consumo. (BAUMAN, 2006, p. 10-12)
O Estado Democrático de Direito é um Estado onde busca-se através do
processo político conduzir a sociedade, e para ser viável, é necessário respeitar os
limites ao poder estabelecidos na noção clássica de um Estado de Direito e respeito
aos direitos fundamentais.
Agamben assinala o papel que a segurança vem tomando e se pergunta
como a democracia encontra-se perante a tal mudança de paradigma:
A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma
mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos
perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser
qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda
podem ser consideradas sociedades políticas. (AGAMBEN, 2014)
Portanto, como primeiro argumento de incompatibilidade do discurso da
segurança dentro do Estado Democrático de Direito é que a busca a segurança
elevado ao patamar de paradigma, tem fundamentos em um modelo de Estado
absoluto, como da teoria do Hobbes, desta forma não sendo compatível com o
paradigma estatal vigente.
O discurso da segurança manifestado no Direito Penal do Inimigo não possui
compatibilidade com Estado Democrático de Direito, porque nessa formulação de
Direito Penal existe uma criação de uma dualidade entre cidadão e inimigo que para
esse ser considerado inimigo ocorre a “flexibilização” de direitos fundamentais,
aplicação de normas diferenciadas com penas draconianas.
Um dos pressupostos básicos de um Estado Democrático de Direito é a
proteção dos direitos fundamentais, desta forma admitir duas espécies de pessoas,
um cidadão que tem todos seus direitos garantidos e uma pessoa considerada
inimigo que em muitos casos é rebaixado a situação de coisa, ou “não” pessoa em
nome da proteção dos cidadãos.
Será possível dentro de um Estado Democrático de Direito admitir que
podemos escolher alguns sujeitos, retirar deles o status de cidadão, rebaixando sua
condição de inimigo, gerando nele uma situação jurídica sombria envolto em uma
zona de incerteza, pois mesmo sendo inimigo não se aplicam as normas do direito
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
humanitário (direito de guerra), pois não existe a ocorrência de um conflito armado e,
portanto, não se aplica um direito especial como este, porém ele não é cidadão, logo
não é dotado de direitos fundamentais.
Assim admitir essa premissa seria negar o próprio Estado Democrático de
Direito, viveríamos sob aparência de um Estado de Direito Democrático, mas
estaríamos dentro de um Estado de Exceção de Agamben.
O Estado de Exceção não declarado sob aparência de um Estado que se
denomina Estado Democrático de Direito como Agamben assinala como a
transformação do Estado de Exceção antes declarado, agora invisível.
Possui diversos pontos de contato com Direito Penal do Inimigo e como ele
também é incompatível com um Estado Democrático de Direito, muitas vezes é difícil
separar as duas figuras.
O Estado de Exceção é uma forma que deveria ser temporária em tempos
de crise para que se retorne a uma ordem democrática, entretanto com o decurso do
tempo ele foi se transformando para uma forma velada de Estado de Exceção.
A existência de um Estado de Exceção, ou seja, com poderes excepcionais
os quais invariavelmente encontram tensões com direitos fundamentais, além disto a
existência Estado invisível não encontra compatibilidade perante a um dos
postulados mais básicos da teoria democrática, o da publicidade dos atos do poder.
O Estado de Exceção de Agamben pressupõe a existência de um poder
invisível, pois a própria existência desse Estado de Exceção é invisível sendo
apenas revelado quando analisado os atos emanados sob uma aparência de
legitimidade.
O poder invisível corrói o Estado Democrático de Direito, pois nele existe
acordos secretos, atos disfarçados os quais se fossem relevados não poderiam
existir.
Assim, a mera existência de um Estado de Exceção não declarado viola o
Estado Democrático de Direito, pois são lógicas distintas em que existem atos
diferentes, o Estado de Exceção deve ser realmente a exceção e não a regra, pois
ele só existe para em crise conseguir fazer retornar para a regra, permitindo a
flexibilização de alguns direitos fundamentais em nome de um bem maior: o retorno
ao Estado Democrático de Direito.
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GESTÃO E CONTROLE
Portanto, as ações baseadas em um discurso da segurança devem ser
vistas com cautela, pois elas tendem a ultrapassar limites do Estado Democrático de
Direito, a segurança pública é um dever a ser prestado pelo Estado, mas elas devem
ser criadas e executadas de maneira compatível com o paradigma do Estado
Democrático de Direito.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso da segurança está presente em nosso contexto, porém em muitos
casos ele é incompatível com a lógica do Estado Democrático de Direito.
O discurso da segurança tem diversas nuances, porém é mais facilmente
verificável no Estado de Exceção na forma pensada por Agamben, e no Direito
Penal do Inimigo. Mas, também pode ser encontrado em outras formas não tão
nítidas, como o caso do projeto vigia que se tenta implantar na cidade de Curitiba, já
existente em Nova York, onde não se pode traçar objetivamente sua natureza
jurídica/política.
Como analisado no trabalho, o discurso da segurança pode apresentar
características que não pertencem ao Estado Democrático de Direito, ensejando sua
incompatibilidade, pois é o núcleo do paradigma estatal atual e dos direitos
fundamentais, da democracia e da limitação do poder.
Eleger determinadas pessoas ou grupos e considerá-los como inimigos, que
não usufruem de direitos e garantias fundamentais, justificando-se a manutenção da
paz por meio de providencias sobremodo violentas, não é uma providencia própria
de um Estado Democrático de Direito. Desta forma é incompatível sustentar um
discurso que tem por objetivo implantar um Direito Penal que aceite um inimigo.
De maneira semelhante é impossível sustentar um Estado de Exceção velado,
sob uma aparência de compatibilidade com Estado Democrático de Direito, graças a
um discurso de segurança que serve como razão do Estado para legitimar qualquer
atitude. Embora a segurança seja um direito social, ele não pode suplantar outros
direitos de igual conteúdo Constitucional.
Afinal não vivemos em um Estado de Segurança, e os postulados dele não se
compatibilizam com a totalidade do Estado Democrático de Direito que se preocupa
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
não só com a segurança dos indivíduos, mas com uma serie de direitos
fundamentais a serem observados pelo próprio Estado.
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168
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
DA (IM)POSSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO
TRIBUTÁRIO MEDIANTE GARANTIA EM JUÍZO
THE (IM)POSSIBILITY OF SUSPENSION OF THE CHARGEABILITY OF TAX
CREDIT BY WAY OF GUARANTEE IN JUDGMENT
Guilherme Reis Gonçalves94
Thiago Dalsenter95
SUMÁRIO
Resumo. 1 Introdução 2 A Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 3 A Fiança
Bancária e sua Proteção ao Crédito Exequendo 3.1 A Fiança Bancária Como Hipótese de
Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 3.1.1 Interpretação Extensiva e Aplicação
Analógica: Níveis Diferentes 3.1.2 O Projeto de Lei Complementar nº 142/2007: A Eventual Mudança
De Um Paradigma 4 O Seguro Garantia e sua Receptividade pelo Poder Judiciário 4.1 A Lei nº
13.043/2014: A Vitória dos Contribuintes Frente à Novel Garantia 4.2 O Seguro Garantia Como
Hipótese de Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 5 O Novo CPC e sua Repercussão no
Direito Tributário: A Fiança Bancária e o Seguro Garantia Equiparados ao Dinheiro (Impacto no
Artigo 151 do CTN?) 6 Considerações Finais. Referências.
RESUMO
A seleção do tema objeto deste artigo tem como objetivo promover a análise dos argumentos em prol
da suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de garantias previstas no
ordenamento jurídico pátrio, a saber: a fiança bancária e o seguro garantia, ambas revestidas deste
poder em razão do altíssimo grau de liquidez e certeza, assim como o ocorre com o depósito integral
em dinheiro. Apesar do presente estudo demonstrar um bom raciocínio acerca desta possibilidade,
trazendo à baila renomados doutrinadores e alguns precedentes judiciais pertinentes ao objeto em
apreço – flexibilizando a aplicação do artigo 151 do Código Tributário Nacional –, ainda impera, sob a
ótica do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a última palavra sobre a matéria, a negativa
da suspensão em foco, ante a taxatividade do artigo 151 supra e do enunciado da Súmula nº
112/STJ. Todavia, ainda que se tenha consolidado este entendimento perante a Corte, destaca-se a
importância do monitoramento contínuo do Poder Judiciário frente a estas garantias em virtude de
Aluno de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Email:
[email protected]
95 Advogado e Consultor Jurídico. Mestre em Direito do Estado (concentração em Direito Tributário)
pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto
Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná – PUCPR. Professor da Graduação do curso de Direito da Faculdade de Direito do
Centro Universitário Curitiba - UNICURTIBA. Email: [email protected]
94
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GESTÃO E CONTROLE
uma eventual nova redação agraciada ao explorado artigo, bem como da auspiciosa evolução trazida
pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), equiparando em dinheiro ambas as
garantias. É este o escopo que nos anima.
Palavras-chave: Suspensão; Crédito tributário; Artigo 151 do Código Tributário Nacional; Fiança
bancária; Seguro garantia.
ABSTRACT
The selection of the subject of this article has as objective to promote the analysis of arguments in
favor of the suspension of the chargeability of tax credit through the offer of guarantees provided for in
the legal parental rights, namely: the banking guarantee and insurance guarantee, both covered this
power because of the very high degree of liquidity and certainty, as well as occurs with the tank full of
money. In spite of the present study demonstrate a good reasoning about this possibility, bringing
renowned doctrine and some judicial precedents relevant to the object in question - by easing the
application of Article 151 of the Brazilian Tax Code -, still reigns, from the perspective of the Superior
Court of Justice, who has the responsibility for the final word on the matter, the negative of the
suspension in focus, ante the taxatividade Article 151 above and the wording of the Summary no.
112/STJ. However, even if it has consolidated this understanding before the Cut, it highlights the
importance of continuous monitoring of the Judiciary in these guarantees as a result of a possible new
writing graced the exploited article, as well as the auspicious developments brought by the new Code
of Civil Procedure (Law nº 13.105/2015), matching cash both guarantees. This is the scope that
motivates us.
Keywords: Suspension; Tax credit; Article 151 of the Brazilian Tax Code; Collateral; Guaranteed
insurance.
1 INTRODUÇÃO
Os que militam no contencioso tributário bem sabem o quão importante se faz
suspender a exigibilidade do crédito existente, em benefício ao porte das atividades
de seus clientes, posto que, enquanto dure o pleito, através do qual o contribuinte
discute o alegado débito fiscal, não se revela possível a instauração do processo
executivo. Ademais, a suspensão facilita a atividade das sociedades empresárias,
que, quando necessário, podem obter certidão positiva de débitos com efeitos de
negativa, documento este não raras vezes indispensável para viabilizar o sucesso
das atividades por elas desempenhadas.
Precisamente com relação àqueles que, supostamente, devem ao Fisco, tem
sido comum o oferecimento de fiança bancária ou seguro garantia como forma de
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antecipar os efeitos da penhora em futura execução fiscal, possibilitando que o
credor esteja com seus compromissos fiscais garantidos.
Sobre a suspensão examinada no presente trabalho, calorosos embates,
tanto no âmbito doutrinário como no jurisprudencial, ganham enorme relevância na
prática com a possibilidade do deferimento, concedido por parte do Poder Judiciário,
do sobrestamento da exigibilidade do crédito discutido em decorrência do
oferecimento destas garantias (carta de fiança bancária e apólice de seguro garantia
judicial).
Para enfrentar esse desafio, analisaremos a discussão existente no Direito
pátrio acerca dos fatos suspensivos, enumerados no artigo 151 do Código Tributário
Nacional, serem taxativos (numerus clausus), isto é, somente eles suspendem a
exigibilidade do crédito tributário, não cabendo, portanto, nenhuma outra providência
suspensiva; ou se são meramente exemplificativos, no sentido de que existem no
ordenamento jurídico brasileiro outras medidas, tais como, abordadas brevemente
no presente artigo, a sentença em ação de conhecimento e a consulta fiscal que,
também, obstam o exercício do direito de cobrança do Fisco.
Finalmente, tratar-se-á do caso específico da fiança bancária como eventual
possibilidade de interferir na exigibilidade do crédito tributário, para fins da
suspensão a que se refere o artigo em estudo – tendo como destaque o teor do
Projeto de Lei Complementar nº 142/2007 –, bem como do seguro garantia judicial,
introduzido no sistema jurídico brasileiro pela Lei nº 11.382/2006 como mais uma
forma de garantia apta a ser utilizada pelo devedor no processo judicial, em que, por
meio da Lei nº 13.043/2014, este ficou expressamente previsto como caução no
âmbito das execuções fiscais para cobrança das dívidas ativas da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios.
E assim faremos linhas adiante, revelando-se, ainda, oportuna e relevante
exposição da evolução trazida pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº
13.105/2015), destacando preceito que poderá influenciar no tema ora selecionado.
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GESTÃO E CONTROLE
2 A SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
Consoante se verifica pela análise do Código Tributário Nacional (CTN), após
regularmente constituída via lançamento, o crédito tributário pode vir a ter a sua
exigibilidade suspensa, nos ditames do artigo 151 daquele Codex.
Trata-se de causas que nada mais são que normas jurídicas às quais o
sistema jurídico confere o efeito específico de inibir o prosseguimento normal de um
processo de positivação tendente à extinção do crédito tributário.96
Ressalta-se que, em verdade, segundo Maria Leonor Leite Vieira (VIEIRA,
1997, p. 39), não se suspende o crédito tributário, mas tão somente e a rigor a
possibilidade de ele ser exigido. No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho
(CARVALHO, 1999, p. 433) ressalta que, “aquilo que se opera, na verdade, é a
suspensão do teor da exigibilidade do crédito, não o próprio crédito que continua
existindo tal qual nascera”.
Dessemelhante, Luciano Amaro (AMARO, 1999. p. 358) afirma que o que se
suspende é “o dever de cumprir a obrigação tributária”. Já Hugo de Brito Machado
(MACHADO, 1996, p. 123) alude que a suspensão pode ser “prévia, operando-se
antes do surgimento da própria exigibilidade, caso em que mais propriamente se
devia dizer impedimento, em lugar de suspensão e posterior, operando-se depois
que o crédito se tornou exigível”.
Diante disso, Décio Porchat (PORCHAT, 2004, p. 94) esclarece que, diante
do surgimento dessas indagações (se as hipóteses arroladas no artigo 151 do
Código Tributário Nacional teriam o condão de suspender o crédito tributário, a
exigibilidade deste, ou a própria obrigação tributária), a resposta não pode ser posta
em termos absolutos, pois tudo dependerá da acepção em empregada pelo cientista
do Direito no que diz respeito às expressões: obrigação, crédito, exigibilidade, bem
como do momento de incidência da regra que veicular algum dos fatos previstos nas
hipóteses do artigo 151 supra.
A par dessa discussão, o artigo em estudo, segundo a doutrina especializada
no assunto, traz um rol taxativo de hipóteses cuja ocorrência tem como
Nesse sentido, suspender a exigibilidade do crédito “significa inibir o processo de positivação do
direito tendente ao ato de inscrição da dívida ativa e do conseqüente processo executivo fiscal”
(SANTI, 2001, p. 180).
96
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consequência a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, pelo que, não
estando a situação fática ou jurídica subsumida em algum dos casos ali indicados,
não há como se cogitar a aludida suspensão.
Por oportuno, nos termos do artigo 97, inciso VI, do CTN, somente a lei pode
estabelecer as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, de
modo que não compete a ninguém mais fazê-lo, quer o Poder Executivo, quer ainda
o Judiciário. Aliás, tratando-se de matéria posta sob reserva legal, não há
possibilidade do Poder Judiciário reconhecer, nos casos que lhe são submetidos, o
efeito da suspensão da exigibilidade do crédito tributário nas situações não
contempladas no aludido rol (artigo 151 do CTN), sob pena de afronta ao princípio
maior da separação entre os Poderes (artigo 2º da CF), e isso pelo simples motivo
de que ao Judiciário não compete exercer a função de legislador positivo,
consoante, inclusive, entendimento sedimentado no âmbito do Supremo Tribunal
Federal (STF).
Inclusive, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a partir da
análise do artigo 151 do CTN, entende que este não deve ser interpretado de acordo
com as outras hipóteses expressamente previstas por intermédio da interpretação
analógica ou extensiva, sob pena de perder a razão a enumeração ali contida e,
assim, restar violado o princípio da legalidade (CARNEIRO, 2006, p. 20).
Tal raciocínio advém do nosso CTN, que em seu artigo 111, inciso I,
estabelece que a legislação tributária deva ser interpretada literalmente no que
dispõe sobre a suspensão do crédito tributário.
Vale transcrever, aqui, as lições de Hugo de Brito Machado:
Interpretação literal significa interpretação segundo o significado gramatical,
ou melhor, etimológico, das palavras que integram o texto. Quer o Código
que se atribua prevalência ao elemento gramatical das leis pertinentes à
matéria tratada no art. 111, que é matéria excepcional. Realmente, a
suspensão, como a exclusão do crédito tributário, e a dispensa do
cumprimento de obrigações tributárias acessórias constituem exceções. A
regra é o pagamento do tributo nos prazos legalmente fixados. A suspensão
do crédito, ou, mais exatamente, a suspensão da exigibilidade do crédito
tributário, constitui exceção. Também a regra é que todos paguem tributos
segundo a capacidade contributiva de cada um. A isenção geralmente
constitui exceção a essa regra. Finalmente, a regra é que todos cumpram
suas obrigações tributárias acessórias. A dispensa desse cumprimento é
excepcional. O direito excepcional deve ser interpretado literalmente, e este
173
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
princípio de hermenêutica justifica a regra do art. 111 do CTN, impondo a
interpretação literal. [...] (MACHADO, 2003, p. 114)
A regra em que o autor faz menção deve ser entendida e compreendida no
sentido de que as normas reguladoras do direito tributário que versem sobre as
situações descritas neste artigo não comportam interpretação extensiva ou
ampliativa, mas sim restritiva e até mesmo delimitativa.
Não bastasse isso, a estrita legalidade nas hipóteses de suspensão do crédito
tributário também está prevista no artigo 141 do CTN, o qual prevê que a
exigibilidade do crédito já formalizado pelo lançamento só poderá ser suspensa nos
casos previstos em lei.
Aliomar Baleeiro (BALEEIRO, 1979, p. 14), ao analisar o assunto, sustenta,
com fulcro nos artigos 97, inciso VI; 111, inciso I, e, principalmente, 141, todos do
CTN, que a interpretação das disposições que admitem a suspensão da
exigibilidade do crédito tributário é restrita.
Portanto, aparentemente quis o legislador que somente nos casos ali
indicados (artigo 151 do CTN) tivesse o crédito sua exigibilidade suspensa,
especialmente por se tratar de estancamento da marcha procedimental de cobrança
da dívida, isto é, justamente por constituir exceção à regra que prevê a exigibilidade
do crédito após sua constituição, deve ser interpretada restritivamente.
Por outro lado, mesmo diante desse propósito, o sistema continua
preocupado
em
facilitar
o
cumprimento
da
obrigação
sem
onerar
desnecessariamente o patrimônio do executado. Desta maneira, preocupou-se o
legislador pátrio, ao dispor no artigo 620 do CPC que, quando por vários meios o
credor puder promover a execução, esta seguirá pela forma menos gravosa ao
devedor
No que concerne à razão de ser do artigo 620 supra (princípio da menor
onerosidade), frisa José Carlos Barbosa Moreira:
Encontram-se por vezes, em leis processuais, disposições tendentes a
evitar que, na atividade de execução, se cause ao devedor detrimento
excessivo, ordenando, por exemplo, que entre dois ou mais possíveis meios
se escolha o menos gravoso (MOREIRA, 1989, p. 221).
174
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
De modo a melhor elucidar a questão, importa observar as palavras de Hugo
de Brito Machado:
A aplicação das disposições em foco [no caso, a do art. 620 do CPC] não
deve, em princípio, diminuir a eficácia prática na execução; a opção pelo
meio menos gravoso pressupõe que os diversos meios considerados sejam
igualmente eficazes (MACHADO, 2003, p. 114).
Dessa forma, sem pretender desmerecer em absoluto a opinião daqueles
doutrinadores que defendem o alcance originalmente atribuído ao artigo 151 do CTN
(a taxatividade), Roque Antônio Carrazza (CARRAZZA, 1992) e Camila Campos
Vergueiro (VERGUEIRO, 2009) alegam existir outras normas admitidas pelo
ordenamento jurídico, apta a suspender a exigibilidade do crédito tributário, como é
o caso, por exemplo, da sentença proferida em processo judicial.
Nesta linha de raciocínio, questionam os autores sobre a incoerência que
seria admitir que uma decisão liminar, norma de caráter provisório e proferida em
sede cognição sumária, ter o condão de suspender a exigibilidade, apenas pela
previsão no sobredito artigo 151, e uma sentença, emanada de uma cognição
exauriente, ser desprovida dessa mesma aptidão, só pelo fato de não constar entre
as causas elencadas no aludido dispositivo legal.
Além
deste
posicionamento,
defendem
Gabriel
Lacerda
Troianelli
(TROIANELLI, 2007), Ives Gandra da Silva Martins (MARTINS, 2014) e Kelly
Magalhães Faleiro
(FALEIRO, 2005) a possibilidade da consulta administrativa
fiscal, enquanto não solucionada, suspender a exigibilidade do tributo no que se
refere à parte abrangida pela dúvida.97
Em função desta margem exemplificativa quanto à suspensão examinada,
trata-se de saber se a prestação de fiança bancária e a apólice de seguro garantia
judicial, igualmente, possibilitam a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
97
Em apertada síntese, conforme os autores em uma das suas linhas de pensamento, apesar do
CTN não prever a consulta como fundamento para a suspensão em foco, esta decorria diretamente
do impedimento à instauração de qualquer procedimento fiscal contra o consulente, conforme dispõe
o artigo 48 do Decreto nº 70.235/1972, afinal um dos efeitos da formulação da consulta eficaz é a
impossibilidade do Fisco exigir tributo objeto da consulta.
175
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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3 A FIANÇA BANCÁRIA E SUA PROTEÇÃO AO CRÉDITO EXEQUENDO
Por derradeiro, chegando ao ponto de uma madura compreensão acerca dos
fatos suspensivos, ousa-se concitar a doutrina e os tribunais às considerações das
singelas, mas firmes, convicções lançadas adiante.
Sabemos que a execução se faz no interesse do credor e só ao credor é
autorizado declinar, caso a caso, o que melhor atenta ao seu interesse prioritário.
Consequentemente, os contribuintes que devem garantir a execução com
seus bens, procuram fazê-lo de forma que tal penhora não onere demasiadamente
suas atividades regulares. Já a Fazenda Pública batalha para que a garantia seja
dotada de maior liquidez possível, e sempre que possível em dinheiro. 98
Diagnosticado o dissenso, a fiança encontra-se disposta nos artigos 818 a
839 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), conceituada como um contrato por meio do
qual “uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo
devedor, caso este não a cumpra”.
A propósito do contrato de fiança, Pontes de Miranda assim se pronuncia:
Conceito. – A fiança é promessa de ato-fato jurídico ou de outro ato jurídico,
porque o que se promete é o adimplemento do contrato, ou do negócio
jurídico unilateral, ou de outra fonte de divida, de que se irradiou, ou se
irradia, ou vai irradiar-se a dívida de outrem (MIRANDA, 1972, p. 91).
Na hipótese, o que o fiador (ou seja, o banco) garante é a satisfação do
crédito da Fazenda, objeto da cobrança executiva.
Quanto à garantia fidejussória no processo executivo fiscal, assinala Arnaldo
Marmitt:
98
Apenas a título argumentativo, afinal tal raciocínio não será objeto de exame nesta oportunidade,
decisões recentes do STJ reavivaram a questão da substituição dos bens penhorados em sede de
execução fiscal. O artigo 15 da Lei nº 6.830/80, que disciplina quando e como será possível a
substituição da penhora no rito especial das ações executivas, dispõe que a qualquer tempo poderá
ser autorizada pelo juiz a substituição dos bens, tanto por iniciativa do devedor (hipótese do inciso I)
quanto por iniciativa do credor (hipótese do inciso II). Assim, em princípio, temos a expressão “a
qualquer tempo” como algo ilimitado. Porém, parte da doutrina e dos tribunais pátrios entende que
não é desta forma que deve ser interpretado tal permissivo.
176
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Do artigo 1.481 do Código Civil [de 1916; hoje, Código Civil de 2002, art.
818] deflui que a fiança bancária é um contrato pelo qual uma pessoa
jurídica de direito privado se obriga para com o credor de outra a satisfazer
uma obrigação de dar quantia certa, se o sujeito da obrigação não cumprir
voluntariamente (MARMITT, 1986, p. 254).
Isso significa que, toca ao banco, prestador da fiança, a satisfação do crédito
exequendo.
Referindo-se aos “tipos” de fiança, escreve Lauro Laertes de Oliveira:
c) Bancária. Está espécie, criada pela necessidade prática e consolidada
pela moderna doutrina, é semelhante à fiança comercial. Trata-se de
garantia prestada por estabelecimento bancário; via de regra o afiançado é
comerciante.
[...]
Espécie de fiança onerosa. O banco cobra uma comissão para prestar
fiança. Mas seu caráter oneroso não desfigura o instituto (OLIVEIRA, 1986,
p. 254).
Portanto, a fiança bancária, enquanto caução ou garantia, objetiva “oferecer
ao credor uma segurança de pagamento, além daquela genérica situada no
patrimônio do devedor” (PEREIRA, 2003, p. 493).
Ressalta-se que, no âmbito tributário federal, é a Procuradoria Geral da
Fazenda Nacional (PGFN) que protagoniza em juízo as questões afetas ao tema em
apreço (artigo 131, parágrafo 1º, da CF); logo, imprescindível mencionar a Portaria
PGFN nº 644, de 1º de abril de 2009, com suas alterações promovidas pela Portaria
PGFN nº 1.378, de 16 de outubro de 2009, por meio das quais a PGFN admite as
cartas de fiança bancária para finalidade de serem aceitas em garantia do crédito
tributário exequendo e, por isso mesmo, regula os seus requisitos formais.
Aliás, tem sido contumaz, inclusive sob a chancela do STJ, intérprete máximo
da lei federal (artigo 105 da CF), atribuir à fiança bancária efeito igual ao depósito
em dinheiro.99
99
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo Regimental no Recurso
Especial nº 1.109.560-RS. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, da Primeira Turma. Data da
Publicação: 30/08/2010
177
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Entretanto, a despeito das considerações até aqui transcritas, poderíamos
perguntar: a carta de fiança equivale ao depósito para fins de suspensão da
exigibilidade do crédito tributário?
Não bastasse o entendimento majoritário sobre a taxatividade das hipóteses
elencadas no rol do artigo 151 do CTN, trataremos também dos argumentos que
poderiam ser invocados em prol de uma resposta afirmativa.
3.1 A FIANÇA BANCÁRIA COMO HIPÓTESE DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE
DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
Desde logo, temos a pressa em asseverar que apesar da Primeira Seção do
STJ – em precedente ornado com as vestes de paradigmático para os fins do artigo
543-C do CPC – firmar posicionamento no sentido de que a fiança bancária não é
equiparável ao depósito integral do débito para fins de suspensão da exigibilidade do
crédito tributário100, nada obstante, sob o regime atual, o debate sobre a suspensão
em foco101.
Embora o entendimento não seja mais o mesmo, há de se enunciar com
destaque que este mesmo STJ, já se posicionou com vistas a flexibilizar a
interpretação do artigo 151 do CTN.102
Não é diferente o que se passa com a interpretação do artigo 9º da LEF
combinado com o artigo 206 do CTN103. Segundo Diogo de Araújo Lima (LIMA,
2013), tal interpretação leva ao reconhecimento de mais uma causa de suspensão
da exigibilidade do crédito tributário.
100
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.156.668/DF.
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, da Primeira Seção. Data da
Publicação: 10/12/2010.
101
Veremos adiante que há, em trâmite perante a Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei
Complementar (PLP) nº 142/2007, que autoriza o contribuinte a usar fiança bancária em cobranças
fiscais visando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
102 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 730.655-RS. Relator: Ministro
Francisco Falcão, da Primeira Turma. Data da Publicação: 06/03/2005.
103 “Art. 206. Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência
de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou
cuja exigibilidade esteja suspensa”.
178
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Neste sentido, afirma Camila Campos Vergueiro que nas hipóteses do artigo
9º da LEF, também haveria se cogitar em sobrestamento da exigibilidade do crédito
fiscal:
Entendemos, ainda, que no artigo 9º da Lei Federal nº 6.830/1980 estão
contidas outras hipóteses de interferência na exigibilidade da obrigação
tributária, tendo em vista que a previsão do art. 206 do Código Tributário
Nacional equipara à causa suspensiva do artigo 151 a hipótese em que a
obrigação tributária já está garantida por meio da penhora nos autos de uma
ação de cobrança, ou seja, quando já foi proposta a Execução Fiscal
(VERGUEIRO, 2009, p. 165).
Tais alegações poderiam, visivelmente, encontrar resistência nos ditames da
Súmula nº 112 do STJ, segundo o qual “O depósito somente suspende a
exigibilidade do crédito se for integral e em dinheiro”.
Porém, no escopo de fomentar seu posicionamento, Diogo de Araújo Lima
endossa que a restrição imposta pelo retro aludido Súmula desconsidera por
completo o fato extremamente pertinente de que o próprio artigo 15, inciso I, da LEF,
confere à fiança bancária o mesmo status do depósito em dinheiro, para efeitos de
substituição da penhora, o qual vem sendo entendido como causa hábil a ensejar a
suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Esclarecedoras, nesse ponto, as palavras do mencionado autor:
No entanto, a par de não ter caráter vinculante e não ser considerada fonte
do direito, verifica-se que a aludido Súmula, ao restringir a hipótese de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário apenas aos depósitos
realizados em dinheiro, acabou por malferir normas e princípios basilares do
ordenamento jurídico.
Isso porque, pela simples dicção do inciso II do artigo 151 do Código
Tributário Nacional, observa-se não haver qualquer exigência nesse
sentido, vale dizer, estabelecendo que o depósito do montante integral do
crédito tributário deva ser realizado única e exclusivamente em dinheiro, o
que certamente constaria da norma, caso o legislador efetivamente assim
pretendesse.
[...]
Nesse diapasão, se a lei utilizou o termo “depósito do montante integral”, de
forma inegavelmente ampla e genérica, não cabe ao intérprete reduzir a sua
acepção tão-só para os casos de depósito em dinheiro, pois essa, sem
sombra de dúvidas, não é a única forma de garantir o adimplemento de uma
obrigação.
[...]
Assim, se é certo que a fiança bancária supre essa exigência de natureza
assecuratória, eis que se trata de uma garantia de cunho fidejussório, que,
179
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
conforme visto, é o real sentido atribuído ao termo depósito a que alude o
artigo 151, inciso II do Código Tributário Nacional, razão não há para não
aceitá-la como instrumento apto a suspender a exigibilidade do crédito
tributário.
Pensar de modo diverso, como procedido pelo Superior Tribunal de Justiça,
significa estabelecer exigência a descoberto da lei, em evidente afronta ao
Princípio da Legalidade, insculpido nos artigos 5°, inciso II, e 150, inciso I,
ambos da Constituição Federal e no artigo 97 do Código Tributário Nacional
(LIMA, 2003).
A despeito quanto à desnecessidade de efetuar o depósito em dinheiro para
que o sujeito passivo disponha do sobrestamento da exigibilidade do crédito exigido,
Roque Antônio Carrazza, na verdade, já havia se pronunciado. Implicante, o autor
denomina a fiança bancária como uma modalidade de “depósito”. Vejamos alguns
trechos de sua obra:
Este rol não é taxativo. [...]
Nem a Lei de Execuções Fiscais, nem o Código Tributário Nacional exigem,
explicitamente, que o depósito seja realizado em dinheiro, para que se
suspensa a exigibilidade do crédito tributário.
[...]
Assim sendo, qualquer bem apto a garantir a execução, em penhora,
serve também, para caucionar o juízo, e suspender a exigibilidade do
crédito tributário.
[...]
Melhor explicando, se, em execução fiscal, a fiança bancária e os títulos da
dívida pública e de crédito são hábeis a garanti-la, porque não seriam (até
porque a lei nada dispõe, a respeito) no depósito para inibir
temporariamente a exigibilidade do crédito, enquanto se discute sua
legitimidade?
[...]
Se partirmos do falso pressuposto de que o depósito a que aludem os arts.
151, II, do CTN e 38 da Lei das Execuções Fiscais, só pode ser em
dinheiro, estaria, ad absurdum, mais protegido o contribuinte inadimplente,
que, permanecendo omisso, só no curso da execução fiscal, dispusesse a
contender contra o Poder Público, demonstrando a improcedência da
pretensão fazendária.
[...]
Não devemos extrair dos arts. 151, II, do CTN e 38 da Lei de Execuções
Fiscais, mais do que eles significam.
[...]
Temos, pois, que os depósitos efetuados por meio de títulos da dívida
pública, os relativos à dívida agrária, a fiança bancária e assim avante,
tanto quanto o depósito em dinheiro, suspendem a exigibilidade do
crédito tributário (grifo nosso) (CARRAZZA, 1992, p. 54-55).
A par do mencionado recurso decidido na forma do artigo 543-C do CPC, e,
portanto, vocacionado para ter sua inteligência aplicada nos casos repetitivos
180
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
subsequentes (Recurso Especial nº 1.156.668/DF, Relator Ministro Luiz Fux, da
Primeira Seção, Publicado em 10/12/2010), convém citar o voto condutor do
Desembargador Miguel Ângelo Barros, da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, relator dos autos de Apelação Cível nº 2005.001.18100
(Processo nº 0055763-13.2012.8.19.0001), de inegável pertinência na interpretação
conjunta do artigo 151, inciso II, do CTN, com o artigo 15, inciso I, da LEF:
O Juiz de 1º grau julgou improcedente a ação ao argumento de que não
cabe nem a suspensão da exigibilidade do crédito nem a expedição de
certidão positiva com efeito de negativa porque o artigo 151, II, do Código
Tributário Nacional estabelece como condição sine qua non o depósito
integral do crédito, o que não é satisfeito com a apresentação de carta de
fiança bancária.
Acontece que essa posição é excessivamente rígida e incompatível com o
avanço do Direito, que não pode ser engessado por uma interpretação
literal não condizente com os avanços do progresso humano!
O artigo 169 do CPC, por exemplo, exige que atos e termos do processo
sejam datilografados ou escritos com tinta escura e indelével mas em 1975
não existiam computadores, nem e-mail, nem internet, nem leitores óticos,
nem fax, nem vídeo-conferência, nem muita coisa que surgiu depois da
edição do dito Código e que os Tribunais foram adotando aos poucos,
forçando o posterior reconhecimento legal desses meios, como já
aconteceu com a remessa de petições e recursos por fax e e-mail, etc.
Da mesma forma o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que ‘é vedado
usar abreviaturas’, o que não impede que petições, despachos, sentenças e
Acórdãos de todos os Tribunais usem correntemente abreviaturas como
CPC, CTN, CLT, STF, STJ, etc, etc.
Não se prega o descumprimento puro e simples de leis antigas (veja-se o
exemplo do Código Comercial, ainda do Império), mas apenas a
modernização das regras com o emprego dos meios hoje existentes e que
na época da edição da Lei eram simplesmente inconcebíveis!
É rigorosamente o caso da fiança bancária!
Na época da edição do CTN era absolutamente inimaginável que um banco
desse fiança a quem quer que seja, mas hoje, mediante o preenchimento de
certas condições, isso é um ato perfeitamente normal e legítimo que os
bancos praticam, logicamente mediante a devida remuneração por parte do
afiançado.
Note-se que o próprio Estado apelado já reconheceu essa modernização na
sua legislação ordinária (tanto que admite a carta de fiança bancária como
garantia de instância nos casos de recurso administrativo, como ocorreu no
caso vertente).
Assim, não vê a Câmara nenhum absurdo em tomar a fiança bancária como
equivalente ao depósito integral a que se refere o inciso II do artigo 151 do
CTN como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário
enquanto se discute em Juízo a validade dele! (RIO DE JANEIRO, Tribunal
de Justiça. Apelação Cível nº 200500118100. Relator: Desembargador
Miguel Ângelo Barros. Data da Publicação: 20/09/2005)
181
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A essa luz, o que mais importa é que o STJ, atualmente, estabelece paridade
entre o depósito em dinheiro e a fiança bancária, observando-se que em ambas as
hipóteses, a garantia é efetuada quanto ao débito fiscal do contribuinte. Tal
entendimento fornece, segundo parte da doutrina, um valioso subsídio para a tese
favorável à suspensão da exigibilidade do crédito tributário em caso de fiança
bancária, utilizada por uma aplicação analógica do artigo 151, II, do CTN (depósito
em dinheiro), na qual trataremos em seguida.
Por último, diante do descompasso interpretativo entre o Código Tributário
Nacional e a Lei de Execução Fiscal e, quem sabe, de uma mudança auspiciosa nos
futuros julgados de todo o país, abordaremos o Projeto de Lei Complementar nº 142,
de 13 de novembro de 2007, de autoria do Deputado Federal Sr. Eduardo da Fonte,
que propõe incluir a fiança bancária como causa de suspensão da exigibilidade do
crédito tributário, acrescentando o inciso VII ao artigo 151 do CTN.
3.1.1 Interpretação extensiva e aplicação analógica: níveis diferentes
Tendo o objetivo de percorrer o direito como um todo, cumpre-nos não só
enunciar a teoria, mas encontrar sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira.
Preliminarmente, tratando-se de suspensão da exigibilidade do crédito
tributário, a opinião doutrinária nos esclarece que não há interpretação extensiva, e
sim aplicação analógica de certo preceito, à vista da norma do artigo 151, II, do
CTN.
Referindo-se à interpretação extensiva, Carlos Maximiliano assim se
pronuncia:
Admitia-se outrota duas espécies de exegese ampla, a extensiva por força
de compreensão e indução, e a extensiva por analogia. Hoje o processo
analógico nem se enquadra na Hermenêutica; não constitui um modo de
interpretar, e sim, de aplicar o Direito (MAXIMILIANO, 1941, p. 245).
Verificamos que a interpretação extensiva e a aplicação analógica são
procedimentos que se desenvolvem em níveis diferentes. O recurso à analogia se
situa no plano da aplicação do Direito.
182
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Sobre a diferenciação entre os citados procedimentos, frisam Eduardo
Espinola e Eduardo Espinola Filho:
[...] a distinção é fácil: tratando-se de interpretação extensiva, a lei é
ampliada para alcançar um caso francamente compreendido no seu
espírito, se bem que não pareça compreendê-lo a fórmula imperfeita; a
analogia, ao invés, chama um preceito a regular situação, que não tem
disciplina própria na ordem jurídica positiva; leva a aplicar a norma,
reguladora de caso semelhante, a outro, que não está compreendido na
regulamentação de tal norma (SANTOS, 1947, p. 205).
De maneira mais didática, entende-se por interpretação analógica o processo
de averiguação do sentido da norma jurídica, valendo-se de elementos fornecidos
pela própria lei, por meio de método de semelhança. De outro modo, a interpretação
extensiva é o processo de extração do autêntico significado da norma, ampliando-se
o alcance das palavras legais, a fim de se atender a real finalidade do texto.
Sobre a suspensão de que estamos cuidando, o emprego da analogia é
considerado legítimo na hipótese de prestação de fiança bancária. É que a garantia
fidejussória igualmente torna viável a satisfação da Fazenda Pública. Surge, neste
sentido, a rica doutrina de Nelson Monteiro Neto, verbo ad verbum:
A norma do art. 151, nº II, do Código Tributário Nacional (suspensão da
exigibilidade do crédito tributário em caso de fiança bancária) não abrange o
acontecimento consistente na fiança bancária. Portanto, em tal hipótese,
não é viável a interpretação extensiva.
A fiança bancária, entretanto, é acontecimento muito semelhante ao fato
contido no art. 151, nº II, do Código (depósito em dinheiro), o que dá
margem à aplicação analógica do mencionado dispositivo.
Nesse contexto, são importantes as opiniões doutrinárias e as construções
jurisprudenciais, diante de uma lacuna do ordenamento, no sentido da
aplicação analógica de determinada norma positiva. Repare-se que as
pessoas conhecem razoavelmente bem, já agora, este meio, bastante
eficaz, tal como o depósito em dinheiro, apropriado para garantir os créditos
da Fazenda, o da prestação de fiança bancária, que, segundo a doutrina e a
jurisprudência, se equipara à hipótese de que trata o art. 151, nº II, do CTN
(NETO, 2011, p. 81).
Transportando o entendimento de que somente a lei pode dispor sobre a
suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 97, VI, do CTN) e do princípio
183
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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de que se deve interpretar literalmente a legislação tributária que dispõe sobre a
suspensão do crédito fiscal (artigo 111, I, do CTN), registra o ilustríssimo autor:
No que tange ao art. 97, nº VI, do Código Tributário Nacional, consoante o
qual somente a lei pode dispor sobre suspensão da exigibilidade do crédito
tributário, deve entender-se que essa regra busca evidenciar que não pode
o Executivo fixar normal a respeito de tal ponto, o que, entretanto, não
constitui obstáculo ao desenvolvimento jurisprudencial do Direito, em virtude
das mutações da realidade (é regra da experiência que, hoje em dia, a
fiança bancária produz o mesmo resultado do depósito em dinheiro, ou seja,
constitui meio igualmente eficaz, e, além disso, menos gravoso com relação
ao contribuinte).
Quanto à regra do art. 111, nº I, do Código Tributário Nacional, que diz
respeito à interpretação literal das disposições atinentes à suspensão da
exigibilidade do crédito tributário, esta claro que aqui não pretendemos
afirmar que na hipótese art. 151, nº II (depósito em dinheiro), compreendese a possibilidade de fiança bancária. O que procuramos sustentar é que,
apesar de não ter espaço, no caso, para a interpretação extensiva, revelase admissível, isto sim, a aplicação analógica do dispositivo há pouco
aludido, de maneira que a fiança bancária, em face da analogia de
situações, traz como consequência a suspensão de que se cuida (NETO,
2011, p. 82).
Nestes ditames, vimos o entendimento (por parcela da doutrina e de tribunais
pátrios) de que a fiança bancária, tal como o depósito em dinheiro, autoriza a
suspensão da exigibilidade do crédito tributário, utilizando-se, pois, o processo de
aplicação analógica do artigo 151, II, do CTN. Hostil, Daniel Zanetti Marques
Carneiro (CARNEIRO, 2006) não considera possível a tratada suspensão em caso
de fiança bancária, por falta de norma legal expressa.
Buscando pôr um basta neste argumento, é que o empresário e Deputado
Federal Sr. Eduardo da Fonte, elaborou o Projeto de Lei Complementar nº 142/2007,
cuja justificativa beiramos a seguir.
3.1.2 O Projeto de Lei Complementar nº 142/2007: a eventual mudança de um
paradigma
Tramita perante a Câmara dos Deputados, sob o regime de prioridade, o
Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 142, de 13 de novembro de 2007, de autoria
do Deputado Federal Sr. Eduardo da Fonte (PP/PE), que propõe incluir a fiança
184
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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bancária como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário,
acrescentando o inciso VII ao artigo 151 do CTN.
Apensado ao PLP nº 75, de 31 de julho de 2003, cuja proposição está sujeita
à apreciação do Plenário, o autor daquela proposta relata a postura “irracional e
injusta” da autoridade fiscal quando retarda o ajuizamento da execução fiscal,
obstando a regularidade do sujeito passivo perante o cadastro de contribuintes de
seu Estado e, consequentemente, a obtenção de Certidão Positiva de Débitos com
Efeitos de Negativa (CPD-EN), bem como da atuação do Judiciário que, na
generalidade dos casos, só concede a requerida suspensão quando o sujeito
passivo efetua o depósito judicial do montante integral do crédito fiscal.
Seja como for, quer se considere louvável, tolerável ou reprovável o teor do
PLP nº 142/2007, transcrevemos sua justificativa abaixo:
Ao relacionar as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário,
o art. 151 do Código Tributário Nacional nelas não inclui a fiança bancária.
Por esse motivo, o sujeito passivo da obrigação tributária que não concorde
com a exigência fiscal, e que tenha perdido o prazo para entrar com
recursos administrativos ou não tenha obtido êxito com a utilização desses
recursos, passa a constar dos cadastros fiscais como inadimplente. O
sujeito passivo poderá tentar obter uma liminar judicial ou tutela antecipada
para suspender a exigibilidade do crédito enquanto discute sua legalidade;
todavia, na generalidade dos casos, o juiz não a concede sem o depósito do
montante integral do crédito.
Por outro lado, a Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, que “dispõe
sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública”, admite que o
executado ofereça fiança bancária em garantia da execução (art. 7º, II e art.
9º, II).
Portanto, ocorrendo a execução fiscal, o contribuinte pode valer-se da
fiança bancária, que garante a execução, como alternativa para o depósito
integral do crédito tributário reclamado pelo Fisco.
Há, assim, um descompasso entre o Código Tributário Nacional e a Lei de
Execução Fiscal, em prejuízo do sujeito passivo da obrigação tributária.
O sujeito passivo, que não concorda com o débito que lhe está sendo
exigido, e que não consiga a medida liminar na justiça, é obrigado a fazer o
depósito do montante integral ou aguardar a execução fiscal para poder
ofertar fiança bancária; enquanto está nessa situação o sujeito passivo não
consegue obter a “certidão positiva com efeitos de certidão negativa”, o que
dificulta suas atividades empresariais.
Sabe-se que a Fazenda Pública retarda o início da execução fiscal, para
constranger o contribuinte, que fica impossibilitado de obter a certidão
negativa.
O projeto de lei ora apresentado tem a finalidade de alterar essa situação
irracional e injusta, admitindo que o próprio sujeito passivo possa tomar a
iniciativa de oferecer a fiança bancária, independentemente de a Fazenda
Pública ter iniciado a execução.
A alteração do Código Tributário Nacional mediante lei complementar é
pacificamente aceita pela doutrina e jurisprudência.
185
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Pelas razões expostas, a proposição ora apresentada, que aperfeiçoa a
legislação tributária, merece os votos favoráveis dos membros do
Congresso Nacional.
Destaca-se a importância do monitoramento contínuo do comportamento do
Poder Judiciário frente a esta garantia, de maneira a promover sua adequação à
legislação e à jurisprudência, resguardando assim a sua efetividade.
Portanto, tem-se que, com a modificação da legislação pertinente ao tema em
apreço, há de se esperar uma superação da jurisprudência nacional, em virtude de
uma eventual nova redação dada ao explorado artigo 151 do CTN.
Diante dos fatos aqui transcritos, embora constatada a existência de
posicionamento divergente, pode-se concluir que o processo da inclusão da fiança
bancária como hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário terá,
caso seja aprovado o PLP em epígrafe, assento infraconstitucional e constitucional,
afinal seu uso tem se mostrado eficaz como forma de otimizar a arrecadação
tributária quando apresentada em garantia aos executivos fiscais.
4 O SEGURO GARANTIA E SUA RECEPTIVIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO
O presente capítulo pretende examinar outro tipo de garantia que vem sendo
apresentada pelos contribuintes nas disputas judiciais, visando alternar as
tradicionais cauções e/ou depósitos a serem efetuados em juízo.
Disponibilizado pelo mercado segurador em 2003, através da Circular nº 232
da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), que regulamentou as várias
modalidades de seguro garantia e dispôs sobre as condições gerais e especiais que
devem constar da apólice, o chamado seguro garantia judicial é uma proteção do
devedor (pessoa física ou jurídica) que tem débito reconhecido em processo
tramitando no Poder Judiciário (MELO, 2011, p. 104).
Distintamente do seguro tradicional, o contrato de seguro garantia envolve
três partes, as quais são denominadas de tomador, seguro e segurador.
Introduzido na processualística brasileira por meio da Lei nº 11.382/2006, que
acrescentou o parágrafo 2º ao artigo 656 do CPC, este representa garantia análoga
186
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
à fiança bancária, a qual pode ser oferecida em substituição à penhora
independentemente da concordância da Fazenda Pública.104
Ousamos esclarecer que o legislador, ao utilizar a expressão “pode” transcrita
no dispositivo supra, na realidade, não deixou ao alvedrio do magistrado autorizar ou
não a substituição da penhora por seguro garantia; isto porque, a possibilidade a
que aduz o texto daquele artigo de lei é endereçada ao executado, e não ao juiz,
que, ademais, na qualidade de agente público, não tem a possibilidade, mas, sim, o
dever de praticar os atos judiciais, uma vez presentes os pressupostos legais (DA
GRAÇA E COSTA, 2009).
Receptiva quanto à dinamicidade dos negócios jurídicos financeiros, a PGFN,
assim como ocorreu com o instituto da fiança bancária, regulamentou o oferecimento
e a aceitação do seguro garantia como caução em executivos fiscais com a
publicação da Portaria PGFN nº 164, de 27 de fevereiro de 2014,105 revogando a
então vigente Portaria PGFN nº 1.153, de 18 de agosto de 2009, que já
regulamentava sua aceitação para débitos inscritos em Dívida Ativa da União
(DAU).106
Importa também pontuar que no cenário do nosso ordenamento jurídico
pairava, até pouquíssimo tempo, uma flagrante insegurança jurídica quanto à
modalidade do seguro garantia como forma de caução à execução fiscal, eis que os
tribunais pátrios, capitaneados pelo STJ, divergiam demasiadamente ao proferir
seus julgados.107
104
Cf. TRF4, AC 5017628-76.2012.404.7200, 1ª Turma, Des. Rel. Jorge Antonio Maurique, DJe
28/08/2013; TRF4 5010161-15.2012.404.000, 1ª Turma, Des. Rel. Luiz Carlos Canalli, DJe
04/10/2012; e SECO, 2014.
105 Realçamos aqui, a revogação da obrigação do acréscimo de 30% (trinta por cento) sobre o valor
do débito constante do artigo 656, parágrafo 2º, do CPC e também previsto na antiga Portaria PFGN
nº 1.153/2009.
106 Antes mesmo da edição da Portaria PGFN nº 164/2014, os contribuintes vinham questionando
perante o Judiciário o acréscimo de 30% na apólice de seguro garantia judicial nas ações de
execução fiscal. Luis Augusto da Silva Gomes já se pronunciara que tal exigência era indevida, pois o
artigo 656, parágrafo 2º, do CPC, está direcionado às dívidas cíveis (e não tributárias). O autor ainda
enfatiza que, na cobrança judicial de tributos federais mediante processo executivo fiscal, o referido
montante já estaria incluso na inscrição do débito em dívida ativa (CDA). De acordo com o DecretoLei nº 1.025/1969, na CDA já estão inclusos tanto os valores relativos aos encargos legais da
execução fiscal quanto os honorários advocatícios da União Federal (GOMES, 2013).
107 Listamos, por amostragem, decisões de Tribunais (estaduais e federais) no sentido de autorizar a
apresentação de seguro garantia: TJSP, AI 030095-57.2011.8.26.0000, Rel. Des. Wanderley José
Federighi, 12ª Câmara de Direito Público, DJe 28/04/2012; TJMG, AI 1.0287.04.016789-5/001, Rel.
Des. Brandão Teixeira, 2ª Câmara Cível, DJe 08/11/2005; TRF2, AI 2006.02.01.007862-7, Des(a).
Rel(a). Federal Tania Heine, 24ª Câmara Cível, DJe 28/08/2006; TRF4, AC 5003680-
187
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n° 1.394.408/SP
ganhou notoriedade na comunidade jurídica por ter dado a entender que o STJ
“decretou a morte” do seguro garantia na modalidade judicial como forma de caução
nas execuções fiscais, simplesmente pela ausência de expressa e taxativa previsão
na LEF.108
Por óbvio, não foi um precedente favorável aos contribuintes. Ademais, podese dizer que, nas palavras de Clarissa Cerqueira Viana Pereira (PEREIRA, 2014),
“tal entendimento jurisprudencial contraria também a aceitação do próprio credor
(União) representado pela PGFN que já regulamentou a possibilidade da garantia
por duas vezes”.
Contudo, o respeitável entendimento (notadamente excessivo ao formalismo
e à letra fria da lei) restou superado conforme manifesto no tópico a seguir.
4.1 A LEI Nº 13.043/2014: A VITÓRIA DOS CONTRIBUINTES FRENTE À NOVEL
GARANTIA
Fruto da conversão da Medida Provisória nº 651/2014, a Lei nº 13.043, de 13
de novembro de 2014, que introduziu uma série de medidas de incentivo à economia
e à indústria, incluiu uma norma que altera a LEF para permitir o uso do seguro
garantia como forma de caução às execuções fiscais. Vejamos:
Art. 73. A Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980, passa a vigorar com
as seguintes alterações:
“Art. 7o
................................................................................................................
............................................................................................
II - penhora, se não for paga a dívida, nem garantida a execução, por
meio de depósito, fiança ou seguro garantia;
............................................................................................” (NR)
“Art. 9o
................................................................................................................
............................................................................................
II - oferecer fiança bancária ou seguro garantia;
......................................................................................................
65.2014.404.0000, 3ª Turma, Des. Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJe 10/04/2014;
TRF1, AI 0007616-41.2012.401.0000, Des. Rel. Federal Reynaldo Fonseca, 7ª Turma, e-DJF1
05/04/2013.
108 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.394.408-SP.
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, da Primeira Turma. Data da Publicação: 05/11/2013.
188
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
§ 2o Juntar-se-á aos autos a prova do depósito, da fiança bancária,
do seguro garantia ou da penhora dos bens do executado ou de
terceiros.
§ 3o A garantia da execução, por meio de depósito em dinheiro,
fiança bancária ou seguro garantia, produz os mesmos efeitos da
penhora.
............................................................................................” (NR)
“Art. 15.
.............................................................................................................
.............. .............. .............. .............. .............. ..............
I - ao executado, a substituição da penhora por depósito em dinheiro,
fiança bancária ou seguro garantia; e
............................................................................................” (NR)
“Art. 16.
......................................................................................................
......................................................................................................
II - da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia;
............................................................................................” (NR) (grifo
nosso)
Observa-se a inteligência da Lei nº 13.043/2014, que em seu artigo 73 alterou
diversos dispositivos da LEF, equiparando as apólices de seguro garantia às fianças
bancárias no âmbito das execuções fiscais para cobrança das dívidas ativas da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Nesse sentido, suas alterações são especialmente relevantes, pois:
(i)
Incluem o seguro garantia no rol de garantias expressamente admitidas pela
LEF e, portanto, passíveis de evitar a penhora, quando tempestivamente
oferecidas;
(ii)
Esclarecem que o seguro garantia produz os mesmos efeitos da penhora,
assim como o depósito judicial e a fiança bancaria; e
(iii)
Permitem que o contribuinte executado substitua a penhora sofrida por
seguro garantia em qualquer fase do processo, assim como ocorre hoje com
o depósito judicial e a fiança bancária.
A publicação da lei foi festejada não só pelo mercado de seguros, mas
também pelos próprios contribuintes. O custo para a contratação do seguro garantia
judicial é menor e mais vantajoso do que a contratação de carta de fiança bancária.
Isso porque, entre outras vantagens, não afeta a linha de crédito bancário e também
não grava o balanço patrimonial das empresas.
189
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Outro importante aspecto sobre os benefícios da utilização do seguro garantia
judicial reside no fato de que na fiança bancária o banco assume sozinho o
pagamento da quantia em juízo no caso de inadimplemento, enquanto no mercado
securitário há mecanismos de pulverização do risco, significando, como explora
Alexandre Wider (WIDER, 2014), “maior segurança da operação se equiparada à
fiança bancária”.
Em decorrência da situação acima exposta, temos que o oferecimento do
seguro garantia judicial ostenta, sem dúvidas, o poder de garantir o débito
exequendo em equiparação à fiança bancária em razão do seu altíssimo grau de
liquidez e certeza.
Urge ressaltar que, em decisão publicada recentemente, o STJ admitiu, pela
primeira vez, o uso de seguro garantia em executivo fiscal. Como se não bastasse,
ainda, reconheceu a aplicabilidade imediata da Lei nº 13.043/2014, sob a premissa
de que a norma em questão teria cunho processual, sendo possível o seu emprego
instantâneo nas execuções fiscais ainda em curso.109
Nessas circunstâncias, pergunta-se: o contribuinte mediante oferta de apólice
de seguro garantia tem razão quanto ao pedido de querer suspender a exigibilidade
do crédito exigido?
4.2
O
SEGURO
GARANTIA
COMO
HIPÓTESE
DE
SUSPENSÃO
DA
EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
Se é certo que quando o CTN, em seu artigo 151, tratou de forma exaustiva
(numerus clausus) a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, também é
enigmático que, prestes a festejar suas “bodas de ouro”, precedentes judiciais vêm
admitindo o esmiuçado sobrestamento mediante apresentação de apólice de seguro
garantia judicial.
Se, no primeiro momento, a massa do Poder Judiciário se mostrou resistente
a atender ao pedido acima questionado, logo passou, ainda que não majoritário, a
se mostrar sensível ao problema dos contribuintes sujeitos ao pagamento de
tributos.
109
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.508.171-SP. Relator: Ministro
Herman Benjamin, da Segunda Turma. Data da Publicação: 06/04/2015.
190
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Primeira Região,
Maria do Carmo Cardoso, recentemente cotada para assumir a vaga de ministra no
STJ, é a principal personagem responsável em admitir a suspensão de que se
trata.110
Nos autos de Agravo de Instrumento nº 31474-67.2013.4.01.0000/PA,
decidiu-se, nessa oportunidade, que a suspensão da exigibilidade do crédito
tributário é admissível na hipótese de seguro garantia judicial, uma vez que este
representa garantia análoga à fiança bancária, reconhecida a suficiência e
idoneidade do seguro contratado. Vejamos os principais trechos da decisão em
comento:
Ao contrário, a controvérsia reside tão somente na possibilidade de
recebimento de caução real, a qual consiste em volume de óleo diesel
compatível com o valor do débito, ou de apólice de seguro-garantia, com
o objetivo de assegurar a suspensão da exigibilidade do tributo em
questão e de possibilitar a expedição de certidão de regularidade fiscal.
Em razão da similitude com a carta de fiança bancária, tenho entendido pela
possibilidade de se receber como caução apólice de seguro-garantia
apresentada pela parte interessada, desde que a seguradora seja idônea e
que o valor contratado seja suficiente para a cobertura do débito.
Entendo que admitir em garantia o oferecimento de apólice segurogarantia é medida plenamente possível, porquanto incluída no poder
geral de cautela, e por configurar meio de garantia menos gravoso
enquanto em discussão o direito que se pretende ver reconhecido
(aplicação analógica do art. 620 do CPC). Este preceito não trata de
mera faculdade judicial, mas de disposição cogente, segundo a qual o
magistrado deverá buscar, dentro das diversas possibilidades
existentes, a menos onerosa para o devedor.
Vale notar que a apólice de seguro-garantia assemelha-se à carta de
fiança e situa-se em segundo lugar na ordem estabelecida no art. 9º da
Lei 6.830/1980. Assim como a carta de fiança bancária, constitui garantia
de obrigação de imediata liquidez, contratada pelo cliente da instituição
financeira para com terceiros, em que a instituição financeira é a fiadora, o
cliente da instituição é o afiançado e o terceiro é o favorecido ou
beneficiário.
A jurisprudência deste Tribunal está em sintonia com esse entendimento,
especialmente quando conclui que, sendo o valor da apólice segurogarantia suficiente para garantir a execução, com prazo de três anos de
vigência, podendo ser renovado com simples comunicação junto à
Seguradora, possível, portanto, a sua utilização para assegurar o débito
110
Diversos outros juízos colegiados flexibilizaram o artigo 151 do CTN, com relação ao objeto em
estudo – suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio de seguro garantia judicial. Confirase a narrativa dos seguintes julgados: TJSP, AI nº 2013106-10.2014.8.26.0000, Des(a). Rel(a). Maria
Laura Tavares, 5ª Câmara de Direito Público, DJe 28/04/2014; TRF2, AI nº 2006.02.01.009188-7,
Rel(a). Juíza Tania Heine, Terceira Turma Especializada, DJe 01/03/2007; e TRF2, AI nº
2006.02.01.005801-0, Rel(a). Juíza Tania Heine, Terceira Turma Especializada, DJe 02/03/2007.
191
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
(TRF1ª, AGA 0015774-27.2008.4.01.0000/PA, acórdão da minha relatoria,
Oitava Turma, e-DJF1 de 5/12/2008 p.393).
[...]
Ante o exposto, com fulcro no art. 527, III, e 558, do CPC e do art. 29, XXIII,
do RITRF 1ª Região, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, para
determinar a suspensão da exigibilidade do débito tributário em
discussão no processo do qual deriva este recurso (art. 151, II, do
CTN), mediante a contratação e a apresentação, no juízo a quo, de
apólice de seguro-garantia no valor do débito principal questionado,
devidamente atualizado, acrescido de 30% (trinta por cento).111 (grifo
nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de
Instrumento nº 31474-67.2013.4.01.0000/PA. Relator(a): Desembargador(a)
Federal Maria do Carmo Cardoso, da Oitava Turma. Data da Publicação:
26/06/2013).
Necessário frisar que, da leitura da decisão acima, a desembargadora federal
enfrentou a possibilidade requerida pelo contribuinte por meio de seu poder geral de
cautela (artigo 798 do CPC) e por uma interpretação analógica da disciplina do
artigo 620 do CPC, que diz respeito quanto à efetivação do princípio da execução na
forma menos gravosa ao executado.
Em prol de uma interpretação conveniente (leia-se, benigna ao contribuinte),
“Recomenda-se, quando cabível, a aplicação analógica do CTN, inclusive quanto à
suspensão da exigibilidade do crédito”.112
Não foi outra em sua essência a conclusão a que chegou quanto à
possibilidade do seguro garantia oferecido substituir os depósitos judiciais
realizados, de modo a manter a suspensão da exigibilidade do tributo objeto de
discussão judicial.113
Não bastasse, a rigor, outros argumentos são invocados em prol da
concessão do pleito tal qual levado a juízo. Transcrevemos abaixo o voto do
Desembargador Magalhães Coelho, publicado em recentíssimo acórdão pela 7ª
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo
de Instrumento nº 2218601-51.2014.8.26.0000:
111
BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento nº 3147467.2013.4.01.0000/PA, da Oitava Turma. Agravante: Petróleo Brasileiro S/A – PETROBRAS.
Agravado: Fazenda Nacional. Relator(a): Desembargador(a) Federal Maria do Carmo Cardoso.
Brasília, DF. Publicado em 26 jun. 2013. Disponível em: <www.trf1.jus.br>. Acesso em: 15 jan. 2015.
112 Palavras externadas da Desembargadora Federal Nizete Lobato Carmo, da Sexta Turma
Especializada do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, na decisão publicada em 19/02/2014
nos autos de Agravo de Instrumento nº 201202010155520.
113 BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento nº 007644307.2012.4.01.0000/DF. Relator(a): Desembargador(a) Federal Maria do Carmo Cardoso, da Oitava
Turma. Data da Publicação: 17/05/2013.
192
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Com o intuito de suspender a exigibilidade do crédito tributário, a agravante
apresentou seguro garantia judicial, que não foi aceito pela agravada.
Entretanto, não há motivo para a agravada se opor ao oferecimento do
seguro garantia judicial, já que foi ele incluído pela Lei nº 13.043/14 no
rol de garantias previstas no artigo 9º da Lei nº 6.830/80:
[...]
Referida Lei agora prevê expressamente o seguro garantia como
garantia idônea, sendo equiparado à caução em dinheiro nos
processos de execução fiscal, não havendo motivo para se manter a
decisão agravada.
Ademais, não deve prosperar o argumento da agravada de que o prazo de
validade da garantia impediria sua aceitação, pois, além de possível a
renovação da apólice, tem a Fazenda do Estado direito à substituição da
garantia em qualquer fase do processo.
Daí o porquê, dá-se provimento ao agravo para conceder a liminar,
sustando a exigibilidade do crédito tributário. (grifo nosso) (SÃO
PAULO, Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 221860151.2014.8.26.0000, Relator: Desembargador Magalhães Coelho, da Sétima
Câmara de Direito Público. Data da Publicação: 05/03/2015)
Portanto, antes que se diga que apenas o interesse fazendário se faz
resguardado pela negativa da suspensão requerida pelo contribuinte que não opta
em depositar o montante exigido, mister se fez mencionar as razões exernadas no
acórdão acima, pois, este, corroborou o entender da Lei nº 13.043/2014 (abordada
no tópico anterior), ostentado, aqui, sua equiparação à caução em dinheiro.
Todavia, reconhecemos que, atualmente, cuida-se de um posicionamento
nitidamente minoritário frente aos incontáveis julgados motivados em todo o país.
Ademais, apesar de soar como um bom raciocínio os fundamentos dos
precedentes acima transcritos para aqueles que não pretendem depositar valores
em juízo para suspender a exigibilidade do crédito que vier a ser discutido, deve-se
levar em conta que, hoje, é firme no âmbito do STJ, o entendimento no sentido de
que o seguro garantia judicial não é equiparável ao depósito em dinheiro para fins de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário.114
114
Cf. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.260.192/ES. Relator: Ministro
Mauro Campbell Marques, da Segunda Turma. Data da Publicação: 26/06/2012.
193
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
5 O NOVO CPC E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO: A FIANÇA
BANCÁRIA E O SEGURO GARANTIA EQUIPARADOS AO DINHEIRO (IMPACTO
NO ARTIGO 151 DO CTN?)
Apesar de uma boa qualidade técnica do Código de Processo Civil ainda em
vigor (Lei nº 5.869/1973), este vinha sendo submetido a constantes emendas. Tal
fato acabou por gerar, nos últimos tempos, um clima social de desconfiança, com
sérias repercussões sobre o sentimento de segurança jurídica em torno da
prestação jurisdicional civil entre nós.
“Era, de fato, aconselhável que fosse aplacado o verdadeiro furor renovativo
com que se comandava a onda de reformas parciais da atual lei processual civil”,
emanava em suas lições Humberto Theodoro Júnior (THEODORO JUNIOR, 2014, p.
38).
Logo, venceu a ideia da adoção de uma nova codificação no País,
materializada por meio da Lei nº 13.105/2015, cujas disposições ali expressas
adentrarão no ordenamento jurídico pátrio em 2016 (prazo de vacatio legis).
Todavia, em prol da colocação do tema deste artigo, vale, desde logo, chamar
a atenção para o fato da evolução revestida pela arquitetura deste novo CPC,
destacando aquela que consideramos, aqui, a mais relevante.
Quase desnecessário frisar, nesse passo, que não existe em nosso conjunto
de normas jurídicas um Código de Processo Tributário. O processo tributário,
conjunto de atos administrativos e judiciais ordenados para dirimir controvérsias
entre Fisco e Contribuintes, é conduzido por leis esparsas e subsidiariamente pelo
CPC.
Como resultado, várias das alterações promovidas pelo novo CPC
influenciarão diretamente, não só as ações cíveis, mas também as demandas
tributárias.
Dentre as evoluções que estão previstas no novo CPC, merece destaque o
parágrafo 2º do artigo 835.115
“§ 2o Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o
seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido
de trinta por cento.” (grifo nosso)
115
194
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A inclusão de forma expressa da fiança bancária e do seguro garantia judicial
equiparados ao dinheiro – justificativa elencada como um dos fundamentos
favoráveis aos contribuintes que clamam a suspensão do crédito tributário – poderá
vir a ser mais um argumento em favor dos contribuintes, afinal constitui verdadeiro
“ponto de encontro” à realidade do artigo 151, II, do CTN (depósito em dinheiro).
Fábio de Possídio Egashira garante: “dinheiro, fiança bancária e seguro
garantia passam a ter o mesmo status” (MACEDO, 2015).
Esclarecemos
que,
por
se
tratar
de
novíssima
legislação
e,
consequentemente, pela falta de especialistas que se adentraram, ainda, nesta
seara, modestamente não faltarão aqueles que irão defender que esta previsão legal
do novo CPC não poderá se aplicar às execuções fiscais, tendo em vista que sua
regulamentação se dá pela Lei nº 6.830/1980, bem como de que não poderá
influenciar na taxatividade do artigo 151 do CTN. Referido dispositivo legal há de ser
discutido com alguns temperamentos.
Precisamente pelo que nos interessa no momento, a fiança bancária e o
seguro garantia judicial equivalerão, após eventual execução de tal garantia, ao
dinheiro e, de fato, assim será.
Leonardo Sant’Anna Ribeiro ressalta que o novo Código “introduziu elemento
que reforça o conceito de constrição menos onerosa ao devedor, que deve ser
estendido às cobranças tributárias, devido à aplicação subsidiária do CPC aos
demais casos” (MACEDO, 2015).
Esta regra (artigo 835, parágrafo 2º, da Lei nº 13.105/2015), segundo o
advogado, “segue uma tendência já evidenciada pelas alterações trazidas pela Lei
13.043/2014, que também colocou o depósito em dinheiro, a fiança bancária e
seguro garantia no mesmo patamar, para fins de penhora”.
Por fim, diante da repercussão prática da matéria que surgirá em instantes, o
presente capítulo veio a ingressar no trabalho como pioneiro da exposição dos
“problemas” que poderão emergir, concretamente, para o contribuinte na busca da
suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento destas
garantias, razão pela qual se revela oportuno e relevante sua apresentação.
195
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe de sermos conclusivos, a questão de fundo na controvérsia ora
apresentada reside em analisar os argumentos forenses na formulação dos pedidos
de suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de
garantias em juízo, sobretudo sob a fiança bancária e o seguro garantia. Desse
confronto de compatibilidade, extraem-se similitudes que podem ser desenvolvidas a
partir dos permissivos legais aqui fixados.
Nesse contexto, visando demonstrar ânimo aos interessados e colaborando
para com a obtenção de uma resposta, não definitiva, mas ao menos satisfatória,
identificamos críticas construtivas e consistentes o suficiente para acreditar que a
discussão sobre o assunto não se encerrou. Ao menos por ora. Debater a questão é
preciso.
De modo evidente, as dificuldades relativas à admissibilidade da suspensão
examinada por meio das garantias analisadas, referem-se à limitação ou ampliação
do artigo 151 do CTN.
As regras do Código Tributário Nacional pertinentes à matéria são claras no
sentido de não haver espaço para outras condições que denotem a suspensão da
exigibilidade, ou seja, não cabe ao aplicador da lei criar outras hipóteses de atuação
do instituto da suspensão da exigibilidade do tributo, dada a sua excepcionalidade,
de modo que se deve rejeitar quaisquer interpretações para se estender a incidência
do instituto a situações semelhantes.
No mesmo sentido defende a Fazenda Pública, ainda sob o argumento de
haver uma distinção gritante entre o grau de proteção ao crédito exeqüendo
garantido por dinheiro em relação à fiança bancária ou seguro garantia judicial.
Entretanto, a aceitação desta idéia esta longe de ser unânime. Para certos
especialistas não parece correto, sob o sistema em vigor, semelhante entendimento.
Ao questionamento de qual fundamento legal ampararia o posicionamento
adotado, a nota comum dessa tendência doutrinária e jurisprudencial é apontar, com
perspicácia, dentre outros dispositivos que também foram merecedores de
comentários mais detidos neste artigo, a regra do artigo 620 do CPC, trazido ao
196
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
universo da ação de execução fiscal por meio da autorização expressa do artigo 1º
da Lei 6.830/1980.
Apesar daqueles que defendem o uso do emprego de uma interpretação
analógica do artigo 151, II, do CTN como subsídio favorável à suspensão do crédito
tributário por meio de fiança bancária, o STJ, em precedente ornado com as vestes
de paradigmático para os fins do artigo 543-C do CPC (Recurso Especial nº
1.156.668/DF), firmou posicionamento no sentido da impossibilidade de suspender a
exigibilidade do tributo, pois a fiança bancária não ostenta o poder de arcar este
efeito.
No entanto, “há uma luz no fim do túnel”. Uma nova postura lúcida no
Judiciário e no contencioso tributário poderá surgir. A quebra de um paradigma
(aqui, em seu aspecto positivo ao questionamento traçado), consolidada no âmbito
daquela Corte Superior, poderá ser assistida com a conversão em lei do PLP nº
142/2007, o qual, após o amadurecimento de ideias e concepções acerca do grau
de certeza e liquidez ao crédito tributário garantido por fiança bancária, acrescentará
no rol do artigo 151 do CTN justamente esta garantia como causa de suspensão da
exigibilidade do crédito tributário.
Noutro giro e no escopo de fomentar o debate voltado ao mérito da aludida
suspensão, o entendimento do STJ também é no sentido de ser incabível tal
pretensão mediante oferecimento de seguro garantia. Destacamos no presente
trabalho que o raciocínio apregoado comporta divergência em diversos tribunais de
segundo grau. Porém, convenhamos, até então, ser uma corrente minoritária.
Contudo, independentemente do posicionamento adotado, se a favor ou
contra ao caminho da vinculação à literalidade normativa, os estudos e as
experiências até aqui trocadas indicam que muito ainda pode ser feito no resguardo
do interesse do devedor-contribuinte, aprofundando, assim, uma reflexão relativa
entre aqueles operadores do Direito que tratam desse relevante tema na prática
forense.
Esperamos,
assim,
ter
concedido
uma
humilde,
porém,
importante
contribuição a fim de se melhorar o “padrão” dos debates acerca do questionamento
travado.
197
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
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200
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DO PODER LEGISLATIVO E O
PLEBISCITO COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO
DEMOCRÁTICO
THE CRISIS OF REPRESENTATIVENESS OF THE LEGISLATIVE POWER AN
THE PLEBISCITE AS POPULAR PARTICIPATION WAY IN THE DEMOCRATIC
PROCESS
Gustavo Boletta Vieira116
Roosevelt Arraes117
RESUMO
A partir da análise da conjuntura política-estrutural brasileira ao longo dos anos, é possível encontrar
indicativos que possibilitam a afirmação da existência de uma crise de representatividade do Poder
Legislativo. Os indicativos encontrados foram a debilidade partidária, a corrupção partidária e
carência de credibilidade política e a falta de identificação entre representantes e representados.
Esses indícios foram identificados de maneira mais nítida com as manifestações populares ocorridas
em junho de 2013, na qual a população demonstrou uma enorme insatisfação com o atual modelo
político, tornando-se uma voz política e solicitando por uma reforma do atual modelo políticorepresentativo em que a sociedade está inserida. A partir disso, foi reivindicado pela população uma
reforma política, que aparentemente não trará nenhuma mudança estrutural considerável. Sob o
contexto deste problema, o presente trabalho procurou analisar a necessidade de um maior
fortalecimento da participação popular - que sempre esteve a margem da política - no processo
democrático, a partir das formas de participação previstas em lei, especialmente através do plebiscito,
o qual é a forma mais direta de participação popular.
Palavras-chave: Crise de representatividade, manifestações populares, reforma política, participação
popular, plebiscito
ABSTRACT
From the analysis of the political-structural Brazilian conjuncture over the years, it is possible to find
indicatives that enable to affirm the existence of a representativeness crisis of the legislative power.
The found indicatives were partisan weakness, partisan corruption and the lack of political credibility,
and the absence of identification between representative and represented. These indications were
116
Graduando em direito no Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba.
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004),
mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias
modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional,
eleitoral, penal e administrativo).
117
201
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
better identified within the popular protests that happened on July of 2013 when the population
showed a huge insatisfaction with the current political model, becoming a political voice and claiming a
reform of the current political-representative model, where the society is inserted. From that, a political
reform was claimed by the population that apparently will not bring any considerable structural
change. About the context of this problem, the following study aimed to analyze the need of
strengthening the popular participation - always on sidelines from the political - in the democratic
process, from the participation ways determined in law, specially through the plebiscite, which is the
most direct way of popular participation.
Key-words: Crisis of representation, demonstrations popular, political reform, popular participation,
plebiscite
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história política brasileira é possível averiguar alguns indicativos
que permitem a afirmação de que nos últimos anos o Brasil está inserido em uma
crise de representatividade do Poder Legislativo. Desse modo, ao aprofundar sobre
quais seriam os indicativos referidos, constata-se a presença dos seguintes:
debilidade partidária, corrupção partidária e carência de credibilidade política e a
falta
de
identificação
entre
representantes
e
representados.
A
crise
de
representatividade surge quando a proximidade e a correspondência entre os
interesses dos governantes e dos governados encontra-se demasiadamente
afastada, gerando um enfraquecimento do elo de confiança entre representantes e
representados, fator essencial para um modelo eficaz de representatividade. Dessa
forma, é possível verificar de um modo mais nítido, quanto ao esgotamento do atual
sistema
político-representativo,
provocado
pelos
efeitos
da
crise
de
representatividade, com as manifestações populares de junho de 2013, que dentre
as pautas de reivindicação, solicitou uma reforma política. Essa reforma veio
posteriormente ao debate no Congresso Nacional, gerando temporariamente
algumas mudanças, pois ainda encontra-se em tramitação. No entanto, a reforma
não está, aparentemente, sendo uma reforma transformadora, pois não há nenhuma
mudança estrutural com o intuito de amenizar os efeitos da crise de
representatividade. Assim, uma possível atenuação dos efeitos seria através do
fortalecimento das formas de participação popular, principalmente através do
plebiscito,
afim
de
que
os
obstáculos
legais
impostos
sejam
rompidos,
proporcionando a sua utilização de modo mais frequente.
202
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2 A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE LEGISLATIVA INSERIDA NO SISTEMA
POLÍTICO BRASILEIRO
Ao analisar o tema da crise de representatividade do Poder Legislativo
brasileiro se faz necessário inicialmente verificar quais os possíveis indícios para
afirmação de uma crise de representatividade e posteriormente abordar cada um
deles de modo mais aprofundado, com o intuito de demonstrar uma provável saída
ao problema enfrentado pelo sistema político brasileiro. Destaca-se que a presente
análise será focada ao âmbito federal.
O sistema representativo de democracia cria, artificialmente, uma espécie de
elo de confiança entre representantes e representados, que consequentemente gera
uma expectativa aos representados de que seus interesses serão devidamente
correspondidos. No entanto, existem situações que provocam falhas nessa
correspondência
representantes
provocando
e
uma
representados,
descrença
essencial
no
elo
para
um
de
confiança
sistema
eficaz
entre
de
representatividade. Dentre os indícios que permitem examinar a crise de
representatividade política, destacam-se como principais: a) a debilidade partidária;
b) os escândalos de corrupção e a carência de credibilidade política e; d) a falta de
identificação de interesses entre representantes e representados.
2.1 DEBILIDADE PARTIDÁRIA
Os partidos políticos vêm demonstrando, de longa data e não apenas no
Brasil, certas debilidades. A análise da debilidade partidária leva em conta um
conjunto de fatores e situações complexas. Dentre essas questões estão a
burocratização partidária, a ideologia-estratégica dos partidos, o distanciamento das
bases eleitorais e a forma do discurso político. Além dessas questões, outra tão
importante quanto, é a transformação ou institucionalização dos partidos em partidos
competitivos, sob a perspectiva de participação no mercado político. Todas essas
questões estão de algum modo interligadas entre si, nas quais em algumas
situações uma é efeito da outra e em outras, uma desencadeia a outra.
203
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A burocratização é um dos principais motivos da debilidade partidária, pois
dela decorrem dois efeitos que formam o conjunto de situações que compõem a
análise da debilidade partidária. De acordo com Claus Offe, a burocratização
compreende-se no sentido do partido político montar uma estrutura, na qual o
exercício da atividade burocrática é desenvolvida “[…] por uma equipe de
funcionários do partido profissionalmente contratados que desenvolvem um
interesse corporativo no crescimento e na estabilidade do aparato que lhes
proporciona status e carreiras”118. Além disso, a burocratização dos partidos
desenvolve-se da seguinte maneira:
A organização burocrática do partido político moderno desempenha as
tarefas de: (a) coletar recursos materiais e humanos (mensalidades dos
membros, contribuições e donativos; membros, candidatos); (b) disseminar
propaganda e informações sobre a posição do partido a respeito de um
grande número de temas políticos diferentes; (c) explorar o mercado
político, identificando novos temas e conduzindo a opinião pública; e (e)
gerenciar o conflito interno (OFFE, 1984, p. 363-364).
Uma das grandes consequências dessa prática adotada pelos partidos é o
afastamento da base eleitoral, denominada por Claus Offe como a "desativação das
bases do partido”119, pois diminui a discussão interna nos partidos, como também o
debate com a própria população, uma vez que a ideia de um partido não unânime
internamente prejudica a arrecadação de votos e a campanha eleitoral, dificultando a
entrada do partido no mercado político ou a sua permanência em uma posição
favorável.
Verifica-se dessa maneira que o fenômeno da burocratização dos partidos
enfraquece as discussões políticas internas e consequentemente a própria
democracia, em razão da discussão política ser encobertada pela “aparente”
unanimidade e consenso partidário. Quando algum membro sustenta uma posição
política diferente do partido ou dos líderes do partido, como por exemplo votar em
alguma pauta política de modo distinto daquilo que foi estabelecido, geralmente é
reprimido ou até mesmo, como já constatado em algumas situações, expulso do
partido. A imagem de um partido em conflito não é interessante, principalmente no
118
OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984, p. 364.
119 OFFE, 1984, p. 364.
204
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
período das disputas eleitorais, pois não é atraente para angariar os votos dos
eleitores, fazendo com que o partido não esteja presente no mercado político
competitivo.
Além do fenômeno da burocratização, outro fator que contribui com a
debilidade partidária é a transformação ou institucionalização do partido em partido
competitivo, prática na qual o partido está em constante competitividade para
alcançar e permanecer numa posição política favorável. Essa atitude faz com que o
partido passe a utilizar todos os meios e formas para alcançar ou se perpetuar em
um cargo governamental, nem que para isso tenha que distanciar-se de seus
conteúdos políticos originais e/ou adequar-se às exigências do mercado político e da
lógica do partido competitivo. As formas e meios mais comuns, além da
burocratização e seus efeitos, que propiciam competitividade ao partido são as
concessões e coalizões políticas e a moderação do discurso eleitoral.
O afastamento dos partidos políticos dos interesses e vontades da população
gera, como consequência, o enfraquecimento do sistema representativo de
democracia, assim como o fortalecimento de uma espécie de oligarquia partidária,
em que apenas uma pequena parcela de pessoas dita a forma de exercer a política.
Portanto, quando os fenômenos que envolvem a debilidade partidária vão se
fortalecendo, o regime democrático encontra-se ameaçado. Outro fator que contribui
para essa instabilidade é o afastamento da população acerca do processo político,
ou seja, a falta de participação da população sobre os assuntos e os debates
políticos. Esse distanciamento gera uma sensação da população não fazer parte, ou
de não se sentir presente nestes assuntos, acontecimento que não é desejável para
uma sociedade democrática. Assim, quando a vontade popular se distancia
exageradamente da vontade dos representantes, ocorre uma crise da democracia
representativa. O professor Paulo Bonavides menciona, a respeito da crise do
modelo representativo que, “com o Estado partidário, todo o sistema representativo
tradicional entra em crise. O eleitor, o deputado, o Parlamento mesmo toma caráter
distinto do que tinham durante o Estado liberal”120.
Dessa maneira, a falta de comprometimento dos partidos com seus
programas políticos, assim como o afastamento entre governantes e governados,
120
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 278-279.
205
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
devido também a falta de confiança, gera uma instabilidade capaz de proporcionar
uma crise de representatividade.
Durante décadas, a representação parecia estar fundamentada em uma
forte e estável relação de confiança entre o eleitorado e os partidos
políticos; a grande maioria dos eleitores se identificava com um partido e a
ele se mantinha fiel. […] No passado, os partidos propunham aos eleitores
um programa político que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao
poder. Hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa,
em vez disso, na construção de imagens vagas que projetam a
personalidade dos líderes (MANIN, 1987, p. 1).
Retornando à questão da competitividade dos partidos, verifica-se que as
práticas realizadas para se tornar um partido competitivo são desempenhadas por
aproximadamente todos os atuais partidos políticos brasileiros, independentemente
serem de esquerda ou de direita, pois o objetivo principal é fazer parte e conseguir
visibilidade no mercado político. No entanto, esclarece Claus Offe que esse
comportamento ocasiona três efeitos, dos quais apenas os dois primeiros são
importantes para a presente análise da debilidade partidária.
O primeiro efeito relaciona-se com a questão ideológica do partido, cujo autor
intitula como “desradicalização da ideologia do partido”121, descrevendo tal
acontecimento da seguinte maneira:
Para ser bem-sucedido nas eleições e na luta pelo cargo governamental, o
partido tem que orientar seu programa para as conveniências do mercado
político. Isto exige, primeiramente, a maximização dos votos através do
apelo ao maior número possível de eleitores e, em consequência, a
minimização dos elementos programáticos que podem criar antagonismos
dentro do eleitorado. Em seguida, vis-à-vis os outros partidos, a habilidade
de fazer coalizões e a restrição do âmbito das propostas políticas
substantivas para se enquadrar às demandas que os sócios da coalizão em
potencial estão dispostos a considerar ou a negociar (OFFE, 1984, p. 363).
O segundo efeito consiste justamente no sentido de o partido assemelhar-se a
uma organização burocrática para, dentro das conveniências do mercado político,
tornar-se competitivo e “carimbar” sua presença na disputa eleitoral.
Por fim, a última questão proposta como fatores da debilidade partidária
envolve o discurso eleitoral, decorrente principalmente da transformação ou
121
OFFE, 1984, p. 363.
206
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
institucionalização dos partidos em partidos competitivos. Ora, é justamente para
tornar-se competitivo que o partido político estende um “leque” de demandas para
conseguir votos de diferentes partes da sociedade. Claus Offe denomina essa
prática como “diversificação do produto”122, “no sentido de que ele [o partido] tenta
apelar para uma série de demandas e preocupações diferentes”123. Assim, verificase o exaustivo esforço dos partidos políticos em angariar, através do discurso
midiático das campanhas eleitorais, o maior número de votos da maior diversidade
possível de eleitores.
O importante é conseguir votos para eleger seus candidatos e estar
constantemente presente no mercado político para alcançar o poder político. Desse
modo, os partidos fazem pouco caso em estabelecer uma proximidade com os
interesses e as vontades populares. O bem-estar geral vai cedendo espaço para os
interesses particulares dos políticos e dos partidos e em decorrência o Estado
democrático vai se enfraquecendo, assim como a população vai ficando à margem
do processo político, apenas reaparecendo no período eleitoral, quando é procurada
pelas campanhas dos partidos, com o intuito de destinaram-se às urnas para
votação, exercendo sua cidadania e acreditando que com esta prática a democracia
está sendo efetivamente realizada.
Por toda análise dos fatores que envolvem a debilidade partidária, percebe-se
que para o partido se tornar competitivo e conseguir alcançar um cargo
governamental, é necessário atender as conveniências do mercado político,
adequando-se à burocratização e atendendo ao modelo de partido competitivo.
Desse modo, as consequências são os efeitos que cada prática promove,
desgastando a própria referência do partido e a representatividade política, sendo os
maiores prejudicados os interesses dos representados e a própria democracia.
2.2 OS ESCÂNDALOS DE CORRUPÇÃO PARTIDÁRIA E A CARÊNCIA DE
CREDIBILIDADE POLÍTICA
Após analisar as circunstâncias e os efeitos da debilidade partidária, resta
averiguar os outros fatores que indicam e até mesmo favorecem a formação da crise
122
123
Ibid., p. 365.
OFFE, 1984.
207
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
de representatividade do Poder Legislativo. Um desses fatores é a corrupção
partidária juntamente com as consequências que essa prática vem causando para o
sistema de governo democrático, especialmente em relação à essência do modelo
representativo.
É difícil descrever se a corrupção partidária vem aumentando ao longo dos
anos, com as eleições de novos governos, ou se há um maior espaço dentro dos
meios de comunicação para divulgação dessa prática, em decorrência de uma maior
sensibilização popular no sentido de abominar esse tipo de conduta por parte dos
políticos eleitos. No entanto, ao observar as notícias publicadas nos meios de
comunicação, percebe-se com maior frequência, notícias sobre denúncias ou
escândalos de corrupção envolvendo partidos políticos ou pessoas ligadas a eles.
Primeiramente, deve-se mencionar à título de esclarecer uma parte da
análise, que a corrupção partidária não pode ser imputada a apenas uma pessoa ou
grupo de pessoas, e muito menos que a responsabilização dessa prática seja
dedicada a exclusividade de um partido. Não se deve atribuir a responsabilização da
corrupção
sob
uma
perspectiva
individual,
mas
sob
uma
perspectiva
conjuntural/sistêmica, a fim de evitar o desvirtuamento do problema a uma posição
ideológica. Dessa maneira, procurando evitar uma análise individual, o professor
Marco Aurélio Nogueira menciona que, “não há monopólio da corrupção por parte
deste ou daquele grupo, partido político ou entidade; todos estão sujeitos a ela,
passiva ou ativamente, e todos podem vir a praticá-la, ativa ou passivamente”124.
Portanto a análise da corrupção partidária irá pautar-se sob o aspecto de um
problema
sistêmico, “[…]
entranhada, como um
componente
oculto, não
reconhecido, no imaginário e na cultura política da sociedade”125. A corrupção e
também a corrupção partidária, não resume-se apenas ao desvio de verbas
públicas, mas à qualquer forma de deterioração de um bem ou prática social. Neste
sentido o filósofo Michael Sandel afirma que “corromper um bem ou uma prática
social significa degradá-lo, atribuir-lhe uma valoração inferior à adequada”126.
124
NOGUEIRA, A. Marco. As Ruas e a Democracia: Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo.
Brasília: Contraponto, 2013, p. 205-206.
125 Ibid., p. 207.
126 SANDEL J. Michael. O Que o Dinheiro Não Compra: os limites morais do mercado. 1 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 38.
208
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Por ser um tema difícil de ser mensurado, pois envolve inúmeros fatores e
circunstâncias, poucas são as pesquisas de análise que demonstram quão corrupto
é um país. Diante de uma pesquisa de análise, deve-se sempre observá-la sob um
olhar crítico, já que seria um equívoco acreditar que o resultado de uma pesquisa de
análise ofereceria todas as respostas que envolve o questionamento de um tema,
justamente por tais pesquisas não levarem em consideração todos os aspectos e
circunstâncias do assunto. Todavia, não significa que a pesquisa de análise não
tenha alguma contribuição científica, elas auxiliam como uma referência ou um
apontamento.
No ano de 2014, a ONG Transparência Internacional elaborou um ranking127
dimensionando os países mais e menos corruptos. Ao todo, foram avaliados 174
países, com notas de 0 a 100. Quanto mais próximo a cem, mais limpo é o país, isto
é, há menos corrupção. Quanto mais afastado de cem, mais corrupto é o país.
Nessa avaliação, destaca-se em primeiro lugar a Dinamarca, com nota 92. Em
último lugar está a Somália com nota 8. Dentre os melhores países classificados da
América do Sul, encontram-se empatados na 21º colocação Chile e Uruguai, com
notas 73. O Brasil ocupa a 69º posição, com nota 43. Desse modo, percebe-se que
nenhum país é imune da corrupção, porém, como demonstram os primeiros
colocados, é possível atenuar os efeitos dessa prática.
Dentre os inúmeros exemplos que envolvem a corrupção partidária, tanto
exemplos ocorridos no Brasil como em outros países, percebe-se que estão
umbilicalmente interligados com excesso e/ou abuso de poder, pois esta prática
“anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como um efeito
colateral: onde há poder e poderosos há sempre a probabilidade de abuso, e no
abuso está a raiz da corrupção”128. Para o professor Fernando Filgueiras “a
corrupção está correlacionada ao comportamento rent-seeking, mediante o qual os
agentes políticos tendem a maximizar sua renda privada”129.
Desse modo, uma das principais consequências da prática da corrupção
partidária é o desgaste do elo de confiança envolvendo representantes e
127
CORRUPTION PERCEPTIONS INDEX 2014: results. Transparency International. Disponível
em: <https://www.transparency.org/cpi2014/results>. Acesso em 07 ago. 2015.
128 NOGUEIRA, 2013, p. 207.
129 AVRITZER, Leonardo et al. (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2012, p. 303.
209
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
representados, provocando uma falta de credibilidade nos representantes políticos.
Logo, a própria concepção do partido político como intermediário entre a população
e os representantes resta-se enfraquecida, contribuindo com os fatores referentes à
debilidade partidária, simultaneamente com perda da credibilidade dos partidos em
atender aos interesses da população. Assim, já que a forma representativa do
governo democrático nas sociedades modernas é exercida por meio dos partidos
políticos, observa-se o enfraquecimento dos mesmos e, consequentemente, do
modelo representativo de democracia na atual forma como está estabelecido.
Portanto, em outras palavras, observa-se que a debilidade partidária,
principalmente por meio da burocratização e do modelo de partido competitivo,
representa um dos fatores que proporciona a corrupção partidária. Esta, por sua vez,
contribui para a baixa credibilidade partidária e consequentemente à essência do
modelo representativo, gerando um afastamento da população do processo político
e uma insatisfação com o atual modelo partidário-representativo de democracia.
Dessa maneira, ressalta-se que a corrupção partidária é um problema sistêmico, que
precisará de medidas também sistêmicas de solução para atenuar os efeitos que
essa prática gera, principalmente à população, que sem sombras de dúvidas, é a
parte mais prejudicada. Por esta razão, não se deve analisar a prática da corrupção
partidária sob uma perspectiva individual, mas sob a ótica sistêmica. Medidas que
não possuam esse cunho terão pouco, ou até mesmo nenhum efeito eficaz de
combate e atenuação da corrupção partidária e suas consequências.
2.3 A FALTA DE IDENTIFICAÇÃO ENTRE REPRESENTANTES ELEITOS E
REPRESENTADOS
A falta de identificação dos representados perante os representantes,
também pode ser compreendida como o enfraquecimento do elo de confiança entre
os mesmos. Dessa maneira, busca-se afirmar que o conjunto desses três fatores debilidade partidária, corrupção e falta de confiança - indicam a existência de uma
crise de representatividade do atual modelo democrático.
Para Luis Felipe Miguel a crise de representatividade “se sustenta sobre três
conjuntos de evidências relativas: (1) ao declínio do comparecimento eleitoral; (2) à
210
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ampliação da desconfiança em relação às instituições, medida por surveys; e (3) ao
esvaziamento dos partidos políticos”130.
Ao longo das últimas quatro eleições realizadas no Brasil, os indicativos
demonstraram uma crescente taxa de abstenção eleitoral. De acordo com dados
fornecidos pela Câmara dos Deputados131, nas eleições de 2002 o índice de
abstenção foi de 17,74%. Nas eleições seguintes, em 2006, o índice diminuiu
levemente, atingindo o percentual de 16,75%. No entanto, nas duas eleições
posteriores o índice de abstenção aumentou, atingindo 18,12% nas eleições de 2010
e o recorde de abstenção no ano de 2014, chegando ao patamar de 19,39%. Para
um país no qual o voto é obrigatório para a maioria das pessoas, conforme
estabelecido no art. 14, parágrafo 1º, inciso I, da Constituição Federal, o elevado
índice de abstenção torna-se preocupante.
O baixo índice de comparecimento às urnas eletrônicas pode indicar tanto
uma espécie de insatisfação, como uma forma de indiferença popular, ambos
preocupantes e prejudiciais para o modelo representativo de democracia. A partir
disso,
surge
uma
onda
de
sentimento
entre
os
eleitores
de
falta
de
representatividade, o que por sua vez gera uma apatia acerca do processo político,
fazendo com que a cada nova eleição o índice de abstenção aumente, formando-se
um ciclo vicioso. Para o professor Luis Felipe Miguel, “a baixa participação política é
lida mais corretamente como expressão de uma sensação de impotência e
estranhamento - ‘a política não é para gente como eu’ - do que de contentamento
com a ordem estabelecida”132. Desse modo, afasta-se o argumento de que o
aumento do índice de abstenção eleitoral demonstra uma satisfação com o modelo
político, pois do contrário todos exerceriam o seu direito de voto para mudar a ordem
estabelecida. Acerca da manifestação desse argumento, explica o referido autor que
“[…] nos 1960 e 1970 foi difundida uma interpretação que via na abstenção eleitoral
130
MIGUEL, Luis F. Democracia e Representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Unesp,
2014, p. 98.
131 ÍNDICE DE ABSTENÇÕES atinge 19,4%, o maior das últimas quatro eleições gerais. Câmara
Notícias,
06
out.
2014.
Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/475406-INDICE-DE-ABSTENCOESATINGE-19,4,-O-MAIOR-DAS-ULTIMAS-QUATRO-ELEICOES-GERAIS.html>. Acesso em 12 ago.
2015.
132 MIGUEL, 2014, p. 99.
211
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
um sintoma não de crise, mas de vitalidade da democracia representativa e de
contentamento com o funcionamento das instituições”133.
Essa conduta apática acerca do processo político por parte dos eleitores
torna-se extremamente prejudicial diante de um dos pilares da democracia, qual
seja, a participação popular, provocando um afastamento daquele que detém o
poder e a soberania em um governo democrático, o povo, que permanece excluído
das tomadas de decisões políticas. Portanto, verifica-se como a falta de identificação
ou o enfraquecimento do elo de confiança entre representantes e representados
produz significativos impactos na insatisfação e apatia popular, que tem por
conseqüência o afastamento do povo do processo político.
Todavia, a prática de abstenção eleitoral não é apenas identificada no
modelo representativo brasileiro, mas um sintoma perceptível, de forma mais ou
menos acentuada, na maioria dos países que adotam a forma de governo
representativa da democracia, conforme dados do Internacional Institute for
Democracy and Electoral Assistence (IDEA)134.
Em relação ao aumento da desconfiança nas instituições estabelecida pelo
autor, verifica-se sua elevação através das pesquisas de opinião pública.
Novamente vale a pena fazer uma ressalva quanto a total credibilidade dos dados
fornecidos por essas pesquisas, não podendo deixar de ser analisados criticamente,
assim como não podendo ser ignorados, mas utilizados como indicativos.
É possível observar que as desconfianças nas instituições políticas vêm
aumentando de um modo generalizado em todos os países que adotam o modelo
representativo de democracia. Pesquisas de opinião pública realizadas no Brasil,
nos Estados Unidos e na Europa demonstram isso. A partir da análise das
pesquisas elaboradas pelo National Opinion Research Center, nos Estados Unidos,
e o pelo Eurobarômetro, na Europa, é possível sua verificação.
De acordo com o Eurobarômetro (em pesquisa de 2011), em média 33%
dos entrevistados, nos países da União Europeia, respondem que confiam
nos seus parlamentares nacionais; quando a pergunta é sobre os governos
nacionais, a média é de 32%. É ainda menor a confiança nas instituições
europeias supranacionais; apenas 30% julgam que têm alguma influência
133
MIGUEL, 2014, p. 99.
INTERNATIONAL IDEA SUPPORTING DEMOCRACY WORLDWIDE. Institute for Democracy
and Electoral Assistence. Disponível em: <http://www.idea.int>. Acesso em 12 ago. 2015.
134
212
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
na condução da União Europeia. […] Nos Estados Unidos, as surveys do
National Opinion Research Center mostram, de 1973 a 1993, uma queda
acentuada na confiança popular no poder executivo (de 29% para 12%) e,
ainda maior, no Congresso (de 24% para 7%) […] (MIGUEL, 2014, p. 100).
No Brasil, os dados acerca da desconfiança nas instituições políticas são
analisados pelo Índice de Confiança Social, medido anualmente pelo IBOPE135. Das
instituições políticas examinadas, três são relevantes quanto a questão da crise de
representatividade: (1) eleições, sistema eleitoral; (2) Congresso Nacional; e (3)
partidos políticos.
As eleições e o sistema eleitoral caíram, de 2009 para 2014, seis pontos. O
auge foi o ano de 2010, possuindo 56% de confiança da população. No entanto, no
ano de 2014, esse índice diminuiu para 43%. O Congresso Nacional, casa dos
representantes no âmbito federal, permaneceu relativamente estável, tendo seu pior
índice, 29%, no ano de 2013. Em 2014, o índice subiu para 35% de confiança dos
cidadãos. Por último, quanto aos partidos políticos, o índice manteve-se baixo,
possuindo em 2014, 30% de confiança. Com os demonstrativos desses dados,
É possível detectar uma crise do sentimento de estar representado, que
compromete os laços que idealmente deveriam ligar os eleitores a
parlamentares, candidatos, partidos e, de forma mais genérica, aos poderes
constitucionais. O fenômeno ocorre por toda a parte, a partir das últimas
décadas do século XX, de maneira menos ou mais acentuada, atingindo
novas e velhas democracias eleitorais (MIGUEL, 2014, p. 98).
Desse modo, os dados coletados indicam uma falta de credibilidade
alarmante das instituições políticas, enfraquecendo a essência de um modelo
representativo de democracia, que é a proximidade dos interesses entre
representados e representantes. Além disso, o modelo representativo não se
demonstra efetivo quando a confiança nos representantes permanece com baixos
índices de confiança. Esses dados indicam um desvirtuamento do modelo
representativo, afastando-se dos interesses populares e gerando um elevado índice
de insatisfação.
135
APÓS QUEDA ACENTUADA em 2013, índice de confiança social se estabiliza. IBOPE, 01 set.
2014.
Disponível
em:
<http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Ap%C3%B3s-quedaacentuada-em-2013,Indice-de-Confianca-Social-se-estabiliza.aspx>. Acesso em 13 ago. 2015.
213
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3 AS MANIFESTAÇÕES POPULARES E A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
A dimensão da insatisfação popular diante das instituições, dos partidos
políticos e também do modelo de representação, pôde ser melhor identificada nas
manifestações populares de junho de 2013. Inicialmente articulada pelo Movimento
Passe Livre (MPL), contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade de
São Paulo, as manifestações foram tomando outros rumos e proporções, atingindo
inúmeras outras cidades por todo Brasil. Ao decorrer das manifestações, novas
pautas começaram a ser levantadas e pessoas de diferentes grupos sociais
começaram a aderir ao movimento. O que ocorreu foi uma insatisfação geral da
população, nas quais as bandeiras levantadas abrangiam desde a má qualidade dos
serviços públicos ofertados, como saúde e educação, em contraste aos elevados
gastos públicos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, até pedidos pela reforma
política e o fim da corrupção. Diante desse complexo número de reivindicações, se
verificará a importância e relevância das manifestações ocorridas em junho de 2013,
assim como o que ela representa diante do contexto da crise de representatividade
do Poder Legislativo.
Como antes mencionado, um modelo representativo eficaz exige uma
correspondência mínima de interesses entre governantes e governados. Quando há
uma falha significativa nessa correspondência o modelo representativo é abalado, o
que provoca uma sensação de falta de representatividade. O crescimento dessa
sensação provoca, ou uma insatisfação, ou uma apatia popular, ambos prejudiciais
ao sistema democrático. Em relação às manifestações de junho de 2013, apesar de
terem sido iniciadas pela luta de um movimento social, em sua conjuntura, a
manifestação demonstrou um caráter de posição contrária ao atual sistema político
representativo e sua forma de conduzir o processo político, evidenciando que os
interesses entre representantes e representados não estão sendo adequadamente
correspondidos. Analisando o conteúdo das manifestações, afirma a professora
Raquel Rolnik que, “o velho modelo de república representativa, formulado no século
214
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
XVIII e finalmente implementado como um modelo único em praticamente todo o
planeta, dá sinais claros de esgotamento”136.
É difícil determinar o marco temporal que propiciou uma onda de
insatisfação e apatia política que vem atingindo a população brasileira. No entanto,
verifica-se que as manifestações não se dirigiram a um partido ou uma pessoa
específica, mas ao atual modelo representativo como um todo. Apesar das
manifestações de junho terem durado um período relativamente curto, a população
conseguiu ao menos ser ouvida, tornando-se naquele momento uma voz política.
Dessa maneira, quando mobilizado e organizado, o povo demonstra toda a sua força
para propor suas reivindicações e mudanças estruturais137.
Em um país no qual os meios de comunicação estão nas mãos de um
restrito grupo econômico que detém o monopólio dos meios de comunicação,
apenas atendendo aos seus interesses particulares, o meio mais efetivo da
população reivindicar direitos, protestar e pedir mudanças estruturais é a partir das
manifestações de rua. Graças a esse movimento, a população brasileira chamou a
atenção dos políticos para que seus interesses sejam ouvidos e atendidos.
Diante dessa situação, o Congresso Nacional, assim como a Presidente da
República, anunciou que atuariam com o intuito de atender às pretensões
levantadas nas manifestações, especialmente em relação à reforma política.
Portanto, conseguiu-se com que o tema fosse aberto para discussão. Todavia, o
debate concentra-se restrito às sessões do Congresso Nacional, não havendo a
inserção da sociedade civil na discussão. Diante dessa situação, como poderá um
debate sobre a reforma política, no qual a população não participa, mudar a
estrutura do sistema político representativo para atender aos anseios populares, que
exigem ser ouvidos, assim como uma maior democratização da política? Apesar
disso, a organização Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, mobilizou-se
136
MARICATO, Ermínia et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as
ruas do Brasil. 1 ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 12.
137 Um exemplo que demonstrou a efetividade das manifestações populares de junho de 2013 foi
referente à rejeição da PEC 37. Antes da população tomar as ruas, estava em tramitação no
Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional cujo conteúdo tinha por objetivo impedir
a realização de investigações criminais pelo Ministério Público. Havia indicativos, nos bastidores do
Congresso, de que a proposta seria aprovada. Com o início das manifestações, uma das bandeiras
levantadas foi justamente contra a PEC 37. Pressionados pela força política das ruas, os deputados
que antes aparentavam votar favoravelmente à proposta, votaram, a grande maioria, pela sua
rejeição.
215
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
para a criação de um projeto de lei de iniciativa popular138 visando a alteração da lei
4.737/65 (Código Eleitoral), da lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), da lei
9.504/97 (Lei das Eleições) e da lei 9.709/98, com o intuito de promover uma
reforma política e uma eleição mais limpa.
Ainda que não tenha tido um desfecho, pois encontra-se em processo de votação
no Congresso Nacional, a proposta de reforma política não leva em consideração
inúmeros aspectos relevantes para uma verdadeira e transformadora reforma. Ao
que parece, haverá algumas mudanças, mas não conforme o exigido pelas
manifestações. Assim, muda-se a roupagem, mas continua o mesmo modelo
político-representativo, o qual a sociedade civil encontra-se sem voz política e ao
mesmo tempo afastada do processo de participação nas tomadas de decisões.
Portanto, o desafio agora encontra-se em concretizar as mudanças requeridas e
oferecer uma resposta ao problema exposto.
4 O DEBATE SOBRE A REFORMA POLÍTICA NO CONGRESSO NACIONAL
Após as manifestações de junho de 2013, o ano de 2014 foi marcado pelas
acirradas eleições tanto no âmbito federal quanto estadual. Com o fim das eleições,
houveram mudanças na composição política do Congresso Nacional, em
decorrência do aumento das bancadas conservadoras. Inserida nessa nova
composição política, a proposta de reforma política voltou ao debate no Congresso.
O debate sobre a reforma política chegou ao Congresso Nacional através de uma
proposta de emenda constitucional139, organizada por um grupo de trabalho
coordenado pelo ex-deputado Cândido Vaccarezza, no final do ano de 2013. Ao
decorrer do ano de 2014, a proposta da reforma política passou pelo longo
procedimento de tramitação na Câmara dos Deputados, incluindo a passagem por
comissões, audiências e votações. No entanto, tal proposta não chegou a ser
138
PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR: reforma política democrática e eleições limpas.
Reforma Política e Eleições Limpas Coalizão Democrática, Brasília, 16 out. 2013. Disponível em:
<http://mcce.org.br/site/pdf/PL%20%20Coalizao%20Democratica%20pela%20Reforma%20Politica%2
0e%20Eleicoes%20Limpas_registro%20cartorio.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2015.
139 PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO. Grupo de Trabalho Destinado a Estudar e
Elaborar Propostas Referentes à Reforma Política e à Consulta Popular Sobre o Tema.
Disponível
em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1176709&filename=PEC+
352/2013>. Acesso em 24 ago. 2015.
216
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
concluída e votada nas duas casas que compõe o Congresso Nacional, sendo
arquivada no início do ano de 2015, em decorrência do final da antiga legislatura.
Com as mudanças na composição política do Congresso Nacional no ano de
2015, incluindo a alteração do presidente da Câmara dos Deputados, a proposta de
emenda constitucional sobre a reforma política voltou a ser pauta da agenda do
Congresso Nacional com o pedido de desarquivamento da proposta, assim como a
criação de um comissão especial para analisar o tema. Os mesmos assuntos que
constituíram a proposta iniciada em 2013 voltaram ao debate no começo do ano de
2015.
Conforme o estabelecido no art. 60, parágrafo 2º, da Constituição Federal,
toda proposta de emenda constitucional exige votação em dois turnos em cada casa
do Congresso Nacional, com aprovação de três quintos de seus membros. De
acordo com as votações, as mudanças mais relevantes para o presente tema estão
ocorrendo acerca do financiamento das campanhas políticas, da fidelidade partidária
e dos projetos de iniciativa popular. Ressalta-se que as mencionadas mudanças são
apenas narrativas do processo de tramitação, em razão da proposta da reforma
política ainda não ter sido concluída no Congresso Nacional.
Em relação à fidelidade partidária, a Constituição Federal não estabelece
nenhuma regra acerca do assunto. No entanto, com a proposta da reforma política,
foi aprovado na Câmara dos Deputados, que os candidatos eleitos que, sem uma
justa causa, desligarem-se do partido pelo qual foram eleitos, perderão seus
mandatos políticos. Com essa mudança, a reforma neste ponto apresenta-se
interessante, em razão de aparentar uma tentativa de fortalecimento dos partidos
políticos, assim como a identificação e o comprometimento dos candidatos eleitos
com o programa político do partido. Visto dessa forma, a alteração referente à
fidelidade partidária mostra-se positiva quanto à atenuação dos efeitos da debilidade
partidária.
Quanto às mudanças sobre os projetos de iniciativa popular, percebe-se que
conforme o atualmente estabelecido, existe uma grande dificuldade na apresentação
desses projetos diante do Congresso Nacional, em razão da exigência de 1% de
assinaturas do eleitorado nacional, obtidas em pelo menos cinco estados, tendo um
mínimo de 0,3% dos eleitores em cada um deles. Foi proposto e aprovado até o
217
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
momento, uma maior facilidade para apresentação de projetos de iniciativa popular,
com a diminuição dos atuais percentuais. Assim, de acordo com a proposta, será
exigido apenas quinhentas mil assinaturas, em pelo menos cinco estados, com um
mínimo de 0,1% dos eleitores. Desse modo, também apresenta-se como uma
mudança positiva ao facilitar a participação popular dentro do processo político, a
partir de projetos de lei de iniciativa popular, permitindo que a sociedade civil tenha
mais de voz política e participação.
Apesar de algumas mudanças apresentarem-se positivas, outras, no
entanto, caminham em sentido contrário. Em relação ao financiamento das
campanhas políticas, a Câmara dos Deputados regrediu, e muito, ao aprovar o
financiamento privado de campanhas. De acordo com a proposta, pessoas jurídicas
poderão fazer doações apenas à partidos políticos, já pessoas físicas poderão doar
tanto para partidos quanto para candidatos.
O tema acerca do financiamento privado gerou grande polêmica, tanto entre
os membros do Congresso Nacional como entre outras esferas da sociedade civil.
Inúmeras entidades, incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento de
Combate
à
Corrupção
Eleitoral
(MCCE),
manifestaram-se
contrários
ao
financiamento privado. Em razão disso, essas entidades elaboraram uma cartilha a
respeito do tema da reforma política e eleições limpas140. Ao fazer uma análise de
dados e a relação que o financiamento privado possui com as campanhas eleitorais,
verificou-se uma enorme influência tanto em relação a prioridade de interesses das
empresas que investem em campanhas, quanto no resultado do processo eleitoral.
Por essas razões, o debate acerca do financiamento privado gerou tanta
polêmica. Todavia, verifica-se que constitucionalizar o tema é extremamente
prejudicial ao modelo democrático, principalmente por estimular os fatores que
envolvem a debilidade partidária, como a corrupção partidária, a burocratização dos
partidos e o afastamento de suas bases eleitorais.
O grave problema do financiamento privado de campanhas é que apesar da
conotação usada ser “doação”, trata-se na verdade de investimento. Nenhuma
empresa privada, com possíveis exceções, faz doações. A destinação do dinheiro
140
CARTILHA DO PROJETO. Reforma Política e Eleições Limpas Coalizão Democrática.
Disponível em: <http://www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/>. Acesso em: 28
ago. 2015.
218
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
para uma campanha é um investimento para quando o candidato for eleito poder
retribuir aquele dinheiro inicialmente investido. Todavia, essas “doações” não
ocorrem de modo transparente, mas de maneira a ocultar o nome das empresas
investidoras.
Prova de que se trata de um investimento ao invés de “doação”, é verificada
quando se constata as inúmeras vantagens das quais essas empresas possuem,
seja através de contratos com empresas públicas, seja através de facilidade de
financiamento junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES).
O Instituto Kelloggs, ligado à Universidade do Texas, realizou uma pesquisa
no Brasil onde revelou-se que, para cada real doado, as empresas recebem
um retorno da ordem de R$ 8,50 em contratos públicos. Isso corresponde a
um retorno de 850% do investimento e significa que o dinheiro privado que
entra na campanha é recompensado com lucros vultuosos provenientes de
recursos públicos (REIS, 2013, p. 161).
Portanto, não se trata de uma coincidência, mas de uma negociação por
troca de favores, que em outras palavras significa corrupção partidária. Desse modo,
o financiamento privado de campanhas torna-se nocivo ao desenvolvimento sadio
da democracia. A palavra democracia possui o condão de “governo do povo” e sob a
perspectiva de um modelo representativo, os interesses do povo é que devem ser
atendidos pelas políticas dos representantes. No entanto, o financiamento privado
inverte essa lógica ao priorizar e beneficiar os interesses de alguns particulares.
São
por
essas
razões
que
afirmou-se
anteriormente
que
ao
constitucionalizar o financiamento privado das campanhas o Congresso Nacional
estará retrocedendo pois, essa atividade torna o certame eleitoral profundamente
injusto, permitindo que os partidos que recebem maiores “doações”, possam
aproveitar de vantagens superiores ao disputar o voto dos eleitores. Desse modo, a
democracia vai cedendo espaço à influência do poder econômico no destino das
eleições. Esclarece o professor Daniel Sarmento sobre a questão do poder
econômico nas campanhas eleitorais que “nesse modelo, o que garante a vitória de
219
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
um candidato não é tanto a popularidade ou qualidade de suas propostas, mas a
quantidade de recursos que consegue angariar”141.
Além disso, essa atividade provoca o afastamento dos partidos das suas
bases eleitorais, assim como da população em geral, em razão das doações
proporcionarem elevadas quantias financeiras para as campanhas eleitorais
angariarem votos. Sendo assim, serão atendidos prioritariamente os interesses
daqueles que contribuem com as campanhas em uma relação de negociação e troca
de favores e posteriormente, se houver vontade política, serão atendidos os
interesses da população em geral. Assim, reafirmando a questão do financiamento
privado contribuir com a corrupção partidária e proporcionar o afastamento popular
dos assuntos políticos, na qual tais acontecimentos são alguns dos fatores que
proporcionam a crise de representatividade, continua o mesmo autor,
Tal cenário contribui, ainda, para a crise de representação e para o
afastamento do povo da política. Afinal, se os políticos reúnem os recursos
necessários para se eleger apenas juntos a empresas, sem precisão de
cidadãos, o esquema de arrecadação de fundos diminui a capilaridade do
sistema representativo e cidadãos comuns ficam com a impressão de que a
política simplesmente não é para eles (OSORIO; SARMENTO, 2011, p. 11).
Portanto, a proposta de emenda constitucional sobre a reforma política deixa
de levar em consideração outros temas importantes para uma verdadeira reforma. É
preciso debater sobre mecanismos que melhorem a eficácia do modelo
representativo e atribuam maior participação popular no processo democrático,
principalmente através das medidas de democracia direta previstas no art. 14 da
Constituição Federal e regulamentadas pela lei 9.709/98, sem esquecer que a
sociedade civil deve ser incluída na elaboração da proposta, assim como na
participação da discussão.
141
OSORIO, Aline; SARMENTO, Daniel. Uma Mistura Tóxica: política, dinheiro e o financiamento
das eleições. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/1/art20140130-01.pdf>.
Acesso em: 28 ago. 2015.
220
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
5 AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu ordenamento a
possibilidade da democracia ser exercida tanto sob o modelo representativo quanto
participativo, revelando-se uma constituição que aborda elementos das duas
principais formas de exercer a democracia. Assim estipula o art. 1º, parágrafo único:
“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”142. A Constituição expressamente prevê
o exercício da forma participativa de democracia, fundada no princípio fundamental
da soberania popular estabelecido no artigo acima mencionado. Pelo exposto, a
participação popular poderá ser exercida através do plebiscito, do referendo e da
iniciativa popular.
A iniciativa popular, dentre todas as formas de participação da população, é
a que ocorre com mais frequência no Brasil. A iniciativa popular caracteriza-se pela
possibilidade da sociedade civil elaborar um projeto de lei, desde que preenchidos
determinados requisitos, e encaminhar ao Poder Legislativo, seja no âmbito federal,
estadual ou municipal, para sua apreciação. Esta forma de participação popular está
prevista no art. 61, parágrafo 2º da Constituição Federal.
O art. 61 da Constituição estabelece a execução da iniciativa popular no
âmbito federal, no entanto, há também a previsão para sua ocorrência no âmbito
estadual, conforme o disposto no art. 27, parágrafo 4º, e no âmbito municipal,
presente no art. 29, inciso XIII, ambos da Constituição. Além do disposto na Carta
Magna, a lei 9.709/98 regulamenta a execução das formas de participação popular.
Em relação à iniciativa popular, estabelece a lei, no art. 13 e parágrafos e no art. 14,
que os projetos de lei de iniciativa popular devem restringir-se em apenas um
assunto e não poderão ser rejeitados por vício de forma, cabendo à Câmara dos
Deputados as devidas correções. Observa-se que há uma pequena regulamentação
acerca da participação popular através da iniciativa popular. Dessa forma, a
ausência de uma maior regulamentação gera algumas lacunas em relação aos
projetos de lei de iniciativa popular, especialmente quanto ao tempo de sua
142
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
Senado,
1998.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 30 ago.
2015.
221
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
tramitação no Congresso Nacional. Ressalta-se que essas lacunas enquadram-se
em todas as formas de participação popular e não apenas à iniciativa popular.
Devido a estas lacunas, alguns projetos de iniciativa popular chegam a levar
quase dez anos de tramitação no Congresso Nacional, fator que desmotiva e leva à
descrença nessa alternativa. Desde a Constituição de 1988, apenas quatro projetos
de iniciativa popular foram apreciados e aprovados pelo Congresso, tornando-se lei.
São eles: a) lei 8.930/94, que altera a redação dada à lei de crimes hediondos; b) lei
9.840/99, que altera o Código Eleitoral no combate à corrupção eleitoral e na
ampliação de condições à Justiça Eleitoral para coibir a compra de votos; c) lei
11.124/05, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Moradia; e d) lei complementar
135/2010, que dispõe sobre a inelegibilidade de mandatos políticos. Pelos exemplos
mencionados, verificam-se poucos casos de projetos de lei de iniciativa popular ao
longo dos quase trinta anos da democracia brasileira, demonstrando as dificuldades
presentes nessa forma de participação popular.
Visto as atuais dificuldades para propositura de projetos de lei de iniciativa
popular, somada às lacunas que ainda existem sobre os procedimentos dos
projetos, espera-se que com a alteração dos percentuais atualmente exigidos pela
proposta de reforma política os projetos de iniciativa popular possam ser mais
utilizados e aproveitados, ampliando a participação popular no processo democrático
a partir deste instrumento. Todavia, ainda falta a elaboração de um regulamento que
preencha as lacunas presentes nos projetos legislativos de iniciativa popular,
assunto sobre o qual ainda há pouca discussão.
Outra forma de participação popular é o referendo, também regulamentado
pela lei 9.709/98. A palavra referendo, decorre do latim cuja origem etimológica é
“submissão da lei, proposta ou em vigor, ao voto direto do povo; direito do povo
votar diretamente esta lei”143. O referendo possui uma peculiaridade em relação às
outras formas de participação popular. Ele é utilizado quando o Congresso Nacional
já decidiu a matéria acerca de um ato legislativo ou administrativo e convoca a
população para ratificá-lo ou rejeitá-lo, conforme sua previsão no art. 2º, parágrafo
2º, da lei 9.709/98. Esta forma de participação popular também possui lacunas
legislativas devido ao texto que o regulamenta ser demasiadamente subjetivo. Ao
143
AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte:
Ed. da UFMG, 2006, p. 99.
222
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
descrever “matérias de acentuada relevância”, o texto legal torna-se extremamente
subjetivo, pois quais matérias seriam relevantes? E quais não seriam? Por essa
razão, verifica-se a necessidade de uma melhor regulamentação referente ao
disposto sobre a convocação do referendo como forma de participação popular.
O referendo pode ser convocado, tanto pela união, quanto pelos estados,
municípios e distrito federal, conforme determina o art. 6º da lei 9.709/98, desde que
respeitados a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do respectivo ente federado.
Promulgado o ato legislativo ou administrativo, a convocação do referendo ocorrerá
no prazo de trinta dias, contados da data da promulgação, de acordo com o art. 11
da referida lei.
A convocação de consulta popular, seja o referendo, seja o plebiscito, ocorre
mediante decreto legislativo, cuja competência no âmbito da federação é exclusiva
do Congresso Nacional, conforme o disposto no art. 49, inciso XV, da Constituição,
assim estabelecido: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV autorizar referendo e convocar plebiscito”144.
Dessa forma, não é possível a convocação de consultas populares através
da própria manifestação do povo, mas apenas pelo Congresso Nacional. Verificado
a falta de correspondência entre os interesses dos representantes e dos
representados, observa-se que pouquíssimas vezes foi autorizado o referendo no
Brasil, tornando as consultas populares pouco efetivas, já que determinada prática
não é do interesse dos representantes ou daquele seleto grupo que financiam suas
campanhas. Por essas razões, tem-se apenas um único registro na história política
do Brasil da autorização ou convocação do referendo ocorrida no ano de 2005
acerca da proibição ou não da comercialização das armas de fogo e munições.
5.1 O PLEBISCITO
Analisada a iniciativa popular e o referendo como formas de participação
popular, resta observar a última e mais direta forma de participação, o plebiscito. A
palavra plebiscito possui sua origem etimológica decorrente do latim, plebiscitum,
144
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
Senado,
1998.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 30 ago.
2015.
223
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
cujo primórdio encontra-se na civilização romana. Nesta época, o plebiscito era uma
forma de participação popular, cuja votação era proferida por uma assembleia do
povo, sendo composta por plebeus. Dessa maneira, a primeira parte da palavra,
plebis, significa povo, enquanto a segunda parte, scitum, possui a conotação de
decreto. Assim, plebiscito significa decretos da plebe.
A regulamentação do plebiscito, assim como as outras formas de consultas
populares,
está
estabelecida
na
lei
9.709/98.
No
entanto,
é
necessário
primeiramente, distinguir o conceito e a utilização de instrumentos que as vezes são
confundidos, quais sejam, o plebiscito e o referendo. De acordo com o art. 2º,
parágrafo 1º, da lei 9.709/98, “O plebiscito é convocado com anterioridade a ato
legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que
lhe tenha sido submetido”145. A principal diferença entre plebiscito e referendo está
relacionada quanto ao momento da convocação em relação ao ato legislativo ou
administrativo submetido à consulta. Assim, plebiscito e referendo podem ser
convocados para matérias de mesmo conteúdo. O que a lei diferencia entre os dois
instrumentos está relacionado apenas ao momento da convocação de cada um.
A regulamentação do plebiscito no ordenamento jurídico brasileiro encontrase presente na Constituição Federal de 1988 e na lei 9.709/98. De acordo com a
Constituição, o plebiscito será convocado quando houver incorporação, subdivisão
ou desmembramento de estado, conforme art. 18, parágrafo 3º, ou ainda quando
houver criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios, previsto no
art. 18, parágrafo 4º. Essas alterações só poderão ocorrer através da aprovação
popular das pessoas atingidas pelas mudanças geográficas e de aprovação
mediante lei complementar do Congresso Nacional, no caso de mudanças
geográficas envolvendo estados. Em relação aos municípios, além da aquiescência
popular, é necessário a aprovação de lei estadual na Assembleia Legislativa para
realização da mudança territorial. Neste mesmo sentido é a redação do art. 5º da lei
9.709/98. Desse modo, quando convocados, tanto o plebiscito quanto o referendo
serão aprovados ou rejeitados por maioria simples, conforme resultado homologado
junto ao Tribunal Superior Eleitoral, como dispõe o art. 10 da referida lei. Portanto, o
145
BRASIL. Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos
incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 nov.
1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 01 set. 2015.
224
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
plebiscito pode ser convocado nos casos de alteração territorial previstos na
Constituição e nos casos de relevância nacional, estipulado na lei 9.709/98.
Comparado ao referendo, afirma-se que o plebiscito é a forma mais direta de
participação popular pelo fato de sua convocação ser feita antes da aprovação do
ato legislativo ou administrativo no Congresso Nacional. Dessa maneira, a
população não é convidada para ratificar ou rejeitar uma proposta já confirmada,
mas para ela própria manifestar-se acerca da sua escolha.
Todavia, a regulamentação acerca das consultas populares ainda é
extremamente vaga, utilizando-se como exemplo as lacunas anteriormente
apresentadas. Além disso, existem alguns fatores que dificultam a incidência das
participações populares, e por esta razão, faz surgir os seguintes questionamentos:
a) as decisões populares possuem caráter vinculante ou consultivo perante o
Congresso Nacional?; b) quais matérias possuem acentuada relevância e como elas
são determinadas para convocar a população?; e por fim, c) a exclusividade do
Congresso Nacional para convocação de plebiscitos e referendos apresenta-se
como um obstáculo às formas de participação popular no processo democrático?
Em relação ao primeiro questionamento, Maria Benevides defende o caráter
vinculante do referendo. Ao referir-se sobre o plebiscito, por se tratar de uma
decisão futura, a autora não menciona que este instrumento deva ter sempre caráter
vinculante. Quanto aos dois últimos questionamentos, verifica-se que nem a
Constituição, nem a lei que regulamenta a execução das formas de participação
popular, definem ou indicam critérios para determinar qual matéria possui ou não
acentuada relevância. Com a omissão do texto legal, cabe ao Congresso Nacional
determinar a relevância do assunto para convocação popular. A partir disso,
constata-se como é pouco democratizado a determinação de assuntos para
convocação da participação popular. Em um contexto de crise de representatividade
intensifica-se ainda mais o problema, pois além do sentimento de falta de
representatividade, a sociedade civil não possui instrumentos para, a partir da sua
própria manifestação de vontade, convocar referendos ou plebiscitos.
Diante dos problemas referentes às omissões do texto legal, foram
apresentados projetos de lei ao Congresso Nacional com o objetivo de alterar
algumas disposições da lei 9.709/98 e dessa maneira, tornar as formas de
225
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
participação popular mais efetivas. Dentre as tentativas de alterações, destaca-se o
projeto de lei 4.718/2004146, o qual apresenta significativas alterações na lei
9.709/98, com o intuito de melhor disciplinar as formas de participação popular, afim
de que sejam utilizadas com maior frequência. O projeto prevê a possibilidade de
convocar consultas populares tanto por meio do Congresso Nacional, quanto por
meio de iniciativa popular, desde que atingidos 1% do eleitorado. Dessa forma, caso
seja aprovado, a convocação das consultas populares não será apenas
exclusividade do Congresso, mas a população, ao manifestar-se, também poderá
convocar consultas populares. Além disso, outra questão importante que o projeto
de lei aborda é a identificação de matérias que podem ser consultadas mediante
participação popular.
Visto as regulamentações, os critérios de convocação, os procedimentos e
os projetos de mudança da atual legislação referentes as formas de participação
popular, verifica-se ao longo da história política do Brasil, que poucos foram os
casos de convocação popular através de plebiscitos. O primeiro plebiscito
convocado foi no ano de 1963, o qual coube a população brasileira optar entre o
presidencialismo e o parlamentarismo como sistemas de governo, na qual a ampla
maioria da população escolheu pelo retorno do sistema presidencialista. Passados
trinta anos após a convocação do primeiro plebiscito da história política do Brasil, em
1993, foi convocado o segundo e último plebiscito. O plebiscito convocado em 1993,
estabelecido no art. 2º das disposições transitórias da Constituição, possui a
seguinte redação: “No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de
plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo
(parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País”147. Após a
convocação, a população brasileira escolheu pela república como forma de governo
e pelo presidencialismo como sistema de governo.
146
PROJETO DE LEI 4.718/2004. Regulamenta o art. 14 da Constituição Federal, em matéria de
plebiscito, referendo e iniciativa popular. Câmara dos Deputados. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=260412&filename=PL+471
8/2004>. Acesso em: 02 set. 2015.
147 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
Senado,
1998.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 07 set.
2015.
226
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Desse modo, percebe-se como foram escassos os casos de convocação de
consultas populares ao longo do período democrático brasileiro, principalmente pelo
entrave colocado para sua realização.
[…] a exclusividade da convocação de consultas nas mãos dos poderes
constituído; o rígido controle de constitucionalidade; a supremacia do
Legislativo, através do poder incontrastável de maioria parlamentar; a
inflexibilidade na definição de prazos e de elevado número de assinaturas
para o encaminhamento de propostas de referendo ou de iniciativa popular
(BENEVIDES, 1991, p. 157).
Portanto, ao retomar a história das convocações populares ocorridas no
Brasil, verifica-se quão inexpressivo foi e ainda é a participação popular no processo
democrático, principalmente se comparado com outras sociedades democráticas,
como Estados Unidos e Suíça. Assim, percebe-se as limitações impostas a esta
forma de exercer a democracia, na qual a população brasileira ficou afastada,
permanecendo à margem no exercício da democracia, demonstrando a falta de
participação popular no processo democrático.
5.2 O PLEBISCITO E SEUS CRÍTICOS
Após analisar a forma mais direta de participação popular, deve-se
mencionar as críticas atribuídas quanto à utilização do plebiscito como forma de
consulta popular. Dessa forma, se faz necessário verificar o desvirtuamento dos
instrumentos de participação popular, principalmente em relação ao plebiscito,
averiguando casos ocorridos em outras sociedades e suas mazelas ao sistema
democrático. Todavia, antes desta análise, cabe ressaltar que o presente trabalho
não tem a intenção de argumentar que a forma participativa de democracia é melhor
que a forma representativa, ou que apenas a democracia participativa deva ser
utilizada como único modelo de democracia, excluindo-se a forma representativa.
Mas, apenas que a forma participativa deva ser melhor regulamentada e utilizada
com maior frequência, afim de que haja menos obstáculos às consultas populares,
com o intuito de uma maior participação popular no processo democrático,
atendendo melhor aos interesses populares e amenizando os efeitos da crise de
227
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
representatividade. Ressaltado esse ponto, resta analisar as críticas feitas ao
plebiscito quando usado de uma forma descaracterizada de sua natureza, com o
intuito de promover ou legitimar ditaduras pessoais. Entre as sociedades que
passaram por este fenômeno, a francesa é o exemplo mais significativo.
Ao assumir como chefe de Estado, Napoleão I utilizava-se do plebiscito
como forma de consulta popular, alegando agir em nome da vontade do povo, para,
ao invés do declarado, legitimar suas vontades pessoais e sua permanência no
poder. Dessa forma, “o plebiscito era como um banho purificador que legitimava
todas as ilegalidades”148. Napoleão I, explorava a soberania popular como um meio
de realizar os seus interesses, aparentando um aspecto de legalidade de seus atos.
Enquanto conseguia beneficiar-se da soberania popular, Napoleão I acreditava ser o
representante da coletividade. Neste caso, um governo monárquico disfarçava-se
como democrático mediante a utilização dos instrumentos de consulta popular. É
possível estas verificações nos períodos pré-napoleônico e napoleônico, a partir dos
assuntos que foram convocados e posteriormente aprovados.
Os referendos da época pré-napoleônica e napoleônica são chamados de
“plebiscitos” e foram realizados com altíssima taxa de apoio ao regime e à
pessoa do seu chefe: a aprovação da Constituição do ano VIII; a adoção do
consulado vitalício em 1802; a aprovação da hereditariedade imperial em
1804; a aprovação do Ato Adicional à Constituição do Império em 1815; a
aprovação da proclamação de Luís Napoleão, em 1851; o restabelecimento
da dignidade imperial, em 1852; o apoio ao regime em maio de 1870 (sete
vezes mais votos ‘sim’); e o apoio ao Governo da Defesa Nacional, em
Paris, novembro de 1870 (BENEVIDES, 1991, p. 59).
Dessa forma, observa-se que os assuntos aprovados pela consulta popular
beneficiavam mais aos interesses pessoais do chefe de Estado que ao atendimento
da vontade do povo, o que demonstra a utilização desvirtuada do plebiscito como
forma de legitimar e aparentar certa legalidade aos atos praticados pelo monarca.
Além dessa prática utilizada por Napoleão I, também se beneficiaram das
distorções das consultas populares Napoleão III e posteriormente o presidente
francês De Gaulle, nos anos de 1962 e 1969. Em relação a este último, as
explorações das consultas populares como forma de legitimar interesses individuais
148
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Brasília: Ed.
da UnB, 1982, p. 125.
228
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
do chefe de Estado ocasionaram a própria renúncia do presidente, quando convocou
a população para decidir sobre a criação de regiões e renovação do Senado. Por
estes fatos históricos mencionados que a sociedade francesa tornou-se o principal
exemplo de sociedade em que um Chefe de Estado conseguiu deturpar a natureza
das consultas populares com o objetivo de atender aos seus próprios interesses,
razão pela qual a população francesa mostrou-se temerária em relação a estas
consultas.
É por isso que, para os franceses, o termo plebiscito tem conotação
pejorativa. Suas ressalvas decorrem da experiência histórica dos plebiscitos
napoleônicos de 1799 a 1870 (segundo um dos críticos, com tais
plebiscitos, os franceses terminavam sempre por ratificar todas as leis que
favoreciam a entrada do golpe de Estado nas instituições!), assim como os
‘referendo plebiscitários’ convocados por De Gaulle, sobretudo em 1962 e
1969. Percebe-se, portanto, que o que está em causa, no exemplo francês,
não é o mecanismo de consulta popular em si, mas a sua regulamentação e
utilização (BENEVIDES, 1991, p. 38).
Além do exemplo da sociedade francesa, encontra-se a ocorrência da
distorção das consultas populares também na Alemanha, durante o período da
ditadura nazista, quando Adolf Hitler convocou um plebiscito, no ano de 1938,
acerca da anexação da Áustria. Assim, essa conduta “[…] levou os constituintes,
depois da Segunda Guerra Mundial, a tomarem muitas precauções para evitar o uso
do plebiscito que poderia favorecer ditaduras; é por isso que o referendo não
aparece na Carta alemã de 1949”149. No caso da América do Sul, durante a ditadura
militar do Chile, Pinochet, no ano de 1978, utilizou-se do plebiscito para garantir-se
no poder e dessa forma manter em suas mãos o controle estatal.
Dessa forma, percebe-se que as consultas populares, principalmente por
meio do plebiscito, provocam mazelas ao sistema democrático quando utilizadas
para legitimar interesses pessoais do Chefe de Estado. Assim, quando associadas
ao poder pessoal, as consultas populares transformam-se em meios de garantia e
legitimação do poder. Por isso, não é o simples fato de haver a possibilidade de
consultas populares que, por esta razão, causam-lhes desprestígio, mas quando
usadas de forma inconveniente aos princípios e pilares democráticos. É por esta
149
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa: referendo, plebiscito e iniciativa
popular. São Paulo: Ática, 1991, p. 41.
229
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
razão que se deve ter certas precauções quanto à convocação das consultas
populares para garantir a “efetiva democratização do processo”150. Como relata
Benevides no sentido de ser essencial que “o desenrolar do processo de consultas
populares deve estar claramente dissociado de um ‘voto de confiança’ na pessoa do
governante”151.
As consultas populares, quando distorcidas de suas características
democráticas, acabam elevando ao poder ditadores, que as utilizam com o intuito de
legitimar suas tiranias ou sua permanência no poder, conforme os casos expostos.
No entanto, quando mantido a essência desses instrumentos, percebe-se suas
vantagens em relação à efetivação do sistema democrático nas sociedades
modernas. Diante do exposto, verifica-se a necessidade de ampliação das consultas
populares, como forma de participação do povo no processo democrático e com o
intuito de complementar a democracia representativa, especialmente em relação aos
efeitos provocados pela crise de representatividade. Além dos instrumentos mais
conhecidos e regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro de consultas
populares, existem outras formas estudadas de participação, mas as quais não
foram
objetos
do
presente
trabalho152.
Quanto
às
consultas
populares
regulamentadas pelos institutos legais, para serem democraticamente efetivas,
devem preferencialmente estar ligadas com programas ou projetos políticos-social,
de forma que seja imune as distorções das consultas como instrumentos de garantia
de interesses pessoais e manutenção no poder do Chefe de Estado.
150
Ibid., p. 63.
BENEVIDES, 1991.
152 As principais formas de participação popular, diferentes daquelas estabelecidas no ordenamento
jurídico brasileiro - plebiscito, referendo e iniciativa popular - são a cyberdemocracia, estudada
principalmente pelos filósofos Norberto Bobbio e Pierre Levy, e a revogação de mandato, também
conhecida como recall, prevista em alguns estados dos Estados Unidos e em alguns países da
América do Sul. Em relação a primeira forma de participação popular, já existem alguns projetos de
leis na Câmara dos Deputados com o intuito de regulamentar o assunto, como por exemplo o Projeto
de Lei 4.219/2008 que dispõe sobre o cadastro de eleitores para apresentação, via internet, de
projeto de lei de iniciativa popular, alterando a lei 9.709/98, disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=414203>. Acesso em:
11 set. 2015. O Projeto de Lei 4.764/2009 que regulamenta a iniciativa popular por meio da rede
mundial
de
computadores,
disponível
em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=424836>. Acesso em:
11 set. 2015. E o Projeto de Lei 4.805/2009 que acrescenta o art. 13-A e altera o art. 14 da lei
9.709/98, para permitir subscrição de projetos de lei de iniciativa popular por meio de assinaturas
eletrônicas,
disponível
em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=425809>. Acesso em:
11 set. 2015.
151
230
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se que o modelo político-representativo brasileiro apresenta
indicativos da existência de uma crise de representatividade do Poder Legislativo,
assim como outras sociedades que adotam o mesmo modelo. Dessa forma,
destacaram-se como indícios a debilidade partidária, a qual é composta: pela
burocratização
dos
partidos;
pela
ideologia-estratégica
dos
partidos;
pelo
distanciamento das bases eleitorais; pela forma do discurso político apresentado; e
sob a lógica do mercado político, a transformação ou institucionalização em partidos
competitivos. Além destes indícios, há também a questão referente à corrupção
partidária e a falta de identificação entre representantes e representados, as quais
compõem o conjunto de fatores que geram a crise de representatividade. A
apresentação de dados e índices de pesquisas de satisfação popular corroboram
para a comprovação da referida crise.
Especificando o caso brasileiro, constata-se que a atenuação destes efeitos
provocados pela crise de representatividade exige uma ampla e sistêmica reforma
política. Assim, na proposta de emenda constitucional para aprovação da reforma
política, ainda em tramitação no Congresso Nacional, verifica-se a falta dessas duas
exigências, na qual apenas muda-se a roupagem, mas o corpo continua com os
mesmos defeitos do sistema. Dessa forma, haverá, como vem demonstrando a
tramitação da proposta, mudanças, mas não conforme o exigido nas manifestações
populares de junho de 2013.
Diante do exposto, entende-se que uma reforma política que atenda aos
interesses populares como uma forma de diminuir os efeitos da crise, principalmente
em relação ao sentimento de falta de representatividade, ocorreria através da
regulamentação das formas de participação popular, especialmente o plebiscito, o
qual é o instrumento mais direto de participação previsto na Constituição Federal de
1988, afim de romper os obstáculos legais impostos e tornar mais frequente e efetiva
a participação popular no processo democrático, fazendo com que a população
sinta-se presente no debate político e não a sua margem.
231
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
REFERÊNCIAS
APÓS QUEDA ACENTUADA em 2013, índice de confiança social se estabiliza.
IBOPE,
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AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil.
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BRASIL. Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do
disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. Diário Oficial da
União,
Brasília,
DF,
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nov.
1998.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ADOÇÃO MONOPARENTAL: ANÁLISE DA AMPLIAÇÃO DA PARIDADE
JURIDICA E SOCIAL DO SOLTEIRO COMO LEGITIMADO À ADOÇÃO
SINGLE PARENT ADOPTION: ANALYSIS UPON EXTENSION OF LEGAL AND
SOCIAL PARITY TO THE SINGLE PARENT ENTITLEMENT FOR ADOPTION
Heluana Aparecida Maria153
Adriana Martins Silva154
SUMÁRIO
Resumo. Abstract. 1 Introdução 2 Família Monoparental: Conceito, Panorâma Histórico e
Proteção Normativa 2.1 Surgimento da Família Monoparental 2.2 A Proteção Normativa da Família
Monoparental 3 Adoção: Conceito e Aspectos Normativos 3.1 Aspectos Normativos 3.2 A Adoção
Brasileira a Luz da Nova Lei da Adoção 3.3 O Solteiro Frente aos Legitimados a Adoção 4 Análise
dos Parâmetros Normativos da Ampliação da Paridade Jurídica e Social da Adoção do Solteiro
4.1 A Constituição Federal de 1924 á 1988 4.2 O Código Civil de 1916 a 2002 4.3 A Análise
Normativa do Estatuto da Criança e do Adolescente 5 Considerações Finais. Referências.
RESUMO
O presente trabalho visa à análise dos parâmetros sobre a ausência de dispositivos normativos
constitutivos, nos diplomas legais, que legitimem a adoção por pessoas solteiras. A adoção, como
uns dos institutos que compõe o Direito de Família, visa garantir, diante do princípio do melhor
interesse da criança, e como medida excepcional, a proteção às crianças e adolescentes aptas a
serem adotadas e a adoção destas pelos legitimados. Determina a presente pesquisa, que mesmo
com a paridade da adoção atribuída aos solteiros, estabelecida pelo artigo 42, do Estatuto da Criança
e do Adolescente, inexistem regras especificas que salvaguardem os interesses particulares destes
legitimados, já que estes irão constituir a entidade familiar monoparental por adoção, entidade esta
que aumenta expressivamente diante da sociedade contemporânea. Fundamenta a respectiva
análise, na necessidade de leis específicas que determinem sua estruturação, a fim de proporcionar
segurança jurídica, para que não haja necessidade de se recorrer a leis gerais para embasar as teses
de adoção por pessoas solteiras, diante dos princípios constitucionais estabelecidos em nossa
Constituição Federal de 1988, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente, que
proporcionem direitos e garantias que viabilize todo o processo.
Palavras-chave: família, adoção, monoparental, paridade, legitimidade
153
Aluna do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).
[email protected]
154
Advogada. Mestre em Direito. Professora de Graduação do Curso de Direito do Centro
Universitário Curitiba (Unicuritiba). [email protected]
235
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
The purpose of this essay is addressed to analyze the parameters in regard to the absence of
constitutive regulatory provisions, as per the legislation, which furnish entitlement to single parent
adoption. Adoption, per se, as one of the basis which comprises the Family Law, is appointed to
ensure, pursuant the principle of the best interests of the child, and as an exceptional measure, to
source the protection of child and adolescent able to enter into adoption and such adoption by their
entitled. This research determines, albeit the parity of single parenthood adoption, as set forth per
article 42, from the Statute of Child and Adolescent, it lacks proper specific rules to furnish protection
upon the individual interests arising from these entitled single parents, since they will be establishing
the family unit parenthood by the event of adoption, unit of which is being broadly enhanced through
contemporary society. The fundament of such analysis, upon the necessity of specific legislation to
define its structure, in light of provision of legal assurance, in spite not to resort only to general
legislation to estate the single parent adoption thesis, as per the general principles as set forth in our
Federal Constitution as of 1988, Civil Code and the Statute of Child and Adolescent, to furnish the
rights and guarantees to enable the process.
Keywords: Family, adoption, single parent, parity, entitlement
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa estabelecer uma análise da importância da
ampliação da paridade jurídica e social na adoção por pessoas solteiras, frente aos
demais legitimados à adoção, já estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Para atingir o objetivo desta análise, faz-se necessário a construção de um
arcabouço de dispositivos normativos pertencentes ao Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/90), ao Código Civil (de 1916 e 2002) e a Constituição
Federal (1924 á 1988), a fim de romper os conceitos tradicionais de família e garantir
a tutela diante da existência de novas entidades familiares que se estruturam em
direitos deveres, principalmente no que concerne aos solteiros, diante de critérios
legais de adoção na concepção da família monoparental por adoção.
Além disso, perante a constatação de ausência de norma específica de
proteção à família monoparental, que não apenas o artigo 226, §4º, da Constituição
Federal de 1988 e, consequentemente de estruturação substancial normativa
objetiva quanto à adoção por solteiros, que permita maior segurança jurídica e
garantia do Estado, há necessidade de estabelecer parâmetros de ampliação
normativa que não apenas o artigo 42, caput, do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
236
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Pleitear a ampliação da paridade jurídica na adoção por pessoas solteiras,
traz consigo a quebra das restrições existentes, transcendendo os conceitos
tradicionais de família que acabam por travar a função jurisdicional, dificultando a
garantia de novas necessidades normativas que surgem em nosso ordenamento.
O trabalho destaca que ao tratarmos da adoção, principalmente na formação
de famílias monoparentais por adoção, em que os solteiros estão se tornando os
protagonistas desta entidade familiar, há necessidade de uma análise precisa, da
atuação do Estado, em detrimento de um aumento desta formação familiar,
garantias de sucesso, proteção estatal e a ampliação da paridade jurídica em
relação aos demais legitimados a adotar.
Por fim, a família monoparental, juntamente com o instituto da adoção, se
torna o objeto da discussão, sendo em torno destes é que se estabelecerão as
correlações de análise da segurança jurídica dos institutos, diante da adoção
realizada por pessoas solteiras, assim como a ausência de regulamentação própria
e de dispositivos normativos constitutivos que regrem ou assegurem garantias
jurídicas eficazes, que evidenciem a ampliação da paridade com os demais
legitimados a adoção.
2 A FAMÍLIA MONOPARENTAL: CONCEITO, PANORÂMA HISTÓRICO E
PROTEÇÃO NORMATIVA
De acordo com o a Constituição Federal de 1988, em se artigo 226, § 4º,
define-se Família Monoparental como sendo aquela constituída por qualquer um dos
pais e seus descendentes. Protegidas pelo Estado, porém sem instituto normativos
próprios que regulem direitos e deveres relativos a esta entidade familiar.
2.1 SURGIMENTO DA FAMÍLIA MONOPARENTAL
A família monoparental se caracteriza por ser uma entidade familiar composta
por um dos pais e seus filhos. A referida expressão começou a ser utilizada na
França, na década de 70 (SANTOS, 2008, p. 27). A Constituição Federal de 1988
define tal entidade em seu artigo 226 § 4º, constituindo sua proteção normativa.
237
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A origem da expressão famílias monoparentais, advém dos países AngloSaxões e trazido por sociólogas feministas contrarias ao governo francês que
contestavam a forma de tratamento à maternidade extraconjugal, o resultado da
extinção do casamento proveniente de problemas psicossociais e recorrentes de
famílias de risco. A finalidade era expor a importância da mulher como chefe de
família, atribuindo a elas e a esses lares a condição de entidades familiares,
determinando uma nova perspectiva familiar diante da família tradicional (VITALE,
2002, p. 47).
O termo família monoparental foi introduzido pela socióloga francesa Nadine
Lefaucher, sendo uma das primeiras pesquisadoras a se preocupar com as
questões das mães solteiras e a introduzir o respectivo termo nos estudos das
Ciências Sociais e na estatística da França nos anos 80 (VITALE, 2002, p. 47).
O crescimento da família monoparental originou-se também, da Grande
Depressão de 1929 e das duas Grandes Guerras Mundiais, a Primeira e a Segunda
Guerra entre 1939 e 1945, que ocasionaram grande desemprego entre as mulheres
que se voltaram ás responsabilidades familiar (MADALENO, 2013, p. 33 e 34.).
No Brasil Carmen Barroso, Diretora Regional da Federação Internacional de
Planejamento Familiar e, Cristina Bruschini, Socióloga e Pesquisadora da Fundação
Carlos Chagas, publicaram em 1981 um texto chamado “Sofridas e Mal Pagas”, em
que retratavam a difícil condição de vida das mulheres na situação de chefes de
famílias. A antropóloga Social Claudia Fonseca, Professora da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, constatou que as famílias que são lideradas por mulheres
devem ser analisadas em contexto de rede familiar e devem ser protegidas de
explanações que venham a denegrir esta formação familiar (VITALE, 2002, p. 48).
O crescimento das famílias monoparentais pode ser atribuído à liberdade nas
relações afetivas, à autonomia feminina nas questões de independência financeira,
na escolha e manutenção de relacionamentos, na garantia do divórcio diante do
término das relações conjugais e o abandono afetivo por parte do genitor.
238
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.2 A PROTEÇÃO NORMATIVA DA FAMÍLIA MONOPARENTAL
A Família Monoparental, base do referido estudo, define-se como
entidade familiar composta por qualquer um dos pais e seus filhos, sendo que tal
definição consta no artigo 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988. O Código Civil
de 2002 não traz requisitos normativos de proteção para esta entidade familiar, não
fazendo referência a monoparentalidade, mas sim, constitui dispositivos referentes
às famílias informais (Art. 1.723 do CC de 2002), ou seja, provenientes das uniões
estáveis e um rol de proteção normativa as famílias matrimoniais (Arts. 1.511 a 1688
do CC de 2002).
Ausentes dispositivos de regulamentação específica referente à entidade
familiar no Código Civil, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha
determinado a respectiva proteção normativa, não houve a devida regulamentação
infraconstitucional referente a direitos e obrigações estabelecidos pelos vínculos
monoparentais, haja vista, os efeitos jurídicos relativos a situações como a viuvez,
separação, a não convivência com os genitores, assim como, os resultantes do
poder familiar e do vinculo de filiação (MADALENO, 2013,p.10). Inclui-se ao rol de
possibilidades de monoparentalidade, a adoção (solteiros, viúvos, divorciados) e a
inseminação artificial.
Inexistindo vínculo conjugal, a família monoparental só pode conceber
interesses relativos à filiação e poder de família, sendo vedado qualquer tipo de
discriminação que desfavoreça esta entidade familiar (COELHO, 2012, p. 302).
A família monoparental não possui disciplina jurídica própria, determinantes
de direitos e deveres específicos, cabendo a esta os dispositivos que regulam o
Direito de Família, questões como filiação e poder de família, como já elucidado. A
referida entidade familiar se desconstitui em virtude da maioridade e com a
emancipação do filho, prevalecendo apenas nas questões de parentesco e relativas
ao direito de alimentos. Aplica-se a esta entidade familiar à questão da
impenhorabilidade dos bens de família – §1º da Lei 8009/90 - em casos de constituir
único bem para moradia (LOBO, 2011, p. 89).
Mesmo com a utilização de dispositivos que regulam o Direito de Família, a
família monoparental, admite o reconhecimento da necessidade de uma tutela
239
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
jurídica especifica a sua condição de monoparentalidade, diante na importância
desta entidade, que passou de uma situação de reprovação social para a proteção
constitucional (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 577).
Diante das questões sociais que levam ao surgimento das famílias
monoparentais e da necessidade da prestação de tutela do Estado, Cristiano
Chaves de Farias argumenta sobre a importância do tema:
Desfechando o tema, vale lembrar outro fator de destaque nas relações
monoparentais. É que as famílias monoparentais apresentam estrutura
endógena mais frágil, em face dos encargos mais pesados que são
impostos aos ascendentes que, cuidara sozinho, do seu descendente. É de
se observar que a monoparentalidade decorre da dissolução de uma
relação afetiva ou da formação de um núcleo familiar sem a presença
constante de um dos genitores, como na hipótese da mãe solteira. Com
isso, há uma tendência natural à diminuição da renda econômica ou a
permanência do baixo nível de renda, levando ao reconhecimento de certa
fragilidade no seio destas famílias. Exatamente por isso, no que atine à
implementação de politicas públicas (como a concessão de benefícios
previdenciários, reconhecimento de proteção ao bem de família,
deferimento de vantagens para aquisição de casa própria...), entendemos
necessário que seja dispensada proteção especial e diferenciada as
famílias monoparentais, garantindo a própria igualdade substancial
(FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 106).
A monoparentalidade apresenta uma relação bem especifica em nosso
ordenamento. Pode se apresentar de forma transitória, ou seja, com a possibilidade
de se converter em outras entidades familiares constituindo vínculos matrimoniais ou
união estáveis, assim como se constituir, em definitivo, diante de sua condição
única. Devido a sua singularidade como entidade familiar e, diante do solteiro como
protagonista da pretensão à adoção, a fim de constituir a família monoparental por
adoção, torna-se necessária maior efetividade da tutela jurisdicional.
3 ADOÇÃO: CONCEITO E ASPECTOS NORMATIVOS
O conceito de adoção, estabelecido pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8069 de 13 de julho de 1990, é regido pelo artigo 39, § § 1º e 2º,
determinando que a adoção de crianças e de adolescentes será regida pelos
dispositivos contidos na referida lei. É considerada uma medida excepcional e
irrevogável, devendo ser impetrada apenas nos casos em que se esgotaram todas
240
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
as tentativas de manutenção da criança e do adolescente em sua família natural ou
extensa, sendo proibida a adoção por meio de procuração (BARROS, 2010, p. 66).
O conceito de adoção, segundo a doutrina, apresenta definições muito
semelhantes:
A adoção constitui um parentesco eletivo, por decorrer exclusivamente de
um ato de vontade. Trata-se de modalidade de filiação construída no amor,
na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, gerando vínculo de parentesco por
opção. A adoção consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se não em
fator biológico, mas em fator sociológico (DIAS, 2013, p. 481).
Finalmente, podemos conceituar a adoção como um ato jurídico em sentido
estrito, de natureza complexa, excepcional, irrevogável e personalíssimo,
que firma a relação paterno ou materno-filial com o adotando, em
perspectiva constitucional isonômica em face da filiação biológica
(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 747).
Contemporaneamente, a adoção está assentada na ideia de oportunizar a
uma pessoa humana a inserção em núcleo familiar, com a sua integração
efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo as suas
necessidades de desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma
psíquico, educacional e efetivo (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 1027).
A adoção é um ato jurídico, regido por lei própria, tendo os demais
dispositivos legais como aporte legal para assegurar sua eficácia normativa. Tratase de uma livre iniciativa de vontade da parte interessada em integrar, no núcleo
familiar, individuo alheio considerado como filho, decorrente do desenvolvimento da
afetividade entre as partes, criando laços de parentesco, independente de vínculo
consanguíneo.
3.1 ASPECTOS NORMATIVOS
A adoção, um dos institutos mais importantes que compõe o Direito de
Família, possui uma robusta proteção normativa aos seus sujeitos de direito, as
crianças e adolescentes, perante o Princípio da Proteção Integral.
A adoção configurava em conceder filhos adotivos com a finalidade de
realizar o desejo dos conviventes em matrimônios ou uniões estáveis. Com o
advento da doutrina do melhor interesse da criança e do adolescente, inverte-se
esta prioridade, prevalecendo o interesse da criança e do adolescente sobre o
interesse do adotante, proporcionando uma integração familiar mais efetiva visando
241
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
à felicidade e o bem estar do adotado (buscam-se pais para os filhos e não filhos
para os pais) (MADALENO, 2013, p. 624).
A supremacia dos interesses das crianças e dos adolescentes fundamenta-se
na Declaração dos Direitos das Crianças de 1924, Declaração de Genebra,
atribuindo à humanidade a responsabilidade de fornecer todos os meios necessários
para o melhor desenvolvimento delas, assim como, a Declaração dos Direitos da
Criança de 1959, que ratificou os meios que deveriam ser assegurados por lei,
através de uma proteção especial, assegurando o desenvolvimento físico, mental,
espiritual e social, realizada de maneira saudável, com liberdade e dignidade. A
mesma ideia norteou a conferência realizada em Haia em 1961 (MADALENO, 2013,
p. 624).
A criança e o adolescente devem ter seus direitos elevados à primeira
categoria de prioridades, assim como suas garantias fundamentais respeitadas, para
que possam exercê-las sem restrição (MADALENO, 2013, p. 624). Tais direitos
fundamentais estão elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069
de 13 de julho de 1990 – a partir do artigo 3º do referido diploma:
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade
(BARROS, 2010, p. 21).
A Consolidação de dispositivos legais favoráveis às crianças e aos
adolescentes foi determinada pela Constituição Federal de 1988, entre eles, temos a
regulamentação de tratamento dos filhos adotivos, que passam a ter os mesmos
direitos que os biológicos, vedada discriminação à filiação, determinada pelo § 6º do
art. 227 da referida Constituição (MADALENO, 2013, p. 624).
O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/1990 – traz um sistema
jurídico de regulamentação da adoção, complementada pelo Código Civil de 2002,
reformulando regras já existentes no próprio código, como alteração da idade
mínima do adotante, de 21 para 18 anos. Essa alteração foi atribuída pelo art. 4º da
Lei nº 12.010/09, A Nova Lei de Adoção, que traz a redução da capacidade civil,
242
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
alterando a redação dos artigos 1.618 e 1619 e revogando os artigos 1.620 a 1.629
do Código Civil (MADALENO, 2013, p. 624. e 625).
As Constituições Federais de 1924 á 1969 não fazem referência ao instituto
da adoção, não estabelecendo proteção integral as crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos. Apenas com o advento da Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 227, § § 5º e 6º, estabelece que a adoção deverá ser assistida pelo Poder
Público, principalmente no que concerne a adoção realizada por estrangeiros, assim
como que os filhos havidos pela adoção, deverão ter os mesmos direitos que os
biológicos, sendo vedadas qualquer discriminação relacionada a filiação.
O Código Civil de 1916 regulamentava a adoção baseada em princípios
romanos, concedendo filhos a casais que não podia tê-los de forma natural, além de
esta ser concedida apenas a casais com idade acima de 50 anos e sem filhos
legítimos. Diante da Lei nº 3. 133/57, a idade mínima de 50 anos passa para 30
anos, com ou sem filhos, melhorando as condições da adoção.
O Código Civil de 1916 estabelecia a adoção calcada em princípios romanos,
concedendo filhos a casais que não podia tê-lo naturalmente, podendo adotar
apenas pessoas maiores de 50 anos e sem filhos legítimos. A Lei nº 1.133/57 altera
a idade mínima de 50 para 30 anos, com ou sem filhos, facilitando a adoção.
O artigo 377, do Código Civil de 1916, não equiparava filhos legítimos e os
adotivos diante do direito sucessório, não garantia os direitos à sucessão hereditária,
assim como o artigo 378, não estabelecia à integração total do adotado a família
substituta. Somente com o advento do artigo 6º da Lei 4.655/65 regularizou o artigo
378 do Código Civil de 1916, cessando o vínculo de parentesco com a família
natural, através da legitimação adotiva (DIAS, 2013, p. 480).
O Código de Menores, estabelecido pela Lei nº. 6.697, de 10 de outubro de
1979, revoga a legitimação adotiva em substituição à adoção plena, em que o
referido instituto, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 380) “possibilitava
que o adotado ingressasse na família do adotante como se fosse filho de sangue,
modificando-se o seu assento de nascimento para esse fim, de modo a apagar o
anterior parentesco com a família natural”.
Com a instituição do Código Civil de 2002, ocorre uma incongruência
normativa, pois, enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente regulava
243
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
exclusivamente a adoção de crianças e adolescentes, o Código Civil dispunha de
dispositivos relativos á mesma matéria da adoção de menores de idade. Tal conflito
foi reparado, com a promulgação da Nova Lei de Adoção – Lei nº 12.010/09, § 2º que atribuiu ao ECA exclusividade normativa relativa a adoção de crianças e
adolescentes, mas indica a aplicação dos dispositivos do Código Civil de 2002 em
adoções de maiores de 18 anos, disposto do artigo 1.619 (DIAS, 2013. p. 481).
3.2 A ADOÇÃO BRASILEIRA A LUZ DA NOVA LEI DA ADOÇÃO
O instituto da adoção se consolidou, por meio de seus institutos normativos,
ratificando as garantias fundamentais inerentes ao adotante e ao adotado. Deixa de
ser caracterizada como um negócio jurídico, passando a determinar a inclusão
efetiva do adotado na nova família. A adoção, no Brasil, no final do século XX, se
consolida através das convenções internacionais, diante a Convenção sobre Direitos
da Criança/1990; Convenção Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matéria de
Adoção Internacional/1984; Convenção de Proteção das Crianças; Cooperação em
Matéria de Adoção Internacional/1983 (LOBO, 2011, p. 274).
A lei nº 12.010 de 03 de agosto de 2009, conhecida como “A Nova Lei de
Adoção”, dispõe que todo o sistema de adoção brasileiro será regido exclusivamente
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em que a adoção será considerada
medida excepcional, preservando ao máximo a criança em sua família natural ou
extensa. (LOBO, 2011, p. 274). Diante da prerrogativa da importância de um
ambiente familiar saudável, construído pelo afeto e pelo amor, Paulo Lobo faz uma
critica a está lei:
É uma lei restritiva e limitante da adoção, ao contrário do que apregoaram
as razões legislativas. O § 1º do art. 39 do ECA, com a redação introduzida
pela lei, é explícito: “a adoção é medida excepcional”, à qual se deve
recorrer apenas quando esgotados os esforços para manutenção da criança
na “família natural ou extensa”. Este conceito alargado de família extensa
abrange os parentes próximos. Se nenhum deles manifestar interesse em
cuidar da criança, então se recorrerá à adoção. Condicionar a adoção ao
interesse prévio de parentes pode impedir ou limitar a criança de inserir-se
em ambiente familiar completo, pois, em vez de contar com pai e (ou) mãe
adotivos, acolhido pelo desejo e pelo amor, será apenas um parente
acolhido por outro, sem constituir relação filial. (LOBO, 2011, p. 274)
244
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A Lei nº 12.010/2009 alterou dispositivos constitutivos do Estatuto da Criança
e do Adolescente e revogou 10 artigos do Código Civil de 2002 referentes à adoção,
do artigo 1.620 a 1.629. Concedeu nova redação aos artigos 1.618, 1.619 e 1.734 do
referido dispositivo. Inseriu dois parágrafos na Lei nº 8.560/92, que estabelece a
investigação de paternidade de filhos havidos fora do casamento (GONÇALVES,
2012, p. 382).
A Lei Nacional de Adoção surge com o principio de gerir com mais eficiência e
rapidez os processos de adoção, desta forma, constitui um Cadastro Nacional de
Adoção (resolução do Conselho Nacional de Justiça), para facilitar o encontro de
pessoas habilitadas para as crianças e adolescentes já destituídos do pátrio poder e
em condições de serem adotadas. Altera a redação do artigo 19 § § 1º e 2º do
Estatuto da Criança e do Adolescente, (GONÇALVES, 2012, p. 382) estabelecendo
a adoção como medida excepcional; que crianças e adolescentes que se encontrem
em programas de acolhimento familiar ou institucional, terão que ser reavaliados a
cada seis meses por equipe multidisciplinar, sendo que, sua permanência nestes
programas não deve ultrapassar o máximo de dois anos, exceto comprovado
necessidade do menor (BARROS, 2010, p. 38).
A Nova lei de adoção estabelece em seu artigo 42, caput, a idade mínima de
18 anos para que uma pessoa possa adotar independente do estado civil, sendo que
tal ato depende de maturidade intelectual do gesto de adotar (MADALENO, 2013, p.
638). Verifica-se ausente, na referida lei, a adoção de crianças e adolescentes por
pessoas do mesmo sexo, adoção homoparental (GONÇALVES, 2012, p. 382 e 383).
Em relação a esta discussão, dispõe o paragrafo 2º do artigo 42 do Estatuto da
Criança e do Adolescente que, para que ocorra a adoção conjunta, “é indispensável
que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável,
comprovada a estabilidade da família (Redação dada pela Lei n° 12.010, de 2009)”
(BARROS, 2010, p. 38 e 66). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 §
3º, reconhece a união estável apenas entre homem e mulher. Os dispositivos
mencionados acabam sendo substituídos por posicionamentos jurisprudenciais
devido ao aumento das adoções por casais homoafetivos (GONÇALVES, 2012, p.
383).
245
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A Nova Lei de Adoção estabelece os prazos aos processos encaminhados ao
judiciário, relativos à perda do poder familiar, sendo de 120 dias para decretar a
perda do poder familiar e, em caso de recurso no processo de adoção, de 60 dias;
determina o acesso do adotado ao seu processo de adoção e conhecer sua origem
biológica, estendendo o mesmo direito aos seus descendentes (GONÇALVES,
2012, p. 383).
A Lei Nacional de Adoção determina em seu artigo 25 § único, o conceito de
família extensa ou ampliada, ou seja, composta por “parentes próximos, com os
quais as crianças e adolescentes constituem vínculos de afinidade e afetividade”
(BARROS, 2010, p. 46). Sendo a adoção uma medida excepcional, para que ela
possa ocorrer, devem ser esgotadas todas as possibilidades de inserção da criança
em sua família de biológica ou extensa (GONÇALVES, 2012, p. 383). Mesmo com a
mudança da lei definindo a adoção como medida excepcional, não houve redução
de interessados em adquirir filhos por intermédio deste instituto.
O artigo 197-A da Lei 12.010/09 e seus incisos, trazem os requisitos para a
habilitação para a doção, composta por petição inicial e a juntada da documentação.
O artigo 46 da presente lei não dispensa o estágio de convivência, contudo, se o
adotante possuir a guarda legal ou tutela, este estágio pode ser dispensado,
conforme disposto no artigo 46 § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente
(GONÇALVES, 2012, p. 384).
A Lei nº 12.010/2009, em seu artigo 47, juntamente ao artigo 1.619 do Código
Civil, dispõe que a adoção de crianças e adolescentes precede decisão judicial. No
caso de maiores de 18 anos terá o processo judicial encarregado pela Vara da
Família, se menores de competência da Vara da Infância e da Juventude.
(GONÇALVES, 2012, p. 383).
A Competência Jurisdicional não foi alterada pela Nova Lei de Adoção. O juiz
da vara da infância é o responsável exclusivo em conceder a adoção relativa às
crianças e aos adolescentes. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.618, alterado
pela referida lei, enfatiza que a adoção de crianças e adolescentes será deferida
conforme a lei n º 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. A mesma
alteração ocorreu com o artigo 1.619 do Código Civil de 2002, definindo a atuação
do Poder Público, principalmente na adoção de maiores de 18 anos, em que sua
246
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
assistência deverá ocorrer de forma mais efetiva, aplicando as regras da Lei nº
8.069/90 caso necessário (GONÇALVES, 2012, p. 384 e 385).
A Nova Lei de Adoção revogou os artigos que estavam em conflito com as
normas do Código Civil de 2002. Por tanto, ainda encontram-se vigente os seguintes
artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 39, que proíbe a adoção por
meio de procuração; artigo 46, que estipula o estágio obrigatório de convivência; o
artigo 48, que determina a adoção como um ato irrevogável; artigo 42 § 1º, proibindo
a adoção aos ascendentes e irmãos do adotando; o artigo 47 e seus parágrafos, que
determinam os critérios de expedição de mandado e registro de nascimento do
adotado; artigos 31, 51 e 52, que estabelecem todos os critérios para a adoção
internacional; artigo 50, § 1º, que determina a manutenção do cadastro do adotado e
adotante junto à vara da infância e juventude e sua atualização, além da
manifestação anual para a manutenção deste na fila de adoção (GONÇALVES,
2012, p. 386).
3.3 O SOLTEIRO FRENTE AOS LEGITIMADOS A ADOÇÃO
O Princípio da Prevalência da Família, estabelecido pela Emenda
Constitucional nº 65 de 13 de julho de 2010, altera significativamente o artigo 277 da
Constituição Federal de 1988, com a finalidade de atender ao melhor interesse da
criança e do adolescente. Assegura aos menores, prioritariamente, que estes devam
crescer em sua família natural. Instaura-se politicas públicas restaurativas, no
sentido de estruturar as familias e desistitucionalizar as crianças, quando possível e,
inserindo-as em suas famílias de origem, incluindo a família extensa, com a qual
possuía vínculos de afinidade e de afetividade. Esta mudança no instituto torna a
adoção como medida excepcional, ou seja, ultima alternativa para o menor, depois
de esgotadas todas as oportunidades de inserção da criança e do adolescente, em
sua família natural e ou extensa (MADALENO, 2013, p. 630).
A adoção realizada por pessoas solteiras tem como parâmetro normativo o
artigo 42, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a idade
mínima de 18 anos para a adoção, independente do estado civil. Os demais artigos
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
do referido estatuto, que estabelece os atos processuais, a princípio, são iguais a
todos legitimados, excetuado as peculiaridades de cada legitimado.
O solteiro, por sua condição única, diante do instituto do Direito de Família, se
estabelece como entidade familiar, denominada família eudemonista, protegido
constitucionalmente pelo artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que em seu §
8º, define: “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos
que a integram”, estabelecendo uma relação mais igualitária, dos solteiros em
relação às demais entidades familiares, principalmente a matrimonial.
A família monoparental por adoção, deriva da família eudemonista, que busca
a felicidade, a satisfação pessoal. Maria Berenice Dias classifica esta entidade
familiar afirmando que
O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito
de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento
altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição
para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8.º do art. 226 da CF: o
Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram (DIAS, 2015, p. 144).
O Código Civil, não traz uma definição expressa sobre a família eudemonista,
apenas relata a impenhorabilidade do bem de família determinada pelo artigo 1º, §
único, da Lei 8.009/90, que protege o bem único do solteiro que, no caso de
execução de dívidas, este imóvel não responde para pagamento, por constituir única
residência dele.
Diante do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da
Constituição Federal de 1988, inexistes dispositivos específicos que determinem a
adoção pelo solteiro e a formação da família monoparental, apenas normas gerais
que geram uma paridade latu sensu. A paridade jurídica foi estabelecida,
possibilitando a adoção de todos os legitimados, mas a sua ampliação se faz
necessária, devido às novas entidades familiares em formação e que não possuem
legitimidade normativa constitutiva.
Os casais estabelecem a adoção conjunta, determinada pelo artigo 42, §2º,
do Estatuto da Criança e do Adolescente, imperativo que sejam casados ou que
248
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
convivam em regime de união estável (226, § 3º da CF, reconhecida como entidade
familiar) e que comprovem estabilidade familiar.
A adoção homoparental, a adoção por homossexuais, seja de forma
individual, ou como um casal estabelecendo uma entidade familiar, constituída sob a
ótica da duração, publicidade e com a intenção de constituir família, configura
característica de união estável e, como tal, a possibilidade de adoção. Cada
indivíduo desenvolve sua personalidade de forma única, o que importa é o vinculo
que estabelece entre as partes. Vínculos de afeto que constituem uma família, que
unem os indivíduos desta (GONÇALVES, 2012, p. 388). Em um posicionamento
crítico, Rolf Madaleno, argumenta:
(...). As uniões homoafetivas são uma realidade social e cuja existência
jurídica já vinha sendo admitida pela jurisprudência e doutrina, em suas
expressões máximas perante o STJ e o STF, e sua regulamentação em
países tão próximos ou mais distantes, terminam mostrando quão
preconceituoso se mostra etiquetar como fator de risco uma família
composta por um casal homossexual (MADALENO, 2013, p. 666 e 667).
O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 42, § 5º, alterado pela
Lei nº 12.010/2009, A Nova lei de Adoção, determina que em se tratando dos
divorciados, judicialmente separados e ex-companheiros, a lei assegura a guarda
compartilhada, artigo 1.584 do Código Civil de 2002, diante da demonstração do
vinculo afetivo entre adotante e adotado. Não há enfraquecimento do pátrio, mas
sim, efetiva-se a manutenção deste por ambos, e estabelece o exercício de suas
responsabilidades, direitos e deveres para com o filho (MADALENO, 2013, p. 391).
O artigo 42, § 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece que os
divorciados, os judicialmente separados e os ex - companheiros têm legitimidade
para adotarem conjuntamente, desde que organizem o regime de visitas, e somente
em casos em que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do
casamento, comprovada os vínculos de afinidade e afetividade entre adotante e
adotado, que possam determinar a concessão do instituto (GONÇALVE, 2012, p.
392 e 393).
A adoção de maiores, com o advento da Lei 12. 010/2009 torna-se restrita ao
Código Civil. Sendo imperativo a anuência do Poder Público, deve ser constituída
249
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
por via judicial, e na ausência normativa competente, aplica-se as regras do Estatuto
da Criança e do Adolescente, conforme estabelecido pelo artigo 1.619 do Código
Civil. Constitui direito personalíssimo, por tanto, obrigatório à manifestação de
vontade do adotado e do adotante. Não há necessidade do estágio de convivência
( DIAS, 2013, p.490).
A Adoção Pós Mortem, definida no artigo 42, § 5º, da Lei Nacional de
Adoção, determina o deferimento da adoção, desde que, mediante a incontestável
manifestação de vontade por parte do adotante, que no decorrer do processo, vier
este a falecer antes da sentença. O juiz defere o pedido de adoção, com todos os
seus efeitos, em face da não conclusão do processo pela morte do adotante
(GONÇALVES, 2012, p. 395).
Em situações, hoje muito comuns, diante da instituição do divórcio e da
possiblidade da constituição da união estável, o cônjuge ou companheiro, traz para a
relação familiar, filhos provenientes de outras uniões.
O artigo 41, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, define a chamada
Adoção Unilateral, em que o cônjuge adotante não perde o poder familiar,
exercendo-o em concordância com o artigo 1.631 do Código Civil de 2002. Tal
dispositivo estabelece que, na constância do casamento ou união estável, o poder
familiar compete igualmente aos cônjuges, porém, na falta ou impedimento de um
deles, o outro terá exclusividade do exercício (GONÇALVES, 2012. p. 395 e 396).
A adoção à brasileira não possui regulamentação diante do instituto da
adoção nos dispositivos legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código
Civil de 2002 e Constituição Federal. Esta pratica foi estabelecida diante da
maternidade e paternidade socioafetiva, em que, pessoas registram, no Cartório de
Registro Civil de Pessoas Naturais, filho de outrem como próprio. Tal prática se
constitui crime de falsidade ideológica, ilícito penal disposto no artigo 299, do Código
Penal brasileiro, em conjunto com o artigo 242 do Código Penal, relativo aos crimes
contra o estado de filiação, e referente a este artigo, o ilícito estabelecido seria dar
parto alheio como próprio. Todavia, diante de uma doutrina que preza o princípio da
afetividade, remove uma visão pejorativa do ato, mas não exclui a responsabilização
da conduta criminosa, impondo as sanções cabíveis (MADALENO, 2013, p. 661).
250
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A jurisprudência hoje possui o entendimento que se o ato praticado for
constituído em comum acordo entre as partes, ou seja, com o consentimento da
mãe biológica, e com a intenção de fornecer um lar à criança, o juiz não aplicará a
pena, assim como o não cancelamento do registro de nascimento (GONÇALVES,
2012, p. 380–382).
A Adoção Intuitu personae é definida como aquela em que os pais biológicos,
entregam à adoção, filho próprio a pessoa certa e determinada, presentes os
pressupostos constitutivos da adoção. Ocorre neste caso, com os adotantes, criando
vinculo entre de amizade entre as partes. Os pais biológicos escolhem a família que
vão entregar seu filho para ser adotado, participam efetivamente do processo. Os
adotantes, normalmente, não são vinculados ao Cadastro Nacional de Adoção, nem
aos cadastros das Comarcas das Varas da Infância e Juventude, cujo Estatuto da
Criança e do Adolescente normatiza em seus artigos 50 e 50 § 5º (MADALENO,
2013, p. 648).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 277, § 5º, estabelece a
possibilidade da adoção internacional diante de critérios e condições que assegurem
a efetividade do instituto e da proteção aos sujeitos de direitos.
A adoção internacional será instituída por suportes legais, cuja efetivação
dependerá do Poder Publico, conforme dispositivo constitucional estabelecido pelo
artigo 227, § 5º, da Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Criança e do
Adolescente – Lei nº 8.069/90 – por meio de seus artigos 46, §3º, 50 §§ 6º e 10º, 51
e 52, relata a adoção internacional, cujos procedimentos para sua efetivação, estão
dispostos nos artigos 165 a 170, do referido estatuto, mediante a alteração deste
dispositivo pela lei nº 12.010/2009 (MADALENO, 2013, p. 653).
O artigo 46, § 3º, da Lei 12.010/2009, disciplina sobre o estágio de
convivência nos casos de adoção internacional. Unificou-se o estágio de convivência
para o mínimo de 30 dias, tanto para as crianças quanto para os adolescentes
(GONÇALVES, 2012, p. 400).
A Constituição Federal de 1988, não prevê em seus artigos, ou seja, não
estabelece garantias constitucionais, a adoção de nascituros, assim como, o
Estatuto da Criança e do Adolescente, e o Código Civil brasileiro de 2002 vedam
qualquer tipo de proteção legal em seus artigos. Embora, conste no Código Civil de
251
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
1916, em seu artigo 372 a devida previsão legal, porém foi excluída após a alteração
do Código Civil em 2002. O artigo 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente não
considera a adoção do nascituro por considerar a importância do estágio de
convivência entre o adotante e adotado, a fim de estabelecer o vinculo entre as
partes (MADALENO, 2013, p. 657).
4 ANÁLISE DOS PARÂMETROS NORMATIVOS DA AMPLIAÇÃO DA PARIDADE
JURÍDICA E SOCIAL DA ADOÇÃO DO SOLTEIRO
Ausentes dispositivos de regulamentação específica, para a entidade familiar
monoparental no Código Civil, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha
determinado a respectiva proteção normativa, não houve a devida regulamentação
infraconstitucional referente a direitos e obrigações estabelecidos pelos vínculos
monoparentais, haja vista, os efeitos jurídicos relativos situações como a viuvez,
separação, a não convivência com os genitores, assim como, os resultantes do
poder familiar e do vinculo de filiação ( MADALENO, 2013, p.10).
Mesmo com a utilização de dispositivos que regulam o direito de família, a
família monoparental, admite o reconhecimento da necessidade de uma tutela
jurídica especifica a sua condição de monoparentalidade, diante na importância
desta entidade, que passou de uma situação de reprovação social para a proteção
constitucional ( GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 577).
A monoparentalidade apresenta uma relação bem especifica em nosso
ordenamento. Pode se apresentar de forma transitória, ou seja, com a possibilidade
de derivar em outras entidades familiares constituindo vínculos matrimoniais ou
união estável, assim como se constituir em definitivo diante de sua condição, sendo
esta, um crescente em nossa sociedade, determinada pela busca individual de
ascensão econômica, desenvolvimento profissional, permitindo a existência de um
período maior de espera para a constituição familiar. Assim, ao ser constituída, a
família monoparental será composta de um dos pais e filhos. Não se descarta ser
esta uma tendência da sociedade contemporânea, por tanto, torna-se necessária
maior efetividade da tutela jurisdicional.
252
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A partir do momento e que se atinja os objetivos pessoais e haja a
estabilidade profissional, econômica e pessoal, em nada obsta a opção de expandir
a família. Como na maioria das vezes, o individuo solteiro, normalmente as
mulheres, demoram a obter a ascensão pessoal e financeira, a maternidade fica em
segundo plano, sendo que muitas vezes, a idade torna-se um obstáculo para a
filiação biológica. Opta neste caso, sendo este um crescente em nossa sociedade
contemporânea, na adoção por pessoas solteiras. A adoção é a via fática de
constituição familiar por parte dos solteiros, da formação da família monoparental
por adoção.
A família monoparental, recebe proteção constitucional, como demostrado em
parágrafos anteriores, conforme artigo 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988,
mas o mesmo não ocorre em relação à adoção por solteiros, haja vista que esta
possibilidade ganha à mesma normatização em aspecto geral, não constituindo em
dispositivos próprios. Haja vista que, disposta em artigos específicos de lei, seja
Constitucionais ou Civis, determina a garantia jurisdicional adequada, para pleitear
direitos e garantias sem a utilização de analogias ou princípios inerentes a todos os
indivíduos pertencentes ao Estado Democrático de Direito.
Diante da fragilidade do referido instituto, os solteiros participam, á principio,
em igualdade com os demais legitimados, no pleito da adoção. Contudo, diante dos
dispositivos legais, percebe-se a carência de regulamentação que determine sua
imposição frente aos órgãos jurisdicionais, como formador de uma entidade forte e
concisa, capaz de exercer os deveres estabelecidos pelo artigo 227, caput, da
Constituição Federal de 1988.
Pela inexistência de um dos genitores, a visão de deficiência estrutural,
econômica e social empregada pela sociedade em geral, faz com que a adoção por
pessoas solteiras exija provas contundentes de sua efetiva condição, não
corroborando com a realidade desses indivíduos, que se estabilizaram diante dessas
questões, e decidiram de forma autônoma, a ampliação da família já constituída.
Mesmo estabelecendo uma visão ampla do Estado, que visa proteger a
família e não a forma em que esta foi constituída, ampliar a paridade jurídica do
solteiro frente aos demais legitimados a adoção se torna fundamental, a fim de
constituir normas específicas de garantias, assim como, as determinadas em
253
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
diversos dispositivos normativos, relativa à adoção conjunta, seja ela por casais
vivendo em união estável ou casados civilmente. Tais entidades expandem seus
direitos e garantias em torno do Código Civil de 2002 e Constituição Federal de
1988.
Fundamentando a importância de legitimação através de dispositivos
normativos, Maria Berenice Dias estabelece que:
Além de dificuldades sociais, problemas ele outra ordem surge em
decorrência ela falta de uma terminologia adequada para as novas
estruturas de convívio elencadas em sede constitucional como entidades
familiares. A partir do momento em que um relacionamento passa a gerar
sequelas patrimoniais, com reflexos sobre terceiros, imperiosa a sua
perfeita identificação, até para emprestar segurança às relações jurídicas
(DIAS, 2013, p. 116).
A menção a importância dos dispositivos normativos, são elencados pela
referida autora:
Os solteiros, separados, divorciados ou viúvos são pessoas que vivem sós,
são donas exclusivas do seu patrimônio e dele podem dispor livremente.
Quem mantém convivência duradoura, pública e contínua com ou trem
constitui uma família e precisa se identificar e ser identificado como
integrante de uma nova verdade social e jurídica. Porém, em face da
ausência de um nome que identifique o novo estado civil, continuam os
integrantes dessas novas famílias se qualificando como solteiros,
divorciados ou viúvos. Adquirem bens e os alienam de forma singular, ainda
que mantenham uniões estáveis. Como não há obrigação legal de
revelarem o vínculo de convivência, há uma grave ameaça à ordem
econômica, pondo em perigo a higidez da transação levada a efeito, com a
possibilidade de severos prejuízos ou a terceiros ou ao companheiro.
Imprescindível, portanto, encontrar nomes para essas novas famílias que
não nascem, como o casamento, de um ato que as formalize. São
relacionamentos que surgem do afeto, impondo que se procure novas
palavras que assinalem a origem e a natureza desses vínculos carentes de
denominação (DIAS, 2013, p. 116 e 117).
A adoção estabelece o dever do adotante de sustentar, guardar e educar os
filhos advindos deste instituto, sendo irrelevante se casado, companheiro, separado,
divorciado,
solteiro
ou
viúvo.
O
aumento
de
solteiros
que
buscam
a
maternidade/paternidade sem cônjuge, torna-se determinante à formação familiar
254
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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mais democrática, pois a união conjugal não se estabelece como condicionante para
a maternidade/paternidade, ampliado à diversidade familiar.
4.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1924 Á 1988
As Constituições Federais de 1924 a 1969 em nada relatam sobre as
diversidades das entidades familiares, muito menos proteção ao instituto da adoção.
Nesses períodos, o casamento era indissolúvel e matrimonial (religioso e civil), não
havia a possibilidade do divórcio, inexistindo proteção às entidades familiares
informais, ou seja, as que não fossem constituídas pelo matrimônio. Com o advento
da Constituição de 1988, atribui-se a proteção normativa as famílias matrimonias
(artigo 226, CF/1988) e monoparental (artigo 226, §4º, CF/1988), natural (artigo 226,
§ 5º, CF/1988), substituta (artigo 227, § 5º, CF/1988) e a informal, hoje constituída
como união estável (artigo 266, § 3ºCF/1988). As demais entidades familiares como
Eudemonista, Homoafetiva, Paralela ou Simultânea, Poliafetiva, Parental ou
Anaparental, Composta, Pluriparental ou Mosaico, Extensa ou Ampliada, buscam
seus direitos e garantias através dos Princípios Constitucionais.
No que Concerne à adoção, a Constituição Federal de 1988, Constituição
Cidadã, estabelece proteção constitucional aos casais, sejam eles matrimonialmente
constituídos ou em união estável. Estes legitimados são à base da família
tradicional, determinando a normatização plena a estes legitimados (artigo 226, §§,
da CF/1988); a adoção unilateral é determinada como sendo a formada por qualquer
um dos pais e seus descendentes. Tal definição também é utilizada para definir a
família monoparental, entidade familiar com proteção constitucional (artigo 226, § 4º
da CF/1988). Protege constitucionalmente, mediante a aplicação de seus
dispositivos normativos, a adoção por estrangeiros, cabendo ao Poder Público
fiscalizar os procedimentos relativos aos procedimentos relativos efetivação de todo
o processo (artigo 227, § 5º, CF/1988).
A mesma situação se evidencia ao estabelecermos a proteção aos
legitimados perante a Constituição Federal de 1988, inexistindo normas relativas aos
solteiros, homoafetivos, divorciados, aos maiores, póstuma, á brasileira (ilegal
255
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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perante o Código Penal), intuito personae, internacional e do nascituro (não é
legalizada no Brasil).
4.2 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 A 2002
O Código Civil de 1916, assim como o de 2002, determina em seus
dispositivos proteção as famílias eudemonista, informal, matrimonial, monoparental,
natural e extensa, recomposta ou mosaico e substituta. O Código Civil de 1916,
dispõe dispositivos normativos referenciais as familias eudemonista (artigo 362,
CC/1916), informal (artigo 363, I, CC/1916), matrimonial (artigo 233, CC/1916),
monoparental (artigo 315 a 318 do CC/1916 - Revogados pela Lei n.º 6.515, de
26.12.1977), recomposta/mosaico (artigo 393, CC/1916), natural ou extensa (artigo
330 e 334 do CC/1916), recomposta ou mosaico (artigo 393 e 329 CC/1916) e a
família substituta (artigo 384, IV, CC/1916). Sendo omisso, em relação as entidades
anaparental, homoafetiva, poliafetiva, paralela/simultânea.
O Código Civil de 2002 concentra em seus dispositivos, regulamentação para
as entidades familiares, em que pese, as famílias anaparental (artigo 1.633
CC/2002), eudemonista (artigo 1.614 CC/2002), informal (artigo 1723 CC/2002),
matrimonial (artigo 1.511 CC/2002), monoparental (artigo 1.412 CC/2002 § 2º),
natural ou extensa (artigo 1.553 CC/2002), paralela (artigo 1.727 CC/2002),
recomposta (artigo 1.636 CC/2002) e Substituta (artigo 1.634 CC/2002). O referido
Código, não legitima em seus dispositivos as famílias homoafetiva e poliafetiva.
A família monoparental, não possui um artigo definido no Código Civil de
2002, utilizando por analogia o artigo 1.412, § 2º, do Uso, que determina: “As
necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos
solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico”.
Em relação à adoção, o Código Civil de 1916 estabelece normas referentes
aos solteiros, em que, apenas os maiores de 30 anos estariam legitimados a adotar
(artigo 376 do CC/1916), assim como determina a adoção de nascituro, desde que
comprove autorização do seu representante legal (artigo 372 do CC/1916); a adoção
conjunta, por casais, pode ser concedida desde que decorrido o prazo de cinco anos
da referida união (artigo 368, § único, do CC/1916). As demais modalidades de
256
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
adoção não constam no respectivo código: á brasileira, de maiores, divorciados,
homoparental, internacional, intuito personae, póstuma e unilateral.
O Código Civil de 2002 determina a não determina a modalidade de adoção
homoparental, á brasileira, intuito personae, internacional e nascituro. Cabe,
portanto, analise referente aos demais legitimados. Assim podemos constatar que os
solteiros, como um caso atípico, não estabelecendo artigo especifico, constando
apenas a possibilidade de adoção aos maiores de 18 anos (artigo 1.618 do
CC/2002); aos casais, estes definem o código como um todo, já que constituem a
base da família tradicional (artigo 1.618 do CC/2002); A adoção pode ser concedida
aos divorciados e aos juridicamente separados, desde que estabeleçam o regime de
visita e, desde que o processo de adoção tenha se iniciado na constância do
casamento (artigo 1.622 do CC/2002); a adoção de maiores é de responsabilidade
do Código Civil, e sendo assim, com atuação efetiva do Poder Público (artigo 1.623
do CC/2002); a adoção póstuma também é concedida desde que o adotante tenha
falecido no curso do processo (artigo 1.628 do CC/2002); A adoção unilateral ocorre
quando um dos cônjuges adota o filho do outro, mantendo os vínculos de filiação
(artigo 1.626 do CC/2002); os estrangeiros podem adotar obedecendo aos casos
disposto em lei (artigo 1.629 do CC/2002).
A adoção por pessoas solteiras, não dispõe de dispositivos normativos
específicos seja na lei de adoção 8.069/90, no Código Civil de 2002, muito menos na
Constituição Federal de 1988.
4.3 A ANÁLISE NORMATIVA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta distorções, no sentido de
atribuir legitimidade à adoção apenas as famílias matrimoniais e informais,
compostas pelas uniões estáveis. Em ambas os adotantes devem comprovar
estabilidade familiar. A família natural (Art. 25 do ECA) ou extensa, o referido
estatuto estabelece expressamente, que a família natural é composta por pelos pais
ou um deles e seus filhos, sendo a extensa, constituída por parentes próximos, com
os quais a criança conviva e que estabeleça vínculos de afinidade e de afetividade.
257
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Assim como a substituta, atribui-se a esta um caráter excepcional, apenas na
impossibilidade de convívio da criança com a família natural.
Em nada se refere o respectivo estatuto as entidades familiares anaparental,
eudemonista, homoafetiva, paralela/ simultânea, poliafetiva ou recomposta. Em
relação à família monoparental, o respectivo estatuto não estabelece um artigo
específico, apenas determina a possibilidade de adoção por maiores de 18 anos
independentes do estado civil, assim como a definição de família natural,
determinada pelo artigo 25, da lei 8.069/90.
Contudo, ao identificarmos a questão de nossa pesquisa, relacionada à
família monoparental, podemos notar que esta, é apenas citada no Estatuto da
Criança e do Adolescente, no artigo 25, estabelecendo relação com o artigo 226, §
4º, da Constituição Federal de 1988. Mesmo recebendo proteção constitucional,
perece de direitos e garantias contidas em dispositivos do Código Civil de 2002.
O solteiro como legitimados a adoção, é apenas citado pelo respectivo
Estatuto da Criança e do Adolescente, não estabelecendo regras ou normas
especificas, atribuindo a ele o regime geral de adoção, conforme o artigo 42, do
referido estatuto. O Estatuto da Criança e do Adolescente atribui prevalência
normativa, em seu artigo 2º, § único, em que se aplica em caráter excepcional o
referido estatuto nos casos de pessoas maiores de 18 anos, já que sua
regulamentação é estabelecida pelo Código Civil de 2002.
Admite o respectivo
estatuto, o estabelecimento de normas referentes às adoções por casais civilmente
casados, determinando a existência de estabilidade familiar, incluindo o em regime
de união estável (artigo 42, § 2º, ECA); os estrangeiros, determinando o estágio de
convivência a ser cumprido em território nacional durante o período de 30 dias
(artigo 46, § 3º, ECA); internacional, estabelecendo que a referida adoção só será
efetuada, mediante consulta ao cadastros de adoções e inexistindo pretendentes
com residência em território nacional (artigo 50, § 10, ECA); póstuma, a adoção será
concedida, mesmo após o falecimento do adotante durante o processo de adoção,
antes de deferida a sentença (artigo 42, § 6º, ECA); e unilateral, em que havendo a
adoção por um dos cônjuges, o adotado estabelecerá vinculo de filiação com o
adotante e como os parentes dele (artigo 41, §1º). Em nada se refere á adoção
258
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Homoparental (ADPF 132 e ADI 4.277 do STF, pelo voto da Ministra Nancy Andrighi,
reconhece a família homoafetiva); à Brasileira, Intuitu Personae e do Nascituro.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adoção possui um caráter jurídico formal, detentor de normas taxativas que
permitem a proteção dos sujeitos de direito, constituído pelo Princípio da Proteção
Integral, a fim de garantir a integridade psicossocial dos entes protegidos pelo
referido instituto.
Caracteriza-se como a única forma que possibilita a gestão masculina e
feminina pela afetividade, no caso dos solteiros. Os filhos nascem do coração, do
desejo de serem pais e mães, da vontade de constituir uma família, a família
monoparental por adoção.
A ampliação da paridade jurídica relativa à adoção se faz necessária, em
virtude da ausência de dispositivos normativos específicos que regulamentem o
referido instituto em face adoção pelos solteiros, pois não possuem proteção
normativa em sua maioria, diante do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código
Civil de 2002 e Constituição Federal de 1988.
Diante da Sociedade
Contemporânea, a concepção desta ampliação da paridade jurídica torna-se
necessária, em virtude da existência de diversas entidades familiares que coexistem
e, por tanto, necessitam de dispositivos legais que regulamente direitos e garantias
destas.
Utiliza-se, neste caso, normas gerais de adoção que se estabelecem ao longo
dos referidos diplomas legais, mas nada que especifique o tipo de adoção em tela.
Esta ampliação pode ser pleiteada, no sentido de garantir uma atenção maior aos
solteiros, diante de suas necessidades ímpares, que os diferem dos demais
legitimados, já que não compõe uma união conjugal matrimonial ou união estável,
determinando-se como uma entidade familiar monoparental.
No que se refere ao processo de adoção, cabe a Vara da Infância, ao
Ministério Público e ao Juiz da respectiva vara, em relação ao processo de adoção,
avaliar diante na nova composição familiar, não apenas os quesitos gerais de direito
259
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ao pleito, mas também a toda questão relevante à nova formação familiar e suas
peculiaridades, de forma a salvaguardar direitos e garantias inerentes ao instituto.
A sociedade, por sua vez, deve se desprender de ditames de intolerância,
compreendendo de fato que, este tipo de formação familiar irá compor de forma
definitiva a atual sociedade. Assim como esta, as demais entidades familiares
possuem o mesmo direito de aceitação e respeito social. O entendimento perante a
escolha individual das pessoas que compõe o Estado Democrático de Direito, deve
ser considerado e respeitado pela sociedade, inexistindo qualquer tipo de
discriminação a estes e a seus descendentes.
A análise dos parâmetros jurídicos e sociais referentes à adoção por pessoas
solteiras atingiu seu êxito na referida pesquisa, sendo demostrado ao longo do
trabalho todas as questões jurisdicionais e os ditames sociais referentes ao objeto
de estudo. A literatura jurídica aplicada à pesquisa fundamentou a importância de se
estabelecer a ampliação da paridade jurídica dos solteiros frente aos demais
legitimados à adoção, assim como, demostrou a necessidade de atribuição de
normas específicas a estes, por ausência destas diante do Código Civil de 2002,
Estatuto da Criança e do Adolescente e Constituição Federal de 1988.
A determinação e aplicação de normas referente a cada legitimado foi
determinante para compreensão do objetivo da pesquisa, no caso, a adoção por
pessoas solteiras, possibilitando uma visão ampla, assim como, uma robusta
discussão, a fim de determinar a necessidade de dispositivos que garantam a
proteção normativa tanto aos legitimados, quando das crianças e adolescentes
aptos á adoção.
Os solteiros, por sua vez, apresentam certa paridade jurídica, já que o artigo
42 explicita a possibilidade de adoção por indivíduos maiores de 18 anos
independentes do estado civil. Contudo, não há uma divulgação expressiva da
adoção por solteiros, como na questão do homoafetivo e até mesmo da matrimonial.
Mesmo que possua paridade, sua situação social ainda encontra diversos
questionamentos, no sentido da não aceitação da monoparentalidade por adoção,
afinal, uma pessoa solteira, saudável e apta a gestar, opte por não ter filhos
biológicos, mas adotivos, gera insatisfação familiar e social.
260
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Alguns questionamentos são pertinentes em relação à família monoparental
por adoção: Como saber da existência quantitativa de famílias monoparentais por
adoção senão por dados fornecidos pela Vara da Infância e Juventude; Como definir
as prioridades relativas a esta entidade se não há declarações efetivas de suas
necessidades enquanto entidade familiar; suas dificuldades e do que precisam para
que obtenham êxito diante do instituto da adoção; o que pensam sobre sua conduta
perante a sociedade e em contra partida, da resposta social sobre a escolha que
fizeram de serem pais ou mães solteiros por opção; do que almejam enquanto
entidades familiares, para seus filhos afetivos, diante de uma sociedade que não
compreende as escolhas individuais ou coletivas e a proteção jurisdicional do Estado
frente a sua escolha de formação familiar.
Portanto, o que realmente falta para que haja uma maior expressividade
desta entidade familiar é a publicidade. Não só uma publicidade na mídia, mas uma
publicidade jurídica, apresentada nos cursos de adoção fornecidos pelas Varas da
Infância e da Juventude, pelas ONGs, uma publicidade que demostre a real
importância da adoção pelo solteiro, da família monoparental por adoção, que
demonstre a sua importância como entidade familiar constituinte da sociedade
contemporânea.
A Constituição Federal de 1988, garante ao indivíduo liberdade, estabelecida
em seu preâmbulo, reunindo em seu arcabouço jurídico o exercício dos direitos
sociais e individuais, os princípios garantidores como o Princípio da Liberdade, da
Igualdade, estabelecendo o cumprimento do direito a segurança, ao bem-estar e a
justiça, sendo estes valores supremos de uma sociedade pluralista, ausentes de
preconceitos, harmoniosa socialmente e comprometida com a manutenção da
ordem social. (Brasil, Constituição Federal, 5 de outubro de 1988). O artigo 5º, caput,
da referida Constituição, e seus incisos subsequentes, reitera as garantias
constitucionais, assim como os Direitos Fundamentais dos cidadãos.
A adoção monoparental pelo solteiro apresenta-se como uma adoção sui
generis (“único em seu gênero”), pode apresentar dificuldades no sentido dos
adotantes ficarem sem o apoio jurisdiciona, ou seja, da proteção normativa
específica perante o Poder Público, em que o sucesso pleno, depende do arcabouço
jurídico dedicado pelas Varas da Infância e Juventude e por parte das ONGs, estas
261
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
por sua vez, precisam se capacitar cada vez mais, para receber novas formas de
entidades familiares, e entenderem em definitivo, que a família tradicional terá que
dividir seu espaço, diante de uma sociedade plural.
Atribuiu-se, ao longo do discurso científico, a importância normativa da
adoção por pessoas solteiras, visto que, são responsáveis pela formação da família
monoparental por adoção que, deverá receber proteção jurisdicional efetiva, diante
de suas caraterísticas individuais, determinando que não haja necessidade de se
recorrer às leis gerais para fundamentar a adoção do referido instituto.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
EMPRESAS PÚBLICAS ESTATAIS NO CONTEXTO DA PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
PUBLIC ENTERPRISES STATE IN THE CONTEXT OF PUBLIC HEALTH
SERVICES
Julya Carneiro Lobo155
Luiz Gustavo Andrade156
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a importância dos serviços públicos no contexto da saúde e
a importância desse direito na perspectiva constitucional e infraconstitucional. Não é possível
desvincular serviço público na área da saúde com os princípios que regem esse campo, a fim de
alcançar a lógica da prestação do serviço público de saúde por empresas públicas. Após a análise e
a definição do conceito, para fins de objetividade, da administração direta e indireta, segue-se
explorando a esfera da administração indireta, caracterizando-a até modular os aspectos da empresa
pública. Como modelo de instituição para estudo, chegou-se a EBSERH, denominada de Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares, e citou-se a problemática que a envolve através da discussão da
constitucionalidade dos incisos da lei que a criou pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/STF.
Ao final, concluir-se-á que tais incisos da Lei 12.550/2011 de fato incidem em inconstitucionalidade
por vícios materiais.
Palavras-chave: direito à saúde, dignidade da pessoa humana, serviço público à saúde, empresas
públicas em hospitais, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.
ABSTRACT
This study objectives to demonstrate the relevance of public services on the health sector and the
importance of this right on the constitutional perspective. It is not possible to detach public services on
the health sector with the principles that rule this field, disciplined by the constitutional legislation
intending to reach the logic of the health public service by public companies. After analysis and
concept definition of the direct and indirect administration, it continues to explore the indirect
administration ambit, characterizing until modulate the public sector aspects. As model institution for
studies, it got to EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Hospital Services Brazilian
Company), and cited the problematic that involves through the discussion of the constitutionality of the
alterations on the law that was created by the Unconstitutionality Direct Action 4895/FCJ. At the end,
155
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).
Advogado. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), membro da Comissão
de Direito Eleitoral e da Comissão de Controle e Gestão Pública da Ordem dos Advogados do Brasil,
Seccional Paraná (OAB-PR).
156
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GESTÃO E CONTROLE
the conclusion will be that cited alterations of the law 12.550/2011 in fact occur in unconstitutionality
by material addiction.
Keywords: health rights, principle of human dignity, health public service, public companies, Hospital
Services Brazilian Company.
1 INTRODUÇÃO
A realização da pesquisa pertinente a esse artigo se justifica pelo fato da Lei
nº 12.550, de 15 de dezembro de 2011, ser alvo de discussões quanto à sua
aplicação e à sua constitucionalidade, bem como a finalidade lucrativa das empresas
públicas estatais e a falta de regulamentação legal do dispositivo constitucional que
versa sobre essas empresas atuantes na prestação de serviço público, exaltando-se
aqui, o campo da saúde. Destaca-se essa área devido à essencialidade para
manutenção da sociedade brasileira.
O estudo admite a saúde como direito humano fundamental, portanto impõe
ao Estado a necessidade concretizá-lo para que ele não incida em omissão
constitucional, devendo ser aplicada com base na competência material dos entes
da Federação estabelecida no Texto Constitucional. Como meio para alcançar
estimado direito, criou-se o Sistema Único de Saúde para cumprir o preceito
constitucional que Estado tem como dever, a fim de promover o bem-estar e o
progresso social a toda coletividade, fornecendo os serviços necessários aos
integrantes da sociedade – principalmente aos que carecem desses serviços.
Com ressalva, o simples dever de prestá-lo, não significa fazê-lo de qualquer
maneira. Para que o Estado o faça é necessário que esteja em concordância com a
Constituição Federal e a escolha de Empresas Públicas para a realização do serviço
público de saúde através da Lei nº 12.550/2011, gerou discussões no âmbito
jurídico, as quais serão abordadas como objetivo central de estudo, citando o caso
concreto correspondente a EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
– e a ADI 4.895 do Supremo Tribunal Federal, no que se refere à
(in)constitucionalidade da prestação do serviço na área da saúde por meio dessas
Empresas Públicas, as quais, em tese, visam ao lucro.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO
Os direitos sociais tiveram a sua ascensão com a mudança da visão
sociológica que trouxe a preocupação com o corpo social do indivíduo, visto que
esse deveria ser preservado a fim de manter a sociedade viva. Para que isso
acontecesse, seria preciso concretizar a tutela desses direitos com a dimensão dos
direitos fundamentais do homem. Portanto, percebe-se nesse contexto a busca pela
igualdade social, uma vez que esse rol de direitos possui traços do princípio da
igualdade, que busca igualizar as situações sociais desiguais com o intuito de
propiciar melhores condições de vida aos mais vulneráveis (SILVA, 2014. p. 186187.).
Elevado à categoria de direitos fundamentais da pessoa humana, a saúde,
bem extraordinariamente relevante à vida, abre o direito aos serviços públicos do
Sistema Único de Saúde à população do país, de modo que, o constituinte é claro
ao afirmar ser esse um direito de todos e um dever do Estado, e que esse deve agir
com políticas sociais e econômicas a fim de reduzir o risco de doenças em seu
território.
O caput do artigo 196 do Texto, afirma que esse é um direito universal e
igualitário reservado à pessoa natural titular dos direitos fundamentais. Universal,
uma vez que basta a qualidade de ser humano para obter a titularidade desse direito
(MENDES, 2014. p. 143.), e igualitário, visto que a Lei Fundamental outorga o direito
a todos de usufruir de um tratamento idêntico, vedando as diferenciações arbitrárias
e autorizando apenas o tratamento desigual para os desiguais, o que converge com
o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando afirma que os
tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Lei Maior, uma vez
confirmada a existência de um fim proporcional (MORAES, 2014. p. 35-36.). Essas
concepções, diversificam de acordo com os Estados democráticos, de modo que
cada um caracteriza ou trata os direitos fundamentais de maneira diferente
(MENDES, 2014, p. 142.).
Ao apresentar as noções gerais do direito à saúde, Constituição Federal
objetiva-se ressaltar o valor fundamental social da saúde, atribuindo prerrogativas
que envolvem o Sistema Único de Saúde com o intuito de consagrar a aplicação
267
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
desse direito intimamente ligado ao macro princípio brasileiro, o da dignidade da
pessoa humana.
3 OS SERVIÇOS PÚBLICOS NA ÁREA DA SAÚDE
Posto o direito à saúde como um direito fundamental social, o Estado
necessita concretizá-lo para que não incida em omissão constitucional. Para que o
Estado funcione é preciso a operacionalização da estrutura dos poderes que os
compõem. Esses poderes – Judiciário, Executivo e Legislativo – são formados por
serviços que são prestados em prol da administração estatal e a manutenção da
sociedade.
Denominados de serviços públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro salienta que
esse conceito corresponde a “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para
que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer
concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente
público” (DI PIETRO, 2015. p. 141.).
Cretella Jr. ressalta a relevância do serviço público na esfera do direito
administrativo, uma vez que corresponde a ideia central do conjunto de atividades
prestadas pela Administração. Assim, o autor afirma que trata-se de serviço público
o serviço destinado ao cumprimento dos fins do Estado e procura minimizar a
complexidade desse conceito considerando como “serviço público toda atividade
que o Estado exerce para cumprir seus fins. Por essa definição, algum serviço que,
desempenhado por particular, seria de ordem privada, passa a ser público, desde
que executado pelo Estado, para cumprir seus fins.” (CRETELLA JÚNIOR, 1999. p.
397-402.).
4 A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE POR MEIO DE
EMPRESAS PÚBLICAS
A prestação do serviço público de saúde corresponde ao dever fundamental
do Estado de oferecer tais serviços. Para alcançar esse fim, os entes federados
devem obedecer a legislação vigente e os princípios essenciais que regulamentam a
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
seara do serviço público de saúde, assim, o gerenciamento desses serviços pode
ser realizado por meio da Administração pública direta ou indireta, de forma
centralizada ou descentralizada, cada uma com as suas características e
finalidades.
Ao que se refere a utilização de empresas públicas na Administração pública
indireta para a prestação do serviço público de saúde, há uma intensa discussão
quanto a constitucionalidade dessa prestação, que é condicionada a uma lei
complementar federal que até hoje não existe, configurando omissão legislativa.
Nesse âmbito, questiona-se o intuito da empresa pública ao intermediar a prestação
desse direito fundamental, dada a contradição da empresa de possuir como
finalidade o lucro.
Neste viés, tem-se por ponto de partida o caso da Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares – EBSERH – criada pela autorização da Lei 12.550 de 15 de
dezembro de 2011. Discute-se a inconstitucionalidade da prestação de serviço
público na área da saúde por meio de empresas públicas, que acabou por acarretar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895 do Supremo Tribunal Federal, uma vez
considerada a omissão legislativa que designa as áreas de atuação permitidas a
essas empresas.
Ao adentrar nesse âmbito, nota-se o Decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de
1967, promoveu a descentralização e a flexibilização administrativa ao separar a
Administração direta da indireta. Nos termos desse Decreto-lei, a Administração
direta corresponde aos serviços integrados na estrutura administrativa da
Presidência da República e dos Ministérios, enquanto a Administração indireta
compreende as entidades dotadas de personalidade jurídica própria, como, por
exemplo, Autarquias, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista e
Fundações Públicas (MELLO, 2015, p. 156).
No âmbito constitucional, nota-se duas maneiras de administração da
máquina estatal, tendo em vista a obtenção de maior presteza, flexibilização e
eficiência, desenvolvendo formas de cooperação em diversas áreas políticasadministrativas a fim de prestar o melhor serviço ao usuário. A percepção de
eficiência dos serviços públicos é fundamental para a estrutura do Estado Social que
busca a aplicação do princípio da Justiça Social (MENDES, 2014, p. 860-861.).
269
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A lei que regulamenta a Administração direta é a 10.683, de 28 de maio de
2003, que estabelece as diretrizes de organização e os órgãos que constitui a
Presidência da República, bem como os Ministérios. Assim, compõe a Administração
pública direta todos os órgãos integrantes das pessoas jurídicas políticas, que
correspondem a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, todos regidos por lei
que regulamenta as funções administrativas (DI PIETRO, 2015, p. 91).
A execução direta do serviço público é aquela realizada pelo próprio
responsável, assim, o encarregado o realiza por meio do seu próprio ato, por seus
próprios órgãos ou por seus prepostos estabelecidos pela norma extraída da lei que
cria determinado serviço público ou pela autorização da delegação (MEIRELLES,
2011, p. 379).
As entidades da Administração pública direta são caracterizadas por órgãos
criados
por
lei
que
não
possuem
personalidade
jurídica,
ou
seja,
são
despersonalizadas, não possuem patrimônio próprio, são subordinadas a pessoa
política que a criou e a relação entre ambas é influenciada pelo princípio da
hierarquia.
De acordo com Marçal Justen Filho, todas as funções públicas são atribuídas
constitucionalmente aos entes políticos, mas o direito permite que este ente atribua
parcial ou totalmente a sua competência a outra entidade, sujeito de direito, a qual
foi criada por lei ou mediante autorização legal. Essas outras pessoas jurídicas
correspondem a Administração indireta, portanto, não são entes políticos e nem
titulares dos poderes estabelecidos pela Lei Maior, pelo contrário, são competências
recebidas de modo indireto, por decisão infraconstitucional dos entes políticos para
as pessoas administrativas (JUSTEN FILHO, 2013. p. 273-274).
A Administração indireta é reconhecida constitucionalmente baseado nas
inúmeras referências que possui na Carta Magna, inclusive no caput do artigo 37,
CF/88, a título de exemplo. Desse modo, transfere-se as atribuições e funções
administrativas para as pessoas jurídicas de direito público ou privado, criadas ou
autorizadas por lei – se for autarquia, é necessária lei específica diretamente para a
criação, se corresponder as demais entidades, basta a mera autorização para a
criação em lei específica – para desempenhar as atividades de competência estatal,
prestando serviços públicos ou intervindo no domínio econômico (DI PIETRO, 2015,
270
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
p. 528), assim, essas entidades são desprovidas de autonomia política e, apenas
vinculadas à Administração direta.
Pela execução indireta, a responsabilidade própria da prestação do serviço é
transferida a terceiro, porém a possibilidade de delegação é baseada na natureza do
serviço público, de modo que alguns serviços não admitem substituição do executor
pelo Estado (MEIRELLES, 2011, p. 380).
Justifica-se a ascendência dessas entidades devido a Reforma Administrativa
– fruto da EC 19/1998 – pois elas ganharam destaque a fim de implantar a “doutrina
do Estado mínimo”, uma vez que o Estado, frustrando o princípio da eficiência,
demonstrou ao longo do tempo a incapacidade de realizar todas as demandas
necessárias impostas pela Constituição Federal de 1988, assim, objetiva-se “retirar o
setor público de todas as áreas em que sua atuação não seja imprescindível”
(ALEXANDRINO, 2009, p. 129), defendendo a ideia de que o Estado sempre é
menos eficiente que o particular e, por esse motivo, deve-se atuar somente onde é
indispensável.
Assim, ressalta-se os quatro objetivos do Estado mínimo: o social,
concretizando o princípio da eficiência da esfera dos serviços sociais estatais; o
econômico, uma vez que diminuir o déficit púbico significa ampliar a capacidade
financeira do Estado; o político, já que amplia a participação da cidadania na gestão
da coisa pública e, por fim, o gerencial, pois aumenta a eficácia e a efetividade do
núcleo estratégico do Estado (ALEXANDRINO, 2009, p. 131).
Diante disso, tanto a iniciativa privada quanto a pública podem prestar esses
serviços, uma vez que ambos são titulares desse direito, nos termos da Lei Maior.
Porém a ineficiência estatal, demonstra a necessidade de redefinir o papel do
Estado a fim de viabilizar políticas públicas em áreas que o ele é ausente, para que
o setor público prospere da mesma forma que o setor privado.
O ministro do STF, Marco Aurélio afirma que a modelagem estabelecida pelo
Texto Constitucional para a execução de serviços públicos sociais como saúde,
ensino, pesquisa, cultura e preservação do meio ambiente, não prescinde de
atuação direta do Estado, vez que são inconstitucionais leis que emprestem ao
Estado papel meramente indutor nessas áreas, consideradas de grande relevância
pelo constituinte, pois o ministro alega que delegar essas tarefas constitui
271
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
privatização, o que vai contra aos preceitos constitucionais. Assim, a participação
das instituições privadas só será admitida na forma complementar ao Sistema Único
de Saúde.
Diante disso, o Estado busca maneiras de sanar a sua ausência, passando a
destacar o aspecto do fomento, em que a Administração pública implementa as
modificações da Reforma Administrativa, de modo a direcionar ao particular as
atividades de interesse público, sem emprego da coerção, visando a reverter os
contornos do Estado intervencionista (REIS, 2013, p. 243). Com isso, o Estado
busca induzir, mediante estímulos, incentivos para que os particulares adotem
determinados comportamentos.
Com a promoção do fomento na atividade administrativa e a maneira como se
dá a satisfação de interesses da coletividade, se torna necessário definir os
contornos exatos deste instituto a fim de que a Administração aja de maneira
uniforme e o promova – sempre ligado ao interesse público primário – de modo que,
o estimulo deve caminhar em direção ao bem-estar geral. Com isso, significa dizer
que a “mola propulsora do fomento” é o interesse público, de modo que, se estiver
no sentido contrário, configura-se a ilicitude do ato (REIS, 2013, p. 246).
Neste âmbito, o fomento pode ser realizado de duas maneiras perante as
instituições: incentivando as entidades privadas com fins lucrativos a praticarem
atividade econômica que acabe por acarretar benefícios públicos ou incentivar
entidades não lucrativas a realizarem atividades de interesse público, as quais
alcancem determinados benefícios para a comunidade (REIS, 2013, p. 247).
Nota-se, segundo a obra de Luciano Reis, que o “ato de fomentar atividades
particulares não significa desoneração do Estado de suas missões constitucionais”,
neste sentido, “não é legítima e nem legal o uso da atividade fomentadora para a
transferência integral da atuação estatal preconizada pela Constituição e pela
legislação infraconstitucional” (REIS, 2013, p. 251-252). De verdade, não se pode
pensar em um convênio como simples instrumento jurídico para delegar serviço
público a um particular, pois a análise deve ser feita em cima da finalidade do
interesse público, essa é a missão finalística da atuação fomentadora. Com base
nisso, os convênios deverão prestar serviços públicos de maneira complementar à
272
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
atuação estatal, de modo que não deve ser utilizado como “fuga” do Estado na
realização dos deveres legalmente impostos a ele.
Reis destaca o pensamento de Silvio Luis Ferreira da Rocha, o qual relata
que “a atividade administrativa de fomento, enquanto subsidiária, não desonera a
Administração de atuar de modo direto, na prestação de serviços, como os de saúde
e os de educação” (REIS, 2013, p. 256). Assim, ressalta-se no campo da saúde os
comandos constitucionais e a responsabilidade do Estado na fomentação, pois, esta
pode ser fomentada e prestada pelos particulares de acordo com a legislação,
porém, apenas em caráter complementar, “o que per si não afasta a
responsabilidade e o dever do Estado em prestá-la nas suas características
essenciais” (REIS, 2013, p. 256-257), ou seja, o fomento não é uma transferência de
responsabilidade.
A Administração pública pode se dar de maneira direta ou indireta. Se
escolhida a indireta, o Poder Público deve calcar-se no artigo 37, inciso XIX da Lei
Maior para criar a lei específica que autorize a instituição da entidade administrativa.
As entidades políticas e administrativas da Administração pública indireta são
pessoas jurídicas de direito público ou privado, personalizadas e encarregadas de
realizar as atividades por meio dos seus agentes. Entre as entidades que integram
esse conceito, destaca-se, nesse tópico, as empresariais.
Segundo Hely Lopes Meirelles, as empresas públicas são pessoas jurídicas
de direito privado criadas por meio de lei específica, regulamentadas pelo Poder
Executivo e, que visam prestar um serviço público que possa ser explorado de modo
empresarial ou exercer alguma atividade econômica de relevante interesse coletivo
(MEIRELLES, 2011, p. 66-67).
Com efeito, Bandeira de Mello ressalta que não é exato afirmar que as
empresas públicas podem ser estabelecidas para exploração de atividade
econômica levando em consideração a densidade jurídica utilizada para conceituar a
expressão, assim, essa expressão no sentido correto – para o autor – possui o
sentido de que a atividade desenvolvida se efetua mediante pagamento, o que
corresponde a simples atividade de uma empresa (MELLO, 2015, p. 195) e,
portanto, não merece uma análise mais aprofundada comparado ao presente tema.
273
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A empresa federal deve possuir autorização legal para agir como instrumento
de ação do Estado, ainda que sob o regime do direito privado, possui normas
específicas decorrentes da ação governamental. Deveras, essa entidade é formada
pelo capital estatal, de modo que, os recursos são constituídos pelo capital de
pessoas de direito público interno ou de pessoas da administração indireta, com
predominância acionária estatal (MELLO, 2015, p. 191).
Dito isso, percebe-se que a empresa estatal possui duas funções: a de
prestar ou explorar serviços públicos, exemplificadas pela Telebrás, Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos, Rede Ferroviária do Brasil e a Caixa Econômica
do Brasil (correspondem a empresas públicas), a de explorar uma atividade
econômica, como o Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social – BNDES – e a Petrobras (correspondem a sociedades de
economia mista, na realidade).
Com isso, ocorre a descentralização dos serviços que o Estado deve prestar
pela personalização da entidade prestadora. José Afonso da Silva explica que as
diferenças entre os tipos de entidades correspondem às obrigações tributárias,
trabalhistas e a não obtenção de privilégios fiscais para iniciativa privada, pois isso
não se aplica apenas àquela que explora determinado serviço público.
Para criar a empresa pública, o Estado deve autorizar a sua criação em lei
específica e registrar no cartório os atos constitutivos, que corresponde ao estatuto
ou contrato social. Ao criá-la, o Estado constitui uma pessoa jurídica de direito
privado com praticamente todas as características indicadas para as pessoas
públicas, de modo que o Poder Público a cria e a extingue por meio de lei, sem
possibilidade de extinção pela própria vontade. Dessa forma, a pessoa jurídica
representa um modo de intervenção do Estado na economia, como se o Estado
fosse um empresário.
Neste viés, ressalta-se que o Estado já possui relação com a empresa no
momento da sua criação em lei, pois a relação entre ambos é definida por
antecipação e caracterizada pelo controle, ora, se o Estado é considerado o
proprietário da empresa pública, aquele deve exercer controle sobre esta (SILVA,
2014, p. 735).
274
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A autorização para que os entes federados criem empresas públicas está
prevista no artigo 37, inciso XIX do Mandamento Constitucional, contudo, não existe
no ordenamento a lei complementar que determine as áreas de atuação que as
entidades administrativas podem atuar prestando serviços públicos. Como na
Constituição Federal não há nenhuma previsão e o legislador infraconstitucional não
se pronunciou, há uma lacuna quanto a esse assunto. Sem a regulamentação legal
do dispositivo constitucional configura-se a omissão legislativa, consequentemente,
não é possível que a lei brasileira saiba em qual setor a empresa pública está
autorizada a atuar.
No que se refere à licitação e aos princípios que a permeiam, José Afonso da
Silva explana que o estatuto da empresa estatal deve observar os requisitos para tal
instituto, versando sobre licitação, contratações de obras, serviços, compras e
alienações, sempre calcadas nos princípios que regem a Administração pública –
previstos no Texto Constitucional. Significa dizer que as empresas estatais se
submetem ao regime das empresas privadas com ressalvas do regime público, pois
necessitam dos aspectos fundamentais do funcionamento e exercício das atividades
públicas para atuar.
Neste âmbito, o Estado deve exercer controle positivo sobre a entidade,
podendo atribuir prerrogativas autoritárias a ela. Apesar da previsão de que o
estatuto aborde a sujeição de empresas públicas ao regime jurídico das empresas
privadas, inclusive no que se trata aos direitos e obrigações tributárias, a Lei Maior
ressalta no artigo 173, § 2º, a expressa proibição às empresas públicas de gozarem
de privilégios fiscais não estendidos ao setor privado (SILVA, 2014, p. 734).
Essas empresas têm personalidade jurídica própria, possui patrimônio próprio
(e totalmente público), são submissas a lei quanto os seus direitos e obrigações e
possuem receita própria, portanto, capacidade de autoadministração. Os cargos
ocupados por trabalhadores nas empresas públicas são denominados de empregos
públicos – são empregados públicos – e, portanto, submetidos ao regime celetista (e
275
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
não estatutário), o que significa dizer que não possuem estabilidade 157, de modo que
o concurso para a admissão dos empregados públicos constitui mera formalidade,
cumprimento de uma regra como fundamenta a Súmula 390 do Tribunal Superior do
Trabalho. O regime celetista é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
ou seja, a relação jurídica entre o Estado e o empregado público têm natureza
contratual.
Citam-se, outras características peculiares do regime celetista que abrange os
empregados públicos, como o aumento salarial, o qual só poderá ocorrer por meio
de negociação coletiva, o direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS), o aviso prévio, a multa rescisória, o décimo terceiro, as férias, o valetransporte e a aposentadoria pelo regime geral158 do Instituto Nacional de Seguro
Social (INSS), prevista aos homens com 65 anos de idade ou 35 anos de
contribuição previdenciária e as mulheres com 60 anos de idade ou 30 anos de
contribuição.
Na esfera processual, a empresa pública, via de regra, não paga as suas
condenações judiciais por meio de precatório, assim, as pessoas jurídicas de direito
privado podem ter os seus bens penhorados para a execução judicial, ou seja, não
gozam do direito ao pagamento por precatório. Contudo, há uma exceção prevista
na Orientação Jurisprudencial 247, II, do TST159, a qual corresponde à Empresa
157
Apesar do ingresso se dar por concurso público, os empregados públicos de regime celetista não
possuem estabilidade. Súmula 390 do TST: Estabilidade. Art. 41 da CF/1988. Celetista.
Administração direta, autárquica ou fundacional. Aplicabilidade. Empregado de empresa pública e
sociedade
de
economia
mista.
Inaplicável.
I - O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da
estabilidade
prevista
no
art.
41
da
CF/1988.
II - Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido
mediante aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da
CF/1988.
158 O regime geral de Previdência Social tem suas políticas elaboradas pelo Ministério da Previdência
Social e executadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social, autarquia federal a ele vinculada. Este
regime possui caráter contributivo e de filiação obrigatória. Dentre os contribuintes, encontram-se os
empregados públicos. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/perguntas-frequentesprevidncia-social/>. Acesso em: 02 jun. 2015.
159 247. SERVIDOR PÚBLICO. CELETISTA CONCURSADO. DESPEDIDA IMOTIVADA. EMPRESA
PÚBLICA
OU
SOCIEDADE
DE
ECONOMIA
MISTA.
POSSIBILIDADE.
I - A despedida de empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, mesmo
admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade;
II - A validade do ato de despedida do empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda
Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de
foro, prazos e custas processuais.
276
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Brasileira de Correios e Telégrafos, a única empresa pública a pagar as suas
condenações judiciais por meio do precatório, além de possuir condições especiais
de foro, prazo e custas processuais. No âmbito da empresa pública, a regra é não
possuir o benefício de prazo processual160.
O objeto da empresa pública deve ser designado em lei que, se preciso, só
poderá ser alterado por lei que corresponda ao objeto de mesma natureza. A
finalidade principal da entidade não corresponde ao lucro e sim à consecução do
interesse público, o que também será estabelecido pelo Estado, na medida da sua
necessidade (DI PIETRO, 2015, p. 529-530). Nesse sentido, a divergência se dá
com a redação do artigo 199 da CF/88, o qual impõe a proibição do repasse de
recursos públicos a entidades que visam ao lucro e ao fato de uma empresa, em
tese, visar o lucro.
Dito isso, há certa contradição quanto ao fato da empresa pública prestar os
serviços públicos de competência estatal, pois ao analisar a finalidade de uma
empresa – qualquer que seja – o seu fim principal é justamente obter lucro. O lucro é
um privilégio econômico normalmente obtido após uma exploração econômica de
algo ou alguém, é uma conduta normal e lícita a qualquer empresa particular, porém,
na esfera da empresa pública prestadora de serviço esse fim se torna discutível,
uma vez que o Estado tem o dever constitucional de prestar o serviço sem visar o
lucro e a empresa pública age em nome do Estado.
Ao estabelecer essas prerrogativas, o Estado não visa a proteger a entidade
criada e sim os recursos públicos que ela irá administrar, bem como a prestação do
serviço. A escolha do Poder Público de criar uma entidade calcada no direito
privado, dá a empresa maior liberdade para agir que o regime público da
Administração pública direta, porém, considera-se o regime da empresa pública um
regime híbrido, o que proporciona maior elasticidade a entidade, impondo
160
Informativo 507/STJ: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. PRAZOS PROCESSUAIS
DIFERENCIADOS. EMPRESA PÚBLICA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. Não é possível a
concessão às empresas públicas de prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para
contestar. As normas que criam privilégios ou prerrogativas especiais devem ser interpretadas
restritivamente, não se encontrando as empresas públicas inseridas no conceito de Fazenda Pública
previsto no art. 188 do CPC. Precedente citado: REsp 429.087-RS, DJe 25/10/2004. AgRg no REsp
1.266.098- RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 23/10/2012. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/informativo-tribunal,informativo-507-do-stj2012,40436.html>. Acesso em: 03 jun. 2015.
277
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
prerrogativas dos dois regimes, o que resulta na “derrogação parcial do direito
privado por normas de direito público” (DI PIETRO, 2015, p. 531-532).
Desta maneira, o serviço público em si (o qual é prestado), não acompanha
esse raciocínio, pois ao ter como titular uma entidade pública, a qual possui natureza
estatal, os serviços ficam sob o regime jurídico de direito público, ainda que prestado
por uma empresa de direito privado, como exposto acima. Segundo Silva, “a
verdade é que o regime não pode ser totalmente privado, porque, no mínimo, as
relações dessas empresas com o Estado são de natureza administrativa” (SILVA,
2014, p. 734), ficando sujeitos aos princípios de direito público.
Assim, Di Pietro conclui que na gestão dos serviços públicos pelo Estado,
serão utilizados – no silêncio da lei – os princípios de direito público, inerentes ao
regime jurídico administrativo, pois trata-se de serviço público, de modo que não há
outra alternativa, dada a predominância do interesse público sobre o particular, a
igualdade de tratamento dos usuários, a continuidade do serviço público, as
limitações ao direito de greve e a obrigatoriedade de sua execução pelo Estado (DI
PIETRO, 2015, p. 552).
5 O CASO DA EBSERH
A criação da EBSERH atende um conjunto de medidas do Governo Federal
com o intuito de recuperar e modernizar os hospitais universitários vinculados as
universidades federais. A Lei 12.550/2011 autorizou a criação da EBSERH, empresa
pública unipessoal, com personalidade jurídica de direito privado e patrimônio
próprio, vinculado ao Poder Executivo através do Ministério da Educação. A
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares possui vínculo com MEC, a fim de
reestruturar hospitais universitários federais, através de medidas que reorganizar
essas unidades no aspecto físico e tecnológico modernizando o parque tecnológico,
além de revisar o financiamento da rede com o aumento progressivo do orçamento
destinado aos hospitais, melhorar o processo de gestão e de recuperação do quadro
de recursos humanos dessas instituições e o aprimoramento das atividades
hospitalares vinculadas ao ensino, pesquisa, extensão, bem como à assistência à
saúde.
278
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A título de exemplo, o Hospital de Clínicas de Curitiba, vinculado a
Universidade Federal do Paraná, aderiu a EBSERH em 2014 após a aprovação do
Conselho Universitário da UFPR. A aprovação foi tumultuada e justificada pela
constante desativação de leitos devido à falta de funcionários somada a decisão
judicial que determinou a demissão dos funcionários contratados da Fundação da
UFPR – Funpar161. A gestão compartilhada do HC foi assinada pelo reitor da
universidade no fim de 2014 em Brasília, o qual informou que o hospital continuará
público através de serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde. A empresa
deve fornecer relatórios semestrais à UFPR das suas atividades.
Com isso, o MEC defende que as universidades federais que optarem por
firmar contrato com a EBSERH, atuarão no sentido de modernizar a gestão desses
hospitais, preservando e reforçando o papel estratégico desempenhado por essas
unidades de centros de formação de profissionais na área da saúde e de prestação
de assistência à saúde da população integralmente no âmbito do SUS. Contudo, a
lei da EBSERH é alvo de discussão constitucional. O conflito relacionado a
inconstitucionalidade da lei 12.550/2011 refere-se a possibilidade da empresa
pública prestar o serviço público de saúde, vez que, de acordo com o autor da ADI
em questão, isso viola dispositivos constitucionais. Para o Procurador-Geral da
República
as
normas
impugnadas
na
ADI
4895/STF
incidem
em
inconstitucionalidade nos artigos 37, caput e incisos II e XIX; 39; 173, § 1º; 198 e
207, da Lei Suprema162.
161
Decisão advém da Ação Civil Pública 98908-2002-001-09-00-2, da 1ª Vara do Trabalho de
Curitiba. A ação civil pública movida em face da UFPR e outros, foi motivada devido a contratação
irregular de funcionários pelo HC, a qual resultou em acordo em 2004 que não foi cumprido pelas
partes, como consequência, uma nova decisão propôs a regularização do quadro de funcionários em
90 dias sob pena de multa, porém, inúmeras audiências foram realizadas para alcançar um novo
acordo em 2014. Na decisão do mesmo ano, o magistrado considerou que “foram esgotadas todas as
tentativas de composição, exaustivamente ouvidas todas as partes envolvidas, foram encetados
todos os esforços possíveis, para um desfecho que levasse em consideração a relevância social da
presente ação”, portanto, ele não visualizou “que uma nova audiência de conciliação poderia
acrescentar ao acordo formulado” e, observou “que a presente avença obriga tão somente as Partes
envolvidas no processo e que firmam a petição de fls. 619-621”, vez que havia discordância dos
terceiros interessados. Por sim, o juiz proferiu que em substituição a todas as avenças firmadas, o
magistrado homologa o novo acordo entabulado entre as partes.
162 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 19, de 1998)
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de
provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
279
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Destaca-se que a ação direta de inconstitucionalidade tem a finalidade de
retirar do ordenamento lei ou ato normativo que esteja em choque com a ordem
constitucional, contrariando-a. De acordo com Alexandre de Moraes, é uma
finalidade de legislar negativa do Supremo Tribunal Federal (MORAES, 2014, p.
763), assim, não pode ultrapassar de exclusão do ordenamento jurídico os atos
incompatíveis com a Lei Maior. A ADI 4895 do Supremo Tribunal Federal tem como
relator o ministro Dias Toffoli e como autor, o Procurador-Geral da República,
Roberto Gurgel, o qual requer a inconstitucionalidade dos artigos 1º ao 17 da Lei
12.550/2011 que trata da gestão, administração de recursos e atribuições da
EBSERH, que envolve a contratação de servidores regidos pelo regime celetista, por
contrato temporário e processo seletivo simplificado.
Gurgel afirma que um dos dispositivos lesionados é o artigo 37, XIX, da Lei
Suprema, pois o inciso ressalta a necessidade de lei para autorizar a instituição de
empresa pública, de acordo com lei complementar que permita a atuação da
empresa em determinada área. O Procurador-Geral ressalta que não há lei
complementar federal que defina as áreas de atuação das empresas públicas,
quando dirigidas à prestação de serviços públicos, portanto, seria inconstitucional a
autorização para instituição prestar tais serviços pela Lei 12.550/11, a qual se refere
a EBSERH.
Outro problema encontrado por Gurgel é a incompatibilidade do artigo 3, § 1º
da Lei 12.550/2011 com o artigo 45 da Lei 8.080/1990, pois de acordo com o seu
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre
nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa
pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último
caso, definir as áreas de sua atuação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua
competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública
direta, das autarquias e das fundações públicas.
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de
suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de
prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão.
280
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
entendimento, o SUS é dever do Poder Público, dessa forma – como visto acima –
compete a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, cada um com
sua função (a descentralização é característica essencial desse sistema) completa o
SUS, contrário do que foi proposto na Lei da EBSERH a qual atribui a essa empresa
pública a função referente à todos os entes federados, em descompasso com o
requisito do Sistema Único de Saúde, pois ressalta-se que esse é um órgão do MEC
vinculado ao Poder Executivo referente apenas a União.
Quanto a inconstitucionalidade da contratação de servidores públicos pelo
regime da CLT, o autor explica que a ADI 4895 possui os mesmos fundamentos
referente a medida cautelar da ADI 2135, a qual foi deferida pelo Supremo Tribunal
Federal, portanto a Lei 12.550/2011 estaria em descompasso com o atual parâmetro
constitucional. Para Gurgel, a empresa pública prestadora de serviço público deve
obedecer aos parâmetros estabelecidos no artigo 37 da CF/88.
Para Advocacia-Geral da União a imposição constitucional referente a
necessidade da lei complementar refere-se apenas às fundações de direito privado,
com base no artigo 37, da CF/88, portanto, as empresas públicas estão excluídas
desse rol. Ela defende a constitucionalidade da lei, vez que a EBSERH foi instituída
para regularizar os recursos humanos e as relações de trabalho nos hospitais.
Dessa forma, integra o gerenciamento do Programa Nacional de Reestruturação dos
Hospitais Universitários Federais, o qual se destina-se à reestruturação e
revitalização dos hospitais universitários integrados ao SUS.
A Advocacia-Geral defende que a adesão à EBSERH é facultativa e que é
possível controlar a Empresa para melhor gestão. Quanto a contratação de
servidores pela CLT, a defesa argumenta que o regime jurídico previsto no artigo 39
da Lei Suprema não se aplica aos empregados da empresa pública.
Na decisão proferida pelo relator, a medida cautelar proposta pelo
Procurador-Geral da República foi indeferida, portanto os artigos contestados
seguem com sua eficácia e aguardam o julgamento de mérito da ação. Sobre isso,
acentua-se a discussão quanto a inconstitucionalidade da prestação de serviços
públicos de saúde por meio de empresas públicas no próximo tópico.
A exigência da lei complementar citada acima é o ponto principal da
discussão. Sua omissão, faz com que a lei da EBSERH não seja aceita pelo
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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ordenamento constitucional. A Emenda Constitucional 19/1998 deu a seguinte
redação ao artigo 37, o inciso XIX da Lei Maior, “somente por lei específica poderá
ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de
economia mista e da fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso,
definir as áreas de sua atuação”.
Desde a entrada em vigor da EC 19/1998, há discussão quanto à expressão
“neste último caso”, pois enquanto uns defendem a necessidade da lei para
empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas, outros a
defendem apenas para as fundações, o que gerou tal discussão. Gurgel, autor da
ação, defende a primeira tese, a qual entende a necessidade da lei complementar
para autorizar a atuação da empresa pública em determinadas áreas, “pela singela
razão de que, conceitualmente, a autarquia é a única entidade vocacionada ao
exercício de serviço público típico.”.
Com efeito, a análise segue ao artigo 173, § 1º da Lei Suprema, a qual
ressalta a finalidade de uma empresa pública: a de explorar a atividade econômica
quando necessária e relevante. Neste sentido, a empresa só estaria autorizada a
exercer o seu papel se houver relevante interesse coletivo ou advenha de um
imperativo da segurança nacional. Contudo, Bandeira de Mello não acompanha esse
raciocínio (MELLO, 2015, p. 195), de modo a entender que assim como as
autarquias, as empresas públicas também estariam sujeitas a prestação de serviços
públicos.
Isso implicaria na mudança do regime jurídico dessa pessoa jurídica de direito
privado, ora, basta notar que o serviço público é por si só regido pelo regime público
que se percebe mais um conflito nesta vertente. Assim, enquanto uma parcela da
doutrina não admite a utilização de empresas públicas para a prestação de serviço
público, os que a admitem por essas entidades devem se preocupar com o regime
permitido, demonstrando a complexidade na análise.
De verdade, não há motivo para discutir e destacar a questão das fundações
públicas, pois a essa, não há dúvidas de que necessita de lei complementar. O que
ressalta-se aqui, é a necessidade de lei complementar, certamente federal, para a
atuação legal das empresas públicas. Basta analisar as prerrogativas do artigo 37 da
Carta Magna e as imposições sobre todos os entes federados para alcançar a lógica
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
de que não faz sentido a legislação necessária para a administração direta e indireta
ser de cunho estadual, distrital ou municipal, pois essa lei deve abranger todo o
território nacional, como destacado por Gurgel na ADI 4895/STF.
Constata-se no Decreto-lei 200/1967 os agentes que atuam em detrimento do
poder público, adentrando especificamente ao artigo 5º, inciso II desse instrumento
normativo, aonde se encontra o conceito previsto à empresa pública, especificada
como: entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio
próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade
econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de
conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas
em direito.
Ao admitir a prestação de serviço público às empresas públicas, o
instrumento normativo visa a demonstrar o caráter eventual e não frequente às
empresas públicas, convergindo a necessidade de lei complementar para especificar
a qualidade duradoura do objeto: prestar serviço público de forma contínua e
ostensiva.
Alexandre de Moraes (2001, p. 60) defende essa vertente ao afirmar que
A EC no 19/98, não obstante mantenha a necessidade de prévia edição de
lei, para constituição de empresas públicas, sociedades de economia mista,
autarquias e fundações, inovou em sua regulamentação.
Dessa forma, em relação as autarquias, a Constituição Federal permanece
exigindo a edição de lei ordinária específica para sua criação. Em relação,
porém, às empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações,
a EC no 19/98 não mais exige a edição de lei específica para que possam
ser criadas. Essa exigência foi substituída por dois requisitos:
- edição de lei ordinária específica, autorizando a instituição de empresa
pública, sociedade de economia mista e fundação;
- edição de lei complementar que defina a área de atuação da empresa
pública, sociedade de economia mista e fundação.
O fundamento disso, refere-se a necessidade de lei para definir as áreas de
atuação das empresas públicas na prestação de serviço público, uma vez que esse
objeto não consiste na finalidade principal da criação dessas instituições, de modo
que se mostra coerente uma legislação para determinar as “exceções” permitidas às
empresas públicas, para que evite o choque com o ordenamento constitucional que
cita e ressalta a relação da instituição da empresa pública na exploração direta de
283
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou prestação de
serviços.
Ora, se está fora da direção habitual seguida pelas empresas públicas, é
necessário e lógico fundamentar. Nesse viés, Bandeira de Mello faz uma crítica a
legislação que visa a complementar o Texto, como se isso decorresse de uma falha
constitucional que não abordou toda a matéria a respeito de forma clara e eficiente,
pois para o autor a imprecisão ou a fluidez das palavras constitucionais não pode
supor a necessidade de lei para delimitar o campo da eficácia. Mello critica vez que
isso significaria outorgar à lei, que precisa de base significativa para ser elaborada,
mais força que a Constituição.
Contudo, o intérprete das normas, não é o Legislativo e nem o Executivo, é o
Judiciário. Este alcança a verdade jurídica atrás da norma constitucional e
infraconstitucional e norteia os casos concretos. O Judiciário tem o dever de
delimitar e interpretar as normas elaboradas pelo Legislativo, bem como controlar
aquilo que é passível de apreciação pela Lei Suprema e o que deve ser descartado
por incompatibilidade.
A lei da EBSERH traz nos seus dispositivos, o imperativo de que a prestação
de serviços e assistência pública à saúde devem ser inseridas integralmente e
exclusivamente no âmbito do SUS (artigo 3º, § 1º), porém, a lei 8.080/1990
estabelece no artigo 45 a necessidade dos serviços de saúde dos hospitais
universitários e de ensino integrar-se ao Sistema Único de Saúde, dessa maneira,
soa estranho o fato desses hospitais universitários passarem a ser administrados
por empresa cujo o regime jurídico é o privado.
Em outros tempos, o Setor Público estimulou a iniciativa privada a abranger
áreas de competência dos entes federados, porém, isso é arcaico e gera retrocesso
ao sistema. O paradigma a ser seguido é a contratação de empresa regido pelo
regime privado apenas em caráter transitório e complementar, diferente da
contratação plena da EBSERH para desenvolver esses serviços, de modo que isso
só deve ser tolerado na falta de atuação do Poder Público.
O campo da saúde não é exclusivo do SUS, mas aquilo que integra o SUS é
exclusivo do Setor Público, dessa forma, dos entes federados. Todos os serviços
prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde terão como prestador os entes
284
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Fora disso, não há
compatibilidade com o SUS.
No instante que a legislação da EBSERH afirma que as suas atividades estão
inseridas integral e exclusivamente no âmbito do SUS, há um choque, um confronto
na natureza jurídica do regime em questão. De acordo com a jurisprudência do STF,
a empresa pública que presta o serviço público de saúde está submetida ao
conjunto de normas previstas no artigo 37, CF/88, incluindo-se aqui a EBSERH.
Neste viés, é considerado inconstitucional o artigo 10 da lei 12.550, segundo o qual
estabelece o regime pessoal permanente da EBSERH o referente a Consolidação
das Leis de Trabalho.
Isso, contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal que deferiu a medida
cautelar a ADI 2135/STF suspendendo a eficácia da redação modificada pela EC
19/1998 no artigo 39, caput, da Lei Maior. Essa emenda constitucional autorizava a
contratação de servidores pelo regime celetista, colocando fim ao regime único
obrigatório, porém a medida cautelar retornou a obrigatoriedade do regime único e
descartou a possibilidade de contratação pela CLT, de modo que o artigo 10 da lei
da EBSERH está em descompasso com o paradigma constitucional vigente. Diante
disso, ressalta-se também a irregularidade dos artigos 11 e 12 da lei 12.550/2011,
pois ambos dão continuidade ao artigo 10, abordando, por exemplo, a contratação
temporária de empregados pela CLT.
Outrossim, ressalta-se mais uma falha no contexto da prestação de serviço
público pela empresa pública, EBSERH, referente a vedação da destinação de
recursos públicos às instituições sob o regime privado. O artigo 199 do Texto
ressalta que o campo da saúde é livre à iniciativa privada e afirma no §2º a expressa
vedação a vinculação de recursos públicos a empresas privadas com fins lucrativos.
Ao discorrer sobre a assistência à saúde, José Afonso da Silva (2014, p. 788) afirma
que
Responsável, pois, pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público,
falando a Constituição, neste caso, em ações e serviços públicos de saúde,
para distinguir da assistência à saúde pela iniciativa privada que ela
também admite, e cujas instituições poderão participar completamente do
Sistema Único de Saúde, sendo vedada a destinação de recursos públicos
para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Ora, estranho o legislador não considerar a finalidade da empresa em visar ao
lucro – como já dito nos tópicos anteriores – e a incompatibilidade do imperativo
constitucional que não permite que tal instituição receba recursos públicos da saúde,
uma vez que é natural a empresa buscar o lucro. Silva considera que os serviços
privados são representados por profissionais liberais habilitados e pessoas jurídicas
de direito privado (aqui se situa a EBSERH), assim, esses visam ao lucro por
necessidade, obrigatoriedade para a subsistência e, consequentemente encaixamse na vedação do dispositivo constitucional.
Com efeito, destaca-se que a prestação de serviços de assistência à saúde
pelos particulares (pessoas físicas e jurídicas) devem ser regidos pelos princípios
éticos e pelas normas que regem o Sistema Único de Saúde para que atuem de
acordo com as condições de funcionamento (SILVA, 2014, p. 788), contudo, como
demonstrado, a EBSERH não está de acordo com a legislação pátria e,
consequentemente, não está de acordo com as regras que determinam o
funcionamento.
Dessa maneira, é possível identificar a precariedade legislativa que envolve a
prestação do serviço público de saúde no contexto das empresas públicas, pois,
mesmo que a saúde seja considerada um direito fundamental social, e seja essa o
mínimo para uma vida digna atribuída a competência de todos os entes federados, é
necessário admitir que a administração pública indireta não possui respaldo legal
para impor a empresa pública os serviços estabelecidos na lei 12.550/2011,
devendo a Suprema Corte desse país admitir a inconstitucionalidade da prestação
de serviços na área da saúde por meio de empresas públicas no contexto explorado
na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/STF.163
Ante o exposto, destaca-se que a modificação da natureza jurídica da
EBSERH possibilitaria a sua atuação de modo compatível com a legislação vigente,
pois diante dos fundamentos expostos, nota-se que as atribuições conferidas a essa
empresa estão compatíveis com as atribuições legais impostas às autarquias.
Assim, se o Estado modificar a lei 12.550/2011 para que essa empresa passe a
atuar na forma de uma autarquia, ele solucionaria esse impasse e faria com que a
ADI 4895/STF perdesse o seu objeto.
163
Grande parte do exposto faz referência a ADI 4895/STF, vez que as peças são objetivas e claras.
286
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais dispostos na legislação
pátria exaltam a importância do direito social a saúde, o qual se tornou fundamental
a fim de garantir o núcleo duro da Constituição Federal – o preceito normativo macro
que rege todo o sistema jurídico – e garantir uma vida digna aos que vivem na
sociedade brasileira, de modo a concretizar o acesso universal e igualitário à saúde.
É necessário que políticas públicas e aperfeiçoamentos sejam feitos
sucessivamente para que o Sistema Único de Saúde alcance o desejado patamar de
excelência para que garanta, de modo claro, a vida digna a todos os que o
procuram, porém, na realidade, o Estado precisa melhorá-lo (e muito) para que
satisfaça a demanda. Para que o Estado proceda aos aprimoramentos necessários
a todo o sistema, é preciso que esteja de acordo com as condições de
funcionamento e com os princípios jurídicos que regem o SUS. Melhorar, mas sem
atender a legislação vigente, é um ato de melhoria nulo, pois aquilo o que é ilegítimo
não é válido para o Direito Brasileiro e deve ser repudiado.
O Estado está autorizado a agir por meio da sua administração direta e
indireta, porém, deve se atentar as causas que podem vir a bloquear a ação para
que todo o procedimento realizado não seja perdido. Ao optar pela administração
indireta, como disposto no artigo 37, da Lei Maior, é preciso atender a legislação que
atenta aos requisitos básicos para implantar uma nova instituição.
Com efeito, nota-se que a prestação de serviço público por meio de empresas
públicas na legislação regente possui controvérsias que não foram sanadas para a
implementação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, o que resultou em
um vasto debate no campo jurídico a fim de discutir a constitucionalidade da
prestação do serviço público de saúde pela EBSERH.
O Estado deve se atentar às condições indispensáveis para o exercício do
direito a saúde devido a sua importância (dever do Estado), pois a omissão
constitucional é menor problema comparado a possibilidade de um usuário chegar à
óbito – o que é completamente irreversível. Dessa maneira, deve-se o Estado notar
as prerrogativas básicas para implementar a sistema de saúde forte e competente
para que não chegue a esse fim.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
É irregular a prestação do serviço público de saúde por empresas públicas,
uma vez que não há lei complementar que a autorize. Na ausência dessa lei, não é
possível identificar os campos em que as empresas públicas que compõe a
administração indireta podem atuar. A lei complementar mencionada está prevista
na Constituição Federal, de modo que a sua ausência não significa que as empresas
públicas podem atuar em qualquer ramo do serviço público, muito pelo contrário, a
falta dessa legislação cominada a implantação da EBSERH implica em
inconstitucionalidade.
Ante esse argumento, pode-se explorar outros que tendem confirmar a
precariedade da lei que criou a EBSERH e as irregularidades em que ela incide.
Deveras, a saúde não é exclusiva do SUS, mas o Sistema Único de Saúde é
exclusivo do Poder Público e, este ao optar pela EBSERH e determinar que esta
seria regida pelo regime privado, não se atentou ao regime público do serviço
público que a empresa prestaria, constatando-se incompatibilidade.
Outra incompatibilidade está na prerrogativa estabelecida na lei da EBSERH
em contratar funcionário pelo regime celetista, referente a Consolidação das Leis de
Trabalho. Isso já foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade no Supremo
Tribunal Federal na discussão que abordou a compatibilidade da EC 19/1998 com o
sistema constitucional. Na ocasião o STF reconheceu o vício formal no processo
legislativo que alterou a redação dos artigos que autorizada a contratação pelo
regime celetista e estatutário. Em consequência disso, o Poder Público segue
devendo contratar apenas pelo regime estatutário – contrário ao que está disposto
da Lei 12.550/2011.
Por fim, ressalta a finalidade lucrativa da empresa, o que veda imediatamente
o repasse de recursos públicos a ela. Como disposto no artigo 199 do Texto
Constitucional, os recursos públicos dos entes federados não podem ser destinados
como auxílios ou subvenções à instituições privadas com fins lucrativos.
Por essas razões, é possível afirmar que a EBSERH possui irregularidades
que motivam a sua extinção, o que é provável que aconteça com o julgamento da
ADI 4895 que tramita no Supremo Tribunal Federal. Surpreendentemente, o STF
negou a medida cautelar pleiteada pelo Procurador-Geral da República, mas de
acordo com as razões expostas, há inúmeros motivos para que o STF venha a
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
considerar
a
inconstitucionalidade
dos
dispositivos
que
sustentam
a
Lei
12.550/2011.
Diante dessa análise, afirma-se que a melhor maneira de resolver esse
impasse está na alteração da natureza jurídica da EBSERH, de modo que a lei
12.550/2011 deveria passar de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares para
Autarquia Brasileira de Serviços Hospitalares. Somente nessa hipótese as
prerrogativas atribuídas a EBSERH poderiam ser implantadas e executadas sem
incidir em vícios legais.
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Paulo: Método, 2009.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo:
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SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 9. ed. São Paulo:
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A INTERVENÇÃO ESTATAL FRENTE À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE.
STATE INTERVENTION IN THE SITUATION OF DOMESTIC VIOLENCE AGAINST
CHILDREN AND ADOLESCENTS
Kalina Mariah Araujo de Alvarenga 164
Adriana Martins Silva 165
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 2 DA FAMÍLIA 3 DA PROTEÇÃO LEGAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE - DA
DOUTRINA DE PROTEÇÃO INTEGRAL AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 3.1
DA VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE 4 DA ATUAÇÃO DO ESTADO 4.1 DAS
MEDIDAS DE PROTEÇÃO E SUA APLICAÇÃO PELA REDE DE PROTEÇÃO EM CONJUNTO COM
O PODER JUDICIÁRIO 4.2 PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INTERVENÇÃO
ESTATAL – LIMITES E EFICIÊNCIA 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
RESUMO
O presente trabalho objetiva provocar a análise crítica acerca da atuação do Estado frente à situação
de violência contra a criança e o adolescente em ambiente familiar, demonstrando os principais
motivos da ocorrência da violência, suas consequências e os meios que os órgãos públicos possuem
para cessar a situação de risco infanto-juvenil. Pretende-se delinear, através da investigação teórica e
experiência prática, qual é a limitação estatal de intervenção em ambiente privado e tecer
considerações críticas acerca de tais limitações, uma vez que a interferência em ambiente familiar,
considerando um modelo liberal de Estado, não é algo recorrente. Espera-se traçar um paralelo entre
a origem da família e da evolução dos direitos fundamentais da criança e do adolescente com a
violação de tais direitos, relacionando-a com a violência e, por fim, as formas de resolução de tais
conflitos, considerando que não se trata de uma situação rara na realidade atual brasileira.
Palavras chave: família, violência doméstica, violência infanto-juvenil, intervenção estatal, direitos
criança e adolescente.
ABSTRACT
This article seeks to provoke critical analysis about the state's role in the child against violence
situation and adolescents in family atmosphere, showing the main reasons for the occurrence of
164
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).
Advogada. Mestre em Direito Empresarial. Professora de Direito Civil, Família e Empresarial no
Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
165
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violence, its consequences and means that public bodies have to stop the situation of children's risk. It
is intended to outline, through theoretical research and practical experience, what is the limitation of
state intervention in private and criticize considerations about such limitations considering a liberal
model of state. It is expected to draw a parallel between the source of the family and the evolution of
children's fundamental rights and adolescents with violation of such rights, linking it to violence and,
finally, ways of resolving such conflicts, considering that it is not a rare situation currently in Brazil.
Keywords: family, domestic violence, children and youth violence, state intervention, child and
adolescent rights.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar a intervenção Estatal em ambiente familiar
no que tange a situação de violação de direitos da criança e do adolescente através
da violência doméstica, traçando um raciocínio lógico para entender a tomada de
determinadas decisões, em especial, do Poder Judiciário.
Para tanto, inicialmente será abordada a temática da família, considerando
seu conceito, conteúdo, proteção legal e princípios que a regem para que se torne
viável entender à problemática da violência doméstica. Logo após será foco da
discussão a proteção legal fornecida à criança e ao adolescente atualmente no
Brasil e os princípios que a complementam.
Sendo trabalhada a base legal que protege a criança e o adolescente da
violação de direitos se passará a analisar a violência em si e seus principais modos
de ocorrência para então demonstrar suas causas. Posteriormente o foco será
determinar quais são as políticas públicas mais utilizadas pelo Estado para
resguardar uma criança ou adolescente de um lugar que corrobore com a violação
de seus direitos básicos.
Por fim, será foco do artigo analisar a atuação estatal quando da ocorrência
da violência doméstica contra a criança e o adolescente, quais são seus meios,
resultados e eficácia, uma vez que a violência fere a tentativa social de promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação, conforme preceitua a Constituição Federal, devendo
ser combatida de forma plena e eficaz pelo Estado de Direito.
292
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GESTÃO E CONTROLE
2 DA FAMÍLIA
A família é um ente formado por indivíduos ligados por laços de afetividade ou
com ancestrais comuns e consiste na base da sociedade, conforme preceitua a
Constituição Federal de 1988. Tânia da Silva Pereira afirma que, a família é o
primeiro agente que socializa o ser humano, sendo assim, onde surge toda a
interação social de uma pessoa (PEREIRA, 2003, p. 151).
Os autores Stolze e Pamplona referem que é neste núcleo social que se
formam as primeiras manifestações de afeto entre pessoas (GAGLIANO, 2014, p.
45), logo, é importante que situações que envolvam tais entidades sejam
regulamentadas pelo Estado para os direitos fundamentais de seus membros.
Assim, a forma de regulamentação se dará através do Direito de Família, cuja
interpretação se dará também através dos Princípios, valores sociais fundamentais
protegidos no momento de aplicação da lei ao caso concreto.
Em relação aos Princípios, alguns terão maior aplicabilidade no que tange a
proteção dos direitos da criança e do adolescente. O Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana é contemplado expressamente como fundamento do Estado junto
ao art. 1º da Constituição Federal de 1988 e diz respeito à garantia de todos os
membros de uma família se desenvolver e viver plenamente, Rodolfo Pamplona e
Pablo Stolze definem que: “Dignidade traduz um valor fundamental de respeito à
existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e
afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade”
(GAGLIANO, 2014, p. 88).
Já o Princípio da Função Social, anteriormente aplicado à propriedade e à
empresa passa a ser aplicado também à família. Os professores, Francisco Pereira
Coelho e Guilherme de Oliveira, da Faculdade de Direito de Coimbra, demonstram,
a respeito da evolução da função familiar que:
(A família) Perdeu a função política que tinha no Direito Romano, quando se
estruturava sobre o parentesco agnatício, assente na ideia de subordinação
ou sujeição ao pater-familias de todos os seus membros. Perdeu a função
econômica de unidade de produção, embora continue a ser normalmente
uma unidade de consumo. As funções educativa, de assistência e de
segurança, que tradicionalmente pertenciam à família, tendem hoje a ser
assumidas pela própria sociedade. Por último, a família deixou de ser
293
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GESTÃO E CONTROLE
fundamentalmente o suporte de um patrimônio de que se pretenda
assegurar a conservação e transmissão, à morte do respectivo titular.
(COELHO, 2008, p. 100)
Atualmente tal princípio aplica-se reconhecendo caráter eudemonista da
família, fornecendo um ambiente adequado para que todos os membros dela
realizem seu projeto de vida, buscando sua felicidade e recebendo o respeito
merecido. A família agora é tratada como um meio social para a busca da felicidade
na relação com o outro (GAGLIANO, 2014, p. 112-113).
O Princípio da Convivência Familiar é definido como aquele que estabelece
que pais e filhos devam permanecer juntos, em condições normais A separação
definitiva dos filhos do convívio com os pais ocorre apenas nos casos em que seja
atendido o melhor interesse da criança e do adolescente (GAGLIANO, 2014, p. 116).
Outro princípio bastante aplicado nas relações familiares é o Princípio da
Intervenção Mínima do Estado no Direito de Família e sobre ele há de se ressaltar a
presença da assistência e apoio estatal, como escreveu Rodrigo da Cunha Pereira:
A intervenção do Estado deve apenas e tão somente ter o condão de tutelar
a família e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e
de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do
núcleo afetivo. (...) A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade
e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. (PEREIRA, 2006, p.
157)
Conclui-se então que o Estado não deverá intervir de forma gratuita e
agressiva nas famílias ou acabar com sua base socioafetiva, restringindo sua
atuação a situações de lesão ou ameaça a interesses de qualquer membro
(GAGLIANO, 2014, p. 116).
Conforme Paulo Lobo, o Princípio da Afetividade determina que o Direito de
Família seja fundamentado pelas relações socioafetivas e pela comunhão de vidas,
com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico (LOBO,
2011, p. 70). Maria Helena Diniz ainda expõe que o princípio da afetividade é o
corolário do respeito ao princípio dignidade da pessoa humana, uma vez que este
último acaba sendo garantido pelo primeiro, que norteia as relações familiares,
destacando o caráter eudemonista da família (DINIZ, 2011, p. 38).
294
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Por fim, o Princípio da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Jovens se
encontra estampado no art. 227 da Constituição Federal, no qual se consolida a
Doutrina Jurídica da Proteção Integral, assegurando à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, por parte da família, da sociedade e do Estado, os direitos
ali elencados, tal como à vida, saúde, alimentação, entre outros. O dispositivo
também referencia a necessidade de colocá-los a salvo de qualquer forma de
violência e discriminação, por exemplo.
De acordo com Maria Berenice Dias, a condição peculiar de desenvolvimento
da criança e do adolescente é que determina o tratamento especial destinado a eles,
uma vez que estão expostos a maior vulnerabilidade e fragilidade (DIAS, 2013, p.
70).
3 DA PROTEÇÃO LEGAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE - DA DOUTRINA
DE PROTEÇÃO INTEGRAL AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Cronologicamente, a primeira forma declarada de defesa aos direitos da
criança e do adolescente foi realizada pela Declaração Universal dos Direitos da
Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959
e fruto do trabalho do UNICEF, cujo conteúdo dispõe sobre os direitos básicos
infanto-juvenis, considerando a imaturidade física e mental dos mesmos,
fornecendo-lhes proteção e cuidados especiais.
O documento refere ao princípio da igualdade entre as crianças e
adolescentes, para que sejam beneficiadas de forma igual pelos direitos que elenca,
sem discriminação. Ainda determina a proteção especial do seu melhor interesse,
que deverá levar em consideração o afeto, a segurança, o amor e a compreensão
para seu pleno desenvolvimento, bem como sua criação num ambiente saudável
sem nenhum tipo de violência ou negligência.
Para que tais princípios tivessem efeito jurídico nos países, no ano de 1989
foi aprovada pela Assembleia das Nações Unidas a Convenção sobre os Direitos da
Criança, reconhecida como lei internacional um ano depois e criando, de forma
concreta, a Doutrina da Proteção Integral.
295
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
No Brasil, adotar a Doutrina da Proteção Integral revogou a Teoria da
Situação Irregular que estava vigente na época. Tal instrumento marcou a mudança
de paradigma ao considerar a nova condição da infância: sujeitos de direito.
Segundo Andréa Amin, a Doutrina da Proteção Integral, está fundada em três
pilares, reconhecer a peculiar condição da criança e adolescente como pessoa em
desenvolvimento, merecedora de proteção especial; crianças e adolescentes têm
direito à convivência familiar e; as Nações que a subscreverem se obrigam a
assegurar os direitos presentes na Convenção com prioridade absoluta. (MACIEL,
2010, p. 12)
Assim determina-se que crianças e adolescente são sujeitos de direitos em
peculiar condição de desenvolvimento que necessitam de proteção diferenciada,
especializada e integral, que, segundo a Constituição de 1988, lhes será fornecida
através de sua família, da sociedade e do Estado.
Então se entende que foi a Carta Cidadã que acolheu a Doutrina da Proteção
Integral em seu corpo e garantiu à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.
Ao adotar a referida Doutrina, o legislador revogou implicitamente o Código de
Menores vigente à época e, conforme Antonio Fernando do Amaral e Munir Cury,
fez-se necessária a elaboração de um texto infraconstitucional que abrangesse o
conteúdo da nova Doutrina, tutelando suas disposições. (CURY, 2002, p. 11)
Assim é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990), cujo conteúdo abrange normas de cunho material e
processual, consideradas instrumentos necessários para consumar a norma
constitucional. (MACIEL, 2010, p. 9) Como exemplo, para assegurar os direitos
previstos, se estabelece, em âmbito municipal, um sistema de garantias de direitos
que se responsabiliza pelo atendimento da criança e do adolescente, através dos
Conselhos Tutelares e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
– COMTIBA. (MACIEL, 2010, p. 9)
Para uma melhor interpretação do Estatuto da Criança, alguns princípios são
frequentemente utilizados para que todo o sistema se integre e expresse valores
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
constitucionais pertinentes ao caso concreto, de acordo com Andréa Amin.
(MACIEL, 2010, p. 19)
O Princípio da Proteção Integral determina que sejam assegurados e
efetivados todos os direitos fundamentais adquiridos pela criança e o adolescente no
momento em que eles são considerados sujeitos de direito por se encontrarem em
condição peculiar de desenvolvimento. (MACHADO, 2003, p. 411)
Já os Princípios do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente e da
Prioridade Absoluta caminham juntos, considerando que a condição peculiar de
desenvolvimento de uma criança demanda proteção especial, integral e prioritária.
Seu melhor interesse deve ser resguardado com prioridade na aplicação das leis
que versarem sobre este assunto.
Atrelado aos anteriores, o Princípio do Respeito à Peculiar Condição de
Pessoa em Desenvolvimento consiste em entender que a criança e o adolescente
ainda não possuem personalidade adulta formada, motivo pelo qual deverá ser
tratado como alguém em desenvolvimento.
3.1 DA VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
Em conflito com todos os princípios e formas de proteção aos direitos infantojuvenis, se encontra a violência doméstica e, entendendo que os fatos do início da
vida de uma criança são determinantes para construção do seu caráter e identidade
social, é um fato que deverá ser veemente combatido.
Sobre violência intrafamiliar, o Ministério da Saúde dispõe que:
A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar,
a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno
desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou
fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a
assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em
relação de poder à outra. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 17)
O grande problema da violência doméstica é seu diagnóstico, pois
dificilmente chegará a conhecimento público. O Ministério da Saúde ainda reforça
essa situação demonstrando que quando as agressões chegam ao conhecimento
297
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
dos serviços da saúde é porque já tomou grandes proporções, repercutindo de
forma mais grave. Isso significa que as situações mais difíceis de diagnosticar são
as menos graves pelo seu caráter menos agudo e mais constante. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2001, p. 17)
A violência pode se manifestar de quatro formas diferentes. Primeiramente,
a violência física, em âmbito intrafamiliar, consiste no ato de algum membro da
família de lesionar ou ferir fisicamente a criança ou o adolescente, mediante força
física ou utilização de instrumentos ou armas, que resulte em danos físicos,
internos ou externos. Poderá decorrer de castigos imoderados ou punições.
As consequências físicas da violência física são muito sérias, uma vez que
podem resultar na morte ou sequelas para o resto da vida, segundo Josiane
Veronese e Marli da Costa. (VERONESE, 2006, p. 107)
O segundo lugar, a violência sexual, abrange diversos atos possíveis para
sua ocorrência, não estando condicionada ao uso da força ou contato físico. O seu
conceito vai além e se entende como todo ato ou jogo sexual, que, em razão da
imaturidade da criança e adolescente, não respeita seu direito de escolha.
Entende-se que é dever do adulto saber que a criança ou adolescente ainda não
tem consciência das limitações sociais acerca de certas práticas sexuais, sendo
sua a responsabilidade de respeitar tais limites. ( LERNER, 2011, p. 73)
Pouco se vê sobre a publicidade da violência sexual em ambiente familiar,
por muitos motivos que devem ser desmistificados. Deve-se quebrar o paradigma de
proteção ao abusador ao invés de proteger quem teve seus direitos violados. Dentre
as consequências de um abuso sexual estão traumas físicos, distúrbios de sono e
de alimentação, dificuldade de aprendizagem, sentimentos de ódio e culpa, uso de
álcool e drogas; prostituição juvenil, entre outras.
Já a violência psicológica, segundo Anna Christina Cardoso de Mello, da
Fundação Orsa:
(Violência psicológica) define-se por palavras, atitudes, comportamentos
e/ou climas negativos criados por adultos em torno de criança ou
adolescente, de caráter repetido, extensivo e deliberado. Seu impacto
emocional ultrapassa a capacidade de integração psicológica da criança ou
adolescente e resulta em sérios prejuízos ao desenvolvimento psicoafetivo,
relacional e social dos mesmos. Em geral, acompanha as outras formas de
violência. (MELLO, 2008, p.12)
298
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Entende-se então a sutileza da violência psicológica, fato perigoso, que
deforma o caráter e a personalidade da criança ou adolescente que sofre. Não há
meios para seu reparo, como há na presença de uma doença física, de forma que o
estigma fica presente para o resto da vida. (VERONESE, 2006, p. 117)
Por fim, a negligência se considera também um tipo de violência psicológica,
conforme aborda o Conselho Federal de Medicina e está incluída em todas as outras
formas de violência contra a criança e o adolescente, podendo ser considerada
como uma das raízes da problemática.
Para Josiane Veronese e Marli da Costa:
Define-se, de modo geral a negligência sendo a omissão dos responsáveis
em garantir cuidados e satisfação das necessidades da criança/adolescente
sejam elas primárias (alimentação, higiene e vestuário), secundárias
(escolarização e lazer) e terciárias (afeto, proteção). Cada um dos níveis de
necessidades não satisfeitos determina sérias consequências no
desenvolvimento da criança/adolescente, que podem ir do óbito prematuro à
delinquência. Não é considerado negligência a omissão resultante de
situações que fogem ao controle da família. (VERONESE, 2006, p. 119)
Entende-se então por negligência a indiferença e a falta de interesse do
responsável
pelas
necessidades
de
uma
criança
ou
adolescente,
cujas
complicações se estendem por anos, de modo que aquela criança entenderá que
não merece cuidados. Crianças e adolescentes negligenciados não possuem
exemplos dentro de casa para seguir, vivendo suas próprias vidas, mesmo que
ainda não tenham discernimento para tanto.
Atualmente, a realidade brasileira conta com duas principais causas de
violência doméstica, a primeira delas consiste na dependência química/ alcoólica e a
segunda no poder disciplinar da família.
O uso abusivo de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública e
geralmente está ligado a um ambiente familiar mal estruturado com a presença de
diversos tipos de violência. Portanto, considerando que a criança e o adolescente se
encontram em condição de desenvolvimento e, considerando ainda que depositam
toda sua confiança em seus familiares, a violação de seus direitos torna-se mais
fácil.
299
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O que se vê na prática dos Conselhos Tutelares e Varas da Infância e
Juventude é o padrão de carência de recursos financeiros e culturais nas famílias
que possuem dependentes químicos em seu núcleo. A violência infanto-juvenil mais
praticada, nestes casos, é a negligência, fato que afeta todo o desenvolvimento da
criança e ainda pode levá-la a repetir no futuro o que recebeu na juventude.
O segundo maior motivo da violência intrafamiliar é o poder disciplinar que a
família exerce sobre a criança ou adolescente. A punição através de castigo físico
existe há muitos séculos, correspondendo ao método de disciplina mais utilizado até
o século XVIII. Vê-se assim que a história da criança é marcada pelo sofrimento e
humilhação. Segundo Edinete Maria Rosa.
Resultados afins foram encontrados também em uma pesquisa, de nossa
autoria, que trabalhou com os depoimentos de mães quanto às práticas
educativas utilizadas com os filhos. Os resultados revelaram que, além de
elas terem uma representação de maternidade associada à tarefa de
cuidado e educação dos filhos, “brigar e dar tapas”, em número significativo,
era a prática educativa mais adotada. (ROSA, 2004, p. 23)
Assim, evidencia-se a presença da cultura do castigo físico em crianças e
adolescentes, o que motivou ao legislador brasileiro a intervir na esfera particular da
família, regulamentando o direito a ser educado da criança e do adolescente através
da Lei da Palmada (Lei nº 13.010/2014) que alterou o art. 18 do Estatuto da Criança
e do Adolescente, no que diz respeito ao direito da criança e do adolescente de
estar a salvo de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor, considerando castigo físico toda ação de natureza disciplinar ou
punitiva aplicada com uso da força física sobre a criança e o adolescente que resulte
em sofrimento físico ou lesão.
Observa-se assim a tentativa do Estado coibir o uso de violência física como
castigo, incentivando formas saudáveis e sem violência de educação. Contudo é
muito difícil ao próprio Estado perceber situações abusivas em ambiente familiar
quando não há nenhuma denúncia externa.
300
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4 DA ATUAÇÃO DO ESTADO
Estabelecendo como prioridade do Estado, da sociedade e da família o
tratamento da criança e do adolescente, a Constituição Federal de 1988 delegou a
função de mantê-los a salvo de qualquer tipo de violência bem como de fiscalizar as
necessidades infanto-juvenis. Assim, se constitui dever do Estado assegurar à
criança e ao adolescente a mínima segurança para que vivam num ambiente
saudável, podendo intervindo em ambiente familiar para salvá-los de qualquer tipo
de violação de direitos fundamentais, conforme trata o art. 70 do Estatuto da Criança
e do Adolescente.
O referido Estatuto evidencia ainda que o Estado será responsável por
elaborar políticas públicas e executar ações destinadas a coibir o uso da violência
contra a criança e o adolescente e prevê quais serão as linhas que deverão conduzir
as políticas de atendimento para que efetivem os direitos lá assegurados: políticas
sociais básicas, programas de assistência social, serviços de atendimento as vítimas
de violência, serviços de localização de pais e crianças desaparecidos, proteção aos
direitos por entidades de defesa, entre outras.
4.1 DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO E SUA APLICAÇÃO PELA REDE DE
PROTEÇÃO EM CONJUNTO COM O PODER JUDICIÁRIO
O mesmo diploma legal dispõe, em razão da violação dos direitos
reconhecidos na Lei, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado e por falta,
abuso ou omissão dos genitores ou responsáveis, serão aplicadas medidas de
proteção à criança e ao adolescente, se constituindo em “providências que visam
salvaguardar qualquer criança ou adolescente cujos direitos tenham sido violados ou
estejam ameaçados de violação” (MACIEL, 2010, p. 522). Sobre as medidas de
proteção dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a
autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes
medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de
responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino
301
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à
família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - acolhimento institucional; VIII inclusão em programa de acolhimento familiar; IX - colocação em família
substituta. (BRASIL, 1990)
Nota-se assim a diversidade de medidas ofertadas pelo legislador para que
os Conselhos Tutelares e o Poder Judiciário apliquem às famílias, para possibilitar,
em primeiro plano, a tentativa de fortalecimento dos vínculos familiares e, não sendo
possível, o afastamento da criança ou adolescente do lar, buscando sempre o
melhor interesse da criança.
Das medidas protetivas mais aplicadas cotidianamente o acolhimento
institucional merece especial atenção uma vez que consiste em retirar a criança ou
adolescente de sua família, levando-a a uma entidade de acolhimento, onde residirá
até que sua situação jurídica seja definida. O Estatuto da Criança e do Adolescente
determina que a tal medida tenha caráter provisório e excepcional, elencando uma
série de regras para aplicação em caso de acolhimento institucional, no sentido de,
primeiramente, esgotar a tentativa de reintegração familiar e, sendo elas ineficazes,
o encaminhamento à família substituta. Sobre o assunto, Patrícia Silveira Tavares
refere que:
Uma vez demonstrada a inevitabilidade do acolhimento, é obrigação das
autoridades competentes, bem como da entidade de atendimento
responsável pela execução da medida, engendrar todos os esforços para a
reintegração familiar da criança ou do adolescente, ou então, constatada a
impossibilidade de retorno ao lar, a sua colocação em família substituta.
Atento às repercussões negativas que o afastamento do convívio familiar
pode acarretar no desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, o
legislador estatutário previu algumas mecanismos aptos a viabilizar, com a
máxima brevidade, a inserção familiar daqueles que, por algum motivo,
foram inseridos em programa de acolhimento. (MACIEL, 2010, p. 532)
Considerando a seriedade de afastar uma criança ou adolescente de seu lar,
somente o Poder Judiciário será competente para decidir a respeito de tal ato, salvo
em casos de “flagrante de vitimização”, quando o Conselho Tutelar deverá agir em
defesa dos direitos da criança, submetendo sua decisão a conhecimento do
Ministério
Público
e
posteriormente
levada
ao
juízo
para
homologação
302
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
(DIGIÁCOMO, 2012, p. 1). Importante ressaltar que para que a autoridade judiciária
mantenha o acolhimento, sua decisão deverá ser fundada em argumentos técnicos
apresentados pela equipe multidisciplinar do Juízo bem como da Rede de Proteção.
Nesse sentido, a Secretaria Nacional de Assistência Social, no caderno
“Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”
acertadamente afirma que:
Todos os esforços devem ser empreendidos no sentido de manter o
convívio com a família (nuclear ou extensa, em seus diversos arranjos), a
fim de garantir que o afastamento da criança ou do adolescente do contexto
familiar seja uma medida excepcional, aplicada apenas nas situações de
grave
risco
à
sua
integridade
física
e/ou
psíquica.
Como este afastamento traz profundas implicações, tanto para a criança e o
adolescente, quanto para a família, deve-se recorrer a esta medida apenas
quando representar o melhor interesse da criança ou do adolescente e o
menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento. (...)Dessa forma,
antes de se considerar a hipótese do afastamento, é necessário assegurar à
família o acesso à rede de serviços públicos que possam potencializar as
condições de oferecer à criança ou ao adolescente um ambiente seguro de
convivência. Destaca-se que, em conformidade com o Art. 23 do ECA, a
falta de recursos materiais por si só não constitui motivo suficiente para
afastar a criança ou o adolescente do convívio familiar, encaminhá-los para
serviços de acolhimento ou, ainda, para inviabilizar sua reintegração.
(CONANDA, 2009, p.23)
Logo, considerando determinação legislativa, deverão ser engendrados
esforços para buscar o fortalecimento dos vínculos familiares e posterior
reintegração familiar. Nos casos em que tal fortalecimento não seja possível, é
possível aplicar a última medida protetiva prevista no Estatuto da Criança e do
Adolescente: a colocação em família substituta, conforme prevê o art. 101, IX, nas
modalidades de guarda, tutela ou adoção.
Da mesma forma que o acolhimento institucional, a colocação em família
substituta compete à autoridade judiciária e não pode ser efetivada sem o devido
contraditório em ação específica (MACIEL, 2010, p. 535). Da mesma forma, a
decisão de afastar definitivamente a criança do lar e entregá-la a uma terceira
pessoa deverá ser fundamentada em relatórios interdisciplinares, comprovando o
melhor interesse da criança ou adolescente no caso em tela.
Contam assim, o Conselho Tutelar e o Poder Judiciário, com diversas
medidas para salvar a criança ou adolescente de qualquer tipo de violência,
303
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
devendo a autoridade responsável analisar cada caso, adequando a necessidade da
criança ao suporte que o Estado poderá lhe oferecer, através também da rede de
proteção. Segundo Murillo José Digiácomo:
A "rede de proteção à criança e ao adolescente" que todo município tem o
dever de instituir e manter, nada mais é do que a articulação de ações,
programas e serviços, bem como a integração operacional entre os mais
diversos órgãos públicos encarregados de sua execução (assim como
daqueles responsáveis pela aplicação das medidas respectivas, como é o
caso do próprio Conselho Tutelar), nos moldes do previsto no art. 86, do
Estatuto da Criança e do Adolescente. (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1)
Trata-se então da articulação municipal para ações em prol de crianças e
adolescentes, através de órgãos como as Secretarias Municipais de Saúde e
Educação, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de
Referência Especializada de Assistência Social (CREAS) e Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), que deverão possuir um setor especial para atendimento das
crianças e adolescentes em situação de risco e suas famílias. Estes órgãos devem
ter um cadastro das famílias que já atenderam para que seja possível a
comunicação entre eles quando necessário para resolver alguma situação de risco.
(DIGIÁCOMO, 2012, p. 1)
É o Conselho Tutelar, membro da rede de proteção, que de forma mais
direta com a violência contra a criança e o adolescente, atendendo-os realizando os
encaminhamentos aos pais ou responsável após a ocorrência do fato, promovendo a
execução de suas decisões em via administrativa. Conforme o Dr. Murillo
Digiácomo, diante de uma situação de violência contra a criança ou adolescente, o
Conselho Tutelar deverá aplicar medidas de proteção que possibilitem manter a
criança a salvo da situação que ensejou o risco, bem como comunicar ao Ministério
Público o quanto antes acerca da ocorrência do fato. (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1)
Num segundo momento, o Ministério Público analisará o acontecimento e
decidirá se há a necessidade de ingressar com uma ação judicial de Medida de
Proteção à Criança e ao Adolescente, para que o Poder Judiciário acompanhe
melhor a família, ou deixará o acompanhamento a cargo do próprio Conselho
Tutelar.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Optando por ajuizar uma ação, o parquet irá defender os direitos da criança
ou adolescente vítima de violência, figurando no polo ativo da demanda e os pais ou
responsáveis, autores da agressão irão figurar no polo passivo. A ação de Medida
de Proteção, nos casos de violência doméstica em que geralmente ocorre o
acolhimento institucional, tem o escopo de efetuar todas as tentativas possíveis de
reintegração familiar, incluindo a família em programas de assistência e
acompanhamento que lhe forneçam meios de melhorar o relacionamento com a
criança ou adolescente, como atendimentos psicológicos.
Nestes casos, o juiz deverá sempre agir embasado em relatórios técnicos da
equipe multidisciplinar do Juízo que haverá de considerar os aspectos psicológicos
tanto da criança ou adolescente, quanto de sua família em relação à situação que
ensejou a medida judicial, para que as decisões tomadas não prejudiquem
injustificadamente a nenhum dos envolvidos, buscando sempre pelo melhor
interesse da criança.
No momento em que as medidas de proteção restarem esgotadas na
referida ação, sem que haja nenhuma alteração no contexto familiar, poderá o
Ministério Público ingressar com a ação de Destituição do Poder Familiar, visando a
decretação da perda do poder familiar dos genitores para que a criança ou
adolescente, anteriormente sujeito ao risco, seja encaminhado a uma família
substituta, preferencialmente na modalidade de adoção, fazendo com que cesse
definitivamente a situação de violência em que se encontrava.
Para que a decisão de extinção do poder seja válida, o julgador deverá agir
de acordo com os princípios de proteção à criança e ao adolescente já expostos
neste trabalho e, ainda, com base em relatórios da equipe multidisciplinar do Juízo e
da rede de proteção, uma vez que a medida de destituição do poder familiar
cumulada com a adoção da criança tem caráter irrevogável.
305
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4.2 PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INTERVENÇÃO ESTATAL –
LIMITES E EFICIÊNCIA
Por fim, importante traçar um panorama geral acerca do poder familiar e
suas causas de extinção para relacioná-lo com a intervenção do Estado em
ambiente familiar privado, abordando seus limites e sua eficiência.
O poder familiar sujeita os filhos ao poder dos pais enquanto menores de
idade, conforme art. 1630 e seguintes do Código Civil. Com relação aos genitores, o
poder familiar consiste em educar seus filhos, exercer a guarda sob eles, concederlhes autorização para casar, viajar ao exterior, mudar de residência, nomear-lhes
tutor via testamento, representar ou assisti-los nos atos da vida civil, reclamá-los de
quem os detenha ilegalmente e exigir-lhes obediência, respeito e serviços próprios
de sua idade e condição.
A respeito das situações de exclusão do poder familiar, o Código Civil de
2002 elenca no corpo do art. 1637 suas hipóteses, sendo elas: o castigo imoderado
ao filho, deixar a criança ou adolescente em situação de abandono, a prática de atos
contra a moral e os bons costumes e, por fim, a incidência reiterada nos abusos de
autoridade. Essas situações expressam gravidade por si só, uma vez que põe em
perigo a segurança do filho, bem como sua dignidade. Afirma Paulo Lobo: a
decretação da perda do poder familiar deve vir de encontro ao melhor interesse da
criança, caso contrário não deverá ocorrer. (LOBO, 2011. p. 308)
Importante ressaltar que a falta de recursos financeiros, exclusivamente, não
constitui razões suficientes para a perda do poder familiar, conforme art. 23 do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda que ações violentas apareçam
relacionadas com a pobreza, existem em todas as classes sociais, devendo ser
tratadas da mesma maneira, em virtude da necessidade de proteger a criança e o
adolescente com prioridade.
Conclui-se então que o Estado só deverá agir de forma mais drástica e
agressiva, destituindo os genitores do poder familiar, quando a situação que envolve
pais e filhos se tornar insustentável, e não por mera arbitrariedade do julgador.
Estando diante de tentativas frustradas de reestruturação familiar através das
306
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
medidas de proteção disponíveis, caberá ao Judiciário agir na busca de promover o
melhor interesse da criança e do adolescente.
Nesse sentido, a questão acerca dos limites da intervenção estatal em
ambiente familiar é trazida à luz uma vez que a destituição do poder familiar é um
ato invasivo na vida de uma família. Logo, é no momento da intervenção que as
discussões sobre os direitos fundamentais se iniciam e tomam importância.
Segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, reconhecer se é permitida ou
não uma intervenção em determinada área de proteção de um direito fundamental
depende de um exame profundo: em primeiro lugar, examinam-se as normas que
garantem tal direito; após, analisa-se a situação real e os interesses envolvidos; por
fim, as condições de atuação das autoridades estatais. (DIMOULIS, 2012, p. 144)
No caso da violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, as
normas garantidoras dos direitos fundamentais infanto-juvenis se encontram na
Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda que
garantam a convivência familiar, garantem também o direito à vida, que consiste em
premissa para todos os outros. Desta maneira, deverá o julgador sopesar os direitos
fundamentais para definir qual será o mais importante no caso concreto.
Em segundo lugar, a análise da situação real por si só já levará ao juiz a
decidir qual direito fundamental deverá ser protegido, uma vez que geralmente nos
casos de violência doméstica infanto-juvenil as consequências são descaradas. E,
por último, em decorrência das análises anteriores, haverá de encontrar uma
solução viável ao caso concreto, fazendo com que a situação de violência cesse
permanentemente, mesmo que para isso outro direito fundamental seja violado.
Tais premissas não toleram decisões não fundamentadas, considerando a
importância de resguardar direitos fundamentais. Nesse sentido ainda adicionam
Dimitri Dimouli e Leonardo Martins: “Isso indica que é proibido proibir o exercício do
direito fundamental além do necessário, conforme ensina a doutrina dos limites dos
limites elaborada no direito constitucional alemão”. (DIMOULIS, 2012, p. 159.)
Para ilustrar o que já foi referido, apresenta-se uma jurisprudência catarinense
que manteve, em segunda instância, a destituição do poder familiar decretada em
primeiro grau tendo em vista a situação de violência sexual a que a criança era
submetida, por parte dos argumentos a seguir exibidos.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em determinadas situações o retorno da criança ou do adolescente à casa
do agressor mostra-se inviável, em razão do risco de recidiva, havendo a
necessidade de sua colocação em família substituta. Nesse caso, a ação de
destituição do poder familiar apresenta-se como alternativa válida para a
garantia da convivência familiar da criança institucionalizada. A
imprescindibilidade dessa medida decorre do fato de a outra alternativa colocação em abrigo até que complete a maioridade - não se mostrar
adequada em razão das consequências advindas da institucionalização
prolongada, como perda da individualidade, carência de estímulo para seu
desenvolvimento, ausência de vínculos afetivos duradouros, falta das
figuras paternas e maternas na formação psicológica, etc. O poder familiar
tem natureza nitidamente protetora, visando assegurar o pleno e normal
desenvolvimento do filho menor. Aos pais cabe observar os princípios de
uma paternidade responsável, garantindo o efetivo desenvolvimento de sua
prole. Essa paternidade responsável implica no cumprimento das
obrigações estabelecidas no artigo 229 da Constituição Federal: assistindo,
criando e educando os filhos Caso não cumpram com tal papel, sofrerão as
medidas legais, como a perda ou suspensão do poder familiar, pois é
garantido à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
convivência familiar em ambiente adequado, não podendo ficar
institucionalizados em entidades de abrigo, senão pelo período estritamente
necessário. Uma criança vítima de violência sexual por parte dos pais, via
de regra, não deve retornar ao seu convívio. A destituição do poder familiar
é medida que se impõe. (TJSC, Apelação Cível nº 2007.041969-5. Relator:
Henry Petry Junior, 26 de fevereiro de 2008)
Com base na jurisprudência apresentada, percebe-se a preocupação do
relator com o futuro da criança, ao encontrar alternativa ao acolhimento institucional,
que permitiria o contato com a família, porém traria severas consequências ao longo
do tempo para a própria personalidade da criança. Da mesma forma, demonstrou
com clareza sua opinião a respeito do que deve acontecer com crianças vítimas de
violência sexual.
Porém não são todos os casos de violência que têm o condão de separar
uma criança ou adolescente de seus pais, prova disso são as medidas protetivas
elencadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que visam exatamente à
reintegração familiar. Nesse sentido, para elucidar o entendimento, apresenta-se a
ementa da decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que manteve
parcialmente a decisão de primeira instância que julgou improcedente o pedido de
destituição do poder familiar, determinando que a criança ficasse sob a guarda da
avó paterna, recebendo visitas da mãe em horários estipulados.
APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. AÇÃO
JULGADA IMPROCEDENTE PARA A DESTITUIÇÃO DO PODER
FAMILIAR, MAS ALTERANDO A GUARDA DA CRIANÇA E ESTIPULANDO
308
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A VISITAÇÃO DOS GENITORES. INCONFORMIDADE DA MÃE QUANTO
À VISITAÇÃO. Embora o comportamento negligente da genitora não tenha
se mostrado suficiente para a destituição do poder familiar, para assegurar
a segurança e o bem-estar do infante, cumpre a restrição da forma de
visitação dos genitores. Contudo, para proteção dos direitos da criança e da
mãe, estipula-se que sejam reavaliadas as condições familiares, a cada seis
meses, como critério para estabelecer a possibilidade de ampliação das
visitas.(TJRS, Apelação Cível nº 70044074615, Relator: Alzir Felippe
Schmitz, 03 de novembro de 2011)
Da leitura do caso supracitado entende-se que as medidas aplicadas pelo
Poder Judiciário foram eficazes, uma vez que a reintegração familiar foi
possibilitada, ainda que não com os genitores. Importante ressaltar que não é
sempre que a família consegue desempenhar efetivamente seu papel no cuidado
com os filhos, muitas vezes pelo envolvimento com drogas, pela carência financeira
ou por não ter acesso aos serviços básicos a uma vida digna, como saúde e
educação.
Nesse sentido, conforme Claudia Helena Julião e Fernanda Aguiar Pizeta,
para que haja decisões no sentido de reintegração familiar e improcedência do
pedido de destituição do poder familiar faz-se necessária a elaboração de
estratégias para o atendimento das famílias que necessitem da proteção do Estado,
garantindo, em primeiro lugar, a tentativa de fazer com a criança e o adolescente
permaneçam em suas famílias, atendendo ao princípio da convivência familiar.
Muitas vezes, porém, considerando todos os óbices possíveis no decorrer da
tentativa de reaproximação familiar, não é possível manter a criança ou adolescente
em suas famílias naturais, fato que invariavelmente levará ao poder público buscar a
melhor alternativa para atender suas necessidades. (JULIAO, 2011, p. 19)
Tal alternativa será devidamente estudada por profissionais qualificados que
buscarão assegurar à criança ou adolescente em situação de risco seus direitos
anteriormente violados, mediante políticas públicas de efetivação das medidas de
proteção. Ainda segundo as autoras:
Na realização do estudo psicossocial, os profissionais utilizam diversos
instrumentais técnicos, tais como: leitura dos Autos, observação,
entrevistas, sessões lúdicas, visitas domiciliares e na instituição onde a
criança/adolescente encontra-se acolhido e contatos com recursos da
comunidade, buscando conhecimentos das condições objetivas e subjetivas
da situação. Sistematicamente, o Setor Técnica realiza reunião
309
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
interprofissional com técnicos das instituições de acolhimento, do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) e do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), bem como com os
Conselheiros Tutelares, de forma a se avaliar aprofundadamente o caso.
Assim, procura-se conhecer a organização/dinâmica familiar da
criança/adolescente acolhido, avaliando seus recursos protetivos, as
adversidades vivenciadas, os aspectos que deram origem ao acolhimento
institucional, bem como se identifica a rede social existente e utilizada pela
família e aquela que poderá ser acionada no intuito de fortalecer os
recursos da própria família. (JULIAO, 2011, p. 22)
Será o relatório psicossocial que trará as peculiaridades de cada caso
concreto, demonstrando ao julgador qual será a melhor medida a ser aplicada para
resguardar os direitos violados pela família da criança ou adolescente. Ademais,
uma vez sendo tal relatório produzido por uma equipe com conhecimento técnico
social, psicológico e jurídico, há de se entender que o grau de informações
específicas é muito maior do que um testemunho em audiência, por exemplo.
Ocorre que, ainda que com base nos conhecimentos técnicos traduzidos nos
relatórios dos profissionais ligados ao Juízo da Infância e Juventude, chegar
algumas conclusões implica em restringir determinados direitos fundamentais da
criança ou adolescente ou de sua família.
Nesse sentido, a assessora da 1a Vara da Infância e Juventude de Curitiba,
Carolina Valiati da Rosa, assevera que em determinados casos a restrição a alguns
direitos devem ocorrer para que outros direitos constitucionais mais importantes não
sejam aniquilados. Para que uma decisão não seja temerária, parâmetros de
proporcionalidade e razoabilidade devem ser utilizados ao analisar cada caso,
ponderando os direitos envolvidos na situação e levando em consideração a
necessidade de promover um ambiente saudável à criança e ao adolescente para
seu pleno desenvolvimento. Desta forma, justifica-se o acolhimento institucional,
mesmo que seja uma medida de intervenção extrema do Estado em ambiente
privado. Nas palavras de Carolina: "Só assim é possível dar eficácia plena às
normas constitucionais, respeitando a dignidade da pessoa humana e realizando os
objetivos que a Constituição traz em seu artigo 3º”. (ROSA, 2015, entrevista
realizada em 02 set 2015).
Logo, para finalizar, depreende-se da análise de toda a doutrina e
jurisprudência referida neste trabalho que será eficiente uma medida que vise e
310
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
alcance o melhor interesse da criança e do adolescente expostos à situação de
violência doméstica uma vez que seus direitos devem ser buscados prioritariamente,
conforme preconiza a Constituição Federal, em seu art. 227. Desta forma, justificase todo o ato em defesa dos direitos fundamentais infanto-juvenis, devidamente
fundamentado no princípio do melhor interesse da criança.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto entende-se que as crianças e adolescentes vítimas de
violência doméstica merecem especial atenção popular e estatal, uma vez que boa
parte de tais casos nunca chega a conhecimento do poder público por ocorrer em
ambiente familiar.
Então ao entender que é dever do Estado, da sociedade e da família zelar
pela efetivação dos direitos infanto-juvenis alguns passos devem ser seguidos para
que a situação de violência doméstica não mais seja escondida, mas sim revelada e
combatida. Além disso, é necessário entender também que a cultura brasileira de
educação é violenta, portanto constitui um paradigma que só se alterará mediante a
conscientização geral da sociedade.
Então primeiramente disseminar os direitos fundamentais da criança e do
adolescente deverá ser prioridade, para que pais e filhos tenham consciência sobre
seus próprios direitos. Também deverá ser foco de conscientização formas não
violentas de educação, trabalho a ser realizado pelos três poderes para melhor
eficácia.
Fato é que enquanto tal consciência coletiva não estiver presente caberá ao
Estado resguardar os direitos da criança e do adolescente com a prioridade que
merecem. Porém, até para resguardar tais direitos é importante que os casos de
violência doméstica contra a criança e o adolescente cheguem a conhecimento do
poder público, pois somente ele poderá dar o tratamento correto ao caso. Nesse
sentido, dada ciência às autoridades, comunica-se ao Conselho Tutelar, Ministério
Público e Poder Judiciário, para que as medidas de proteção elencadas no Estatuto
da Criança e do Adolescente sejam efetivamente aplicadas no sentido de afastar o
risco a que a criança ou adolescente estava exposto.
311
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em muitos casos, as medidas de encaminhamento a programas de auxílio ou
encaminhamento ao psicólogo demonstram à família que a violência não resolverá
seus problemas. No entanto a maioria das famílias atendidas pela Rede de Proteção
se encontra em situação de vulnerabilidade social, carência de recursos financeiros
e envolvimento com uso ou tráfico de drogas, fatos que dificultam muito a
compreensão dos genitores para os males de uma educação violenta.
Nestes casos, geralmente a medida de proteção aplicada é o acolhimento
institucional, que ao afastar a criança ou adolescente de seu lar, facilita a aplicação
de outras medidas de proteção aos pais ou responsáveis que cometeram a
violência. Tais encaminhamentos deverão ser respeitados pelos pais e, uma vez que
não respeitem, considera-se como uma atitude negligente, fato que, ocorrendo
reiteradamente, fornece argumentos necessários ao Ministério Público para propor
uma medida de Destituição do Poder Familiar, afastando definitivamente a criança
de seus pais biológicos e encaminhando-a à adoção.
Entende-se então que a destituição do poder familiar se torna a última medida
a ser utilizada pelo poder público para tentar resolver o problema da criança ou
adolescente acolhido. Portanto é necessário que se faça uma análise detalhada de
cada caso concreto, ponderando todas as possibilidades de reinserção familiar antes
de destituir o poder familiar.
Nesse sentido, a análise sobre os limites da intervenção estatal em ambiente
familiar é crucial uma vez que a destituição do poder familiar de forma arbitrária
poderá trazer grandes prejuízos à criança e ao adolescente bem como à sua família.
Portanto, só se justificará mediante argumentos técnicos que comprovem que a
situação de abandono ou violência sofrida acarreta em prejuízos graves a formação
infanto-juvenil. Nestes casos, a solução mais viável é encaminhá-los a uma família
substituta que os trate dignamente.
Por fim, conclui-se então que os atos praticados deverão ser sempre
direcionados ao melhor interesse da criança e do adolescente para que sejam
protegidos da forma preconizada pela Constituição Federal de 1988, tratando a
criança e o adolescente de forma amorosa e atenciosa para que, apesar de já ter
sofrido muito, ainda se desenvolva com os mínimos danos possíveis.
312
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
316
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
PERFIL DA ATIVIDADE PROFISSIONAL EM ENFERMAGEM NO DIREITO
BRASILEIRO
PROFILE OF THE PROFESSIONAL NURSING ACTIVITY IN BRAZILIAN LAW
Larissa Lie Yamazaki166
Maria da Glória Colucci167
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 A Enfermagem 2.1 Conceito (s) 2.2 Características 2.3 Natureza 3
Fundamentos Constitucionais e Legais da Enfermagem no Brasil 3.1 Recorte Constitucional 3.2
A Lei 7.498/86 e seus Antecedentes 3.2.1 Lei nº 775 de 06 de agosto de 1949 3.2.2 Lei nº 2.604 de
17 de setembro de 1955 3.3 Lei nº 7.498 de 1986: estrutura e importância 3.4 Decreto nº 94.406 de 8
de junho de 1987 3.5 Conselho Federal de Enfermagem 4 Considerações Finais Referências
RESUMO
A Enfermagem é uma atividade essencial para a manutenção da saúde pública no País. Juntamente
com outros profissionais, os enfermeiros se encarregam de cuidar da vida da população. Porém, a
profissão não recebe a devida atenção e mérito, tendo em vista a própria cultura da sociedade
brasileira, que vê a Enfermagem como atividade submissa à Medicina, praticada por pessoas de
baixa classe econômica e exercida praticamente por figuras femininas. Tais pensamentos refletem
diretamente na proteção jurídica que a profissão recebe, pois, uma profissão pouco valorizada é
ignorada pelos legisladores, já que não há exigência social visando a melhoria da regulamentação da
atividade. Desse modo, a lei vigente - Lei nº 7.498 de 1986, regulamentada pelo Decreto nº 94.406 de
1987 -, apesar de representar à época um avanço para a Enfermagem, é abrangente e incompleta.
Por isso, é preciso reformular a base legal da atividade, dando-lhe a devida cautela, sem esquecer
que a figura do enfermeiro é reflexo de dois importantes direitos fundamentais previstos
constitucionalmente no Brasil: direito à liberdade profissional e direito social à saúde.
Palavras-chave: Enfermagem, direito à liberdade profissional, direito social à saúde, Lei nº 7.498 de
1986, Decreto nº 94.406 de 1987.
166
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).
Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Profª
titular de Teoria do Direito no UNICURITIBA. Profª Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme
título conferido pela Instituição em 21/4/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e
Bioética – JUS VITAE, do UNICURITIBA, desde 2001. Profº ajunta IV, aposentada, da UFPR.
Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC).
167
317
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
Nursing is an essential activity for the maintenance of public health. Other professionals, nurses are in
charge of taking care of lives. However, the profession doesn’t receive attention and merit, owing to
the Brazilian society’s culture, which treats nursing as a submissive activity to medicine, practiced by
low socioeconomic class people and practically by female figures. Those kind of thoughts directly
reflect on the legal protection in addition to the profession gets, nursing is ignored by legislators,
because there is no social demands to improve the regulation of the activity. The current law - Law
No. 7498 of 1986 regulated by Decree No. 94406 of 1987 – not with standing representing a
breakthrough for Nursing, is generic and incomplete. It is necessary to reformulate the legal basis of
the activity, giving the due caution, understanding that the nurse's figure reflects two important
fundamental rights of the Constitution of Brazil: professional freedom right and social right of health.
Keywords: nursing, professional freedom right, social right of health, Law nº 7.498 of 1986, Decree nº
94.406 of 1987.
1 INTRODUÇÃO
A Enfermagem é uma profissão essencial para a manutenção da saúde
pública do País. Pois, provavelmente, a maior parte da população já necessitou dos
cuidados dos enfermeiros – no parto, na cirurgia, no exame de sangue, entre outros
momentos -, entretanto, raramente as pessoas reparam na essencialidade da
Enfermagem, uma profissão presente em tantos ambientes, porém pouco notada ou
apreciada como merece.
Por isso, torna-se instigante a pesquisa, no âmbito jurídico, das garantias,
direitos e deveres pertinentes aos profissionais da Enfermagem.
Primordialmente, serão abordados os conceitos, as características e a
natureza da profissão.
Posteriormente, haverá a análise da atividade no âmbito jurídico – mostrando
os direitos fundamentais relacionados à prática da Enfermagem: direito à liberdade
profissional e direito social à saúde.
Entretanto, apesar de a atividade representar o reflexo de ambos os direitos;
caberá analisar também as singularidades da atividade.
Serão identificados seus fundamentos constitucionais; a Lei reguladora desta
relevante profissão, sua estrutura e outros desafios que cercam seu exercício no
Brasil.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2 A ENFERMAGEM
A atividade da enfermagem representa a efetivação dos direitos fundamentais
previstos constitucionalmente no Brasil - principalmente quando se fala dos direitos à
liberdade profissional e à saúde.
Pois, a Enfermagem é uma possibilidade de escolha profissional pela qual
muitas pessoas se interessam. A sua prática é regulamentada e possui métodos
próprios, sem esquecer que a atividade é assegurada e protegida pelo Poder
Público.
Seu exercício é garantia de proteção e assistência à saúde da população.
Todo o sistema de saúde pública depende de enfermeiros para funcionar. É inegável
sua contribuição para a preservação e manutenção da saúde para toda a sociedade.
Além do mais, é uma profissão da qual é raro ver algum indivíduo que não
precisou de seus cuidados ou que negue sua essencialidade para a recuperação da
saúde no País.
E, apesar de encontrar significado para o profissional enfermeiro como
apenas uma pessoa que cuida de enfermos (BUENO, 1996, p. 241), a atividade vai
além: envolve manutenção, promoção, recuperação e cuidados com a saúde
(ATKINSON; MURRAY, 1989, p. 11).
Essas características não exigem apenas técnica do profissional, exigem,
também, conhecimento adquirido através da prática da atividade e da força
emocional - muito maior do que tantas outras profissões requerem.
Porém, a Enfermagem sofre inúmeros desafios para o seu exercício, como a
carência de ampla regulamentação e fiscalização.
Desse modo, primeiramente, será feita a análise sobre o conceito, as
características e a natureza da profissão, para depois abordar sua proteção legal.
2.1 CONCEITOS(S)
A prática da Enfermagem consiste na ciência humana, que trabalha com
pessoas e experimentos, exigindo domínio da prática, do conhecimento e das
fundamentações, aplicados tanto às pessoas saudáveis quanto nas doentes. Requer
319
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
do
profissional
capacidade
técnica,
criatividade,
ponderação,
raciocínio
e
permanente atualização da área científica (KICH, 2003, p. 9).
A Enfermagem se destaca pela prestação de assistência para pessoas
incapacitadas de cuidarem de suas saúdes (ATKINSON, 1989, p. 11). Pode-se dizer
que a assistência de enfermagem compreende o cuidado com a saúde física,
emocional, cultural, social e espiritual de uma pessoa ou de um grupo de pessoas.
Isso porque não se deve enxergar a saúde apenas como bem físico. Segundo
o fundamento da saúde holística, são cuidados com a mente e a sociabilidade dos
indivíduos, também. Por isso, é possível afirmar que a pessoa saudável não se
baseia somente naquela livre de doenças, porque depende do equilíbrio entre o
corpo e a mente da pessoa, igualmente (ATKINSON, 1989, p. 11).
Além disso, presencia-se a Enfermagem em inúmeros ambientes do cotidiano:
hospitais, postos de saúde, escolas, domicílios, faculdades. São vários os lugares
que necessitam da ajuda desse profissional, tendo em vista suas inúmeras funções
e capacidades em ajudar os outros.
Consequentemente, é visível o auxílio que a Enfermagem traz para a proteção
à saúde. Pois, para ser um bom profissional dessa área, três critérios são exigidos:
domínio cognitivo (conhecer o saber), domínio psicomotor (conhecer o fazer) e
domínio afetivo (conhecer o ser) (PORTO et al., 2014, p. 203).
Todos estão presentes no profissional enfermeiro, que exerce sua atividade
cientificamente, tecnicamente e artesanalmente, a fim de proteger a saúde e cuidar
dos doentes.
Isso quer dizer que a Enfermagem se enquadra no conceito de profissão
(diferentemente de ocupação). Apesar da dúvida respaldada no pensamento
ultrapassado de que a atividade do enfermeiro consiste no trabalho doméstico,
feminino e submisso à Medicina, a identificação da Enfermagem como ciência
confirmou sua característica profissional, que cresce a cada dia mais – segundo
Mcewen (2009, p. 28).
Dessarte, com as práticas da ciência da saúde, o enfermeiro beneficia o
indivíduo para a restauração da saúde física e mental. E sua missão consiste em
praticar o conhecimento e a ciência da atividade para favorecer a saúde e/ou curar
enfermos, venerando a vida e a dignidade humana (KICH, 2003, p. 10).
320
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.2 CARACTERÍSTICAS
Desse modo, a atividade se divide, basicamente, em quatro aspectos:
manutenção da saúde, promoção da saúde, recuperação da saúde e cuidados com
o moribundo (ATKINSON, 1989, p. 11).
A manutenção da saúde implica na prioridade de conservar a vitalidade em
detrimento de cuidar das possíveis doenças existentes. Como, por exemplo, as
palestras realizadas por enfermeiras nas escolas, onde ensinam para as crianças os
cuidados devidos com a higiene básica, evitando possíveis contaminações e
infecções.
Já a promoção da saúde consiste na melhoria da qualidade de vida do
indivíduo (mesmo perante a ausência de sintomas de doenças, pois se deseja
aperfeiçoar a saúde). Isso poderia ocorrer quando um profissional da enfermagem
indica ao paciente exercício físico, como esporte, para melhorar o condicionamento.
A recuperação da saúde está comprometida com a atividade da maioria dos
enfermeiros, a de cuidar dos doentes – é o compromisso em ajudar a recuperar a
saúde dos pacientes.
E a assistência ao moribundo (aquela pessoa que está prestes a falecer) se
respalda na realização de cuidados aos pacientes, já que a cura é quase impossível.
Seria, portanto, a ajuda para garantir condições mínimas de qualidade de vida à
pessoa que está iminente a morte.
Aliás, percebe-se que a atividade da Enfermagem consiste muito além de
apenas cuidados, firma na compaixão dos profissionais às pessoas atendidas, de
acordo com Porto (2014, p. 204). Seria, portanto, o domínio afetivo, uma das
qualidades mais engrandecedoras da profissão; pois visa priorizar o doente, e não a
doença.
O fato é que se não houver a empatia emocional, o serviço prestado ficará
comprometido. O que faz da qualidade do enfermeiro em cuidar de pessoas
incapacitadas reside justamente no sentimento de solidariedade, compaixão,
paciência, piedade, entre outras características.
Isto posto, há quem defenda que a arte da Enfermagem se equilibra em três
pilares: sensibilidade, criatividade e habilidade (WESTPHALEN, 2001, p. 7).
321
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A sensibilidade se resume na compaixão já dita anteriormente. É uma
característica do profissional enfermeiro em se sensibilizar com a situação do
próximo, saber externar os seus próprios sentimentos para melhor entender os
sentimentos alheios. Assim, através dela surge a capacidade de compreender e
respeitar a dor e a doença das outras pessoas.
Já a criatividade, ou imaginação, se junta à habilidade para, com base na
sensibilidade,
criar
e
figurar
métodos
profissionais
com
capacidade
e
responsabilidade para melhor atender os pacientes (WESTPHALEN, 2001, p. 7).
E, ainda, a arte possibilita a sistematização e instrumentalização do
conhecimento para se tornar a ciência que é hoje em dia (WESTPHALEN, 2001, p.
8).
Em vista disso, separam-se, apenas para conceituação, os critérios para a
prática da ciência da enfermagem dos critérios para a prática da arte da
enfermagem.
Os primeiros consistem no conhecimento profundo da profissão; compreensão
da origem da atividade e como se iniciou; identificar os inúmeros modelos de prática
da enfermagem e saber utilizar o que foi escolhido no seu ambiente de trabalho;
atentar às particularidades teóricas, práticas e ético-morais do serviço; saber ligar
premências com as suas finalidades de assistência; agir, falar e pensar
coerentemente com a profissão; realizar avaliações sobre o seu próprio
desempenho; saber equilibrar os sentimentos, as certezas e incertezas na prática da
atividade;
harmonizar a
ciência,
a
consciência
e
know-how
no
trabalho
(WESTPHALEN, 2001, p. 8).
Por outro lado, os critérios para a prática da enfermagem consistem em
temporalidade; saber a arte; manusear os materiais com cuidado e sensibilidade; ser
paciente; saber lidar com vitórias, derrotas, falhas e frustrações.
2.3 NATUREZA
Quanto à natureza, pode-se dizer que a Enfermagem é vista de vários modos,
podendo interpretá-la como atividade fundamentalmente religiosa, ou artística, ou
322
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
científica, ou associá-la diretamente a uma profissão ou trabalho (MIRANDA, 2007,
p. 147).
Religiosa, ligada à filantropia (amor ao próximo), porque, de acordo com o a
história da Enfermagem no Brasil, seu início teve cunho religioso 168. E, após o
acúmulo de noções, práticas e conhecimentos, tornou-se ciência.
Em seguida, com a legalização do estatuto e a regulamentação da atividade,
entrou para o rol de possíveis profissões (MIRANDA, 2007, p. 148).
Considera-se, também, a Enfermagem como trabalho, devido à amplitude de
seus exercícios sociais voltados para a saúde, extrapolando a técnica e a profissão
(MIRANDA, 2007, p. 148). Porque a atividade está inserida tanto no âmbito científico
quanto no social, direcionando-a para a saúde da sociedade, como uma tarefa em
constante mutação.
Contudo, acredita-se que a atividade do enfermeiro representa a soma de
ciência e arte. A primeira porque exige noções teóricas e cotidianas para exercer a
profissão. Já a segunda é a exteriorização da personalidade sensível, hábil e criativa
do profissional (CARRARO, 2001, p. 28).
Em síntese, a Enfermagem exige do praticante qualidades que extrapolam a
área da ciência; visto que, na medida em que o enfermeiro lida com vidas e
sentimentos, adiciona-se à atividade o caráter artístico.
Aliás, insta salientar que se antes a atividade era praticamente doméstica,
sem regulamentação e sem domínio científico, e hoje ela é vista como arte e como
ciência, é devido à influência da enfermeira Florence Nightingle – grande nome na
área da Enfermagem. Florence participou da luta da classe para mostrar as
peculiaridades da profissão e sua importância para com a sociedade.
No período pré-nightingaleana, a Enfermagem era praticada sem referencial e
sem amparo legal. Após a Enfermeira atuar na atividade, passou-se a ser modelo de
assistência, merecedora de desenvolvimento e implementação.
168
A vinda dos colonizadores europeus no Brasil trouxe doenças até então desconhecidas no
território (por exemplo: febre amarela, varíola, lepra, malária, tuberculose, entre outras), aumentando
a prática do curandeirismo, já que havia carência de profissionais da área. Após a colonização, a
primeira maneira de cuidado aos doentes foi atuada pelos padres jesuítas, vindos das missões para
cristianizar a população. Era realizada em enfermarias localizadas nos conventos e escolas
religiosas. Mais tarde, em 1543, criaram-se as Santas Casas de Misericórdia, que atendiam doentes
carentes e soldados; e, após, fundaram-se os hospitais militares.
323
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
As teorias criadas e aperfeiçoadas por Florence Nightingale sobre métodos
aplicáveis na profissão, ou sobre as relações dos profissionais com os pacientes, ou
sobre análises da saúde, entre tantos outros assuntos, são, até hoje, executadas
(WESTPHALEN, 2001, p. 29).
Um dos seus livros mais famosos foi o Notes on Nursing (1859), no qual ela
sugere para outras mulheres da época que também praticavam a mesma atividade,
como elas deveriam lidar com a saúde e as doenças alheias. Além do mais, seu
objetivo não era conceituar ou criar um manual sobre a profissão, mas apenas
ajudar os outros através das suas opiniões
3 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DA ENFERMAGEM NO
BRASIL
Primeiramente, a atividade da Enfermagem representa a concretização dos
direitos
fundamentais
à
liberdade
profissional
e
à
saúde,
previstos
constitucionalmente.
Através dela, muitas pessoas se profissionalizam como enfermeiros e ajudam
na manutenção da saúde no Brasil. É, dessa maneira, a exteriorização da prática
como garantia de direitos e deveres legais.
A liberdade de ação profissional, chamada, mormente, de liberdade de
trabalho, elencada no artigo 5º, inciso XIII, da Constituição da República, abarca a
livre escolha de trabalho que o indivíduo deseja exercer. Ou seja, é livre o exercício
de qualquer profissão que se adeque às preferências e possibilidades do indivíduo
(PINHO, 2009, p. 97).
Desse modo, o Poder Público não pode interferir nas escolhas profissionais
dos cidadãos.
Trata-se da liberdade de eleger um trabalho, ofício ou profissão (SILVA, 2013,
p. 259). É um direito individual, tendo em vista que não se fala sobre direito a ter um
emprego ou direito ao trabalho, propriamente dito.
Além disso, a Constituição da República permite a exigência de qualificações,
condições ou requisitos profissionais para alguns trabalhos, ofícios ou profissões.
Essas exigências devem decorrer de lei. Por isso, a norma constitucional que
324
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
dispõe sobre a liberdade de profissão possui eficácia contida – já que possibilita lei
infraconstitucional estabelecer limites à sua concepção (LENZA, 2011, p. 892).
Um exemplo é o caso dos enfermeiros, que necessitam da apresentação do
diploma do curso técnico ou da graduação junto ao Conselho Federal de
Enfermagem (COFEN), a fim de exercer a profissão – segundo a Resolução COFEN
0445/2013. Quer dizer, pressupõe preparo científico e técnico autorizado, consoante
normas do MEC, preenchidas outras formalidades específicas da área.
Após análise sobre o direito à liberdade profissional, como garantia de escolha
de profissão ao indivíduo que escolhe seguir a carreira de enfermeiro, resta abordar
sobre o papel essencial da atividade na promoção da saúde no País.
O direito de proteção à saúde está previsto no artigo 196 da Constituição
Federal. Caracteriza-o como “direito de todos”, “dever do Estado”, promovido através
de “políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doenças e de
outros agravos”, conduzido pelo princípio do “acesso universal e igualitário às ações
e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
Em todos os casos supracitados se incluem os profissionais de saúde, quer
individualmente, como titulares do direito de acesso à saúde; quer como
protagonistas, agindo em prol da promoção da saúde como agentes do Estado,
representando-o.
Porém, no País, o enfermeiro se depara com várias dificuldades, tais como: a
carência na qualidade da educação, pois se formam cada vez mais profissionais
incapacitados, que precisam de assistência e treinamento qualificado para atuar na
área de saúde; e a necessidade crescente de aperfeiçoamento das técnicas e
materiais utilizados pelos enfermeiros, a fim de alcançar o avanço tecnológico,
trazendo benefícios para a coletividade.
Dessa forma, pode agregar a essas dificuldades a carência de devida
regulamentação, visto que, para as profissões poderem se desenvolver, é preciso de
base jurídica fortalecendo-a.
E, apesar de a Enfermagem possuir regulamento próprio, como se verá, ainda
não é completo para cobrir toda a amplitude da atividade.
325
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3.1 RECORTE CONSTITUCIONAL
De acordo com o artigo 22, inciso XVI, da Constituição da República
Federativa do Brasil, pertence à União legislar sobre a “[...] organização do sistema
nacional de emprego e condições para o exercício de profissões". Além do mais,
segundo o artigo 5º, inciso XIII, da Carta Magna, “é livre o exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei
estabelecer”.
Logo, percebe-se a preocupação do legislador em garantir a liberdade
profissional aos cidadãos, e, ao mesmo tempo, ampará-los, através de limites
impostos por lei.
Inclusive, o artigo 47 da Lei das Contravenções Penais dispõe que “[...]
exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher
as condições a que por lei está subordinado o seu exercício” se institui uma
contravenção penal, com pena de prisão simples ou multa.
Então, para a Enfermagem, seu exercício está assegurado constitucional e se
restringe às qualificações e restrições impostas por lei.
E a lei que a regulamenta é a Lei nº 7.498 de 1986.
Existe também a Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973, que dispõe sobre a
criação dos Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem. No seu artigo 15, inciso
VII, determina que a capacidade legal só será conferida ao enfermeiro após seu
registro no Conselho Regional de Enfermagem - quer dizer, pretende-se demonstrar
o reflexo da qualificação exigida pela Constituição.
Outra norma congregada à Enfermagem é o artigo 196 da Carta Magna, ao
dispor sobre a responsabilidade do Estado em promover políticas sociais a fim de
promover, proteger e recuperar a saúde.
Pois, inclui-se o fomento estatal à profissionalização da área da saúde,
incentivando o exercício do enfermeiro, uma das figuras principais para a promoção
da saúde pública.
Cita-se, inclusive, o artigo 200, inciso III, da Constituição de 1988, que dispõe
sobre a competência do SUS em “[...] ordenar a formação de recursos humanos na
326
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
área de saúde”; quer dizer, objetiva-se uma formação profissional adequada para
figurar o sistema, de acordo com a realidade social.
3.2 A LEI 7.498/86 E SEUS ANTECEDENTES
Precipuamente à abordagem sobre a Lei vigente que regula o exercício da
Enfermagem, é importante analisar os textos legais anteriores, a fim de melhor
compreender o desenvolvimento da atividade no âmbito jurídico.
3.2.1 LEI Nº 775 DE 06 DE AGOSTO DE 1949
A atividade da Enfermagem, antes da Lei vigente, era regulamentada pela Lei
nº 775, de 06 de agosto de 1949. Apesar de o texto abordar sobre o ensino da
Enfermagem, foi usado para a prática da profissão também, incluindo a figura do
auxiliar de enfermagem na atividade. Era uma nova categoria, reflexo da
hierarquização da profissão, focada para o sistema curativo e se afastando da saúde
pública.
A Lei não previa a figura do técnico de Enfermagem; além do mais,
determinava a duração dos cursos de enfermeiro e auxiliar de enfermeiro (de trinta e
seis meses e de dezoito meses, respectivamente) e estipulava os requisitos mínimos
para matrícula nos cursos.
Aliás, como já dito, a Lei visava regulamentar o ensino, tendo em vista a
grande preocupação com a área da Enfermagem, tanto que os artigos 10 a 24
dispuseram sobre os pressupostos para o funcionamento e reconhecimento dos
cursos, juntamente com a formação dos profissionais.
Por exemplo, a autorização prévia do Governo Federal para a abertura dos
cursos, a fiscalização do ensino pelo Ministério de Educação e Saúde e a
obrigatoriedade de existir uma escola de Enfermagem em cada Centro Universitário
ou Faculdade de Medicina.
327
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3.2.2 LEI Nº 2.604 DE 17 DE SETEMBRO DE 1955
Outra regulamentação foi a Lei nº 2.604, de 17 de setembro de 1955.
Segundo Santos (2002, p. 260), criticava-se, na época de sua vigência, a falta de
especificidade; pois considerava enfermeiros, obstetrizes e enfermeiras obstétricas
igualmente como enfermeiros, sem distinção (SANTOS, 2002, p. 261).
O artigo 2º da referida Lei determinava sobre as qualidades exigidas à prática
da Enfermagem, dividindo-a em seis categorias: enfermeiro, obstetriz, auxiliar de
enfermagem, parteira, enfermeiro prático (ou prático de enfermagem) e parteira
prática.
Percebe-se que a Lei não singularizava a atividade, estabelecendo um
conceito amplo de exercícios dentro da Enfermagem.
Os artigos 3º ao 6º dispuseram sobre as atribuições de cada categoria.
Porém, ressalta-se que a Lei não especificava detalhadamente as funções do
auxiliar e prático de enfermagem, nem da parteira, pois suas atividades englobavam
tudo o que caberia à Enfermagem, excluindo as privativas do enfermeiro e da
obstétrica.
Entretanto, o grande problema residia na ausência de determinação sobre
quais atribuições caberiam às atividades da Enfermagem. Assim, as categorias não
possuíam grandes distinções em relação à função.
Já os artigos 7º, 8º e 9º regulavam a necessidade de registro junto ao
Departamento Nacional de Saúde ou na repartição sanitária correspondente a cada
território para poder exercer a Enfermagem (nessa época ainda não existia a figura
do Conselho Federal de Enfermagem).
Outro óbice presente na Lei era a vinculação da Enfermagem com a Medicina,
como o previsto no artigo 11, que determinava ao Serviço Nacional de Fiscalização
da Medicina realizar conferência sobre os profissionais de Enfermagem nos locais
relacionados à saúde. Ou seja, havia a carência de singularidade da prática da
Enfermagem, sendo vista como submissa à Medicina.
Em suma, a Lei nº 2.604/55 pouco trouxe à Enfermagem quanto aos
dispositivos necessários para a regulamentação da prática, já que era generalizada ausente de critérios especificadores dos profissionais da área.
328
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3.3 LEI Nº 7.498 DE 1986: ESTRUTURA E IMPORTÂNCIA
Ademais, a Lei nº 7.498 de 1986 inovou os textos normativos anteriores ao
especificar as categorias da Enfermagem e ao determinar os trabalhos privativos
dos enfermeiros, como se abordará a seguir.
A Lei “dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem”. No seu
artigo 1º, determina a liberdade em exercitar a Enfermagem no Brasil. Percebe-se a
efetivação
do
direito
fundamental
à
liberdade
de
profissão,
mencionado
anteriormente, garantindo ao indivíduo a livre escolha profissional.
Em seguida, o artigo 2º, da Lei 7.498/86, dispõe que a Enfermagem deve ser
exercida por profissionais legalmente habilitados e inscritos no Conselho Regional
de Enfermagem. Isto posto, a fiscalização da atividade cabe aos Conselhos
Regionais de Enfermagem, regulamentados pela Lei nº 5.905, de 12 de julho de
1973.
Entende-se, dessa maneira, como requisito do exercício regular dos
profissionais, a inscrição junto ao órgão fiscalizador, senão o indivíduo não pode
atuar na área.
Outra competência dos Conselhos é o julgamento dos profissionais que
cometeram condutas irregulares, por meio das comissões de Ética e Disciplina
(regidos pelo Código de Ética), compostas por pessoas da mesma área (KICH,
2003, p. 17). As possíveis penalidades estão previstas no artigo 118 da Resolução
COFEN nº 311 de 2007: advertência verbal, multa, censura, suspensão do exercício
profissional e cassação do direito ao exercício profissional.
Já os artigos 3º e 4º dispõem sobre a assistência da Enfermagem nos
serviços de saúde, havendo preocupação com a programação da atividade.
Os artigos 6º, 7º, 8º e 9º definem as diferenças entre o enfermeiro, o técnico
de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e parteira, lembrando que as quatro
figuras devem trabalhar em conjunto, constituindo uma equipe (AVELLO, 2003, p.
61). Logo, cada uma das categorias efetua ações individuais, mas cooperadoras
entre si (SANTOS, 2002, p. 249).
Para a qualidade de enfermeiro, requer diploma conferido por instituição de
ensino; para o técnico, diploma ou certificado de Técnico de Enfermagem; e para o
329
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
auxiliar, certificado de Auxiliar de Enfermagem. Todos devem apresentar os
requisitos exigidos pela legislação ou pelo órgão competente.
Insta ressaltar que a figura do prático de Enfermagem (ou enfermeiro prático),
surgida na Lei nº 2.604/55 não se extinguiu, apenas foi introduzida na categoria de
técnico de Enfermagem, através do inciso IV, do artigo 7º, da Lei 7.498/86.
Os técnicos e os auxiliares colaboram com os serviços dos enfermeiros que
devem supervisioná-los (artigo 15). Cabem a eles (técnicos e auxiliares) as funções
estipuladas nos artigos 12 e 13, como: cuidados singulares para a cura de doenças
(como massagens ou ajudar os pacientes a caminharem); aplicação de
medicamentos; cuidados pessoais (como higiene do paciente); averiguar os
cuidados ao redor do paciente; cuidados com a alimentação do doente;
responsabilização com os materiais e equipamentos manuseados aos pacientes;
transporte de mensagens e materiais dentro do ambiente hospitalar; entre outras
(AVELLO, 2003, p. 64).
Segundo o artigo 11, inciso I, da Lei supracitada, define como funções
privativas do profissional enfermeiro: direção dos órgãos de Enfermagem, em
instituições públicas e privadas; organização dos serviços de Enfermagem em
equipes de trabalho nas organizações prestadoras desses serviços; planejamento,
coordenação,
organização
da
execução
dos
serviços
de
assistência
de
Enfermagem; consultoria, auditoria e emissão de pareceres sobre matéria de
Enfermagem; consulta de enfermagem; prescrição da assistência de Enfermagem
devida; e cuidados diretos de Enfermagem a pacientes graves com risco de vida
(UTI, CTI); atividades que demandam maior conhecimento científico e técnico.
Já no inciso II, do artigo 11, estipulam-se critérios para a atuação do enfermeiro na
assistência à saúde como integrante de uma equipe.
No artigo 20 há a determinação de observação da referida Lei por todos os entes
federativos que necessitarem contratar serviços dos profissionais de Enfermagem.
E o artigo 23 prevê a figura do atendente de Enfermagem, incorporado pelo
indivíduo executor de tarefas da área, que não possui formação específica, mas é
autorizado pelo Conselho Federal de Enfermagem a exercer atividades elementares.
330
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3.4 DECRETO Nº 94.406 DE 8 DE JUNHO DE 1987
Ademais, a Lei nº 7.498/86 foi regulamentada pelo Decreto nº 94.406, de
1987.
Segundo o art. 25 da referida Lei, cabe ao Poder Executivo a tarefa de
regulamentação.
Logo no artigo 1º do Decreto, é estipulado que o exercício da Enfermagem é
exclusivo para enfermeiros, técnicos de Enfermagem, auxiliares de Enfermagem e
parteiros, que devem estar devidamente inscritos no Conselho Regional de
Enfermagem da respectiva região.
Os demais artigos seguem o mesmo texto já mencionado da Lei nº 7.498/86.
3.5 CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM
Após a abordagem sobre a prática da Enfermagem no Direito brasileiro, insta
mencionar o papel dos conselhos fiscalizadores como garantia constitucional da
profissão.
Primordialmente, antes da Constituição de 1988, a natureza dos conselhos
era autárquica com base corporativa. Porém, depois da promulgação da
Constituição hoje vigente e após a criação da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998,
tornaram-se pessoas jurídicas de direito privado, com poder outorgado pela
administração pública (FREITAS, 2001, p. 38) - de acordo com o artigo 58 da
referida Lei.
Entretanto, o dispositivo citado foi considerado materialmente inconstitucional,
voltando, assim, para a natureza autárquica anteriormente conferida (FREITAS,
2001, p. 63); porém, os conselhos são considerados autarquias atípicas (PINHEIRO,
2008, p. 34).
Aliás, pode-se afirmar que os conselhos de fiscalização profissional
desempenham atividade de polícia administrativa por delegação estatal, pois,
compete à União “[...] organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”, de
acordo com o artigo 21, inciso XXIV, da Carta Magna.
Isto posto, resta descrever as funções dos conselhos. Primeiramente, deve-se
331
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
lembrar do direito de liberdade profissional (analisado anteriormente), disposto no
artigo 5º, inciso XIII, da Constituição de 1988, que trata do pleno poder dos
indivíduos em escolher qualquer profissão ou trabalho, condicionando-os às
qualificações profissionais impostas por lei.
A ideia do legislador ao submeter o direito a restrições foi garantir profissionais
aptos para o atendimento da população (FREITAS, 2001, p. 195). Principalmente
quando envolve saúde e vida das pessoas, como no caso da Enfermagem.
Desse modo, a qualificação exigida constitucionalmente é a imposição de
registro em órgão corporativo, encarregando a este, através de lei regulamentadora,
estipular critérios essenciais para as pessoas que desejam praticar determinada
profissão.
Portanto, uma das funções do conselho é exercer o poder de polícia conferido
pela Carta Magna, a fim de evitar o exercício infesto profissional e garantir a ética
perante a sociedade (FREITAS, 2001, p. 197).
Outra função é suprimir lacunas e obscuridades legais. Muitas vezes a
legislação sobre atividade profissional não é elaborada por capacitados da área
objeto do texto. Assim, critérios e explicações são ausentes, cabendo ao conselho
eliminar tais carências legislativas.
Mais uma atribuição é avaliar comportamentos éticos dos profissionais
inscritos no órgão (FREITAS, 2001, p. 206), por via dos processos éticos
(administrativos), a fim de controlar e até punir condutas.
Diante disso, o Conselho Federal de Enfermagem é encarregado de fiscalizar
os profissionais de Enfermagem, através da requisição de inscrição no órgão, com
posterior fornecimento de carteira que habilita o indivíduo a atuar na área,
considerando-o apto a praticar atividade em saúde.
Tendo em vista a incumbência do profissional enfermeiro na promoção da
saúde no Brasil (previamente abordada), o papel do COFEN (Conselho Federal de
Enfermagem) é indispensável para a concretização do fornecimento de trabalho
adequado e ético para toda população; e ressalta-se que sua criação é prevista pela
já citada Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973.
Isso porque garante a qualidade profissional no exercício da Enfermagem,
buscando fiscalizar o cumprimento das normas referentes ao exercício da atividade,
332
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
respeitando os princípios constitucionalmente previstos, com o intuito de fornecer à
sociedade um profissional enfermeiro capacitado para cuidar da saúde do País.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, apesar da relevância da atuação dos profissionais em
saúde no Brasil e no mundo, parece que os legisladores ainda não se deram conta
da necessidade de se rever a legislação vigente.
O grande problema atual é acompanhar juridicamente a alta demanda de
mudanças que a atividade exige perante as bases legais existentes, a fim de
aprimorar as regras que regularizam a formação do profissional enfermeiro – de
acordo com Santos (2002, p. 253). Isso será possível quando a Enfermagem
alcançar o merecido destaque no cenário político e pedagógico no País.
É perceptível a carência de base jurídica mais adequada para a atividade,
visto que a Lei em vigor é lacunosa, não aborda todos os critérios, características,
formalidades e necessidades do enfermeiro e outras categorias da área. Portanto, o
profissional da Enfermagem é desprovido de total segurança sobre a profissão no
ramo jurídico, já que é raro se deparar com um indivíduo graduado em Direito e
Enfermagem, capaz de lutar pelas mudanças no âmbito jurídico sobre a atividade do
enfermeiro, adequando-as às reais necessidades da área.
Enfim, primeiramente, é preciso revolucionar a área da Enfermagem,
qualificando-a como profissão essencial à manutenção da saúde no Brasil.
Pois, o que se percebe é a desvalorização da atividade, vista como submissa
às outras, como a Medicina, por exemplo. Pois, na área da saúde, muito se aprecia
a figura do médico, que oferece diagnósticos e prescreve medicamentos, todavia, há
desvalorização do papel do enfermeiro, o encarregado de cuidar diretamente do
doente, a quem cabe colocar em prática as prescrições médicas, além de
implementar a cautela física ao paciente.
Quer dizer, não há hierarquia entre as atividades, e sim complementariedade.
Não é possível medir a essencialidade de cada uma, visto que ambas são
dependentes entre si. Desse modo, é injustificada a desvalorização dos profissionais
da Enfermagem nos ambientes relacionados à saúde.
333
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
É preciso promover a conscientização da população a fim de mudar o
pensamento comum sobre a profissão, tendo em vista que quase todos os
indivíduos passaram por cuidados dos enfermeiros durante a vida, porém, não
percebem que suas saúdes dependiam desses profissionais ou foram cuidadas por
eles.
Além do mais, há o preconceito referente ao gênero na Enfermagem, porque
a maioria dos profissionais são mulheres. É raro se deparar com a figura masculina
na área. Isso porque, como foi abordado anteriormente, a atividade tem raízes
históricas na pessoa feminina, dona de casa, a que cuidava de sua família.
Entretanto, tal imagem deve ser diversificada, de modo que ambos os gêneros
atuem na Enfermagem, já que a profissão pode ser exercida tanto pelo homem
quanto pela mulher.
Por conseguinte, ainda há muitos desafios para a atividade no cenário atual,
mas caso a Enfermagem seja reformulada no âmbito jurídico, com certeza, muitos
dos desafios poderão ser solucionados.
Ao ampliar, deste modo, o leque de possibilidades do profissional de
Enfermagem, dando-lhe o merecido reconhecimento de seu papel e importância na
promoção da vida e da saúde dos cidadãos brasileiros, as autoridades estarão
oferecendo qualidade maior ao Sistema Único de Saúde (SUS) e angariando mais
respeito no cenário internacional junto à OMS e à comunidade das nações.
REFERÊNCIAS
AVELLO, Isabel M. Sancho; GRAU, Carme Ferré. Enfermagem: fundamentos do
processo de cuidar. São Paulo: DCL, 2003.
ATKINSON, Leslie; MURRAY, Mary Ellen. Fundamentos de Enfermagem:
introdução ao processo de enfermagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
BRASIL. Decreto nº 94.406, de 08 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498,
de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem, e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/19801989/D94406.htm>.
BRASIL. Lei nº 775, de 06 de agosto de 1949. Dispõe sôbre o ensino de
enfermagem
no
País
e
dá
outras
providências.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-1949/L775.htm>.
334
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
BRASIL. Lei nº 2.604, de 17 de setembro de 1955. Regula o exercício da
enfermagem
profissional.
Disponível
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L2604.htm>.
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335
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
336
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO REGIME DIFERENCIADO DE
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS À LUZ DAS ADINS 4645 E 4655
CONSTITUTIONAL ANALYSIS OF HIRING OF DIFFERENTIAL SCHEME PUBLIC
IN THE LIGHT OF DIRECT ACTIONS UNCONSTITUTIONALITY OF 4645 AND
4655
Lucas Paulino da Silva169
Ana Luiza Chalusnhak170
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Análise Constitucional do Regime Diferenciado de Contratações
Públicas. 2.1 Da Inconstitucionalidade Formal. 2.2 Da Inconstitucionalidade Material 2.2.1 Da
Afastabilidade da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos 2.2.2 Da delegação ao
executivo e da ampla discricionariedade dada ao agente público 2.2.3 Da Contratação Integrada e da
ausência de Projeto Básico 2.2.4 Da Remuneração Variável 2.2.5 Da Pré-Qualificação 2.2.6 O
Princípio da Publicidade e a Questão do Orçamento Estimado 2.2.7 Repercussão dos Efeitos da
Decisão 3 Conclusão. Referências
RESUMO
O presente trabalho visa fazer uma análise dos aspectos (in)constitucionais do regime diferenciado
de contratações públicas, instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011. Essa lei instituiu
uma espécie excepcional de licitações, na qual a sua incidência está voltada para certames que
envolvam infraestrutura da Copa das Confederações de Futebol 2013, Copa do Mundo de Futebol
2014, Jogos Olímpicos e paraolímpicos de 2016. Para que seja feita essa análise, será necessário
demonstrar como funciona o controle de constitucionalidade através de ação direta de
inconstitucionalidade no Brasil, as principais inovações e princípios norteadores do RDC, e as
principais argüições e defesa relatadas nas Adins 4645 e 4655, ajuizadas no Supremo Tribunal
Federal. Será verificado, ainda, que há posições divergentes da doutrina, onde parte da doutrina mais
conservadora crê que esse dispositivo contém diversos vícios, principalmente de natureza material,
conquanto parte de uma doutrina “mais liberal” acredita que o RDC possa ser eficaz ao ordenamento
pátrio, devido a alguns dispositivos flexíveis que podem ser capazes de dar mais eficiência e
celeridade às licitações públicas.
Acadêmico de Direito do Unicuritiba – Jus Vitae. [email protected]
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996) e Mestre em Direito do Estado
pela Universidade Federal do Paraná (2004). Professora de Direito Administrativo no Centro
Universitário Curitiba e orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso – Jus Vitae.
[email protected]
169
170
337
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Palavras-Chave: Regime Diferenciado de Contratações Públicas, Adin 4645, Adin 4655.
ABSCTRACT
This study aims to analyze the aspects the constitutional differentiated regime of public contracts,
introduced by Law No. 12.462, of 04 August 2011. It established an exceptional kind of bidding, in
which the incidence is facing contests involving infrastructure Cup of Soccer Confederations 2013
Soccer World Cup 2014 Olympic and Paralympic 2016. In order to make such an analysis, it will be
necessary to demonstrate how the constitutional control through direct action of unconstitutionality in
Brazil the main innovations and guiding principles of the DRC, and the main Pleas and defense Adiņš
reported in 4645 and 4655, filed in the Supreme Court. It will be checked also that there are differing
positions of the doctrine, where part of the more conservative doctrine believes that this device
contains various addictions, particularly of a material nature, while part of a "more liberal" doctrine
believes that the DRC can be effective in parental order due to some flexible devices that can be able
to give greater efficiency and speed to public bids.
Keywords: differentiated regime of public contracts, Adin 4645, Adin 4655
1 INTRODUÇÃO
A Realização de tradicionais eventos esportivos mundiais no Brasil, quais
sejam, a Copa das Confederações de Futebol de 2013, a Copa do mundo de
Futebol de 2014, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, fez com que os
poderes públicos tomassem medidas políticas visando à realização de obras de
infraestrutura com mais celeridade e eficiência do que o procedimento comum.
Nesse sentido, foi sancionada a Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, que
regulamenta o chamado Regime Diferenciado de Contratações Públicas, trazendo
novidades no âmbito das licitações e contratos administrativos no Brasil. Para
Andrade e Veloso (2013, p. 36), o regime diferenciado direciona-se especialmente à
viabilização de eventos cuja complexidade e grandeza se contrapõem ao exíguo
tempo de que se dispõe para a sua preparação.
A entrada em vigor dessa lei ocasionou discussões doutrinarias no âmbito
jurídico
nacional.
No
judiciário,
há
atualmente
duas
Ações
Diretas
de
Inconstitucionalidade em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal. A ADIN 4645,
338
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
proposta pelos partidos políticos PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira),
DEM (Democratas) e PPS (Partido Popular socialista), em 21 de agosto de 2011, e a
ADIN 4655, proposta pelo Procurador Geral da República, em 7 de setembro de
2011. Até a presente data, nenhuma delas foi apreciada, nem em sede cautelar.
O
presente
artigo
tem
o
intuito
de
investigar
as
supostas
inconstitucionalidades levantadas nas Ações em trâmite no STF, demonstrando
aspectos negativos e positivos, críticas, e posicionamentos doutrinários.
2
ANÁLISE
CONSTITUCIONAL
DO
REGIME
DIFERENCIADO
DE
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS
A (in)constitucionalidade formal e material do RDC são apontadas em duas
ações de inconstitucionalidade em trâmite perante o STF: A ADIN 4645, proposta
pelos partidos políticos PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), DEM
(Democratas) e PPS (Partido Popular socialista), em 21 de agosto de 2011; e a
ADIN 4655, proposta pelo Procurador Geral da República, em 7 de setembro de
2011.
Dessa forma, busca-se analisar os principais dispositivos dessas ações,
verificando as inconstitucionalidades argüidas da Lei 12.426/2011.
2.1 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE FORMAL
A Inconstitucionalidade Formal diz respeito à falta de observância ao devido
Processo Legislativo.
Os autores alegam, dentre outros dispositivos, que há a presença da
inconstitucionalidade formal da Lei 12.462/11, por não haver [i] pressupostos
constitucionais de urgência e relevância, necessários à edição de Medidas
Provisórias, já que a Lei nº 12.462/11 é resultado da conversão da Medida Provisória
527/2011, e [ii] pelo fato do Projeto de Lei de conversão violar o devido Processo
Legislativo, no que diz respeito ao abuso ao poder de emendar. Nesse sentido,
extrai-se trecho da exordial proposta pelos partidos políticos:
339
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
De fato, negar de forma peremptória à Corte Constitucional a possibilidade
de examinar o atendimento dos pressupostos constitucionais de relevância
e urgência seria o mesmo que despir completamente de normatividade a
disposição do art.62, privar-lhe de qualquer possibilidade de eficácia
jurídica.[...]
Cumpre asseverar que a tramitação da Medida Provisória n. 527 e do
respectivo Projeto de Lei de Conversão no Congresso Nacional não
observou o devido processo legislativo constitucional, tendo em vista a
admissão de emendas absolutamente impertinentes ao texto da Medida
Provisória n. 527/2011[...] (grifos nossos).
Na mesma linha, manifestou-se o Procurador-Geral da República:
[...] Como a Lei nº 12.462/11, quanto aos dispositivos impugnados, é fruto
de emenda parlamentar que introduz elementos substancialmente novos
e sem qualquer pertinência temática com aqueles tratados na medida
provisória
apresentada
pela
Presidente
da
República,
sua
inconstitucionalidade formal deve ser reconhecida (grifos nossos).
Para que o Presidente da República possa fazer a edição de uma medida
provisória171, é necessário que haja a presença dos pressupostos de relevância e
urgência, conforme sintetiza Clève (2000, p. 41):
[...] no direito brasileiro, o Presidente da República somente poderá editar
medidas provisórias quando presentes os pressupostos elencados no art.
62 da Constituição Federal: relevância e urgência. Sem a satisfação dos
referidos pressupostos não poderá o Presidente exercer a função legislativa
autorizada pelo Constituinte.
Normalmente, tais pressupostos precedem de um juízo político, feito pelo
presidente da república, e ao Poder Legislativo, cabe confirmar ou não o juízo
político do Executivo, segundo exposto nas ações. Há o trecho do voto do Ministro
Moreira Alves, proferido nos autos da ADI 162 – 1 – DF, quando a apreciação de
pedido de liminar, que assim se pronunciou:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas
provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.
340
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Ora, esta Corte, por seu Plenário, ao julgar Recurso Extraordinário n°
62.739, em que declarou a inconstitucional, em face da Constituição de
1967, o Decreto-Lei 322, de 7.4.67, por entender que ele regulava matéria
estranha ao conceito de segurança nacional, se manifestou no sentido de
que ‘a apreciação dos casos de ‘urgências’ ou de ‘interesse público
relevante’, a que se refere o artigo 58 da Constituição de 1967, assume
caráter político, e está entregue ao discricionarismo dos juízos de
oportunidades e de valor do Presidente da República, ressalvada
apreciação contrária e também discricionária do Congresso’ (RTJ-44 / 54).
Posteriormente, esse entendimento foi seguido no RE 74.096 (RTJ 62 / 819)
e no RE 75.935 (R.D.A. 125 / 89).
Como já explanado, a Lei 12.462/2011 é derivada da Medida provisória
527/2011. Em relação a conversão de uma Medida provisória em Lei, há limites ao
poder de emendar, na qual deve haver pertinência temática entre o conteúdo
originário da MP e as emendas realizadas, segundo entendimento Mendes (2009, p.
8):
A medida provisória pode ser emendada no Congresso[...]. As emendas
apresentadas devem, porém, guardar pertinência temática com o objeto da
medida provisória, sob pena de indeferimento. Havendo alteração no
Senado, o projeto deve retornar à Câmara para confirmação ou rejeição das
mudanças efetuadas na Casa de Revisão. Antes das deliberações de cada
Casa do Congresso Nacional, o § 5º do art. 62 da Constituição cobra que
seja apreciado o atendimento dos pressupostos constitucionais, aí incluídas
a urgência e relevância e as limitações materiais ao uso da medida
provisória.
Rezende (2011, p. 8) segue a linha da parte autora, acreditando haver a
presença de vício formal, em relação às Emendas que a Medida Provisória n. 527 de
2011 sofreu, qual seja, a inserção do Regime Diferenciado:
A MPV nº 527, de 2010, tratava de matéria distinta dos arts. 1º a 47 da Lei
nº 12.462, de 2011, que versam sobre o novo regime de licitações e
contratos. O relator da matéria na Câmara dos Deputados sustentou a
relação de pertinência entre o RDC e as disposições constantes do texto
original da MPV [...].
341
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Seguindo, ainda, a linha de Renato Rezende, as Emendas que a Medida
Provisória nº 527/2011 sofreu fere o disposto na Lei complementar nº 95172, de
1998, já que houve confusão de matérias na mesma lei:
[...]o raciocínio desenvolvido pelo relator da MPV na Câmara dos Deputados
confunde causa ou razão comum com afinidade, pertinência ou conexão de
matérias. Pode-se sustentar que, tanto as alterações na estrutura
administrativa do Governo Federal quanto aquelas nas regras de licitações
e contratos apresentam, entre suas justificativas, a necessidade de
preparação do País para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Isso não
significa, contudo, que haja identidade, similitude ou afinidade entre os
objetos ou matérias.
Nesse sentido, a alegação da inconstitucionalidade formal é de que houve
abuso ao poder de emendar, já que não há co-relação do conteúdo inicial da Medida
Provisória e as emendas inseridas na Lei do RDC.
O entendimento da jurisprudência do Supremo corre nesse sentido, conforme
decisão proferida na ADI 3288, Rel. Min. Ayres Britto, DJ de 20 de fevereiro de 2011:
[...] 3. O Poder Legislativo detém a competência de emendar TODO E
QUALQUER PROJETO DE LEI, ainda que fruto da iniciativa reservada ao
Chefe do Poder Executivo (art. 48 da CF). Tal competência do Poder
Legislativo conhece, porém, duas limitações: A) A IMPOSSIBILIDADE DE O
PARLAMENTO VEICULAR MATÉRIA ESTRANHA À VERSADA NO
PROJETO DE LEI (REQUISITO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA); b) a
impossibilidade de as emendas parlamentares aos projetos de lei de
iniciativa do Executivo, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 166,
implicarem aumento de despesa pública (inciso I do art. 63 da CF).
A Parte Ré, através da Advocacia-Geral da União, alegou não haver nenhuma
inconstitucionalidade formal na norma impugnada, com argumentos semelhantes,
em ambas as ações. Dessa forma, extraí-se trecho da contestação feita pela AGU
na ADIN 4645:
172
BRASIL. Lei Complementar nº 95, de 26 de Fevereiro de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a
redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da
Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.
342
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
[...] a aferição dos requisitos de urgência e relevância das medidas
provisórias pelo Poder judiciário, em sede de controle abstrato, não tem sido
admitida pela jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal. A censura
judicial somente é possível, e ainda assim em caráter excepcional, quando
se verifica, mediante análise objetiva, que a Presidência da República
incorreu em abuso manifesto.[...]
De logo, cumpre ressaltar que tal alegação não merece, sequer, ser
conhecida, pois a ausência de pertinência temática suposta pelos
requerentes, ainda que houvesse ocorrido, não configuraria ofensa direta a
qualquer das normas constantes do Texto Constitucional (grifos do autor).
Argumenta-se, ainda, que mesmo que o entendimento não seja pacificado, o
STF só admite a análise dos pressupostos de urgência e relevância em casos
excepcionais, conforme jurisprudência abaixo:
MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
MEDIDA PROVISÓRIA 2.226 DE 04.09.2011. TRIBUNAL SUPERIOR DO
TRABALHO.
RECURSO
DE
REVISTA.
REQUISITO
DE
ADMISSIBILIDADE. TRANSCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE
JURÍDICA NA ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 1º; 5º, CAPUT E II;
22, I; 24, XI; 37; 62, CAPUT E §1º, I, B; 111, §3º E 246. LEI 9.469/97.
ACORDO OU TRANSAÇÃO EM PROCESSOS JUDICIAIS EM QUE
PRESENTE A FAZENDA PÚBLICA.PREVISÃO DE PAGAMENTO DE
HONORÁRIOS, POR CADA UMA DAS PARTES, AOS SEUS
RESPECTIVOS ADVOGADOS. AINDA QUE TENHAM SIDO OBJETO DE
CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. RECONHECIMENTO, PELA
MAIORIA DO PLENÁRIO, DA APARENTE VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA PROTEÇÃO À COISA
JULGADA. 1. A medida provisória impugnada foi editada antes da
publicação da Emenda Constitucional 32, de 11.09.2001, circunstância que
afasta a vedação prevista no art. 62, § 1º, 1, b, da Constituição, conforme
ressalva expressa contida no art. 2º da própria EC 32/2011. 2. Esta
Suprema Corte somente admite o exame jurisdicional do mérito dos
requisitos de relevância e urgência na edição de medida provisória em
casos excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos
seja evidente. [...].
(ADI nº 2527 MC, Relatora: Ministra Ellen Gracie, Órgão julgador: Tribunal
Pleno, julgamento em 16/08/2007, Publicação em 27/11/2007; (grifos do
autor).
A AGU alega que não há nenhum abuso ao poder de emendar, já que esse
abuso deve ser precedido de um aumento de despesas, conforme argumentos
extraídos da contestação da ADIN 4645:
Registre-se que o poder de emendar consiste em prerrogativa inerente ao
exercício da atividade parlamentar. Diante disso, a intervenção do Poder
Legislativo em projetos de lei é autorizada mesmo nas hipóteses de
343
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
iniciativa reservada e de conversão de medidas provisórias, sendo que,
nesses casos, as únicas restrições impostas aos parlamentares são aquelas
fixadas em numerus clausus pela Constituição Federal. Ou seja, nos
projetos de lei cuja iniciativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo,
as únicas limitações ao direito de apresentar emendas consistem na
observância da pertinência temática, sobre a qual se discorreu
anteriormente, bem como na ausência de aumento de despesas.
Nesse sentido, verifica-se que nas duas ADIN propostas os autores alegam a
presença de vício formal da Lei nº 12.462/2011, pedindo para que o dispositivo seja
integralmente declarado inconstitucional. Contrariamente, segundo a AGU, contesta
por supostamente não haver nenhuma inconstitucionalidade formal que possa
contaminar o dispositivo impugnado.
2.2 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Dentre os principais argumentos e supostas inconstitucionalidades apontadas
nas Ações Diretas de inconstitucionalidade em questão, estão diversos vícios
materiais. Nesse sentido, há um desacordo entre o que consta na Lei do RDC e na
Constituição Federal. Passaremos a expor as principais alegações e apontamentos
expostos nas ações.
2.2.1 Da Afastabilidade da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos
Um dos argumentos pela suposta inconstitucionalidade do RDC seria o
afastamento da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, quando o
agente público julgar necessário. Segundo a ADIN 4645, a Lei Geral de Licitações
só pode ser afastada em hipóteses excepcionais, previstas constitucionalmente, pois
não cabe a uma Lei nova afastar a norma geral. Sobre o tema, extraí-se trecho dos
argumentos dos autores da ação:
[...]as regras licitatórias existem para assegurar a isonomia e a
moralidade nas contratações públicas[...] Quaisquer exceções e
mitigações à obrigatoriedade constitucional só podem ser admitidas quando
encontre justificação no próprio texto constitucional[...] Por esta razão,
nenhuma lei poderia excluir a obrigatoriedade de licitação, por exemplo,
incluindo um inciso no art. 24 da lei 8.666/93 para determinar que todas as
344
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
obras a serem realizadas pelo Governo Federal para construção de prédios
em alvenaria não seriam licitadas. (grifos nossos)
Para melhor compreensão, cumpre ser destacado o conceito de norma geral,
consoante lição de Mello (2013, p. 18-19):
Cumpre reconhecer como incluído no campo das normas gerais a fixação,
pela União, de padrões mínimos de defesa do interesse público
concernente àquelas matérias em que tais padrões deveriam estar
assegurados em todo o País, sob pena de ditos interesses ficarem à
míngua de proteção. É que este malefício evidentemente poderia ocorrer,
seja por inércia de certos Estados, seja em determinados casos mais
específicos, por carecerem alguns deles de preparo ou informação técnica
suficientes para o reconhecimento e definição dos ditos padrões mínimos
indispensáveis ao resguardo do interesse público quando envolvida matéria
técnica. [...] Por sem dúvida, se adotada intelecção que limitasse a
competência da União à simples enunciação de princípios, os riscos para a
salvaguarda de interesses capitais seriam evidentíssimos, prescindindo
mesmo de qualquer esforço demonstrativo.
Sendo normas gerais aquelas que fixam padrões mínimos de defesa do
interesse público, padronizando determinado conteúdo em todo o território nacional,
a suposta inconstitucionalidade alegada se embasa no fato de que a norma geral
não deveria ser afastada por outra norma não-geral. Seguindo essa linha, Rigolin
(2011), em artigo publicado logo após o advento da lei, faz severas críticas:
A Lei nº 12.462/11 sepultou definitivamente, com sete pás de cal em cima, a
liturgia das normas gerais de licitações e contratações. Norma geral passou
a ser sinônimo de nada, de coisa nenhuma em direito, desmoralizando por
completo a classificação da Lei nº 8.666/93. Sim, porque na medida em que
existem os pregões¸ que ignoraram a proibição de que existam novas
modalidades de licitação além das da Lei nº 8.666/93; na medida em que
todo Estado e já muitos Municípios a todo tempo editam leis invertendo as
fases da licitação conforme previstas na Lei nº 8.666; na medida em que a
periodicidade de reajuste dos contratos no Brasil é dada por uma lei federal
de 2.001 que não se diz norma geral de coisa alguma, então fácil é concluir
que nesta autêntica festa do caqui em que se converteu o direito público
brasileiro ninguém mais respeita minimamente a idéia de a que a lei de
normas gerais de licitação limite qualquer ação de qualquer pessoa de
direito público interno – que literalmente faz o que bem entende em tema de
licitação.
Normas gerais – que piada!
345
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Na mesma linha de raciocínio, coaduna Rezende (2011, p. 13), que nessa
questão, também defende a inconstitucionalidade da norma impugnada:
Mesmo que as novas regras fossem dirigidas exclusivamente à
administração pública federal, somente poderiam ser reputadas válidas se
compatíveis com as normas gerais presentes na Lei nº 8.666, de 1993. E o
que faz a Lei? Pura e simplesmente autoriza seja afastada a aplicação da
Lei Geral de Licitações. É de clareza solar que o legislador de cada ente, ao
editar normas específicas sobre licitações e contratos, deva observar a Lei
Geral. Não fosse assim, a Lei Geral seria um nada jurídico, contornável ao
mero talante do legislador de cada ente federado.[...]. Ora, se há normas
gerais na Lei nº 8.666, de 1993, a Lei do RDC não poderia afastar de todo a
sua aplicação, como o faz no § 2º de seu art. 1º. Visível, pois, a
inconstitucionalidade da Lei nesse ponto.
Nesse sentido, extrai-se da inicial que está suposta Inconstitucionalidade se
dá por violação ao Art. 37, Inc. XXI, da CF173. Para a AGU, nas contra-razões, os
argumentos são vagos e abstratos, pois não demonstram em qual dispositivo o RDC
viola a CF:
Os autores alegam que os instrumentos da Lei nº 12.462/2011 não seriam
suficientes para assegurar a moralidade administrativa e a isonomia. A
argumentação, todavia, não está atrelada à indicação de um único
dispositivo da lei impugnada que contenha suposta proteção insuficiente
aos princípios mencionados.
[...] os requerentes limitaram-se a indicar, de forma genérica, ofensa ao
disposto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição de 1988, sem demonstrar
como exsurgiria tal relação de contrariedade[...]
Dessa forma, verifica-se que a impugnação formulada pelos requerentes, no
ponto específico, caracteriza-se como genérica e abstrata a inviabilizar a
exata compreensão do pedido formulado. (grifos nossos).
Dessa forma, alega-se a inconstitucionalidade da norma, pelo fato do RDC
poder afastar a aplicabilidade da Lei Geral de Licitações, violando o dever do agente
público sempre realizar a licitação, e conseqüentemente o princípio da isonomia e da
173
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] XXI - ressalvados os casos
especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante
processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com
cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,
nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
346
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
moralidade administrativa. Por outro lado, a AGU defende a constitucionalidade,
partindo da premissa de que, para haver uma inconstitucionalidade, o autor deve
demonstrar no caso concreto o vício, sem expor argumentos vagos e abstratos.
2.2.2 Da Delegação ao Executivo e da Ampla Discricionariedade Dada ao Agente
Público
Outro aspecto relevante, extraído das ações, é que a Constituição atribuiu à
união competência para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos, leis
estas que devem dar pouca discricionariedade ao agente público. Nas ADINS
propostas, verifica-se que a alegação da inconstitucionalidade material existiria
devido ao fato da Lei do RDC não estabelecer alguns parâmetros mínimos sobre o
que deve ser licitado através do RDC, deixando ampla discricionariedade ao
executivo174 para verificar quais licitações deverão ser realizadas pelo novo Regime.
É o que pode ser observado nas palavras do Procurador-Geral da República, na
ADIN 4655:
A ofensa ao art. 37, XXI, da CR, parece bastante evidente, pois o regime de
licitação pública não está definido em lei, e sim por ato do Executivo. Não
há, reitere-se, qualquer parâmetro legal sobre o que seja uma licitação ou
contratação necessária aos eventos previstos na lei, outorgando-se
desproporcional poder de decisão ao Poder Executivo.
Na mesma linha de raciocínio está o argumento levantado pelos partidos
políticos, na ADIN 4645:
174
Art.1. É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável
exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: I - dos Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade
Pública Olímpica (APO); e II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol
Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa
2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano
Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de
responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
347
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em que pese a aparente taxatividade da redação do caput do art. 1º
(“aplicável exclusivamente”), na verdade, as hipóteses descritas nos incisos
são essencialmente vagas e imprecisas, conferindo ao Executivo liberdade
total na escolha do regime de licitação a aplicar. (...)
Observe-se, assim, verdadeira delegação de competência a ente da
Administração Pública para definir o regime licitatório aplicável ao caso. Ou
seja, na prática, o Executivo poderá escolher, caso a caso, o regime jurídico
aplicável.
Concordando com as supostas alegações, na visão Krawczyk (2011),
A criação do ente “Autoridade Olímpica”, como órgão de definição da
necessidade de uso do RDC (Art.1), é o segundo fator de
descontentamentos. A alegação é de afronta direta aos artigos 22 XXVII e
37, inciso XXI, CF, pois licitações e contratações são matérias que só
deveriam vir reguladas por legislação federal. Uma cláusula
demasiadamente aberta conferindo ao Executivo o poder de escolher
critérios elevaria o regime jurídico a um nível de subjetividade tão severo
que tornaria o instituto totalmente ilegal.
Seguindo a mesma linha, Rezende (2011, p. 23) concorda que há uma ampla
discricionariedade dada ao poder executivo, ensejando outro vício constitucional, já
que “Não há como discordar do argumento de que a Lei nº 12.462, de 2011,
submete, em boa medida, à discrição do Poder Executivo, a escolha de aplicação de
um regime licitatório bem mais flexível a determinadas obras, compras e serviços”.
Por outro lado, em parecer publicado logo após o advento da Lei e as
proposições das ações, a Advocacia-Geral da União pronunciou-se favorável ao
RDC, alegando não existir nenhuma inconstitucionalidade nesse sentido:
[...] cabe evidenciar que as próprias peculiaridades estabelecidas no PLV
para o regime diferenciado são balizas para a sua aplicação ou não,
podendo o administrador entender ser mais condizente para determinado
caso a aplicação do regime geral da Lei de Licitações (Lei nº 8.666, 21 de
junho de 1993) ou da Lei do Pregão (Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002).
Assim, se, por exemplo, o administrador verificar que, para determinada
obra, se faz necessário utilizar uma técnica específica e determinados
materiais, cujo detalhamento se faz necessário desde o início da licitação
em projeto básico, poderá optar pela utilização da Lei nº 8.666, de 1993, e
não do RDC.
Por sua vez, não há de se falar que deveria o PLV especificar ainda
mais as hipóteses da aplicação do RDC, uma vez que ele se refere à
competência da União, prevista no art. 22, inciso XXVII, da Lei Maior, de
expedir normas gerais de licitação e contratação, não devendo dispor
acerca de minudências a não ser que sejam aplicáveis, única e
exclusivamente, à União. A esse respeito, cabe lembrar que o Egrégio
348
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Supremo Tribunal Federal, ao julgar pedido liminar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 927-3/RS, deu interpretação conforme à
Constituição a dispositivos da Lei nº 8.666, de 1993 (Lei de licitações),
entendendo ser aplicáveis apenas no âmbito da União Federal em face de
tratar de especificidades. E aqui se deve observar que o Projeto de Lei de
Conversão, caso aprovado, terá aplicação também a Estados e Municípios
que também são responsáveis pela execução de empreendimentos para
realização dos mencionados eventos esportivos. 175
Da mesma forma, nas contra-razões, a Advocacia-Geral da União manteve a
argumentação, pois não teria como delimitar, no caso concreto, todas as
situações em que o agente poderia utilizar o RDC:
É certo que não poderia o legislador determinar, de forma antecipada e
taxativa, quais as obras necessárias à realização dos eventos esportivos. A
questão merece maior destaque diante do fato de estar o Brasil sujeito a
exigências diversas provenientes dos órgãos responsáveis pelos eventos,
como a Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA e o Comitê
Olímpico Internacional.
Portanto, ao instituir o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, a lei
sob invectiva não poderia antever quais obras, serviços e compras
poderiam estar submetidos a referido procedimento.
[....]Assim, com o escopo de evitar o engessamento da atividade
administrativa, bem como o eventual descumprimento das normas
incidentes, a lei delegou ao administrador a tarefa de especificar a obras
que são necessárias à realização dos eventos esportivos.
Verifica-se que a ampla discricionariedade dada aos órgãos do executivo para
definir
quais
serão
os
objetos
pertinentes
ao
RDC
pode
acarretar
a
inconstitucionalidade da norma. Por outro lado, a Advocacia-Geral da União defende
a Constitucionalidade da Norma, alegando que não é viável que a lei preveja todas
as situações possíveis para a sua aplicação.
2.2.3 Da Contratação Integrada e da Ausência de Projeto Básico
No que tange ainda a Inconstitucionalidade material, outro argumento
supracitado nas ações seria a possibilidade das licitações precedidas pelo RDC
175
BRASIL. Advocacia Geral da União. Nota SGCS/AGU SUBST. Nº 1/2011. Disponível em: <
www.agu.gov.br/page/download/index/id/4993841> Acesso em: 23 fev. 2015.
349
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
serem contratadas integralmente. A contratação integrada está prevista no Artigo 9º,
da Lei nº 12.462/2011176. Segundo esse procedimento, a elaboração e o
desenvolvimento dos projetos básicos e executivos, a execução de obras e serviços
de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação, e todas as
demais operações necessárias para a entrega final do objeto ficam por conta de
uma única empresa. Essa suposta inconstitucionalidade ocorreria devido à
possibilidade do vencedor realizar todas as etapas do processo licitatório, incluindo o
projeto básico, já que este não ficaria anexado no edital.
Dessa forma, extraí-se trecho da ADIN 4645:
Não é por outra razão que a lei 8666/93 define em seu art. 6º, inciso IX, o
projeto básico, com especificações de todos os elementos que permitem o
estabelecimento de critérios objetivos no julgamento de uma licitação.
Entretanto, a Lei 12.462/11, ao criar o tipo de licitação denominado
„contratação integrada‟, simplesmente afastou a necessidade de projeto
básico para dar início ao processo licitatório, passando a exigir, tão somente
um „anteprojeto‟, cujas características são insuficientes para a devida
objetivação da obra ou serviço.
Na mesma linha, o Procurador-Geral da República também argumentou sobre
o alto grau de subjetividade do agente público na delimitação do objeto:
[....] para que a Administração possa fixar as „exigências de qualificação
técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das
obrigações‟, é fundamental um delineamento prévio e preciso do objeto
licitado. Do contrário, as exigências podem ficar subavaliadas ou serem
impertinentes ou exageradas, tudo em contrariedade aos postulados que
regem a licitação pública, comprometendo, ao final, a sua razão de ser que
é a eleição da melhor proposta para a administração [...].
A Lei nº 8.666/93 prevê177 que o projeto básico é indispensável para a
abertura do certame. A ausência de projeto básico poderia desvirtuar a finalidade da
licitação, qual seja, a eleição da melhor proposta para a administração pública,
176
Art. 9o Nas licitações de obras e serviços de engenharia, no âmbito do RDC, poderá ser utilizada
a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificada e cujo objeto envolva, pelo
menos, uma das seguintes condições:
177 Art. 7o As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao
disposto neste artigo e, em particular, à seguinte seqüência:§ 2o As obras e os serviços somente
poderão ser licitados quando: I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e
disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório.
350
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
previsto no artigo 37, Inc. XXI, da CF. Se a lei contrariar a finalidade do processo
licitatório, automaticamente estaria afetando os princípios constitucionais da
moralidade e isonomia. Nesse sentido, Rezende (2011, p. 45-46),
[...] o dispositivo contraria normas da Lei nº 8.666, de 1993, mais
precisamente: a) o art. 7º, § 2º, I e II, de acordo com o qual as obras e os
serviços somente poderão ser licitados quando houver projeto básico
aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos
interessados em participar do processo licitatório, e existir orçamento
detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus
custos unitários; b) o art. 40, § 2º, I e II, segundo o qual constituem anexos
do edital, dele fazendo parte integrante, o projeto básico e/ou executivo,
com todas as suas partes, desenhos, especificações e outros
complementos.
Materialmente, a contratação integrada, tal como prevista na Lei do RDC,
pode conduzir a situações de ofensa aos princípios do julgamento objetivo e
da isonomia, além de dar ensejo a situações lesivas ao interesse público.
Isso porque até mesmo a elaboração do projeto básico das obras é deixada
a cargo do licitante vencedor. Assim, o Poder Público realizará certame sem
dispor de balizamento mínimo daquilo que deseja ver executado. A
deficiência de parâmetros comparativos prejudica a aferição do grau de
adequação das propostas às necessidades do Poder Público e abre
margem ao subjetivismo no julgamento. Ademais, dá-se um poder
excessivo ao contratado para definir o que e como será executado.
A AGU, ao contestar as duas ações, afirmou que a contratação integrada se
dará por critérios objetivos, podendo ser benéfica para a administração pública, [i]
pela economia de tempo gerada, já que a mesma empresa realizaria a confecção do
projeto e a execução da obra, e por [ii] inviabilizar a celebração de termos aditivos,
ocorridos com muita freqüência nas obras públicas. Verifica-se os argumentos
através de trecho reproduzido das contra-razões da ADIN 4645:
[...] o ante projeto de engenharia deverá conter documentos técnicos
destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, consoante
disposto no § 2º do artigo em exame. Tais documentos tornarão possível
uma escolha realizada de açodo com critérios objetivos.
[...] De outro lado, a contratação integrada possui uma grande vantagem,
pois inviabiliza a celebração de termos aditivos, freqüentemente solicitados
com base em falhas do projeto básico.
[...] Outrossim, as contratações integradas implicam ganho de tempo, algo
extremamente necessário, considerando a proximidade dos eventos
esportivos.
351
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Reisdorfer (2013, p. 173) afirma que a contratação integrada pode ser algo
muito viável, pautado na economia que esse dispositivo pode gerar para a
Administração Pública:
A previsão legislativa de um regime contratual que dispensa a elaboração do
projeto básico pela Administração Pública revela mais do que uma busca por
maior eficiência nas contratações administrativas. Na verdade, parece refletir
também uma preocupação com o problema crônico de planejamento que tem
marcado as licitações públicas no Brasil. Por diversas razões, a experiência
prática aponta que o planejamento e a elaboração de projetos pela
Administração Pública são dois dos principais impasses que põem em causa
a eficiência dos contratos celebrados. A deficiência no planejamento produz
em si uma “álea” que, no mais das vezes, gera prejuízos tanto ao particular
quanto, invariavelmente, desperdício de recursos e de tempo também para o
Poder Público.
Conquanto as ações tramitam perante o STF, parte da doutrina é a favor do
RDC, com base na eficiência que a contratação integrada pode trazer para a
Administração Pública. Nota-se a presença de um conflito, segundo o qual, por um
lado contratação integrada pode trazer mais celeridade e eficiência aos contratos
públicos, e em contrapartida, pode ser inconstitucional, por supostamente afrontar a
Constituição Federal.
2.2.4 Da Remuneração Variável
Na ação direta de inconstitucionalidade proposta pelos partidos políticos (ADI
4655), os autores apontam breves inconstitucionalidades em relação à remuneração
variável, prevista no art. 10 na Lei 12.462/11178.
Segundo esse dispositivo, há a possibilidade do contratado receber um bônus
em sua remuneração, conforme atinja determinadas metas, previstas em edital. A lei
em questão pode possuir suposta inconstitucionalidade por esse preceito afrontar
alguns princípios constitucionais da administração pública, principalmente a
178
Art. 10. Na contratação das obras e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser estabelecida
remuneração variável vinculada ao desempenho da contratada, com base em metas, padrões de
qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazo de entrega definidos no instrumento
convocatório e no contrato. Parágrafo único. A utilização da remuneração variável será motivada e
respeitará o limite orçamentário fixado pela administração pública para a contratação.
352
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
moralidade administrativa e a impessoalidade. A afronta aos princípios ocorre pela
ampla discricionariedade dada ao agente público para decidir o quanto de
remuneração variável contratos diferentes poderão receber. Conforme exposto na
inicial da ADIN 4645, “esse mecanismo, em lugar de estimular a eficiência dos
contratos, fomentará relações promíscuas entre o público e o privado”.
Em contrapartida, a AGU contestou, alegando não haver nenhum vício
material nesse dispositivo:
Mais uma vez, verifica-se que a inovação trazida pelo legislador não fere
preceitos constitucionais, além de constituir forma de incentivo ao particular,
que será remunerado conforme sua eficiência e economicidade no trato da
coisa pública. Cuida-se, portanto, de previsão de incentivo àquele que
ultrapassar as metas mínimas estabelecidas, instituindo um sistema
dinâmico de remuneração.
Conjuntamente, segundo Schwind (2013, p. 175),
Os contratos de eficiência e a remuneração variável em função do
desempenho do contratado configuram mecanismos bastante interessantes
para o incentivo à eficiência nas contratações públicas. Utilizam a lógica dos
contratos de risco como forma de vincular o dispêndio de recursos públicos à
obtenção de vantagens efetivas à Administração
A utilização desses mecanismos no âmbito do RDC será um importante teste
para a identificação das suas potencialidades. Caso bem concebidos, os
contratos de eficiência e as avencas que contemplam remuneração variável
poderão proporcionar economias relevantes aos cofres públicos. Por isso,
não faz sentido que o seu âmbito de aplicação seja restrito ao RDC.
Dessa forma, pleiteia-se a inconstitucionalidade do art. 10 da lei do RDC, em
relação à remuneração variável nos contratos de desempenho, enquanto a AGU
defende a constitucionalidade, embasada na eficiência e economicidade que o
instituto pode gerar à Administração Pública.
2.2.5 Da Pré-Qualificação
No que tange ao requisito da pré-qualificação, previsto na Lei do RDC, o
Procurador-Geral da República sustenta a inconstitucionalidade desse dispositivo,
por supostamente afrontar a finalidade do procedimento licitatório previsto no art. 37,
353
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
XXI, da Constituição da República. Segundo esse regramento, todos os licitantes
devem preencher requisitos de habilitação genéricos ou específicos, a fim de que
possam participar de uma ou mais licitações.
A alegação é de que a pré-qualificação viola o princípio da isonomia e,
conseqüentemente o princípio da impessoalidade, por afastar da licitação
interessados que não sejam previamente qualificados, diminuindo o âmbito de
concorrentes. Importante mencionar trecho exposto na Inicial da ADIN 4655:
O procedimento de pré-qualificação permanente, no âmbito do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas, está na contramão disso tudo, uma
vez que busca a habilitação prévia dos licitantes em fase anterior e distinta
da licitação. E ainda permite que interessados não pré-qualificados sejam
alijados da licitação (art. 30, § 2º).[...]
Já na hipótese da Lei 12.462, a pré-qualificação é prevista para qualquer
situação que envolva fornecimento de bem e execução de serviço e obra.
Ou seja, não há aqui qualquer caráter de excepcionalidade, o que permite
concluir pela possibilidade concreta de lesão à ampla competitividade que
deve nortear as licitações.
Por outro lado, a Advocacia-Geral da União manifestou-se de forma contrária,
afirmando que não há prejuízo à ampla concorrência e ao princípio da isonomia na
questão da Pré-qualificação, conforme trecho extraído nas contra-razões:
Observe-se, portanto, não haver prejuízo à ampla concorrência, pois a préqualificação destina-se, tão somente, a identificar os candidatos que reúnem
as condições mínimas de habilitação. Tal verificação também ocorre no
procedimento regular de licitação, disciplinado na Lei nº 8.666/93, só que
em momento posterior, realizado no próprio procedimento licitatório.
Na verdade, embora haja inovações no novo regime instaurado pela Lei nº
12.462/11, a pré-qualificação guarda semelhanças com o que estabelece a
Lei nº 8.666/93.
No mesmo sentido da AGU, Justen Filho (2011, p. 05) acredita não ser vício
constitucional a respectiva questão, já que “A pré-qualificação é um mecanismo útil
para tornar o procedimento licitatório mais expedito e rápido, além de ampliar a
segurança contratual da Administração Pública”.
354
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.2.6 O Princípio da Publicidade e a Questão do Orçamento Estimado
Em relação ao princípio da publicidade, alega-se, na ADIN 4645 que há
alguns dispositivos da Lei do RDC que supostamente afetam o princípio da
publicidade.
As críticas e alegações são em relação ao art. 15, § 2º179 da Lei, pois este
dispositivo dispensa a publicação em diário oficial em licitações que não ultrapassem
o valor de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais). Nesses casos, só ocorre a
publicidade eletrônica, e essa disposição da Lei em questão fere o artigo 37,
caput180, da Constituição Federal, principalmente, os princípios da moralidade e da
publicidade.
Alegam, ainda, que publicações impressas servem para dar maior segurança
para consultas futuras. Sendo assim, a ausência de publicações impressas reduz a
possibilidade de eficácia de controle social, automaticamente enfraquecendo o
princípio da moralidade. A publicidade é regra, e não exceção, devendo sempre ser
concretizada, na maior amplitude possível. Nessa linha, importante destacar trecho
extraído da inicial da ação:
Tal dispensa de publicação não se coaduna com a norma do caput do art.
37 da Constituição Federal, mormente os princípios constitucionais da
publicidade e moralidade.[...]
De acordo com o que prevê o art.15 da Lei 12.462 de 2011, seriam dois os
meios que se voltam a tal finalidade: (1) a publicação em diário oficial e (2) a
divulgação em sítio virtual oficial. Um e outro não concorrem,
complementam-se. Se de um lado, os meios eletrônicos mostram-se mais
ágeis e, em alguns casos, mais econômicos para o Poder Público; as
publicações impressas ainda são estáveis e oferecem um registro mais
seguro para a posteridade.[...]
O princípio da publicidade como os demais princípios constitucionais, deve
ser cumprido na maior medida possível, conferindo-se aos atos da
Administração Pública a mais ampla divulgação, por meio dos instrumentos
de que dispõe o gestor público.
179
Art. 15. Será dada ampla publicidade aos procedimentos licitatórios e de pré-qualificação
disciplinados por esta Lei, ressalvadas as hipóteses de informações cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado, devendo ser adotados os seguintes prazos mínimos para
apresentação de propostas, contados a partir da data de publicação do instrumento convocatório:[...]
§ 2o No caso de licitações cujo valor não ultrapasse R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para
obras ou R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para bens e serviços, inclusive de engenharia, é dispensada
a publicação prevista no inciso I do § 1o deste artigo.
180 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
355
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Requer-se a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 15 da Lei 12.462/11, no
que diz respeito a publicação dos atos pelo Poder Público.
A
AGU novamente afirmou não
haver nenhum
vício
de
natureza
constitucional, alegando que tal dispositivo não fere o princípio da publicidade:
É imperioso consignar, quanto ao tema, não constituir ofensa ao princípio
da publicidade a divulgação dos procedimentos licitatórios apenas em sítio
eletrônico oficial centralizado de divulgação de licitações. Com efeito, a
Constituição Federal determina a obediência ao princípio da publicidade,
mas não estabelece os parâmetros de aplicabilidade de referido preceito.
Assim, não se pode afirmar que a opção administrativa pela publicação em
endereço eletrônico especializado viole tal princípio.
Outro ponto questionado, correlacionado com o princípio da publicidade, é a
constitucionalidade do orçamento estimado.
Para os autores, o artigo 6º, § 3º181 da Lei do RDC é inconstitucional, por
afronta ao artigo 5º, Inciso XXXIII182, da Carta Magna. Esse dispositivo estabelece o
sigilo do orçamento, invertendo a lógica constitucional, segundo a qual, a
publicidade da administração pública é regra, e não exceção, devendo o sigilo do
orçamento ser sempre justificado, em casos de relevante interesse público. Assim,
ressalta-se trecho extraído da ADIN 4645:
O disposto no § 3º estabelece uma presunção de sigilo, invertendo a lógica
constitucional. De acordo com tal disposição, se a informação não constar
do instrumento convocatório presume-se que seja sigilosa. Há nisto uma
inversão da regra constitucional. Na Constituição Federal a publicidade e a
transparência são regra. O sigilo justifica-se apenas em casos excepcionais,
isto é, quando haja risco à segurança nacional ou da sociedade ou quando
se trate de informação que diga respeito à vida privada e a intimidade do
cidadão.
181
Art. 6o_Observado o disposto no § 3o, o orçamento previamente estimado para a contratação será
tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da
divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a
elaboração das propostas. § 3o Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no
caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos
órgãos de controle externo e interno.
182 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXIII - todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
356
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Na mesma linha, de acordo com Rezende (2011, p. 41),
[...] embora a previsão do orçamento sigiloso seja justificada com o
argumento de que ele poderia combater estratégias cartelísticas, é duvidosa
a sua eficácia. Em um mercado cartelizado, bastará aos participantes do
conluio persistir nas práticas atuais, para obterem resultado semelhante aos
verificados atualmente. Se todos oferecerem propostas de preço superiores
ao orçamento sigiloso da Administração, esta findará por negociar melhores
condições com o autor da melhor proposta, valendo-se do disposto no
parágrafo único do art. 26 da Lei, até que o preço por ele oferecido se
equipare ao constante do orçamento.
Por outro lado, para Cardoso (2011, p. 07),
O diferimento da publicidade do orçamento estimado estabelecido pelo art.
6º da Lei 12.462 é válido e compatível com a Constituição.
De um lado, tem-se o princípio da publicidade, que tem como objetivos
precípuos, no caso das licitações públicas, (i) a participação do maior
número de interessados, (ii) a proteção à igualdade entre os licitantes e (iii)
viabilizar o amplo controle da atividade administrativa na licitação e do
contrato dela decorrente. De outro, (a) a busca da maior competição entre
os licitantes, tendo como consequência (b) a redução da possibilidade de
conluio entre eles na participação em licitações e licitações e (c) a obtenção
de propostas mais vantajosas.
Ressalte-se que nenhum dos objetivos buscados com a ampla publicidade é
atingido pela regra do art. 6º, da Lei nº 12.462. Não se pode afirmar que a
não divulgação do orçamento estimado com o edital possa
automaticamente reduzir a participação de eventuais interessados.
Tampouco é válido reputar que haveria a possibilidade de tratamento
desigual entre os licitantes ou redução do controle da atividade da
Administração.
Seguindo a mesma linha de Carsdoso, para Di Pietro (2013, p. 447), a não
divulgação do orçamento estimado antes do procedimento licitatório pode ser
benéfica aos cofres públicos:
A medida – não divulgação do orçamento estimado antes do orçamento do
procedimento da licitação – parece útil, sendo conveniente que se estenda a
todas as modalidades de licitação, porque a sua divulgação influencia os
licitantes na apresentação de suas propostas, podendo resultar em
resultados danosos para a escolha da melhor proposta.
357
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Sobre a economia que o RDC pode vir a gerar aos cofres públicos devido a
não divulgação do orçamento estimado, o DNIT183 economizou cerca de 01 (um)
bilhão de reais aos cofres públicos, na realização de 500 (quinhentas) licitações. De
um montante de cerca de R$ 11.808.027.405,30 (onze bilhões, oitocentos e oito
milhões, quatrocentos e cinco mil e trinta reais) que havia no orçamento estimado
previsto pelo departamento, ao término dos certames as contratações ficaram, no
total, em cerca de R$ 10.828.867.237,00 (dez bilhões, oitocentos e vinte e oito
milhões, oitocentos e sessenta e sete mil e duzentos e trinta e sete reais).
Por conta dos argumentos expostos, enquanto resultados práticos (economia
do DNIT) e parte da doutrina são favoráveis a lógica do orçamento estimado, os
autores pleiteiam a inconstitucionalidade do artigo 6º, § 3º da Lei em questão, vez
que o sigilo dos orçamentos públicos nos processos de licitação pública regidos pela
Lei nº 12.462/11 supostamente afronta o princípio da publicidade.
2.2.7 Do Pedido Cautelar
Na ADIN 4645, a parte autora pleiteou que o STF concedesse medida
cautelar, conforme possibilidade prevista na Lei 9.868/99.
Entretanto, o Ministro Relator, Luiz Fux, determinou o julgamento definitivo,
sem prévia análise de medida liminar, diante da relevância da matéria e de seu
especial significado para a ordem social e a segurança jurídica184.
Dessa forma, destaca-se que nenhuma das duas ações interpostas foram
analisadas até a conclusão do presente trabalho, nem em sede cautelar.
2.2.8 Repercussão dos Efeitos da Decisão
Caso a Lei do RDC seja declarada inconstitucional pelo STF, a lei passará a
não produzir mais efeitos no mundo jurídico, não sendo mais utilizada, devendo o
183
Portal Brasil. Infraestrutura. Dnit economiza quase R$ 1 bi em 500 procedimentos licitatórios.
Disponível em <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/01/dnit-economiza-quase-r-1-bi-em-500procedimentos-licitatorios>. Acesso em 24 mar. 2015.
184 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação que questiona regime de contratações para obras
da
Copa
terá
rito
abreviado.
Disponível
em
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=188346&caixaBusca=N>.
Acesso em 10 mar. 2015.
358
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
agente público realizar todas as licitações com base na Lei nº 8.666/93. Se a
inconstitucionalidade for apenas parcial, só os dispositivos que forem declarados
inconstitucionais deixarão de ser utilizados.
O STF, poderá, ainda, modular os efeitos da decisão, decidindo a partir de
quando está decisão passará a surtir efeito, bem como decidir como ficarão as
situações na qual foi utilizada o RDC. Espera-se que, se declarado inconstitucional
todo o dispositivo, os contratos em vigor continuarão a ter efeitos até o seu termo
final, resguardando a segurança jurídica, não se admitindo a utilização da Lei nº
12.462/11 somente em situações posteriores à sentença.
Há ainda, a possibilidade da Lei do RDC ser revogada, havendo a perda de
objeto da ação direta de inconstitucionalidade, e conseqüentemente, a extinção da
ação sem julgamento do mérito, conforme leciona Moraes (2005, p. 656):
O Supremo Tribunal Federal não admite ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já
se tenha exaurido (por exemplo: medida provisória não convertida em lei)
entendendo, ainda, a prejudicialidade da ação, por perda do objeto, na
hipótese de a lei ou ato normativo impugnados vierem a ser revogados
antes do julgamento final da mesma, pois, conforme entende o Pretório
excelso, a declaração em tese de ato normativo que não mais existe
transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de
situações jurídicas pessoais e concreta.
Outra situação seria a hipótese da Lei do RDC ser declarada constitucional.
Nesse caso, continuará a possuir eficácia no mundo jurídico, até que uma lei
posterior a revogue.
Aguarda-se, agora, a decisão do Supremo em relação a essas ações, para
verificar qual será o futuro das licitações e contratos administrativos no Brasil,
acabando com a ampla discussão doutrinária que gira em torno do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas.
3 CONCLUSÃO
O Legislador editou a Lei 12.462/11 para tentar dar mais celeridade as obras
necessárias à realização de jogos esportivos internacionais no Brasil, pois acreditou
359
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
que a Lei nº 8.666/93 não seria capaz de dar a mesma celeridade e eficiência do
que o novo regime. Posteriormente, a Lei acabou por ter o seu âmbito de aplicação
aumentado, o que não foi objeto do presente trabalho. Parece que, mais do que dar
celeridade a obras de eventos esportivos, o intuito inicial do legislador era o de testar
novos procedimentos diferentes da Lei nº 8.666/93, já pensando numa futura
reforma. A vontade de reformular as Licitações no Brasil fica ainda mais evidente
com o posterior Projeto de Lei nº 559/2013, em trâmite perante o Congresso
Nacional. Caso esse projeto seja convertido em lei, há a previsão de revogação das
Leis 8.666/1993, principal norma aplicável às licitações, e a 10.520/2002, que
instituiu o pregão, bem como dos artigos 1º ao 47 da Lei 12.462/2011, que criou o
Regime Diferenciado de Contratações Públicas.
A inserção do RDC no âmbito jurídico nacional fez com que partidos políticos
da oposição federal e o Procurador-Geral da república propusessem perante o STF
duas ações diretas de inconstitucionalidade, requerendo a inconstitucionalidade
formal e material da Lei.
No que tange à constitucionalidade formal, alega-se não haver urgência e
relevância para a edição da MP que originou a referida Lei, e pelos abusos de
emenda que a MP sofreu até virar Lei. Nesse aspecto, o autor do presente trabalho
concorda com a argumentação bastante razoável da AGU, no sentido de que não há
em que se falar em inconstitucionalidade formal da Lei, já que pressupostos de
urgência e relevância são institutos inerentes e subjetivos ao Presidente da
República, devendo, apenas, ser analisados em casos excepcionais, em que a
ausência dos pressupostos seja evidente.
No que diz respeito as emendas que a MP sofreu até virar Lei, há a dúvida
sobre a (in)constitucionalidade formal da Lei. Não há identidade, similitude ou
afinidade entre o conteúdo original da MP e as matérias nela inseridas. O Congresso
Nacional e o Governo Federal, para não deixar dúvidas quanto a sua
constitucionalidade, deveriam ter editado o RDC através de Projeto de Lei, para
evitar futuros questionamentos através de ADIN. Entretanto, a edição de Leis
através de MP é costume bastante corriqueiro do Congresso Nacional, o que pode
ter como conseqüência declarações inconstitucionais totais de leis, conforme
pleiteia-se nas ADIN 4645 e 4655.
360
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
No que diz respeito às inconstitucionalidades materiais alegadas, o autor do
presente trabalho acredita ser mais plausível, em todos os sentidos, os argumentos
levantados das contrarrazões da AGU. Parece que a sua aplicação pode vir a ser
benéfica e eficiente às licitações, já que, entre outros dispositivos, o RDC [i] possui o
intuito acabar com a burocracia e morosidade trazida pela Lei nº 8.666/93, [ii] pode
reduzir os custos das propostas ofertadas devido ao sigilo temporário do orçamento
estimado, [iii] pode ser eficiente ao instituir o procedimento de contratação integrada,
já que transfere ao particular a responsabilidade de elaboração do projeto básico (o
que normalmente já é feito, só que por terceiros), e consequentemente, reduz
chances para termos aditivos, habitualmente utilizados pela Administração Pública.
Por óbvio que, para que o RDC seja eficaz e consiga atingir as metas e os objetivos
desejados, sua aplicação deve ser precedida da boa-fé e da moralidade, que devem
ser inerentes do agente público. Nem a aplicação da Lei 8.666/93, nem a aplicação
da Lei 12.462/11, ou qualquer outra lei que venha a vigorar em nosso ordenamento
jurídico consegue impedir que agentes e administradores públicos se corrompam ou
hajam de má fé.
O fato é que, de um lado, a doutrina mais liberal defende que não há nenhum
vício na lei, tanto formal, quanto material, devido à suposta eficiência que o RDC
pode vir a trazer para as contratações públicas no Brasil. Em contra-ponto, a
doutrina mais conservadora alega que pode haver alguns vícios no novo regime,
principalmente de natureza material.
Espera-se, agora, [i] saber se o Projeto de Lei nº 559/2013 será aprovado no
Congresso
Nacional,
e
[ii]
a
decisão
da
Suprema
Corte,
quanto
a
Constitucionalidade ou a Inconstitucionalidade da Lei ora impugnada, para ver se
esse instituto continuará sendo aplicado no âmbito das Licitações Brasileiras.
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363
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364
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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O ABUSO DE DIREITO NAS RELAÇÕES DE HIPOSSUFICIÊNCIA E SEU
IMPACTO NA MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO
ABUSE OF THE RIGHT TO VULNERABLE AND ITS RELATION WITH THE SLOW
JUDICIAL POWER
Marcela Batista Fernandes185
Alaisis Lopes Ferreira186
SUMÁRIO
Resumo. 1 Introdução. 2 Abuso de Direito. 2.1 Da Titularidade do Direito. 2.2 Do Exercício Regular
do Direito. 2.3 Do Rompimento dos Limites Impostos. 2.4 Da Violação do Direito Alheio. 2.5 Elemento
Subjetivo da Conduta. Nexo de Causalidade. 3 Considerações Finais. Referências
RESUMO
O presente trabalho objetiva relacionar o aumento progressivo do número de demandas judiciais,
principalmente aquelas ajuizadas por hipossuficientes, o trabalhador e o consumidor por excelência, e
como a forma de interpretação da legislação vigente dá margem ao ajuizamento de demandas
indevidas, para tanto, analisa-se as normas protetivas do Direito do Consumidor e do Direito
Trabalhista. Em razão da atualidade do tema, não há doutrinas publicadas que analisem
especificamente a discussão proposta, razão pela qual a principal fonte de pesquisa é a
jurisprudência. Pelo contexto histórico em que ambas as legislações foram criadas foi necessária a
rigidez das normas a fim de tentar inibir as condutas abusivas por parte das empresas empregadoras
e fornecedoras. As modificações das relações de emprego e consumeristas, atualmente,
fundamentam ações indevidas, aquelas em que a condição de hipossuficiência tem sido invocada por
quem não o é e utilizada para obtenção de proveito econômico ilícito. Demonstra-se neste artigo uma
das razões pela qual existem demandas excessivas tramitando no Judiciário: o abuso de direito por
parte do autor, em especial aqueles protegidos sob conceito da hipossuficiência processual. A
problemática em foco é pertinente haja vista a sobrecarga do Judiciário ser um problema atual e
preocupante, pois recentes relatórios apontam um crescimento de 3,4% no número de ações
judiciais, e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta estimativa de que em 2020 devemos chegar
a um patamar de 114 milhões de ações em tramitação, sendo aqui estudada uma de suas causas e
uma possível solução.
Palavras chave: Hipossuficiência, abuso de direito, litigância de má-fé, justiça gratuita, morosidade.
185
Acadêmica de Direito do Unicuritiba. [email protected]
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1984. Especialista em Metodologia
do Ensino Superior. Professora no curso de Graduação da Faculdade de Direito de Curitiba desde
1986. Ao longo do magistério já lecionou as disciplinas de Direito Civil (Parte Geral de Contratos,
Contratos em Espécie, Teoria da Relação Jurídica I e II), Direito do Trabalho, Direito Processual do
Trabalho (Execução) e Direito Sindical. Atua na área trabalhista.
186
365
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
The present study aims to relate the progressive increase in the number of lawsuits, especially those
filed by workers and consumers, who are characterized by the figure of hiposuficiency, and how the
interpretation of the current legislation enables the filing of undue lawsuits. Therefore, the protective
norms of Labor Law and Consumer Law are analyzed. There is no published doctrine that specifically
analyzes the proposed discussion due to the novelty of the topic, reason why the main research
source is the jurisprudence. By the historical context in which both legislations were created, the
strictness of the norms was necessary in order to inhibit abusive conduct committed by the
companies, whether as employers or suppliers.Taking into account the modifications that have taken
place in the consumption relation and in the employment relationship, the law protection justify the
undue lawsuits, in other words, those litigations used to obtain illicit economic advantage, once the
hiposuficiency has been invoked for those who do not possess such attribute. It is demonstrated in
this article one the reasons why there is an excessive amount of litigations in the judiciary: the abuse
of rights by the applicant, especially the one protected under the concept of hiposuficiency. The issue
in focus is relevant considering that the overload of cases in the judiciary is a current and worrying
situation. Recent studies reveal an increase of 3,4% in the number of litigations and the CNJ (National
Justice Council) estimates that in 2020 the number of lawsuits will achieve 114 million. This study
analyzes one of its causes and a possible solution.
Keywords: hiposuficiency, abuse of right, free legal assistance, bad faith.
1 INTRODUÇÃO
Inicialmente é necessário se perceber que, na época da Revolução Industrial,
houve uma grande alteração do sistema econômico, qual seja, com o fortalecimento
da burguesia, qualquer um, com capital suficiente, poderia ter um investimento
comercial.
Obviamente, aqueles com melhor poderio econômico acabaram tendo o
monopólio do mercado, fazendo com que se estabelecesse uma relação de trabalho:
quem não tinha condições de competir no mercado acaba se tornando empregado
do detentor dos meios de produção.
Em troca da mão de obra, era pago um salário, negociado ao piso mais baixo,
haja vista a obtenção do maior lucro possível, o que culminou numa relação abusiva,
quase que equiparada à escravidão.
Nesse modelo econômico, o Estado deveria preocupar-se apenas com a
proteção, com a segurança, principalmente no que tange a ameaças externas e
invasões.
Alheio aos conflitos, cada vez mais patentes, o Estado demorou a intervir nas
relações trabalhistas quando então a aplicação das regras do capitalismo puro,
366
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
tornaram mais claras as atrocidades comumente cometidas. Com o agravamento da
situação, o Estado se viu obrigado a intervir de maneira a minimizar perdas e
permitir o convívio de ambas as classes de forma mais equilibrada e harmônica.
Nasce assim o Direito do Trabalho, que veio a regular as relações do empregador e
empregado.
No Brasil, em 1943, a Consolidação das Leis Trabalhistas reuniu a legislação
até então esparsas, passando a funcionar como um verdadeiro Código do Trabalho.
A Constituição de 1988, no mesmo sentido, em seu artigo 7º, declarou a redução da
carga horária de 48h semanais, majorou o valor das férias em 1/3 do salário base,
estabeleceu o alargamento da licença maternidade para 120 dias, determinou que a
idade mínima para trabalho fosse de 14 anos, na condição de aprendiz, reconheceu
os direitos das domésticas, e determinou o dever do empregador ao pagamento do
13º salário.
Assim, o Estado passou a legislar para reparar o desequilíbrio fático entre
trabalhador e empregador, garantindo que os mínimos direitos existenciais,
baseados na dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, da nossa Carta
Magna, fossem respeitados.
No âmbito do Direito do Consumidor, com o advento da Revolução Industrial,
foi necessária a existência de um público consumidor para absorção dos produtos
industrializados. Ocorreu que, ante a completa omissão legislativa não havia
nenhum tipo de regulação quanto à informação sobre o produto oferecido, o que
fazia com que o consumidor ficasse unicamente dependente da confiança
depositada no fornecedor sobre a qualidade do que consumia.
O abuso dessa relação, que deveria ser de confiança, porém corrompida em
razão dos vorazes princípios do início do capitalismo, pois o fornecedor visava tão
somente o lucro do seu empreendimento, não havendo qualquer tipo de
preocupação com a segurança do consumidor, exigiu uma intervenção estatal para
que houvesse a imputação de limites e regras a serem obedecidos.
A Constituição de 1988 incorporou o Direito do Consumidor, tratando-o como
um direito fundamental e determinando a observância a princípios como o da
transparência nas relações consumeristas. Em 1990, entra em vigor o Código de
Defesa do Consumidor, que trouxe a consolidação dos direitos consumeristas,
367
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
reconhecendo-os como hipossuficientes, traduzidos nos princípios essenciais da
boa-fé, transparência e informação.
Essas relações se modificaram no decorrer dos anos, contudo, quando foram
criados novos mecanismos de controle, o que torna a legislação atual
exacerbadamente rígida.
O fato é que não mais vivemos naquela sociedade dividida onde, de um
lado tem-se o grande empresário, detentor do capital, e do outro o “Zé
ninguém”, pouco esclarecido, sem formação e desprovido de renda. Nossa
sociedade expressa a ascensão da classe média, onde as diferenças
sociais estão cada vez mais atenuadas. Presenciamos a multiplicação das
micro e pequenas empresas, cujo capital é menor, a mão-de-obra é menor,
no entanto, o trabalho e as dívidas são quase que equivalentes às
empresas de grande porte.187
No Direito do Trabalho, o controle de jornada atualmente pode ser
demonstrado com a juntada de e-mails trocados fora do expediente, através de atas
notariais que demonstrem chamadas telefônicas, mensagens e mais recentemente
até pelo WhatsApp, o que, automaticamente imputa ao empregador um cuidado
maior, que acaba por, em regra, inibir esse comportamento ou a adequá-lo,
principalmente para evitar seu prejuízo em passivos de demandas judiciais.
O Direito Consumerista não ficou atrás, no século XX, foram criados, no
Brasil, os PROCON’s (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), órgãos
administrativos que visam o atendimento das demandas consumeristas quando da
ocorrência de impasses entre o prestador dos serviços e a parte hipossuficiente. Foi
facultado ainda a esses órgãos administrativos a aplicação de multas quando
constatadas de ações lesivas ao consumidor, quer seja fática, técnica ou sobre a
transparência nas informações, o que também funciona como mecanismo de
controle e repressão de práticas abusivas, anteriormente praticadas pelos
fornecedores.
Tem-se assim que o cenário atual não é o mesmo de quando as respectivas
legislações foram criadas, sendo que com base nessa constatação fática, a norma
187
LIMA, Juliana Correia da Silva; A hipossuficiência fictícia do trabalhador como instrumento para
obtenção de proveito econômico. Jus Navengandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22962/ahipossuficiencia-ficticia-do-trabalhador-como-instrumento-para-obtencao-de-proveito-economico>.
Acesso em 25.fev.2015.
368
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
deve se amoldar ao contexto atual, sob pena de acabar por inverter o desequilíbrio,
bem como o objetivo da própria norma.
Isso porque, a legislação trabalhista e consumerista são normas de direito
público, visam um bem coletivo: a harmonia nas relações econômicas como forma
de garantia do desenvolvimento nacional; por essa razão, ambas não se prestam à
proteção de direitos personalíssimos ou à proteção deste ou daquele indivíduo, mas
a um grupo.
A existência da norma significa que direta ou indiretamente o Estado precisa
do bom desenvolvimento desta relação para o atingimento dos seus fins,
principalmente no que tange ao desenvolvimento nacional, previsto no artigo 3º, da
Constituição Federal, em seu inciso II.
Verifica-se, portanto, que, antes de ser a proteção de um direito individual, as
legislações trabalhistas e consumeristas são protetivas ao Direito Econômico, um
conjunto de regras que visam a promoção do desenvolvimento nacional.
2 ABUSO DE DIREITO
Visto qual a intenção do legislador quando da criação das legislações
protetivas do consumidor e do trabalhador, a estrutura das leis, o contexto o qual
foram criadas, bem como a alteração da relação protegida no curso do tempo,
verificar-se-á um dos maiores impactos da manutenção do perfil ultrapassado de
determinadas normas ainda vigentes sem a devida análise e adequação à
atualidade: o abuso do direito.
De acordo Paulo Nader (NADER, 2004, p. 554-556), o abuso de direito pode
ser classificado quanto:
a) Titularidade do Direito. O agente responsável civilmente há de estar
investido da titularidade de um direito subjetivo, ao exercitá-lo, por si ou por
intermédio dos seus subordinados.
b) Exercício Irregular do Direito. O titular do direito vai além do
necessário na utilização do que o seu direito.
c) Rompimento dos limites impostos. O titular do direito subjetivo
ultrapasse os limites ditados pelos fins econômicos ou sociais.
d) Violação do direito alheio. É necessária a violação ao direito alheio
para que o prejudicado possa se valer das medidas judiciais.
e) Elemento subjetivo da conduta. Dentre os elementos do ato ilícito tem-se
a culpa como requisito da conduta. Todavia, no caso ato abuso de direito, o
legislador não colocou de forma expressa a ideia de culpa, a qual poderia
369
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
estar subentendida. Todavia, é dispensável tal elemento como requisito
necessário para caracterizar o abuso de direito.
f) Nexo de Causalidade: É o liame entre a lesão causada e a conduta do
agente. (Grifos nossos)
Para melhor compreensão de cada uma das características verificaremos alguns
exemplos práticos.
2.1 DA TITULARIDADE DO DIREITO
Nosso ordenamento estabeleceu como uma das condições a legitimidade das
partes, o que significa que para pleitear a reparação de um direito deve ser o sujeito
lesionado ou o representante deste, nos termos determinados pela lei.
Em recente julgado, o magistrado reconheceu a ilegitimidade ativa, bem como a
possibilidade de, no caso concreto, existir abuso de direito, intimando-se o Ministério
Público para apuração dos fatos.
“Vistos etc...
Trata-se de ação de revisão de contrato c/c repetição de indébito e pedido
de Antecipação de Tutela proposta por Associação Nacional dos Servidores
Públicos em face de Banco Rural S.A e outros.
Pois bem.
Tenho que, primeiramente, se faz necessário fixar a natureza dos interesses
em disputa. Isso porque a natureza dos direitos em disputa é prejudicial ao
conhecimento, ou não, do mérito do presente caso.
Explico. A depender as espécies de direitos, estabelece-se a forma de tutela
destes em juízo, fixando-se se a legitimação ativa é de natureza ordinária
ou extraordinária.
Veja-se que a legitimação extraordinária é vedada, via de regra, pelo CPC,
salvo nos casos em que há expressa previsão legal: “artigo 6 Ninguém
poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado
por lei.
Todavia, consolidou-se a doutrina de que o Código de Defesa do
Consumidor deve ser lido conjuntamente com outros dispositivos legais que
abordem o assunto – tutela coletiva de direitos, dentre eles a Lei 7.347/85,
que disciplina a Ação Civil Pública.
É inconteste que os direitos versados na inicial não possuem natureza
coletiva ou difusa. Observe-se que tais direitos têm por característica
elementar a indissociabilidade subjetiva, ou seja, não poderiam ser
separados para ser tutelados individualmente, por dizerem respeito, estes, à
titularidade coletiva em razão de situação de fato (o exemplo clássico é o
direito a um meio ambiente clássico), ou, aqueles, à titularidade coletiva em
razão de um elo jurídico (a exemplo de ações que versem sobre direitos de
uma classe de trabalhadores como um todo).
No máximo, portanto, poderiam tais direitos caracterizar-se como individuais
homogêneos. Mas não o são. (...).
370
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Ora, não se tratando de ação coletiva lato sensu, não se pode tratar no caso
concreto de substituição processual, mas de mera representação, exigindose autorização expressa dos associados. Tal autorização, não obstante, não
consta nos autos. (...)
Impera, então, reconhecer a ilegitimidade ativa ad causam no processo,
conforme reconheceu o Superior Tribunal de Justiça.
No mais, a título de obter dictum, a demanda trazida a este juízo parece
amoldar-se em uma prática que vem sendo utilizada por determinados
servidores públicos com residências em outros Estados da Federação,
que se traduz em verdadeira e manifesta tentativa de fraude tanto aos
credores de tais verbas, quanto em uma afronta à autoridade e à função
precípua do Poder Judiciário, que é, a fim e a cabo, a pacificação social.
Trata-se de uma indústria que vive de liminares concedidas em ações
de consignação em pagamento, com o intuito de liberar a margem
consignável dos devedores, os quais, sem qualquer pudor, correm
para a obtenção de novos empréstimos fraudando os credores antigos
e ludibriando os novos.
Tal circunstância chamou a atenção do Conselho Nacional de Justiça, que,
segundo noticiou-se, iniciaria uma investigação à fraude. ”
Colaciono links para acesso de notícias que melhor explicam o sistema de
fraude que vem se perpetrando e, pior, contando, até o momento, com a
chancela do Judiciário:
-http://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/100533927/cnj-vai-investigarfraudeno-consignado
-http://www.creditsolutions.com.br/carregaArquivo.html?idArquivo=192
-http://www.conjur.com.br/2013-mar-26/esquema-usa-liminaresburlarconsignado-causa-prejuizo-bancos
Assim, julgo EXTINTO o feito, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, na forma
do Artigo 267, VI do CPC.” (Grifos nossos)188
A decisão trata de ingresso de ação revisional, ajuizada por sindicatos que
pleiteavam a concessão de medida liminar para suspensão do pagamento de
empréstimos, sendo que a liminar era usada de modo a possibilitar que o
representado obtivesse novos financiamentos.
Deve-se ainda esclarecer que os empréstimos de que trata o julgado é
consignado, ou seja, aquele cujo descontos das parcelas avençadas são feitos
diretamente em folha de pagamento do contratante, sendo que, para a realização
dos descontos, deve ser averbado o valor da parcela na margem consignável.
188
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (1ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho).
Trata-se de Ação de Revisão de Contrato cumulada com Repetição de Indébito e Pedido de
Antecipação de Tutela proposta por Associação Nacional dos Servidores Público em face Banco
Rural S.A e outros Bancos. Sentença proferida nos autos nº 0602168-13.2015.8.04.0001.
Requerente: Associação Nacional dos Servidores Públicos. Requerido: Banco Rural e outros. Juiz de
Direito: Roberto Santos Taketomi. 24 de fevereiros de 2015. Publicação no Diário de Justiça do
Estado do Amazonas. Relação :0015/2015 disponibilizados em 23/02/2015, diário número 1.630.
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371
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A título de breve esclarecimento, a margem consignável consiste no valor
possível de ser descontado em folha de pagamento e se divide em descontos
obrigatórios (imposto de renda e pensão alimentícia) e facultativos (empréstimos). O
limite consignável é disciplinado por lei própria aplicável a cada categoria e deve ser
observado pelos órgãos empregadores ao autorizar a consignação de um novo
empréstimo. Chegando ao limite mencionado o órgão empregador recusa a
averbação de um novo contrato, impedindo o empregado/consumidor de realizar
novos empréstimos.
A saída encontrada foi o ajuizamento de demandas de ações revisionais que
pleiteavam
liminarmente
a
desaverbação
da
margem
consignável
dos
consumidores, o que lhes possibilitava a realização de um novo contrato, com outra
instituição bancária.
A problemática exposta pelo juiz que proferiu a sentença citada é que, muitas
vezes, a demanda era julgada improcedente e o antigo credor jamais conseguia
retomar a cobranças das parcelas, pois a reserva da margem que lhe pertencia já
estava destinada ao pagamento de um novo contrato, com outro credor, o que
caracteriza a fraude contra credores mencionada na decisão acima.
Quanto à titularidade de direito, é sabido que os sindicatos possuem
legitimidade para propor demandas pleiteando direitos coletivos em nome alheio. O
que ocorreu no julgado relatado é que o sindicato ingressou com diversas
demandas, cada qual com diversos representados no polo ativo, pleiteou o
deferimento da medida liminar para determinação da suspensão do pagamento dos
empréstimos consignados contra vários bancos, bem como a liberação das margens
consignáveis, e sequer juntou aos autos documentos de autorização da
representação. Ou seja, o sindicato ingressou com as ações pleiteando direito em
nome alheio e não acostou aos autos as procurações dos representados
autorizando o ingresso das ações, o que vicia a representação, como bem observou
o juiz prolator da decisão acima.
372
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.2 DO EXERCÍCIO IRREGULAR DO DIREITO
Nosso ordenamento jurídico tem por finalidade a proteção de um direito,
sendo que, o sujeito que tenha qualquer um dos seus direitos violados tem direito à
reparação.
Assim, o exercício regular de um direito refere-se à conduta das partes,
pessoas físicas e pessoas jurídicas, que têm o dever de cumprimento da lei,
conforme determinado no artigo 5º, da Constituição Federal, em seu inciso II, o qual
determina que a previsão legal vincula um determinado comportamento das partes.
O exercício regular de um direito é, portanto, a ação nos limites da lei,
enquanto que o abuso de direito, noutro ponto, é uma ação que viole ou ultrapasse
os limites autorizados.
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PAGAMENTOS REALIZADOS
COM PELO MENOS 30 DIAS DE ATRASO. COBRANÇA REALIZADA DE
FORMA DEVIDA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO NÃO VERIFICADO.
EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DO CREDOR. DANOS MORAIS
INEXISTENTES. MANTIDA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO
DESPROVIDO.189
RECURSO INOMINADO. REPARAÇÃO DE DANOS. ALEGAÇÃO DE
COBRANÇA VEXATÓRIA EM LOCAL DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DA PRÁTICA DE CONDUTA HÁBIL A ENSEJAR O
PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXERCÍCIO
REGULAR DE DIREITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.
1. O autor postulou o pagamento de indenização por danos morais, em
razão de alegadamente ter sofrido cobranças vexatórias em seu local de
trabalho, através de e-mail profissional e ligações.
2. Nesse sentido, necessária a comprovação de que o autor tenha sido
submetido a situação vexatória capaz de atingir de pronto sua higidez
psíquica. A situação descrita na inicial não pode ser enquadrada como
passível de ser reparada por dano moral puro. O autor não produziu prova
de que tenha ocorrido situação excepcional a ensejar um juízo de
convencimento para acolhimento de seu pedido nesse ponto, ônus que lhe
incumbia por força do artigo 333, I, do CPC3. Assim, ausente comprovação
acerca da conduta ilícita da ré ou de situação vexatória, levando em conta
também o princípio da imediatidade, pelo qual se prestigia a impressão
obtida pelo Juiz que atuou diretamente na instrução do feito, tenho que não
189
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (4ª Turma Recursal). Recurso inominado. Ação
de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais. Pagamentos realizados com pelo menos 30
dias de atraso. Cobrança realizada de forma devida. Alegação de excesso não verificado. Exercício
regular do direito do credor. Danos morais inexistentes. Mantida sentença de improcedência. Recurso
desprovido. Recurso Inominado nº: 0023502-50.2015.8.21.9000. Recorrente: Valdir Dutra Da Silva.
Recorrido: BANCO BRADESCO FINANCIAMENTOS S/A. Relator: Gisele Anne Vieira de Azambuja.
26 de junho de 2015. JusBrasil: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/204205238/recurso-civel71005524004-rs/inteiro-teor-204205250>. Acesso em 20.ago.2015
373
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
merece reforma a sentença que julgou improcedente o pedido. RECURSO
DESPROVIDO.190
Necessário ainda se frisar que o dano deve ser comprovado para que se
possa falar em abuso de direito. O magistrado analisando os autos, as provas
produzidas, bem como na própria audiência, quando tem contato com as partes,
deve analisar o caso concreto observando e regulando a conduta de cada uma das
partes de modo que haja observância à boa-fé e lealdade processual.
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS
E
MATERIAIS.
PRESCRIÇÃO.
INOCORRÊNCIA.
COBRANÇA
VEXATÓRIA EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL. COMPROVADA
AGRESSÃO VERBAL. ABUSO DE DIREITO NA COBRANÇA DE DÍVIDA.
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. decidem os Juízes Integrantes
da 1ª Turma Recursal Juizados Especiais do Estado do Paraná, conhecer
do recurso, e no mérito, negar-lhe provimento, nos exatos termos do voto.
(Grifos nossos).191
DANO MORAL. DIVULGAÇÃO DESNECESSÁRIA E ABUSIVA DE FATOS
DESABONADORES.
EXERCÍCIO
IRREGULAR
DE
DIREITO.
REPARAÇÃO MORAL. É devida a reparação moral se o empregador que
divulga de forma desnecessária e abusiva os fatos desabonadores
imputados ao empregado, sejam ou não verdadeiros. (Grifos nossos)192
190
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (3ª Turma Recursal). Recurso
Inominado. Reparação de danos. Alegação De Cobrança Vexatória em local de trabalho. Ausência de
demonstração da prática de conduta hábil a ensejar o pagamento de indenização por danos morais.
Exercício regular de direito. Sentença de improcedência mantida. Recurso Inominado nº: 005024971.2014.8.21.9000.Recorrente: Luis Humberto Cerezoli. Recorrido: LOJAS RENNER S/A. Relator:
Roberto
Arriada
Lorea.
26
de
março
de
2015.
JusBrasil:
<http://tjrs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/177480367/recurso-civel-71005267380-rs/inteiro-teor-177480387>.
Acesso em 25.abr.2015
191 BRASIL, Tribunal de Justiça do Paraná. Recurso inominado. Indenizatória. Abuso do direito de
cobrança não comprovado. Ônus que compete ao autor. Danos morais indevidos. Sentença de
improcedência mantida por seus próprios Fundamentos. Recurso desprovido. Recurso Inominado nº:
0037814-32.2013.8.16.0014/0. Recorrente: Tatiana Cristina Alves Ribeiro. Recorrido: BANCO
ITAUCARD S.A. Relator: Renata Ribeiro Bau. 20 de setembro de 2014. JusBrasil:
<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=ABUSO+DO+DIREITO+DE+COBRAN%C3%87
A>. Acesso em 06.set.2015
192 BRASIL. Tribunal Regional Do Trabalho (1ª Turma Recursal).
Dano moral. Divulgação
desnecessária e abusiva de fatos desabonadores. Exercício irregular de direito. Reparação moral. É
devida a reparação moral se o empregador que divulga de forma desnecessária e abusiva os fatos
desabonadores imputados ao empregado, sejam ou não verdadeiros. Recurso Inominado nº: 011182010-011-18-00-0. Recorrente: Vinícius Barbosa Costa. Recorrido: Centro De Apoio Aos Pequenos.
Relator: Mário Sérgio Bottazzo. 14 de outubro de 2010. JusBrasil: <http://trt18.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18970547/1118201001118000-go-01118-2010-011-18-00-0/inteiroteor-104219222.>.Acesso em 15.jun.2015
374
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Temos assim que o exercício regular de um direito se vincula essencialmente
com o princípio da boa-fé, haja vista que ocorre quando há ruptura dos limites da
ação de umas das partes para além do esperado ou permitido. Em contrapartida, o
abuso de direito é a conduta que se vincula à quebra desse princípio, consistindo
nas hipóteses em que o titular do direito, em que pese não o tenha violado, busca
reparação judicialmente.
Em se tratando de relações com partes hipossuficientes, em razão a aplicação
do instituto da inversão do ônus da prova, indiscriminadamente, essa prática é
facilitada.
2.3 DO ROMPIMENTO DOS LIMITES IMPOSTOS
Os limites legais neste ponto versam sobre a correta e adequada medida
entre o caso e a reparação necessária.
APELAÇÃO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS RESPONSABILIDADE
CIVIL
CARACTERIZADANEGATIVAÇÃO
INDEVIDA - DANO MORAL PRESUMÍVEL - INDENIZAÇÃO DEVIDA MINORAÇÃO DO QUANTUM. - A fixação da indenização por danos morais
pauta-se pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. A finalidade da indenização é a de compensar o
ofendido pelo constrangimento indevido que lhe foi imposto e, por
outro lado, desestimular o ofensor a, no futuro, praticar atos
semelhantes, não se podendo prestar, entretanto, para o
enriquecimento desproporcional daquele. Nesse sentido haveria abuso
de direto sempre quando a parte autora de uma demanda pleiteasse em
juízo um valor exorbitante ou desproporcional à lesão. (Grifos nossos)193
Podemos citar aqui a banalização do dano moral, um pedido crescente e
preocupante ao Poder Judiciário, como já manifestado pelos Tribunais Superiores.
Nesta esteira, tomemos como exemplo o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, que realizou pesquisa com o objetivo de demonstrar o aumento do número
193
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (18ª Câmara Cível). Apelação - ação de indenização
por danos morais - responsabilidade civil caracterizada- negativação indevida - dano moral
presumível - indenização devida - minoração do quantum. Apelação Cível nº 021553348.2011.8.13.0145. Apelante: CASAS BAHIA COMERCIAL LTDA e outros. Apelado: Edilza Luna De
Oliveira. Relator: Corrêa Camargo. 09 de abril de 2013. JusBrasil: <http://tjmg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/114869761/apelacao-civel-ac-10145110215533001-mg/inteiroteor-114869807>. Acesso em 04.mai.2015
375
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
de demandas dessa natureza no estado, alertando os operadores do direito para o
devido cuidado que tais demandas exigem:
194
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu nota referente à
elevação do número de demandas buscando indenização por dano moral:
A dificuldade em estabelecer com exatidão a equivalência entre o dano e o
ressarcimento se reflete na quantidade de processos que chegam ao STJ
para debater o tema. Em 2008, foram 11.369 processos que, de alguma
forma, debatiam dano moral. O número é crescente desde a década de
1990 e, nos últimos 10 anos, somaram-se 67 mil processos só no Tribunal
Superior.
O ministro Luis Felipe Salomão, integrante da 4ª Turma e da 2ª Seção do
STJ, é defensor de uma reforma legal em relação ao sistema recursal, para
que, nas causas em que a condenação não ultrapasse 40 salários mínimos
— por analogia, a alçada dos Juizados Especiais —, o recurso ao STJ seja
barrado. “A lei processual deveria vedar expressamente os recursos ao
STJ. Permiti-los é uma distorção em desprestígio aos tribunais locais”,
critica o ministro. 195
Sendo assim, notória a necessidade de cautela quanto aos pedidos desta
natureza, para que não venha a ser deturpada a função social que representa a
responsabilidade civil por danos morais, tornando-se um comércio de indenizações,
gerando assim enriquecimento sem justa causa.
194
MACHADO, R. D. A banalização do instituto do dano moral. 2011. p. 50. Monografia
(Bacharelado em Direito). Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba. Disponível em: <
http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2012/04/a-banalizacao-do-instituto-do-dano-moral.pdf>.
Acesso em 31.ago.2015.
195 STJ define valor de indenizações por danos morais. Revista Consultor Jurídico. 5 de setembro
de 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-set-15/stj-estipula-parametros-indenizacoesdanos-morais>. Acesso em 07.set.2015.
376
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.4 DA VIOLAÇÃO DO DIREITO ALHEIO
Conforme dito, para que haja direito de reparação deve haver primeiramente
violação do direito protegido. O ingresso de uma demanda sem a existência de um
direito violado implica, necessariamente, na tentativa de obtenção de vantagem
econômica indevida.
EMBARGOS
INFRINGENTES
–– EMBARGADOS
QUE
TINHAM
AUTORIZAÇÃO
DO MINISTÉRIO
DE
MINAS
E
ENERGIA
PARA PESQUISA DAS ÁGUAS – MATRÍCULA E ESCRITURA PÚBLICA
DE
COMPRA
E
VENDA QUE
RESSALVARAM
O
DIREITO
DOS EMBARGADOS DE EXPLORAÇÃO DAS FONTES DE ÁGUA – DANO
MORAL – ABUSO DO DIREITO DE PETIÇÃO – CONFIGURADO –
EMBARGANTE QUE UTILIZOU DE MEIOS JUDICIAIS PARA OBSTRUIR
O
DIREITO
DOS EMBARGADOS
–
QUANTUM
INDENIZATÓRIOADEQUADO AO CASO EM EXAME - VOTO VENCEDOR
MANTIDO – DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES.
Compulsando os autos e lendo atentamente o voto majoritário, verifica-se
que não houve apenas o exercício do direito de petição, restando
caracterizado seu abuso. Há provas suficientes nos autos para verificar a
existência de direito dos embargados a exploração exclusiva da fonte em
questão. Em momento nenhum tal direito pode ser contestado ou afastado,
uma vez que tanto a matrícula do imóvel quanto o contrato entabulado entre
as partes reconhecem o direito em questão.196
SINDICATO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD
CAUSAM. INTERESSE INDIVIDUAL HOMOGÊNEO. RECLAMAÇÃO
PROPOSTA EM NOME DE UM TRABALHADOR. POSSIBILIDADE.
LITISPENDÊNCIA. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO. RECURSO DE
REVISTA DESFUNDAMENTADO. SÚMULA De número 422 DO TST. O
Tribunal Regional entendeu que o sindicato não tem legitimidade ativa para
propor ação na defesa de interesses não passíveis de tratamento coletivo
de apenas um substituído e também não pode pleitear parcelas já cobradas
em favor do reclamante em outros processos. Verifica-se, entretanto, que o
Sindicato não atacou o entendimento decisivo do Regional de que se trata
de repropositura de ação, com o simples aproveitamento das peças
processuais anteriormente apresentadas, configurando abuso do direito de
ação. Assim, a ausência de impugnação desse aspecto no recurso de
revista atrai a aplicação da Súmula de número 422 do TST . Recurso de
revista não conhecido.197
196
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (8ª Câmara Cível). Embargados que tinham
autorização do ministério de minas e energia para pesquisa das águas – matrícula e escritura pública
de compra e venda que ressalvaram o direito dos embargados de exploração das fontes de água –
dano moral – abuso do direito de petição – configurado – embargante que utilizou de meios judiciais
para obstruir o direito dos embargados – quantum indenizatório adequado ao caso em exame - voto
vencedor mantido – desprovimento dos embargos infringentes. Embargos Infringentes nº 5063458/03. Embargante: TRACTEBEL ENERGIA S.A. Embargado: José Canestraro E Outro. Relator:
Desembargador João Domingos Küster Puppi. 11 de novembro de 2010. JusBrasil: <http://tjpr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19510007/embargos-infringentes-civel-ei-506345803-pr-0506345-803/inteiro-teor-104361245>. Acesso em 06.out.2015
197 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (2ª Turma). Sindicato. Substituição processual.
Legitimidade ativa ad causam. Interesse individual homogêneo. Reclamação proposta em nome de
377
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O que ocorre hoje, e deve ser veemente rechaçado pelo Judiciário, é o abuso
de direito, ou seja, justamente pelo fato de o Código de Defesa do Consumidor
prever um ônus probatório maior ao fornecedor. Muitos consumidores ingressam
com ações judiciais visando exclusivamente o benefício econômico, caracterizando
o enriquecimento ilícito.
Não havendo violação de direito não há como se falar em ação judicial, pois
esta se presta tão somente à reparação pela violação deste.
2.5 ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA
Esse elemento não se encontra expresso em nosso ordenamento, referindose à intensão do sujeito, ou seja, no momento do ingresso da ação o objetivo era o
recebimento da justa reparação pelo seu direito violado, ou o recebimento de valores
extraordinários, que o levariam a enriquecer indevidamente.
A 4ª Vara Cível da Comarca de Suzano julgou improcedente no último dia
(5), ação de indenização por danos morais movida por um consumidor que
pretendia ser indenizado em 34 mil reais. Ele acabou sendo condenado por
litigância de má-fé, e ainda a pagar as custas e despesas do processo, bem
como os honorários advocatícios.
O autor alega que compareceu até uma agência de veículos da requerida
para comprar um carro, em que havia um anúncio afixado na fachada da
loja com os seguintes dizeres: Deu a louca no gerente. Veículos a preço de
banana. Após examinar os modelos disponíveis, ele se interessou por um
deles, anunciado ao preço de R$ 0,01 (um centavo). Chamou então uma
das vendedoras e mostrou interesse na aquisição do veículo. No entanto,
ao lhe ser entregue a nota fiscal, pelo gerente, constava o valor de R$
34.500,00. Perguntou sobre a diferença de preço, e o gerente disse que
aquele anúncio servia apenas para atrair clientes e que não poderia vender
o veículo por R$ 0,01.
O autor invoca o artigo 30 do CDC, que, entende, lhe autoriza a exigir o que
foi ofertado. Afirma que a conduta da ré lhe causou grande frustração e
vários transtornos, reclamando uma indenização por danos morais no valor
de R$ 34.000,00.
Em sua sentença, o magistrado ressalta: É público e notório que nenhum
veículo, nem mesmo de brinquedo, de plástico, é vendido por R$ 0,01.
Nada há no mercado que se negocie por tal valor. Disso decorre que não
houve a formação de uma justa expectativa, que pudesse vir a ser
um trabalhador. Possibilidade. Litispendência. Abuso do direito de ação. Recurso de revista
desfundamentado. Súmula Nº 422 do TST. Embargos de Declaração em Recurso de Revista nº
9586220125030064. Embargante: Sindicato Dos Trabalhadores Em Empresas Ferroviarias Dos
Estados Do Espirito Santo E Minas Gerais. Embargado: VALE S.A. Relator: Ministro José Roberto
Freire
Pimenta.
25
de
março
de
2015.
JusBrasil:
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178789556/recurso-de-revista-rr-9586220125030064>.
Acesso em 07.set.2015
378
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
posteriormente frustrada, frente à propaganda veiculada pela ré, como quer
fazer crer o autor. O juiz afirma ainda: Não se ignora entendimentos no
sentido que o que vincula o fornecedor não é sua vontade, mas sim a
mensagem publicitária veiculada. Isso não ocorre, contudo, quando a
publicidade não puder ser recebida como real pelo consumidor. Inexiste
seriedade apta a obrigar a oferta. Tanto a lealdade como a boa-fé devem
nortear todas as relações jurídicas, daí porque a melhor interpretação das
relações consumeristas não prescinde da análise sob essa ótica. E devem
existir perante os dois polos da relação.
O magistrado conclui: Por fim, não se pode desprezar o fato que o autor, em
flagrante litigância de má-fé, utilizou-se do processo para alcançar objetivo
ilegal. O juiz pode e deve aplicar, até mesmo de ofício, a pena por litigância
de má-fé, na forma do artigo 18 do CPC, como forma de desestimular a
conduta reprovável da parte que, aventureira e irresponsavelmente, utilizase de instrumento idôneo, como é o processo, para tentar atingir objetivo
moralmente ilegítimo. (Grifos nossos)198
No caso julgado, resta patente a tentativa de enriquecimento ilícito, haja vista
que nenhum veículo jamais seria vendido por R$ 0,01 centavos. O autor desta
demanda, não apenas tinha ciência desse fato, como buscou o Judiciário para
receber indenização por danos morais com critérios totalmente desarrazoados.
No Direito do Trabalho, o escritório de advocacia Percival Maricato publicou a
obra Como Evitar Reclamações Trabalhistas, de autoria do advogado Percival
Maricato, com exemplos de demandas absurdas, do ponto de vista jurídico, que
demonstram, claramente, como muitos trabalhadores ingressam com reclamações
com o único objetivo de angariar vantagem econômica indevida.
2- Um trabalhador ajuizou uma ação reclamando danos morais de uma
fábrica, onde em decorrência do trabalho pegou “fimose”. O juiz não o
condenou (nem ao advogado) por má fé, por achar que ele estava muito
necessitado;199
No caso, observa-se com clareza que muitos juízes ainda se prendem à figura
do trabalhador da época da criação das leis trabalhistas, não lhe imputando o ônus
de suas condutas e incentivando o ajuizamento de demandas inúteis que apenas
198
Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé. JusBrasil.
Disponível
em:
<http://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-porlitigancia-de-ma-fe>. Acesso em 18.jul.2015.
199 MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato
Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso
em 11.ago.2015
379
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
sobrecarregam o Judiciário e impedem o rápido julgamento daqueles que
efetivamente precisam da prestação jurisdicional.
3- Um barman de um bar de São Paulo ajuizou uma reclamação alegando
não ter recebido a remuneração durante 18 meses. O bar só estava aberto
a 6 meses e ele tinha trabalhado menos ainda; no mesmo local uma
funcionária que trabalhou por período de 45 dias, com 6 faltas, tendo
remuneração de R$ 700,00, saiu e reclamou, afirmando que foi demitida,
pleiteando R$ 18 mil.200
No relato, é flagrante o abuso de direito e má-fé dos empregados que
pleiteiam o recebimento de verbas das quais certamente têm ciência não serem
devidas. Sequer houve trabalho para o caso do barman e a funcionária, após
inúmeras faltas e um pedido de demissão, vem pleitear indenização alegando ter
sido injustamente demitida.
15- Reclamações absolutamente caricatas, alucinadas, desequilibradas,
acabam sendo comuns, por falta de punição dos responsáveis. O goleiro
Bruno, do Flamengo, preso por assassinato, causador de enorme prejuízo
moral e dano à imagem do clube, ajuizou reclamação pedindo indenização
de R$ 10 milhões. Ao final aceitou receber R$ 13 mil. Em qualquer outra
Justiça seria condenado por sucumbência proporcional e má fé. Às vezes a
aventura dá certo. Um segurança de Xuxa conseguiu um acordo para
receber R$ 4 milhões, um reclamante de Campinas após trabalhar na
empresa por 4 anos, ganhou um valor de R$ 1,3 milhão, valor que em
situação normal um cidadão, se nada de ruim acontecer, leva a vida inteira
para acumular.201
A completa ausência de aplicação de punições ao abuso de direito,
principalmente quando, falamos de partes hipossuficientes, tem incentivado o
ajuizamento de demandas nas quais o único intuito é o enriquecimento ilícito e não a
reparação por um direito violado, o que muitas vezes sequer ocorreu.
Essa permissividade do Judiciário acaba por incentivar a prática do abuso do
direito e tornam o exercício da justiça lento e precário àqueles que efetivamente
necessitam do poder público na solução dos seus conflitos.
200
MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato
Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso
em 11.ago.2015
201 MARICATO, Percival. ...
380
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
2.6 NEXO DE CAUSALIDADE
O nexo de causalidade corresponde à adequação entre o ato praticado e o
resultado discutido.
Sergio Cavalieri Filho (CAVALIERI FILHO, 2012. p. 67) define nexo causal
como sendo o elemento referencial entre a conduta e o resultado. É através dele
que poderemos concluir quem foi o causador do dano.
Com a análise do nexo de causalidade é possível (i) determinar a quem se
deve atribuir um resultado danoso e (ii) é indispensável na verificação da extensão
do dano a se indenizar, pois serve como medida da indenização (CRUZ. 2005.
P.22).
Assim, para que haja condenação de qualquer natureza é necessário que se
apure primeiramente se: (i) houve ilícito, (ii) quem o cometeu, para que só então
apurado, dentro dos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, o valor a ser
arbitrado a título de reparação.
A previsão deste instituto jurídico em nosso ordenamento jurídico tem
previsão, principalmente, nos artigos nº 14 a nº 18, do Código de Processo Civil, e
versa sobre atos que contrariem a boa-fé e a lealdade dos atos praticados por cada
uma das partes.
Os referidos artigos são também aplicáveis na Justiça do Trabalho, haja vista
a inexistência de previsão expressa nas legislações dessa área, o que possibilita a
aplicação por analogia do disposto na área cível.
Entende-se assim que os Tribunais têm poderes para não apenas disciplinar o
processo, como também os atos praticados pelas partes, sendo plenamente cabível
a aplicação do instituto do abuso de direito no Direito Trabalhista, tal qual na área
cível.
No mesmo sentido já disse Calamandrei, citado por Manoel Antônio Teixeira
Filho (TEIXEIRA FILHO. 1994. P. 94) o processo é um jogo onde a habilidade é
permitida, mas a trapaça não.
Conforme demonstrado anteriormente, a pura aplicação das normas se sua
devida análise no tempo e espaço acabam por gerar um desequilíbrio entre as
partes, quando em verdade a proteção legal visa justamente reestabelecer o
381
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
equilíbrio. Isso porque, no recorte deste estudo, verificamos que no decorrer do
tempo as estruturas das relações trabalhistas e consumeristas foram alteradas com
o advento de novas tecnologias e órgãos de fiscalização e proteção.
As leis protecionistas, contudo, continuam sendo aplicadas com tamanha
rigidez que ao invés de proteger acabam por desestimular o fornecedor/ empregador
de cumpri-las, pois tem ciência de que se o consumidor/empregado ingressar com
uma demanda judicial há grandes chances de condenação.
O Poder Judiciário precisa admitir que a aplicação radical do Código de
Defesa do Consumidor e da Consolidação das Leis Trabalhistas culminou na
viabilização do ingresso de demandas em que nenhum direito foi violado, ou seja, o
autor da ação visa tão somente angariar vantagem econômica, obviamente indevida.
Já tratado desde o direito medieval, consiste basicamente na prática de atos com a
intenção deliberada de causar prejuízos a outrem ou angariar para si benefícios
econômicos. Em que pese a existência desde à época medieval, essa teoria acabou
por se desenvolver apenas no século XX pela Doutrina e Jurisprudência.
Emulação, nesse sentido, é o exercício de um direito com o fim de
prejudicar outrem. Quer dizer que em vez de ter o fim de tirar para si um
benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem.
Historicamente, a rixa, a briga, a altercação, são elementos característicos
da vida medieval. Brigas de vizinhos, brigas de barões, brigas de
corporações, nos seios das sociedades; brigas entre o poder temporal e o
poder espiritual. Todas as formas de alterações a sociedade medieval
conheceram, como não podia deixar de acontecer numa época de
considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm
conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de
prejudicar a outrem, ou seja, o direito como elemento de emulação (Barros,
2005).202
O abuso de direito aparece pela primeira vez em nosso ordenamento no
Código Civil de 1916, em seu artigo nº 160, inciso I, e atualmente é regulamentado
no Código Civil, no Código de Processo Civil, na Consolidação das Lei Trabalhistas,
bem como Código de Ética da Ordem dos Advogados, e consiste, em linhas gerais,
na quebra dos princípios basilares do Direito Brasileiro, tendo sido também
incorporados no Código de Defesa do Consumidor.
FERREIRA, Wallace. Abuso de direito – entre a teoria e a realidade. JusNavegandi.
Disponível
em:
<http://jus.com.br/artigos/26208/abuso-de-direito-entre-a-teoria-e-arealidade#ixzz3iHuAlC8k>. Acesso em 08.ago.2015.
202
382
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
A problemática que se estabelece é que a prática totalmente impune deste ato
é bastante presente, como mostra amplamente a jurisprudência.
2- Um trabalhador ajuizou uma ação reclamando danos morais de uma
fábrica, onde em decorrência do trabalho pegou “fimose”. O juiz não o
condenou (nem ao advogado) por má fé, por achar que ele estava muito
necessitado;203
3- Um barman de um bar de São Paulo ajuizou uma reclamação alegando
não ter recebido a remuneração durante 18 meses. O bar só estava aberto
a 6 meses e ele tinha trabalhado menos ainda; no mesmo local uma
funcionária que trabalhou por período de 45 dias, com 6 faltas, tendo
remuneração de R$ 700,00, saiu e reclamou, afirmando que foi demitida,
pleiteando R$ 18 mil.204
O mesmo pode ser visto no âmbito do Direito do Consumidor.
O autor alega que compareceu até uma agência de veículos da requerida
para comprar um carro, em que havia um anúncio afixado na fachada da
loja com os seguintes dizeres: Deu a louca no gerente. Veículos a preço de
banana. Após examinar os modelos disponíveis, ele se interessou por um
deles, anunciado ao preço de R$ 0,01 (um centavo). Chamou então uma
das vendedoras e mostrou interesse na aquisição do veículo. No entanto,
ao lhe ser entregue a nota fiscal, pelo gerente, constava o valor de R$
34.500,00. Perguntou sobre a diferença de preço, e o gerente disse que
aquele anúncio servia apenas para atrair clientes e que não poderia vender
o veículo por R$ 0,01.
O autor invoca o artigo 30 do CDC, que, entende, lhe autoriza a exigir o que
foi ofertado. Afirma que a conduta da ré lhe causou grande frustração e
vários transtornos, reclamando uma indenização por danos morais no valor
de R$ 34.000,00.
Em sua sentença, o magistrado ressalta: É público e notório que nenhum
veículo, nem mesmo de brinquedo, de plástico, é vendido por R$ 0,01.
Nada há no mercado que se negocie por tal valor. Disso decorre que não
houve a formação de uma justa expectativa, que pudesse vir a ser
posteriormente frustrada, frente à propaganda veiculada pela ré, como quer
fazer crer o autor. O juiz afirma ainda: Não se ignora entendimentos no
sentido que o que vincula o fornecedor não é sua vontade, mas sim a
mensagem publicitária veiculada. Isso não ocorre, contudo, quando a
publicidade não puder ser recebida como real pelo consumidor. Inexiste
seriedade apta a obrigar a oferta. Tanto a lealdade como a boa-fé devem
nortear todas as relações jurídicas, daí porque a melhor interpretação das
relações consumeristas não prescinde da análise sob essa ótica. E devem
existir perante os dois polos da relação.
O magistrado conclui: Por fim, não se pode desprezar o fato que o autor, em
flagrante litigância de má-fé, utilizou-se do processo para alcançar objetivo
ilegal. O juiz pode e deve aplicar, até mesmo de ofício, a pena por litigância
203
MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato
Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso
em 11.ago.2015.
204 MARICATO, Percival...
383
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
de má-fé, na forma do artigo 18 do CPC, como forma de desestimular a
conduta reprovável da parte que, aventureira e irresponsavelmente, utilizase de instrumento idôneo, como é o processo, para tentar atingir objetivo
moralmente ilegítimo. (Grifos nossos)205
O fato dos magistrados admitirem ou relevarem esses fatos, em decorrência da
histórica vulnerabilidade do trabalhador e consumidor, acaba por incentivar o
ajuizamento de demandas desarrazoadas, que visam o enriquecimento ilícito e
utilizam o Judiciário como uma espécie de loteria.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese o Judiciário esteja começando a reconhecer que o
hipossuficiente, historicamente a parte vulnerável de uma relação, pode utilizar-se
do tratamento benevolente da lei em seu favor, ajuizando demandas indevidas, que
visam exclusivamente o enriquecimento ilícito, não há qualquer punição a esse
abuso quando constatado. Isso
pois, na maioria dos casos, às partes
hipossuficientes é deferido o benefício da justiça gratuita, o que garante a isenção
do pagamento das custas processuais e honorários de sucumbência.
Como fica então o conflito entre o benefício da isenção de custas, que tem por
finalidade garantir a todos o pleno acesso à justiça, e a condenação de litigância de
má-fé, caracterizada quando o direito ao acesso à justiça é deturpado?
Quando analisamos a condenação das partes, a jurisprudência majoritária
atual defende que a condenação em litigância de má-fé não exclui o benefício da
justiça gratuita, de modo que a parte, ainda que condenada por flagrante abuso de
direito, em sendo beneficiária da justiça gratuita, não arcará com nenhum tipo de
pagamento.
RECURSO DE REVISTA. JUSTIÇA GRATUITA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.
COMPATIBILIDADE. A condenação por litigância de má-fé não retira do
reclamante o direito à concessão do benefício da justiça, pois as sanções
aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra de caráter punitivo, que
deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina
a justiça gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da
205
Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé. JusBrasil.
Disponível
em:
<http://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-porlitigancia-de-ma-fe>. Acesso em 18.jul.2015.
384
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
concessão desse benefício com a eventual litigância de má-fé do
beneficiado. Precedentes. Recurso de revista a que se dá provimento.206
Ora, o Poder Judiciário não pode coadunar com a prática de atos ilícitos,
vedados pelo próprio ordenamento jurídico. A justiça gratuita tem a finalidade de
garantir a todos aqueles que necessitem da prestação jurisdicional acesso à justiça,
mas não pode se prestar a financiar o abuso de direito.
O fato do autor da demanda ser pessoa simples e hipossuficiente não lhe dá o
direito de infringir a lei e agir de modo a prejudicar a outra parte ou mesmo tentar
com um processo judicial obter qualquer tipo de enriquecimento.
Mais recentemente, parte da jurisprudência se posiciona no sentido de que a
concessão do benefício da justiça gratuita não isenta o pagamento da multa prevista
pela litigância de má-fé, mas tão somente das custas processuais.
MULTA
E
INDENIZAÇÃO
POR
LITIGÂNCIA
DE
MÁ-FÉ.
ARTIGOS 17 E 18 DO SUBSIDIÁRIO CPC (CLT, ARTIGO 769). JUSTIÇA
GRATUITA. ISENÇÃO. NÃO ABRAGÊNCIA.
O benefício da gratuita da justiça estampado nos termos do artigo 790, §
3º da CLT, tem por escopo apenas facilitar o acesso do jurisdicionado ao
Poder Judiciário, garantindo com isso a isenção ao pagamento das custas e
despesas processuais, não tendo o condão de abranger multas e
indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos
praticados pela parte postulante. Agravo de petição ao qual se nega
provimento.207
206
BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho (6ª Turma). Recurso de revista. Justiça gratuita. Litigância
de má-fé. Compatibilidade. A condenação por litigância de má-fé não retira do reclamante o direito à
concessão do benefício da justiça, pois as sanções aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra
de caráter punitivo, que deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina a
justiça gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da concessão desse benefício
com a eventual litigância de má-fé do beneficiado. Precedentes. Recurso de revista a que se dá
provimento. Recurso de Revista nº 21184720125020001. Recorrente: Cryovac Brasil Ltda. Recorrido:
Flávio Dos Santos Pereira. Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta. JusBrasil:
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/172130051/recurso-de-revista-rr-21184720125020001>.
Acesso em 25.abr.2015
207 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (11ª Turma). Multa e indenização por
litigância de má-fé. Artigos 17 e 18 do subsidiário CPC (CLT, artigo 769). Justiça gratuita. Isenção.
Não abrangência. O benefício da gratuita da justiça estampado Nos Termos Do Artigo 790, § 3º da
CLT, tem por escopo apenas facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, garantindo com
isso a isenção ao pagamento das custas e despesas processuais, não tendo o condão de abranger
multas e indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos praticados pela parte
postulante. Agravo de petição o qual se nega provimento. Agravo de Petição Nº 801009320085020
SP 00801009320085020061. Agravante: Silmara Cristina Carrapato. Agravado: Finasa Promotora
Venda Ltda. Relator: Ricardo Verta Luduvice. 14 de maio de 2013. JusBrasil: <http://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24681897/agravo-de-peticao-agvpet-801009320085020-sp00801009320085020061-trt-2/inteiro-teor-112150906>. Acesso em 12.ago.2015
385
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E JUSTIÇA GRATUITA.
COMPATIBILIDADE.
Muito embora considerado litigante de má-fé, essa irregularidade na
conduta do autor não pode obstar seu direito de acesso ao Judiciário, de
maneira que a litigância de má-fé não é incompatível nem excludente da
gratuidade da justiça, até porque a concessão do benefício não isenta o
litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título.208
Assim sendo, ainda que se defira a justiça gratuita à parte autora,
caracterizada a litigância de má-fé, não há que se falar em afastamento da multa
aplicada, eis que o acesso à justiça não visa permitir o ingresso de demandas sem
que sejam preenchidos os requisitos das condições da ação e pressupostos
processuais, principalmente, quanto ao interesse de agir, ou seja, a existência de um
fato danoso que justifique o ajuizamento da ação judicial.
Quanto à punição dos advogados pela prática de atos de má-fé, a
jurisprudência vem se posicionando no sentido de que a condenação deve se dar de
forma solidária.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. MULTA POR
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DO ADVOGADO DO
RECLAMANTE. Ante a aparente violação do artigo 32 da Lei de número
8.906/94, nos termos exigidos no artigo 896 da CLT, provê-se o agravo de
instrumento para determinar o processamento do recurso de revista.
RECURSO DE REVISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. O Tribunal Regional,
baseado no exame da prova, concluiu pela não configuração do vínculo
empregatício entre as partes. Assim, a análise dos elementos
caracterizadores da relação de emprego (artigo 3º da CLT) depende de
nova avaliação do conjunto fático-probatório sobre o qual se assenta o
acórdão recorrido, procedimento vedado nesta instância recursal, nos
termos da Súmula 126 do TST. Recurso de revista não conhecido.
INDENIZAÇÃO E MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FE. ALTERAÇÃO DA
VERDADE DOS FATOS. Em se tratando de penalidade imposta à parte que
age com deslealdade processual, as causas as quais ensejam a aplicação
da pena de litigância de má-fé, elencadas no artigo 17 do CPC, devem ser
interpretadas restritivamente. O direito da parte de utilizar todos os recursos
e meios legais para a discussão de seu direito não a exime de
responsabilidade por danos processuais, quando verificadas as hipóteses
208
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (1ª Turma). Multa por litigância de má-fé e
justiça gratuita. Compatibilidade. Muito embora considerado litigante de má-fé, essa irregularidade na
conduta do autor não pode obstar seu direito de acesso ao Judiciário, de maneira que a litigância de
má-fé não é incompatível nem excludente da gratuidade da justiça, até porque a concessão do
benefício não isenta o litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título. Agravo de Instrumento
em Recurso Ordinário nº 1289201100223002 MT 01289.2011.002.23.00-2. Agravante: Benedito da
Silva Oliveira. Agravado: Centro De Processamento De Dados Do Estado De Mato Grosso –
CEPROMAT. Relator: Desembargador Roberto Benatar. 14 de fevereiro de 2012. JusBrasil:<
http://trt-23.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21278979/agravo-de-instrumento-em-recurso-ordinarioairo-1289201100223002-mt-0128920110022300-2-trt-23>. Acesso em 12.ago.2015
386
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
previstas no referido dispositivo legal. No caso, o Regional consignou que o
reclamante alterou a verdade dos fatos, acarretando a aplicação da multa e
da indenização previstas no artigo 18 do CPC, tendo como fundamento o
artigo 17, II do CPC. Inexistência de violação do 5º, XXXIV, XXXV e LV da
Constituição Federal. Arestos inespecíficos. Recurso de revista não
conhecido. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONDENAÇÃO
SOLIDÁRIA DO ADVOGADO DO RECLAMANTE. Da leitura do artigo 32,
parágrafo único, da Lei de número 8.906/94, observa-se ser vedada a
condenação, solidária ou exclusiva, do advogado da parte por litigância de
má-fé no mesmo processo em que ficou verificada a temeridade da lide. A
análise relativa à má-fé do patrono deve ser apurada em ação própria na
Justiça Comum. Há precedentes, inclusive desta Sexta Turma. Recurso de
revista conhecido e provido.209
É dever dos patronos orientar as condutas dos seus clientes, bem como zelar
pelas suas próprias condutas, não tumultuando o processo e agindo com lealdade
aos princípios processuais e morais, assim como pela prática do expresso no
Estatuto da Ordem dos Advogados, em seu artigo nº 32.
A ausência de penalidades para o abuso de direito torna o Judiciário uma
loteria, pois a parte beneficiária da justiça gratuita não terá nenhum ônus econômico
para o ingresso da demanda. Ganhando recebe uma indenização. Perdendo não
corre nenhum risco de desembolsar qualquer valor.
É justamente por isso que, muitas pessoas se sentem até incentivadas a
tentar a sorte, aumentando em muito o número de ações que tramitam no Judiciário,
tornando-o parcimonioso, pois essas demandas abusivas, igualmente, tomam tempo
do Judiciário, atrasando a prestação jurisdicional daqueles que dela realmente
necessitam.
Há muito, vem-se revendo o posicionamento doutrinário e jurisprudencial no
que tange ao deferimento do benefício da justiça gratuita à parte hipossuficiente
economicamente.
Nesse sentido, acosta-se trecho de recente julgado da 7ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos sob de número 020759260.2010.8.19.0001, no qual o Relator entendeu que a lei de assistência judiciária
209
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (6ª Turma). Agravo de instrumento. Recurso de revista.
Multa por litigância de má-fé. Condenação solidária do advogado do reclamante. Recurso de Revista
nº 693006520095150107. Recorrente: Ademir Do Nascimento. Recorrido: Walter Cruz Teixeira.
Relator: Augusto César Leite de Carvalho. 17 de junho de 2015. JusBrasil:
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/200534402/recurso-de-revista-rr-693006520095150107>.
Acesso em 15.maio.2015
387
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
gratuita (Lei nº 1.060/50) não é aplicável quando houver litigância de má-fé por parte
do postulante do benefício.
(...) o litigante de má-fé não pode ser favorecido com os benefícios da
gratuidade de justiça, devendo arcar com o pagamento de todos os ônus
sucumbenciais, e não apenas a multa por litigância de má-fé. (...) como
antes mencionado, a jurisprudência atual informa que a pena por litigância
de má-fé não está inserida no rol de isenções previsto no artigo 3º da Lei
1.060/50. Todavia, e ressalvadas as respeitáveis posições contrárias,
penso que o postulante inescrupuloso, que atua no processo de forma
desleal, não pode ser premiado com qualquer benesse processual,
como a isenção dos ônus sucumbenciais. Acredito que esse
posicionamento deve ser revisto, como forma de desestimular o
ajuizamento de ações irresponsáveis e aventureiras, praticamente a
risco zero. (Grifos nossos).210
Os desembargadores da 7ª Câmara Cível, por unanimidade, acompanharam o
voto do relator e condenaram a autora, Vera da Silva, a pagar, além da multa por
litigância de má-fé, os honorários do advogado da empresa, reformando de ofício a
sentença para afastar a gratuidade de justiça anteriormente deferida à parte autora.
O Código de Defesa do Consumidor e a legislação trabalhista trouxeram
consigo o princípio da vulnerabilidade. Este princípio visa garantir o bom
relacionamento
entre
as
partes
consumidora/trabalhadora
e
fornecedora/empregadora na realidade fática, ou seja, o que objetiva é a obediência
aos princípios da transparência, informação, lealdade e boa-fé nas relações
econômicas consumeristas e trabalhistas.
O que ocorre hoje, e deve ser veemente rechaçado pelo Judiciário, é o abuso
de direito, ou seja, justamente pelo fato de o Código de Defesa do Consumidor e a
Consolidação das Leis do Trabalho preverem um ônus probatório maior ao
fornecedor/empregador. Muitos consumidores/ trabalhadores ingressam com ações
judiciais visando exclusivamente o benefício econômico, o que caracteriza o
enriquecimento ilícito.
Temos assim que, quando for constatada a existência de práticas temerárias
e abusivas, os magistrados devem, sim, afastar o benefício da justiça gratuita e
210
TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Gratuidade de justiça não se aplica nos casos de
litigância de má-fé. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa. 23 de janeiro de 2012.
Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/55602>. Acesso em
31.mai.2015.
388
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
condenar a parte, ainda que hipossuficiente, ao pagamento das custas processuais,
multa por litigância de má-fé e honorários de sucumbência. Apenas desta forma,
teremos efetiva repressão à essa prática tão comum, a qual certamente contribui em
muito com a sobrecarga do Judiciário.
Ainda que a base sejam valores simbólicos, de modo a não prejudicar a
sobrevivência da parte, a punição pecuniária é uma saída que certamente surtiria
efeitos.
Não se trata de cercear o direito ao pleno acesso à justiça ao hipossuficiente,
que, muitas vezes, não possui condições de arca com as custas processuais, mas
sim de coibir o ajuizamento de demandas inúteis, que não se prestam a outra coisa
que não a obtenção de vantagem econômica indevida e ainda a absurda sobrecarga
do Judiciário, que poderia estar atendendo qualquer outra demanda que
efetivamente precisasse de sua prestação.
REFERÊNCIAS
CAVALIERE FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10 ed. São
Paulo. Atlas, 2012, p. 67.
CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade
civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 22
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Parte Geral – vol. 1. 7 ed. Rio de Janeiro.
Forense. 2004. p. 554-556.
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. A sentença no processo do trabalho. 4 ed.
São Paulo. LTr. 1994. p. 94.
FERREIRA, Wallace. Abuso de direito – entre a teoria e a realidade. JusNavegandi.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26208/abuso-de-direito-entre-a-teoria-e-arealidade#ixzz3iHuAlC8k>. Acesso em 08.ago.2015.
MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho.
Maricato
Advogados
Associados.
Disponível
em:
<http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso em 11.ago.2015.
Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé.
JusBrasil.
Disponível
em:
<http://tjsp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-por-litigancia-dema-fe>. Acesso em 18.jul.2015.
389
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho (6ª Turma). Recurso de revista. Justiça
gratuita. Litigância de má-fé. Compatibilidade. A condenação por litigância de má-fé
não retira do reclamante o direito à concessão do benefício da justiça, pois as
sanções aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra de caráter punitivo, que
deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina a justiça
gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da concessão desse
benefício com a eventual litigância de má-fé do beneficiado. Precedentes. Recurso
de revista a que se dá provimento. Recurso de Revista nº 21184720125020001.
Recorrente: Cryovac Brasil Ltda. Recorrido: Flávio Dos Santos Pereira. Relator:
Ministro
José
Roberto
Freire
Pimenta.
JusBrasil:
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/172130051/recurso-de-revista-rr21184720125020001>. Acesso em 25.abr.2015
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (11ª Turma). Multa e
indenização por litigância de má-fé. Artigos 17 e 18 do subsidiário CPC (CLT, artigo
769). Justiça gratuita. Isenção. Não abrangência. O benefício da gratuita da justiça
estampado Nos Termos Do Artigo 790, § 3º da CLT, tem por escopo apenas facilitar
o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, garantindo com isso a isenção ao
pagamento das custas e despesas processuais, não tendo o condão de abranger
multas e indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos
praticados pela parte postulante. Agravo de petição o qual se nega provimento.
Agravo de Petição Nº 801009320085020 SP 00801009320085020061. Agravante:
Silmara Cristina Carrapato. Agravado: Finasa Promotora Venda Ltda. Relator:
Ricardo Verta Luduvice. 14 de maio de 2013. JusBrasil: <http://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24681897/agravo-de-peticao-agvpet801009320085020-sp-00801009320085020061-trt-2/inteiro-teor-112150906>.
Acesso em 12.ago.2015
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (1ª Turma). Multa por
litigância de má-fé e justiça gratuita. Compatibilidade. Muito embora considerado
litigante de má-fé, essa irregularidade na conduta do autor não pode obstar seu
direito de acesso ao Judiciário, de maneira que a litigância de má-fé não é
incompatível nem excludente da gratuidade da justiça, até porque a concessão do
benefício não isenta o litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título.
Agravo de Instrumento em Recurso Ordinário nº 1289201100223002 MT
01289.2011.002.23.00-2. Agravante: Benedito da Silva Oliveira. Agravado: Centro
De Processamento De Dados Do Estado De Mato Grosso – CEPROMAT. Relator:
Desembargador Roberto Benatar. 14 de fevereiro de 2012. JusBrasil: <http://trt23.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21278979/agravo-de-instrumento-em-recursoordinario-airo-1289201100223002-mt-0128920110022300-2-trt-23>. Acesso em
12.ago.2015
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (6ª Turma). Agravo de instrumento. Recurso
de revista. Multa por litigância de má-fé. Condenação solidária do advogado do
reclamante. Recurso de Revista nº 693006520095150107. Recorrente: Ademir Do
Nascimento. Recorrido: Walter Cruz Teixeira. Relator: Augusto César Leite de
Carvalho.
17
de
junho
de
2015.
JusBrasil:
390
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/200534402/recurso-de-revista-rr693006520095150107>. Acesso em 15.maio.2015
TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Gratuidade de justiça não se aplica
nos casos de litigância de má-fé. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa.
23 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home//noticias/visualizar/55602>. Acesso em 31.mai.2015.
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A LUTA CONTRA BIOINVASÃO CAUSADA PELO USO DA ÁGUA DE LASTRO
THE FIGHT AGAINST BIO INVASION CAUSED BY THE USE OF THE BALLAST
WATER
Rafael Joppert Carvalho de Souza211
Maria da Glória Colucci212
SUMÁRIO
Resumo. 1 Introdução 2 Poluição e a Proteção Jurídica ao Meio 2.1 Princípios do Direito
Ambiental 2.2.1 Princípios da Cooperação e Precaução 2.2.2 Princípio do Desenvolvimento
Sustentável 2.2.3 Princípio Poluidor Pagador 2.2.4 Princípio da Cooperação Entre os Povos 3
Bioinvasão Pela Água de Lastro, a Conferência Internacional da Água de Lastro 2004 e
Normam/20 3.1 Espécies Invasoras 3.1.1 Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei) 3.1.2 MexilhãoZebra (Dreissena polymorpha) 3.2 Convenção Internacional da Água de Lastro 2004 3.3 Normam
20/DPC 4 Considerações Finais. Referências.
RESUMO
A seleção do tema objeto deste artigo tem como objetivo estimular o estudo acerca dos riscos ao
meio ambiente marítimo, em especial a invasão de espécies exóticas, por conta do uso da água de
lastro sem o devido gerenciamento, bem como as principais medidas adotadas pela comunidade
internacional em prol do combate a esta prática, que já é considerado uma das quatro maiores
ameaças aos oceanos. Será apresentado o conceito de poluição e demonstrada a necessidade de
tutela do meio ambiente através do Direito Ambiental e seus princípios. Em seguida, será realizado
um estudo acerca dos riscos da bionvasão, onde serão apresentados alguns casos notórios. Por fim,
serão analisadas duas das mais importantes ferramentas para o combate ao mal uso da água de
lastro no Brasil: a Convenção da Água de Lastro de 2004 e a NORMAM 20/DPC.
Palavras-chave: Água de lastro; Bioinvasão; Poluição marítima; Convenções internacionais;
NORMAM 20/DPC.
Aluno de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
[email protected]
212 Mestre em Direito Público (UFPR); Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Titular de Teoria
Geral do Direito (Unicuritiba), Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae
do Unicuritiba. [email protected]
211
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ABSTRACT
The choice of the subject of this article has aims to stimulate the study regarding the risks to the
maritime environment, specially the bio invasion, caused by the usage of the ballast water without a
proper management, as well as the main actions taken by the international community in favor to the
fight against this issue, that is already considered to be one of the four major treats to the oceans. It
will be presented the concept of pollution and shown the need to safeguarding the environment by the
environment law and its principles. Furthermore, there will be a study about the bio invasions, where it
will be presented two of the main cases. Lastly two of the main tools against the damages caused by
the misuse of the ballast water will be analyzed: The Ballast Water Convention of 2004 and the
NORMAM 20/DPC.
Keywords: Ballast water; Bio invasion; Maritime pollution; International conventions; NORMAN
20/DPC.
1 INTRODUÇÃO
O lastro é utilizado para garantir estabilidade e segurança às embarcações
marítimas, assim como a eficiência das operações de transporte. Desde o final do
século XIX, com o advento dos cascos de ferro, que permitem a total vedação, a
utilização de água marinha, por conta da facilidade de carregamento e
descarregamento, passou a substituir os tradicionais sacos de areia e pedra e hoje é
a modalidade mais comum de lastramento.
Atualmente, o transporte marítimo é utilizado para transportar 80% das
mercadorias no comércio internacional. Como consequência deste imenso fluxo de
navios, estima-se que todo ano mais de 10 bilhões de toneladas de água de lastro,
com todo seu material biológico são trazidas de regiões do planeta para outras, que
possuem ecossistemas completamente diversos, causando grandes desequilíbrios
ambientais.
Ao longo de décadas, diversos casos de invasão de espécies – como o
notório caso de invasão do mexilhão-zebra, que foi identificado pela primeira vez na
década de 80, nos Estados Unidos e rapidamente se proliferou causando sérios
danos ao ecossistema e um prejuízo estimado em mais de 100 milhões de dólares foi oriundo da água de lastro.
Contudo, apesar de já ser apontada como um dos quatro maiores riscos aos
mares e oceanos, conforme será visto adiante, a água de lastro só passou a ser
normatizada pelo Direito Internacional em 1988, há pouco menos de 30 anos,
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quando o tema passou a ser tratado e discutido em convenções internacionais.
Destas, cumpre estudar a Convenção Internacional da Água de Lastro de 2004, que
será abordada no presente estudo.
Igualmente, será analisada a NORMAM/20, a legislação adotada no Brasil
especificamente para combater os danos causados pela água de lastro em território
nacional.
O presente estudo tem, portanto, o intuito de abordar as principais
ferramentas legislativas que visam gerenciar o uso da água de lastro no transporte
marítimo.
2 POLUIÇÃO E PROTEÇÃO JURÍDICA AO MEIO AMBIENTE
A interação com a natureza é, e sempre foi, um pressuposto para a existência
do ser humano. É do meio ambiente que o ser humano extrai suas principais fontes
de alimento, matéria para construção de abrigos e até geração de energia.
Contudo, nem sempre desta interação com o meio natural resulta em algo
positivo. Conforme a humanidade foi se desenvolvendo, na medida que novas
tecnologias foram implementadas, percebeu-se o potencial lesivo que o homem
pode gerar à natureza. Efeito estufa, causado pelos gases gerados por veículos
automotores e grandes fábricas, águas de rios e mares contaminadas pelo despejo
de esgoto, solos improdutivos por conta do uso de produtos químicos usados na
agricultura. Todos esses são exemplos de como o ser humano prejudica o meio
ambiente por conta da sua interação. E é esse dano causado que pode ser
compreendido por poluição.
No ordenamento jurídico brasileiro é trazida uma definição objetiva de
poluição. A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, conhecida como Lei de Política
Nacional do Meio Ambiente, dispõe, em seu artigo 3º, que:
III - poluição (é) a degradação da qualidade ambiental resultante de
atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
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GESTÃO E CONTROLE
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais
estabelecidos.
A poluição é, portanto, todo desequilíbrio sofrido pelo ecossistema, ou as
consequências negativas a ele causadas, em decorrência da interação dos seres
humanos, com a natureza (LARA, 2000, p. 67).
É exatamente por conta deste entendimento que notou-se a necessidade de
regulamentar a interação do ser humano com a natureza ou, em outras palavras,
tutelar o meio ambiente como um bem a ser protegido pela lei, “[...] estabelecendo
valores jurídico-ambientais e estabelecendo sanções para toda pessoa física ou
jurídica que ofendesse tais regras” (PETERS; PIRES, 2000, p. 67).
No mesmo sentido, afirma o autor Bessa Antunes que “[...] a norma que,
baseada no fato ambiental e no valor ético ambiental, estabelece mecanismos
normativos capazes de disciplinar as atividades humanas em relação ao meio
ambiente.” (ANTUNES, 2012. p. 6).
Esta proteção é a espinha dorsal do denominado Direito Ambiental, que pode
ser definido como o ramo da Ciência Jurídica, mais especificamente do Direito
Público, que visa proteger, através de mecanismos legais, o meio ambiente
(AMADO, 2014. p.40).
No ordenamento jurídico brasileiro, suas bases estão no artigo 225213 da
Carta
Magna
brasileira.
Tem-se,
portanto,
o
direito
ao
meio
ambiente
ecologicamente equilibrado, como direito fundamental de todos os cidadãos,
garantido pela Lei Maior brasileira. Tal condição eleva a importância da preservação
da natureza, que deve ser observada ante à regulação das atividades humanas.
Assim, pode-se concluir que o Direito Ambiental é o ramo que busca, através
de normas jurídicas, regular o comportamento humano em sua interação com o meio
ambiente.
Nesse sentido, para que haja melhor compreensão acerca do tema, cumpre
destacar os princípios desta importante disciplina jurídica.
213
CF, art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações
396
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2.1 PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL
Celso Antônio Bandeira de Mello, ensina que princípio corresponde aos
mandamentos nucleares de um sistema, que serve como “[...] verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes
o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência” (MELLO,
1992, p. 299).
A análise e estudo dos princípios é relevante, portanto, na medida em que
traduzem uma visão macro do Direito estudado. Além disso, com maior
compreensão dos princípios, perceber-se-á maior facilidade na compreensão de sua
aplicação prática.
Aliás, em se tratando de Direito Ambiental, os princípios se tornam ainda mais
relevantes pelo fato das normas estarem sendo criadas para regular casos cada vez
mais específicos e concretos, de tal sorte que a norma ambiental está perdendo
características importantes como a abstração e a generalidade (ANTUNES, 2012. p.
22).
A seguir, passa-se a expor alguns dos princípios do Direito Ambiental.
2.2.1 Princípios da Cooperação e Precaução
O princípio da cooperação possui um forte vínculo com o princípio da
prevenção. Tem base na Constituição Federal, em seu artigo 225, caput, que
determina como dever de todos, tanto do Estado como da Sociedade, contribuir para
a prevenção do meio ambiente, visto que essa função não é apenas do governo e
sim de toda a população.
Nesse mesmo sentido, é seguro afirmar que a proteção do ambiente é tarefa
e finalidade do Estado ao mesmo tempo em que é uma obrigação de cada indivíduo
(TEIXEIRA, 2006, 87).
A constante busca do ser humano para o desenvolvimento de novas
tecnologias, principalmente nas últimas décadas, trouxe consigo um imenso risco ao
meio ambiente, na medida em que muitas vezes é impossível determinar os
397
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impactos negativos que a nova descoberta pode causar ao planeta. Seja pelo
processo produtivo, como ocorrem nas usinas termoelétricas, que liberam bilhões de
toneladas de poluentes na atmosfera durante o processo de geração de energia
elétrica pela queima de carvão, seja pelos resíduos gerados, que dificilmente são
absorvidos pela natureza, como é o caso das embalagens de plástico, bastante
utilizados pela indústria alimentícia.
O avanço tecnológico, portanto, traz um interessante paradoxo: na medida em
que é um elemento fundamental para garantir um aumento da qualidade de vida do
ser humano, bem como uma maior longevidade é, também, justamente por conta da
incerteza de seus impactos ambientais, que em grande parte são irreparáveis, um
possível responsável pelo esgotamento de recursos naturais fundamentais para a
manutenção da vida humana.
Essa incerteza de como ações do ser humano impactarão no meio ambiente
é o alicerce do que é chamado de princípio da precaução, através do qual são dadas
diretrizes aos operadores do Direito, para que sejam mitigados os desastres
ambientais. Trata-se de um princípio que estabelece a regra “in dubio pro ambiente”
(CANOTILHO; LEITE, 2012, p. 62).
Entende-se, portanto, que o princípio da precaução é de grande utilidade
prática, tendo em vista que é aquele que garante que, antes de quaisquer atividades
ou utilização de novas tecnologias, sejam realizados estudos de impacto à natureza,
mitigando as chances de desastres naturais.
2.2.2 Princípio do Desenvolvimento Sustentável
Decorre da análise do artigo 225 combinado com o artigo 170, VI214, ambos
da Carta Magna brasileira.
O desenvolvimento sustentável é a busca por um desenvolvimento
socioeconômico, que satisfaça às necessidades da atual geração, sem, porém, com
214
CF, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
[...]
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.
398
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isso ensejar o esgotamento dos recursos naturais, de forma que isso venha a
prejudicar o desenvolvimento das futuras gerações. Há de se considerar que as
necessidades humanas são ilimitadas, porém os recursos naturais não, eis então a
importância deste princípio (AMADO, 2014, p. 88).
Assim, é fundamental que as atividades econômicas sejam exercidas de
maneira a promover a harmonia entre as questões econômicas e ambientais
(FIORILLO; FERREIRA, 2009, p.14).
Cumpre destacar que, da análise do princípio do desenvolvimento
sustentável, o Direito Ambiental brasileiro não objetiva frear o crescimento
econômico, mas sim fazer com que o crescimento e desenvolvimento ocorram de
forma consciente, protegendo o meio ambiente e garantindo que os recursos
naturais do planeta não se extingam no futuro.
2.2.3 Princípio Poluidor Pagador
Trata-se de um princípio que é extraído, implicitamente, da leitura do
parágrafo 3º, do artigo 225 da Lei Suprema215.
Salienta-se que esse princípio não afirma que toda poluição ao meio ambiente
é permitida, desde que haja uma compensação pecuniária para tal. Deve ser
extraído o entendimento de que qualquer atividade econômica que, de maneira
inevitável, acabe por causar algum tipo degradação ao meio ambiente somente
poderá ser efetuada dentro dos limites estabelecidos pela legislação ambiental,
devendo, inclusive, observar-se que para tais práticas é necessário o devido
licenciamento (AMADO, 2014. p. 94).
O que se objetiva através desse princípio é que o poluidor arque com
eventuais prejuízos causados por ele, por conta de sua atividade econômica, para
que evite-se, conforme dispõe o art. 4ª da Lei 6.938/91216, a “[...] privatização dos
lucros e a socialização dos prejuízos”. Bessa Antunes explica:
215
CF, art. 225, § 3º: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.
216A imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos
causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.
399
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Os recursos ambientais como água, ar, em função de sua natureza pública,
sempre que forem prejudicados ou poluídos, implicam um custo público
para a sua recuperação e limpeza. Este custo público, como se sabe, é
suportado por toda a sociedade. Economicamente, este custo representa
um subsídio ao poluidor. O PPP (princípio do poluidor pagador) busca,
exatamente, eliminar ou reduzir tal subsídio a valores insignificantes.
(ANTUNES, 2012. p. 53)
Desta forma, a aplicação prática do princípio do poluidor pagador se faz
extremamente necessária, visto que, além de proteger os custos públicos de arcar
com eventuais prejuízos causados pela atividade privada, serve, também, como uma
forma de estimular os empresários a buscarem alternativas menos danosas ao meio
ambiente
e
que,
consequentemente,
causarão
menos
prejuízos
a
estes
empreendedores.
2.2.4 Princípio da Cooperação Entre os Povos
Tendo em vista que os danos causados por determinado país, podem causar
prejuízos para toda a população mundial, os cuidados com o meio ambiente não
devem possuir limites geopolíticos.
Essa noção básica é o alicerce para que sejam celebrados diversos tratados
internacionais de cunho ambiental, que serão abordados mais adiante na presente
pesquisa.
Um exemplo de como o Direito brasileiro adota essa política de colaboração é
o artigo 77 da lei 9.605/1998217.
Inclusive, com relação ao tema, Amado explica “[...] que este princípio foi
elevado pelo poder constituinte originário ao status de princípio fundamental que
217
Art. 77. Resguardados a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, o Governo
brasileiro prestará, no que concerne ao meio ambiente, a necessária cooperação a outro país, sem
qualquer ônus, quando solicitado para:
I - produção de prova;
II - exame de objetos e lugares;
III - informações sobre pessoas e coisas;
IV - presença temporária da pessoa presa, cujas declarações tenham relevância para a decisão de
uma causa;
V - outras formas de assistência permitidas pela legislação em vigor ou pelos tratados de que o Brasil
seja parte.
400
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
deverá nortear as relações internacionais do Brasil, consoante insculpido no artigo
4.º, IX218, da Lei Maior” (AMADO, 2014. p. 98).
Em suma, pela aplicabilidade deste princípio, nota-se a atitude positiva do
Brasil na participação de acordos que visam o bem estar social na perspectiva
global, através da aceitação de normas em comum, desde que resguardada,
entretanto, a soberania do País.
Tendo em vista o objeto do presente estudo, o princípio da cooperação entre
povos é extremamente importante no combate à bioinvasão de espécies pela água
de lastro, na medida em que permite alicerçar a participação do Brasil em tratados
internacionais, como a Convenção da Água de Lastro de 2004, que será analisada
mais adiante.
3 BIOINVASÃO PELA ÁGUA DE LASTRO: A CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
DA ÁGUA DE LASTRO 2004 E A NORMAM/20.
3.1 ESPÉCIES INVASORAS
A vida no planeta terra como hoje é conhecida é fruto de um longo processo
de evolução, que se iniciou há aproximadamente 4,6 bilhões de anos: os primeiros
seres vivos eram espécies microscópicas e unicelulares que lentamente foram
evoluindo até atingirem o tamanho em complexidade dos tempos atuais.
Diferentes partes do planeta Terra possuem diferentes características da
natureza, como o clima, umidade, acidez da água, pressão atmosférica etc. E é
graças a essa imensa variedade de condições ambientais que hoje existem
incontáveis formas de vida, conhecida como biodiversidade, ou seja, “a
biodiversidade pode ser definida como a variação biológica
de determinado
lugar ou, em termos mais genéricos, como o conjunto de diferentes espécies de
seres vivos de todo o planeta” (VARELA; FONTES; ROCHA, 1998, p. 20).
218
CF, Art. 4º, IX: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
(...)
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
401
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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Durante o processo evolutivo, na medida em que se espalhavam pelo globo
terrestre, as espécies foram se adaptando ao ambiente e adquirindo características
físicas e biológicas próprias219. Com o passar do tempo a vida na Terra se auto
regulou, até que fossem formados os ecossistemas atuais.
Assim, regiões tropicais ou polares, chuvas ou secas, com mares rasos ou
profundos, com ou sem atividades vulcânicas, todas estas possuem animais, plantas
e até seres microscópicos adaptados aos seus respectivos ambientes ao longo
deste longo processo de evolução.
Diferentes espécies, de diferentes regiões possuem características próprias
que as permitem viver de forma harmoniosa com o ambiente e com o ecossistema
local.
E, com efeito, há de se destacar que a recíproca também é verdadeira: na
medida em que os diversos ecossistemas foram se desenvolvendo por todo o
mundo, a interação dos seres vivos também alterou as condições físicas do meio
ambiente. Um exemplo é a maneira com que diferentes espécies de algas alteram a
cor dos mares e oceanos. Outro exemplo, ainda mais evidente, é como os seres
humanos alteraram a paisagem do planeta, substituindo o verde das florestas pelas
grandes metrópoles.
Aliás, a maneira como o ser humano e o meio ambiente se adequaram um ao
outro é bastante curiosa e peculiar. O homem passou por mudanças físicas para se
adaptar ao seu habitat natural. Cor da pele, estatura, quantidade de pelo no corpo e
até o sistema digestivo, tudo se adaptou de acordo com a respectiva região do
planeta. Da mesma forma, condições naturais influenciaram a maneira como o ser
humano adaptou o ambiente a si próprio.
Nas regiões mais secas, por exemplo, o homem se viu obrigado a construir
sistemas de irrigação para trazer a água de regiões onde ela é mais abundante. Nos
locais onde há maior atividade sísmica, as construções são preparadas para resistir
aos terremotos. Onde existiam rios, foram construídas usinas hidrelétricas, onde
existiam áreas planas, com grande intensidade dos ventos, construíram-se usinas
Os referidos autores completam afirmando que “a existência de maior ou menor número de
espécies em determinado lugar depende de diversos fatores, como a temperatura, a umidade, o solo,
a quantidade de rios, a interferência humana, entre muitos outros. As regiões que têm maior número
de fatores favoráveis, por consequência, têm maior número de espécies, maior biodiversidade.
219
402
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eólicas. Igualmente, nas regiões costeiras, aproveitaram-se as condições naturais
para a construção dos portos.
Ou seja, pode-se dizer que se hoje existe um equilíbrio entre o ambiente e os
seres que nele habitam, este é o resultado de um longo período de evolução,
adaptação de um ao outro.
Entender esse equilíbrio que os ecossistemas hoje possuem é fundamental
para que se compreenda o maior risco trazido pelo uso descontrolado da água de
lastro: a introdução de espécies invasoras.
A operação de carregamento e descarregamento da água de lastro é bastante
simples: a embarcação abre comportas que permitem a entrada da água dos portos
de origem para que estas preencham seu compartimento de lastro. Ao chegar ao
porto de destino, a embarcação, na medida em que vai sendo carregada, bombeia a
água para fora esvaziando o referido compartimento.
O grande problema é que
a água utilizada para lastrear muitas vezes
contém espécies de seres vivos, como crustáceos, algas e até pequenos peixes,
que acabam sendo introduzidas em ambientes (COLLYER, 2007, p. 147).
Ao se encontrarem em um novo habitat, as espécies invasoras se deparam
com um ecossistema totalmente diverso e em muitos casos não encontram
predadores naturais. Logo, começam rapidamente a se multiplicar e, por
consequência, desequilibram o ecossistema local. A introdução de uma diferente
espécie de alga, por exemplo, pode perfeitamente alterar as propriedades físicoquímicas da água, tornando-a imprópria para que peixes locais nela sobrevivam
(VARELLA; FONTES; ROCHA, 1998, p. 34.).
Os riscos de dano envolvendo a bioinvasão são de curto, médio e longo
prazo. No primeiro caso, a introdução de espécies exóticas pode causar um prejuízo
econômico à comunidades locais, que dependam da pesca, por exemplo. Em médio
prazo, existe o risco de extinção de espécies que possam não resistir a concorrência
dos novos “visitantes”. Por fim, a longo prazo, há o risco da homogeneização de
espécies ao longo do globo terrestre, uma vez que já em 1998, segundo estudos,
“[...] a extinção (tinha) procedido na faixa dos 1.000 a 10.000 vezes sua taxa de
referência nos últimos 65 milhões de anos.” (VARELLA; FONTES; ROCHA, 1998, p.
28.).
403
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A água de lastro, com o grande aumento de fluxo dos transportes marítimos e
com advento de tecnologias que possibilitaram o aumento das embarcações nas
últimas décadas (ZANELLA, 2010, p. 64), tornou-se um dos maiores vetores de
espécies invasoras. A seguir, para trazer maior compreensão a respeito do tema,
serão apresentados alguns casos notórios de invasão de espécies que foram
comprovadamente oriundas da água de lastro.
3.1.1 Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei)
O mexilhão dourado é um molusco aquático oriundo da parte sul do
continente asiático. A espécie é conhecida pela capacidade de adaptação e pela
rapidez de sua infestação: começam a reprodução com cerca de um mês de vida,
quando tem pouco mais de 0,5 cm. O período de vida médio destas criaturas é de
aproximadamente 3 anos (COLLYER, 2007, p. 148).
Apesar de atingirem um tamanho de 3 ou 4 centímetros na fase adulta, em
sua fase larval o mexilhão dourado é tão pequeno que não pode ser visto a olho nu.
Isso significa que cada carregamento de água de lastro pode transportar uma
grande quantidade, o que faz com que a invasão deste tipo de criatura seja bastante
agressiva. Durante o seu desenvolvimento, a larva do molusco se fixa em objetos
sólidos e logo passa tanto a crescer quanto a se reproduzir rapidamente, resultando
em uma imensa colônia de “massa incrustante”. (ZANELLA, 2010, p. 83):
Ao serem introduzidos em um novo ecossistema, o mexilhão dourado não
encontra predadores e por isso seu desenvolvimento é extremamente voraz e as
consequências podem causar grande prejuízo. Quando se fixam em tubulações,
podem acarretar no seu entupimento, por exemplo. Quando se fixam em turbinas de
grande usinas hidrelétricas o prejuízo pode ser ainda maior, tendo em vista que a
limpeza e manutenção geram custos extraordinários às companhias, que direta ou
indiretamente são repassados ao consumidor final.
Além das prejuízos financeiros, o mexilhão dourado causa um imenso estrago
à natureza, na medida em que quebra o equilíbrio do ecossistema local. Uma das
grandes consequências é a alteração das características físico-químicas da água,
pelo fato de ser uma espécie filtradora (ZANELLA, 2010, p. 84).
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O outro grande dano causado ao ambiente é a o prejuízo acarretado à cadeia
alimentar. Algumas espécies locais eventualmente podem passar a se alimentar do
mexilhão dourado e excluir de sua dieta as e outras espécies que costumavam
consumir, resultando no aumento desproporcional da população.
Acredita-se que sua entrada, por volta de 1991, na América do Sul tenha
ocorrido inicialmente pela Argentina, através de água de lastro oriunda de
embarcações chinesas. Logo a espécie se espalhou por vários países sulamericanos, inclusive o Brasil. A principal causa para esse rápido avanço foi a falta
de políticas comum aos países da região para combate de espécies exóticas.
(ZANELLA, 2010, p.85).
O Brasil, foi igualmente incapaz de conter seu avanço e logo o molusco
invasor pode ser localizado em diversos estados do País. Os prejuízos foram
imensos. Um bom exemplo foram os danos causados àquela que era até então a
maior usina hidroelétrica do mundo, Itaipú. A presença do mexilhão dourado em
suas turbinas gerou um aumento nas custas de manutenção que atingiram valores
estratosféricos: mais de um milhão de dólares por dia (COLLYER, 2007, p.148).
Custo este que foi repassado à população.
3.1.2 Mexilhão-Zebra (Dreissena polymorpha)
O molusco conhecido popularmente como mexilhão-zebra recebe esse nome
por conta de suas conchas listradas em branco e preto, que na fase adulta
raramente ultrapassa os 0,5 centímetros de comprimento.
Natural do Mar Cáspio, foi detectado no início da década de 1980 na Região
dos Grandes lados, localizada próxima à fronteira dos Estados Unidos da América
com o Canadá e tem sua invasão atribuída à água de lastro (ZANELLA, 2010, p. 82).
As consequências de sua introdução nesse ambiente exótico causou uma
série de consequências negativas em questões ecológicas, econômicas e
diretamente relacionadas à saúde e bem estar dos seres humanos.
Por ser uma espécie filtradora, causou a redução de plânctons nativos, o que
afetou drasticamente a cadeia alimentar da região, causando uma grande redução
na quantidade de peixes que eram importantes para a pesca local. Além disso, no
405
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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processo de filtração o mexilhão-zebra acaba por acumular em seu tecido uma
quantidade de poluição orgânica que pode chegar a 300.000 vezes os níveis das
águas locais. Parte desse acúmulo de material poluente acaba sendo eliminado de
volta ao ambiente e, ao ser consumida por outras espécies acaba por contaminá-las.
Se consumidas, essas espécies contaminadas podem ser bastante prejudiciais à
saúde humana.
Assim como outras espécies de moluscos, também, se fixa em qualquer
superfície dura para logo começar a se multiplica. Contudo, uma característica única
faz dessa espécie diferente das demais e acaba por torná-la uma invasora bastante
agressiva: o mexilhão-zebra tem a capacidade de se fixar na massa incrustante
formada por outras espécies de moluscos. O resultado é a diminuição de espécies
nativas
menos resistentes,
que
podem
eventualmente
até
acabar
sendo
completamente eliminadas.
Nos Grandes Lagos, o mexilhão-zebra não encontrou predadores naturais e
logo sua multiplicação acelerada causou grandes prejuízos, quando a espécie
começou a bloquear passagens de água, bombas e dutos de refrigeração
industriais.
Em menos de 10 anos após sua introdução na região, o mexilhão-zebra já
havia se espalhado por outros lagos e começou a chamar a atenção das autoridades
locais. Embora o governo norte-americano tenha investido grande quantidade de
dinheiro para combater o avanço do mexilhão-zebra, os resultados foram frustrantes
(ZANELLA, 2010, p.62).
Os impactos causados pelo mexilhão-zebra na América do Norte foram imensos
e até hoje pode ser percebidos. Contudo, algo positivo pode ser extraído: por ter
sido o primeiro caso notório de invasão de espécie, foi também um dos mais
importantes, vez que chamou a atenção do mundo sobre os potenciais riscos deste
tipo de poluição e forçou o mundo a tomar medidas específicas para o seu combate,
conforme será a seguir.
406
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3.2 CONVENÇÃO INTERNACIONAL DA ÁGUA DE LASTRO 2004
Confirme dito, ao perceber os riscos decorrentes do uso da água marítima
como objeto de lastreamento das embarcações, as nações de todo o mundo
passaram a tomar medidas para mitigar tais riscos e proteger a humanidade.
Tratados internacionais e normas reguladoras locais foram adotadas por
diversos países, numa tentativa de se controlar os potenciais danos decorrentes do
alto fluxo de navios entre nações.
É seguro afirmar que, dentre as principais convenções envolvendo o Direito
Marítimo, a mais importante, em se tratando de água de lastro, é a Convenção
Internacional sobre o Controle e Gestão da Água de Lastro e Sedimentos de Navios.
Assinada em fevereiro de 2004, na cidade de Londres, Inglaterra, onde é
localizada a sede da Organização Marítima Internacional (“IMO”)220, foi realizada a
Conferência Internacional sobre a Gestão da Água de Lastro de Navios.
Participaram desta Conferência representantes de 74 países, um representante da
IMO, bem como 18 membros de membros organizações não governamentais.
Como resultado, foi adotada a Convenção Internacional sobre o Controle e
Gestão da Água de Lastro e Sedimentos de Navios.
A referida Convenção dá diretrizes aos Estados signatários, para que os
navios em tráfego internacional sejam obrigados a seguir determinados padrões na
manipulação da água de lastro e sedimentos, que variam de acordo com o plano de
gestão do navio. As embarcações deverão também manter um livro de
gerenciamento, bem como um Certificado Internacional de Gestão de água de
lastro221.
Outra importante medida estabelecida, é aquela que determina que os navios
em trânsito troquem a água de lastro a pelo menos 200 milhas náuticas, em águas
com pelo menos 200 metros de profundidade antes de entrar em águas territoriais
de outras nações, anulando as chances de introdução de espécies exóticas, vez que
a salinidade das águas em alto mar é relativamente elevada, se comparada com
220
IMO é uma agência especializada, ligada às Nações Unidas, responsável por aumentar a
segurança marítima e prevenir a poluição causada por navios.
221 Trata-se de um documento emitido nos termos da Convenção da Água de Lastro, de 2004, que
certifica que o navio foi devidamente vistoria e que está em conformidade com as exigências e
requisitos da Convenção.
407
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
águas costeiras – por conta do desaguamento dos rios de água doce. As espécies
costeiras não sobrevivem ao nível de salinidade em alto mar, e vice-versa
(ZANELLA, 2010, p.78).
Embora tenha contado com a participação de um grande número de países, a
Convenção não passou a vigorar de maneira imediata, por conta do que está
disposto em seu art. 18222, que determina que a Convenção só passará a ser
mandatória, quando ao menos 35 Estados forem signatários e que a frota mercante
desses países represente, no mínimo, de 35% da frota mundial
Mesmo passados cerca de onze anos desde o acontecimento da Conferência
da Água de Lastro em Londres, esta permanece aguardando para que passe a
produzir efeitos em nível internacional. Embora já se tenha atingido o número
mínimo de países signatários, até o dia 01 de novembro de 2015 eram 44, a frota
mercante combinada destes países ainda era suficiente para que o mínimo
estabelecido de 35% fosse atingido, sendo que até está mesma data esse
percentual chegava a 32,89.
Todavia, esse fato não torna a Conferência da Água de Lastro de Londres
menos importante. Embora ainda não esteja sendo mandatória, nada impede que os
países que aderiram à Convenção implementem tais regras em seus territórios.
O Brasil não só foi o segundo signatário da Convenção, sendo antecedido
somente pela Espanha, como também, já no ano seguinte, aprovou a NORMAM/20,
que até o presente momento é a maior ferramenta normativa brasileira no combate
aos males causados ao meio ambiente pela água de lastro, conforme será
demonstrado a seguir.
3.3 NORMAM 20/DPC
Conforme visto, embora o Brasil tenha aderido à Convenção Água de Lastro
2004, esta ainda não entrou em vigor, pois ainda não atingiu a porcentagem mínima
222
Artigo 18 Entrada em vigor:
1- A presente Convenção entrará em vigor 12 meses após a data em que não menos do que trinta
Estados, cujas frotas mercantes combinadas constituam não menos que trinta e cinco por cento da
arqueação bruta da frota mercante mundial, tenham assinado a mesma sem reservas no que tange a
ratificação, aceitação ou aprovação, ou tenham entregue o instrumento de ratificação, aceitação,
aprovação, ou adesão requerido em conformidade com o Art. 17.
408
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
da frotas mundial de navios. Entretanto, conforme já citado acima, cabia a cada país
optar pela aplicação das regras dentro de seu próprio território.
Desta forma, em julho de 2005, por meio da Portaria 52, a DPC aprovou a
NORMAM 20/DPC, que até o presente momento é a maior ferramenta normativa
brasileira no combate aos males causados ao meio ambiente pela água de lastro.
A NORMAM 20 deve ser seguida por quaisquer embarcações que utilizarem
portos ou trafegarem em águas jurisdicionais brasileiras. Traz importantes
determinações, como a obrigação das embarcações realizarem a troca da água de
lastro a pelo menos 200 milhas náuticas, em águas com pelo menos 200 metros de
profundidade, sendo que essas trocas deverão ser realizadas com uma eficiência
mínima de 95% (ZANELLA, 2010, 87).
Tal medida, seguindo as diretrizes da Convenção da Água de Lastro de 2004,
visa impedir que águas de regiões exóticas, que possivelmente estejam
transportando material biológico ou contaminado, adentre em águas brasileiras,
minimizando o risco de invasão de espécies e propagação de epidemias.
A legislação brasileira tem se mostrado bastante rígida no tratamento da
poluição causada pela água de lastro. O Brasil é signatário de grandes conferências
internacionais
a
respeito
do
tema
e
possui
normas
e
regulações
que
responsabilizam, inclusive de forma criminal, aqueles que deixarem de cumpri-las.
Contudo, o combate a este mal que ameaça o meio ambiente e a saúde do
ser humano não pode se limitar apenas à edição de normas. É necessário que se
faça cumprir a regra. E não há melhor maneira de garantir o efetivo cumprimento, do
que através de um bom processo de fiscalização.
Dentre os procedimentos de fiscalização, cabe à Autoridade Marítima verificar
se o Plano de Gerenciamento dos Navios está de acordo com as exigências da
NORMAM 20, verificar se os Relatórios de Troca da Água de Lastro estão
devidamente preenchidos e a validade do Certificado Internacional de Gestão da
água de lastro (ZANELLA, 2010, p.108).
Contudo, uma fiscalização com tamanha responsabilidade não pode se limitar
somente à análise de papéis. A NORMAM 20 prevê a possibilidade da Autoridade
Marítima de coletar amostras da água de lastro e testá-las para que seja
409
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
comprovado que, de fato, a troca da água de lastro foi realizada de acordo com as
normas.
Todavia, nem sempre essa verificação física, através do teste da água, é
realizada. A falta de pessoal especializado, os custos gerados ou ainda o tamanho
da área a ser fiscalizada e o grande números de portos existentes no Brasil tem
criado verdadeiras barreiras para a efetiva aplicação das normas (SILVA; SOUZA,
2004, p.6).
Desta forma, pode-se concluir que embora o Brasil seja bastante avançado
para o gerenciamento e controle, a maneira ineficiente com que as fiscalizações são
realizadas, ainda deixa as costas brasileiras e a região portuária suscetíveis aos
riscos trazidos pela água de lastro.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há séculos que o comércio marítimo entre nações faz parte da história da
humanidade e, até hoje, ocupa uma importante posição para o desenvolvimento
socioeconômico de vários países.
Contudo, o advento das embarcações com casco de aço, que permitiram o
uso da água como material para lastreamento, trouxe consigo uma consequência,
que hoje já é uma das maiores ameaças ao ambiente marinho: a invasão de
espécies exóticas e a propagação de micro-organismos patogênicos.
Diversos casos de invasão, como o mexilhão-zebra, que causou imensos
prejuízos, ou o surto de cólera, que custou milhares de vidas na América do Sul são
fortes exemplos dos perigos oferecidos.
Por conta do seu potencial destrutivo, o uso da água de lastro sem o
gerenciamento apropriado chamou a atenção das lideranças mundiais que vem
aderindo, em maior ou menor escala, meio de combate para este mal. Conferências
e tratados internacionais vêm sendo realizados exclusivamente com o intuito de
mitigar tais riscos.
O Brasil é um país com uma imensa faixa litorânea, o que lhe garante uma
riquíssima biodiversidade e um grande potencial para se tornar uma potência do
comércio exterior mundial.
410
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Entretanto, o vasto litoral brasileiro, também, torna o país extremamente
vulnerável aos riscos trazidos pela grande movimentação de navios que transitam
diariamente em seu território.
Talvez por esse motivo que o Brasil seja um dos países do mundo cuja
legislação versando sobre o controle da água de lastro seja uma das mais
avançadas do mundo, bem como é “presença garantida” nas grandes conferências
globais sobre o tema. Nesse sentido o País inclusive já sediou importantes eventos
como o RIO 92, além de ter sido o segundo a aderir a Convenção da Água de Lastro
de 2004.
No âmbito nacional, o Brasil vem mostrando firmeza no combate ao mal uso
da água de lastro, com a instituição da NORMAM 20 e com avançadas e rígidas leis
ambientais, que preveem inclusive a prisão de responsáveis por danos ao meio
ambiente.
Todavia, ainda há muito progresso a ser feito, nesse sentido. As leis firmes e
avançadas não terão a devida eficácia para combater o uso descontrolado da água
de lastro enquanto as fiscalizações nos portos nacionais não tiveram o mesmo vigor
e rigidez.
Ademais, como foi demonstrado, a invasão de espécies é um problema que
não conhece territórios. O caso do mexilhão dourado, que adentrou na América do
Sul pelo território argentino, se tornou um grande problema no Brasil.
Desta forma, para que a batalha contra a poluição causada pela água de
lastro seja vencida, é extremamente importante que todas as nações se unam para
aderir a essa batalha. Afinal, o que se busca é que o meio ambiente do planeta
Terra continue saudável e protegido para todos.
REFERÊNCIAS
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2014
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Brasília. DF: Senado, 1998.
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equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
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Horizonte: Del Rey, 1998
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Juruá, 2010.
412
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO: O FUNDAMENTO LIBERAL DOS
PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA
NEGATIVE INCOME TAX: THE LIBERAL FOUNDATION OF INCOME TRANSFER
PROGRAMS
Rayza Maiczak Cardoso223
Nelson Souza Neto224
SUMÁRIO
Resumo 1 Introdução 2 Da Intervenção Estatal 2.1 Pressupostos Econômicos e Políticos 2.1.1
Limitações à Liberdade e a Legitimação do Intervencionismo 2.2 Pressupostos de Justiça 2.2.1
Justiça e o Direito 3 Papel dos Tributos na Intervenção Estatal 3.1 Limitações ao Ato de Tributar
3.1.1 Princípio da Igualdade 3.1.2 Capacidade Contributiva 3.1.2.1 Capacidade contributiva nos
impostos extrafiscais e indiretos 3.1.3 Princípio da Redistribuição 4 Imposto de Renda Negativo 4.1
Conceito Inicial: Milton Friedman 4.2 Variações e Críticas ao IRN 4.3 Programas Similares ao IRN nos
Estados Unidos 4.4 Programas Similares ao IRN no Brasil 5 Conclusão. Referências
RESUMO
O presente trabalho visa apresentar o instituto do Imposto de Renda Negativo, como um programa de
transferência de renda apontado por vertentes políticas liberais. Pretende-se destacar, portanto, a
possível convergência entre o estado mínimo e a realização de uma distribuição de renda.
Inevitavelmente expõe-se, também, os aspectos relacionados à justiça e a necessidade dos valores
éticos e morais na realização de regras e princípios de direito uma vez que estes elementos
fundamentam legalmente a existência de programas de transferência de renda na sociedade.
Ademais, o trabalho compreende o embasamento do sistema tributário nos princípios da igualdade,
capacidade contributiva e redistribuição, apontando a função destes nas intervenções estatais de
transferência, visto que a proposta do Imposto de Renda Negativo, como seu próprio nome aduz, se
determina pelo conceito de capacidade contributiva inexistente. Por fim, realiza-se uma análise dos
programas de transferência de renda em vigência nos Estados Unidos e no Brasil, depreendendo-se
que, muito embora o instituto do Imposto de Renda Negativo tenha importante influência nestes e
possuam características essenciais de seu mecanismo, não se constata a aplicação do seu conceito
original, mas de suas variações doutrinárias.
223
Técnica Contábil pelo Instituto Federal do Paraná. Acadêmica de Direito do Centro Universitário
Curitiba. [email protected]
224 Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-graduado em
Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo. Especialização em Direito
Tributário pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo. Graduação em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. [email protected]
413
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Palavras-chave: imposto de renda negativo, transferência de renda, liberalismo, justiça tributária,
capacidade contributiva.
ABSTRACT
This paper presents the Negative Income Tax institute, as an income transfer program conceived by
liberal political movements. The aim is to highlight, therefore, a likely convergence between the
minimal state and the realization of an income distribution. Inevitably, this paper also exposes the
aspects related to the justice and the necessity of ethical and moral values in carrying out rules and
principles of law, once these elements are the foundation of the legally existence of cash transfer
programs in community. Furthermore, this paper comprises the foundation of the tax system on the
principles of equality, ability to pay and redistribution, pointing out the function of these principles in
state cash transfer interventions, since the proposal of the Negative Income Tax, as its own name
indicate, is determined by the concept of non-existent ability to pay. Finally, the present paper make
an analysis of certain cash transfer programs in effect in the United States and in Brazil, inferring that
although the institute of Negative Income Tax has important influence in these programs, and even
though they show essential features of its mechanism, they do not represent an implementation of its
original concept, but of its doctrinal variations.
Keywords: negative income tax, cash transfer, liberalism, tax justice, ability to pay.
1 INTRODUÇÃO
É manifesta a existência da desigualdade social, representada pela
disparidade na distribuição de renda entre determinados grupos, sendo que muitos
indivíduos sobrevivem, atualmente, com menos do que o necessário para uma
sobrevivência digna, sem acesso a valores que lhes possibilitem todos os itens
necessários para a manutenção de suas vidas: saúde, alimentação, educação, etc.
A relatividade quanto a existência maior ou menor desta desigualdade, em
determinados locais, pode ser afetada por inúmeros motivos, entre eles construções
históricas e culturais diferentes, economias diferentes e principalmente por posições
governamentais diferentes. Neste sentido, é preciso verificar até que ponto o Estado
se responsabiliza pela ampliação destas disparidades e da concentração de
riquezas, quando deixa a liberdade de seus cidadãos ser desenvolvida sem qualquer
atenção à igualdade de oportunidades, bem como quando institui intervenções que,
ainda que indiretamente, prejudiquem o exercício desta pelos indivíduos.
Dentro desta concepção de responsabilização do Estado é que se tem como
414
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
foco principal deste trabalho a apresentação do modelo de transferência de renda
denominado Imposto de Renda Negativo, permitindo uma realidade de desigualdade
inferior a encontrada mundialmente, inserindo cidadãos novamente dentro da cadeia
de consumo e proporcionando-lhes uma igualdade que nunca tiveram para
exercerem suas liberdades.
Portanto, por meio da apresentação desta forma de transferência de renda,
que tomou destaque na década de 60 com economistas liberais, não se visa focar
na distribuição de renda como solidariedade do Estado ou assistencialismo, mas
pelo contrário, têm-se o intuito de demonstrar a exigência de um programa que seja
uma consequência lógica das próprias atitudes do Estado, como obrigação deste
para com seus cidadãos, totalmente compatível os ideias liberais de estado mínimo
e proteção do exercício da liberdade individual.
Importante salientar que, como o próprio nome do instituto sugere, a
obrigatoriedade do Estado na distribuição de renda deriva, nesse ponto de vista, do
mecanismo tributário. Explica-se que, apesar de esforçar-se aparentemente em
analisar a capacidade contributiva do cidadão, o sistema tributário atual, neste caso
em especial o brasileiro, acaba não se atentando àqueles que não possuem
qualquer capacidade contributiva quando da cobrança de impostos indiretos ou
quando realiza algumas funções extrafiscais.
Não havendo capacidade contributiva, ainda que indiretamente, os indivíduos
permanecem dentro do sistema tributário e afetam ainda mais seus meios de
sobrevivência para atender as exigências estatais. Assim, demonstra-se natural a
concretização de uma devolução aos indivíduos daquilo que pagaram quando não
haviam qualquer possibilidade de fazê-lo.
Ademais, mais que por aspectos políticos e econômicos, esta lógica se
fundamenta por uma questão de justiça. A aplicabilidade do Imposto de Renda
Negativo também se baseia na obrigatoriedade moral e/ou ética de se ansiar uma
sociedade e uma legislação justa, que coloque em foco e dê relevância a aspectos
sociais e permeie de forma plausível as adversidades existentes.
Desta forma, para a compreensão do Imposto de Renda Negativo, em seus
aspectos práticos, se faz necessária a construção de prévios objetivos específicos,
sendo eles: a demonstração da necessidade da intervenção do Estado mesmo em
415
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
políticas liberais, em compatibilidade com a realização de transferências de renda
que não cerceiem a liberdade individual e afastem qualquer caráter meramente
assistencialista deste ato; a compreensão do anseio e da necessidade de uma
sociedade de leis justas e, ainda, a apresentação dos princípios do sistema tributário
que justificam e limitam a distribuição de renda, como o da igualdade, da capacidade
contributiva e da redistribuição.
Por fim, em uma análise mais prática, será também colocado em exposição a
trajetória dos programas de transferência de renda existentes nos Estados Unidos e
no Brasil, a fim de se verificar a influência do instituto do Imposto de Renda Negativo
nestes e se, de algum modo, esta teoria já foi colocada em prática.
2 DA INTERVENÇÃO ESTATAL
2.1 PRESSUPOSTOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS
É sabido que o sistema capitalista, desde a ascensão da burguesia na idade
média, tem como premissa econômica inicial a ideia de que cada sujeito age
conforme seus interesses privados, isto pois a base para o funcionamento desse
sistema está na barganha, ou seja, nas relações de troca e negociação.
Diante dessas relações, Adam Smith (1996, p. 438), quando apresenta sua
teoria da “mão invisível”, coloca que os interesses pessoais movem o mercado, o
qual seguiria leis naturais preestabelecidas e independes da sociedade e de seus
costumes específicos. Nesse panorama, o autor coloca que não se pode aguardar
que o desenvolvimento econômico e social no sistema capitalista seja pensado de
forma consciente à sociedade, tendo em vista que esta é apenas uma circunstância
consequencial das pequenas negociações voltadas ao autointeresse.
Entretanto, deve-se ter em mente que dizer que o mercado é regido por uma
predisposição natural e independente não implica em dizer que este é perfeito.
Quando se passa a analisar o sistema capitalista pelo viés da política liberal,
demonstra-se que o Estado deve ter papel mínimo, porém, não se pode afirmar que
o intervencionismo estatal deve ser nulo, inclusive pela ideia que de o mercado não
é perfeito por si só. Logo, ainda que se tenha como prioridade a valorização das
416
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
liberdades e garantias individuais neste modelo de política governamental, se faz
imprescindível a atuação do Estado em determinadas funções, pois, “O liberal
consistente não é um anarquista” (FRIEDMAN, 1977, p. 38).
Desta forma, depreende-se que o governo deve realizar a manutenção do
sistema capitalista, mas por meio da regulamentação das regras aplicáveis a este e
visando corrigir as falhas do mercado que através do tempo foram passiveis de
identificação, contudo, não sendo possível a limitação da intervenção em uma lista
taxativa, mas exemplificativa, pois
Nas circunstancias específicas de determinada época ou nação, dificilmente
há alguma coisa realmente importante para o interesse geral que não possa
ser desejável, ou até necessário, que o governo assuma – não porque os
particulares não tenham condições de fazê-lo eficientemente, mas porque
não o farão. (MILL, 1996, p. 547)
Portanto, considerando que o mercado, por meio de particulares, não visa
essencialmente o bem-estar coletivo como fim próprio e que a liberdade é um ponto
de defesa essencial da política liberal, necessária se faz a verificação do que se
enquadra no conceito de liberdade e até que e ponto o Estado deve, por meio do
referido intervencionismo, garanti-la.
2.1.1 Limitações à Liberdade e a Legitimação do Intervencionismo
A liberdade, em seu conceito literal, deve ser entendida como “1. Condição de
Livre. 2. Direito de decidir e agir segundo a própria vontade; livre-arbítrio” (LUFT,
2000, p. 423). Logo, a liberdade é a capacidade que os sujeitos têm de agir
conforme suas aspirações, contudo, para que um indivíduo seja de fato livre, deve
este possuir um conjunto capacitário que lhe permita isto (SEN, 2000, p. 95).
Explica-se que o individuo deve possuir subsídios fáticos que lhe permitam
agir conforme suas vontades e necessidades: alimentação, saúde, educação,
emprego, entre outros. Assim, quando o sujeito é privado de quaisquer dos
elementos acima, passa a ser privado de liberdade substantiva e limita suas
escolhas por questões de sobrevivência e dignidade.
Desta forma, a falta de liberdade substantiva coloca em questão um ciclo,
417
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
pelo qual o individuo não consegue renda para obtê-la, e não a obtém de forma com
que possa gerar renda (SEN, 2000, p. 23), concluindo-se, portanto, que a pobreza
pode ser entendida como falta de renda, mas também como falta de determinadas
capacidades e ambas possuem uma correlação fática conforme demonstrado.
Acontece que tal ciclo afeta diretamente o sistema capitalista e demonstra,
ainda, uma afronta à defesa da liberdade protegida pela política liberal, pois causa
uma direta limitação da capacidade de realizar transações econômicas essenciais
ao mercado. Uma vez sem liberdade substancial e renda, o indivíduo passa a
considerar em suas escolhas outros fatores de negociação do que sua real vontade,
ficando susceptível a negociações desfavoráveis.
Diante do exposto, o intervencionismo estatal se faz justificável na atuação de
permitir o acesso do sujeito às bases do que lhe torna livre e proporcione o
crescimento econômico individual e, em maior escala, da sociedade em geral. Logo,
o desenvolvimento dos aspectos sociais será tão fim ao Estado, quanto o próprio
desenvolvimento econômico, pois estarão diretamente relacionados.
Como já explicitado, dificilmente, o próprio mercado por meio de seus agentes
tome o dever de promover subsídios necessários à liberdade substantiva e renda
dos indivíduos. Por este motivo entende-se ser “altamente desejável que a garantia
de subsistência seja assegurada por lei.” (MILL, 1996, p. 539).
Portanto, tal intervencionismo deve ser realizado pelo Estado, mas tanto
quanto possível limitado pelas liberdades dos demais indivíduos da sociedade e
dentro de um conjunto previamente acordado e legitimado como justo, momento em
que o direito, por meio das leis e princípios, se faz essencial.
2.2 PRESSUPOSTOS DE JUSTIÇA
Para que a atuação estatal seja legítima, esta deve ser previamente acordada
por meio de regras, que estejam relacionadas ao valor de justiça da sociedade. Não
é concebível a ideia de que, por meio de políticas governamentais, seja fomentado
um instituto que a sociedade não considera como justo. Para John Rawls (2008, p.
4) “as leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem
ser reformuladas ou abolidas se forem injustas.”
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GESTÃO E CONTROLE
Nesse sentido, verifica-se que as intervenções estatais devem ocorrer de
forma previamente estabelecidas, de maneira que sua aplicabilidade esteja dentro
dos padrões éticos e morais da sociedade, bem como dentro de uma ordem jurídica
aprovada e condizente com os objetivos desta.
Ralws (2008, p. 73) coloca que a justiça deve ser representada por dois
princípios de caráter universal, escolhidos pelos indivíduos enquanto estes estavam
sob um “véu da ignorância”, ou seja, para o autor, as pessoas são aptas a escolher
princípios de justiça quando não têm a mínima percepção sobre seus talentos,
vantagens e desvantagens.
Desta forma, neste estado de ignorância quanto a sua posição social e
capacidades individuais, os indivíduos tendem a escolher princípios norteadores que
visem a igualdade e a justiça, formulando assim um contrato social. De forma
implícita, pode-se entender, portanto, que o autor concorda que, sabendo de suas
características, o indivíduo tende ao autointeresse, como já afirmado anteriormente.
2.2.1 Justiça e o Direito
Claramente pode-se perceber que a noção de justiça se aplica tanto aos
cidadãos como ao Estado, o qual deve possuir um sistema estruturante a fim de se
organizar e fazer a manutenção da sociedade.
Os institutos devem ser justos e devem gerar um sistema também assim
definido, com regras, princípios e políticas que confirmem e fomentem tal
característica. Diante disto, importante observar a diferença entre estes elementos.
Ronald Dworkin (2002, p. 36) demonstra essa diferenciação e afirma que um
princípio jurídico é na realidade um padrão a ser seguido, não com um objetivo
específico de promover algo, ou assegurar alguma condição econômica ou social,
mas sim por ser apenas uma expressão de justiça, equidade ou moralidade e, neste
sentido, não apresentam consequências jurídicas automáticas. Ainda, os princípios
possuem um mecanismo de possível dimensão, prescrevendo direitos que, durante
um conflito, ambos podem continuar sendo considerados válidos, entretanto,
possuindo valorações diferentes na aplicação do caso concreto.
Já as regras prescrevem condições e apresentam consequências jurídicas
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GESTÃO E CONTROLE
exatas, sendo a única forma – ou a ideal forma – de se prever exceções, as suas
respectivas previsões na própria regra, essas tantas quanto forem necessárias
(DWORKIN, 2002, p. 40). Na situação em que duas regras entram em conflito, uma
delas não poderá ser válida, e diante desta situação, haverão outras regras que
definirão qual delas deve permanecer no ordenamento.
Princípios e regras não podem ser confundidos ainda com as políticas, estas
representam outro instituto, o qual possui influência mútua com o direito, tendo em
vista que dele depende para ser legítimo e ao mesmo tempo, pode vir a moldá-lo
conforme suas finalidades. A política, por sua vez, é “aquele tipo de padrão que
estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto
econômico, político ou social da comunidade.” (DWORKIN, 2002, p. 36).
Identifica-se, portanto, que o Estado precisa do direito, ou seja, de regras,
princípios e políticas, cada um desses institutos dentro de suas atribuições práticas,
para intervir nas relações da sociedade, visando à atribuição de deveres e direitos
aos indivíduos de forma legítima e justa, principalmente, como já explanado, no que
se refere a evitar a pobreza como falta de renda e de liberdades substantivas.
3 PAPEL DOS TRIBUTOS NA INTERVENÇÃO ESTATAL
3.1 LIMITAÇÕES AO ATO DE TRIBUTAR
Com o neoconstitucionalismo o direito passa a se aproximar novamente da
moral e da ética, de forma a determinar a necessidade da legislação ser, em geral,
interpretada e validada juridicamente sob determinados pontos de vista éticos. É
desta forma que se faz necessário entender a aplicabilidade dos princípios à
tributação, como forma de limitação ao próprio ato de tributar.
Isto pois, é por meio destes institutos que se tem as circunstâncias e
impedimentos dos atos de tributação, que visam evitar arbitrariedades e a criação de
privilégios ou discriminações injustificadas na instituição das leis tributárias, bem
como em suas aplicações (TIPKE, 2002, p. 29).
Neste sentido, dentre todos os princípios norteadores e limitadores do direito
tributário, faz-se necessário debruçar-se acerca dos postulados que demonstram um
420
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
dos fundamentos deste trabalho: que o direito tributário deve ser interpretado de
forma justa com a situação fática pela qual os contribuintes passam.
3.1.1 Princípio da Igualdade
Nitidamente, é possível afirmar que as diferenças permeiam os indivíduos das
mais variadas formas, sejam elas econômicas, culturais, religiosas etc., neste
sentido, verificar a existência de um princípio da igualdade demonstra a necessidade
de se relevar tais diferenciações para determinados fins. Diz-se determinados fins
pois, é possível que, de forma justificada, tais discriminações mereçam diferentes
tratamentos frente à sociedade (MELLO, 2013, p. 11).
Compreende-se o princípio da igualdade, em linhas gerais, sob dois aspectos:
material e formal. O primeiro, diretamente relacionado com o anseio de nivelamento
dos indivíduos em sua totalidade, deve ser entendido como o “tratamento equânime
de todos os homens, proporcionando-lhes idêntico acesso aos bens da vida. Cuidase, pois, da igualdade em sua concepção ideal, humanista, que jamais foi
alcançada” (COSTA, 2007, p. 55). Já a igualdade formal se caracteriza como a
igualdade na lei e perante a lei, direcionada respectivamente àqueles que realizam e
aplicam as normas (SILVA, 2005, p. 215). Portanto, inicialmente, o legislador não
deverá formular normas que de alguma forma visem a discriminação injustificada,
enquanto o aplicador da legislação, em segundo momento, tem por função proteger
a interpretação e aplicação das referidas normas, dentro das finalidades para quais
foram instituídas.
Visto o princípio da igualdade sob seus aspectos gerais, necessário se faz
verificar sua aplicação no âmbito tributário. Destarte, se o princípio é geral e
fundamenta todo o ordenamento jurídico, resta inegável sua aplicabilidade sobre as
relações jurídico tributárias.
A igualdade na tributação desenvolve-se em inúmeros aspectos: a
generalidade da tributação, a atenção à capacidade contributiva, a cautela na
concessão de isenções de forma com que não venham a gerar privilégios odiosos,
etc. (TORRES, 2011, p. 79).
421
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Muito embora a generalidade na tributação seja um dos aspectos da
igualdade, se faz de extrema importância frisar sua diferenciação. No que se refere a
generalidade, esta se caracteriza pela premissa de que todos aqueles que possuem
condições de pagar tributos, devem fazê-lo, enquanto a igualdade na tributação é o
aspecto que trás a necessidade de haver tratos diferentes para situações diferentes.
Destarte, a generalidade é o fato de que “todas as pessoas, naturais ou jurídicas
com capacidade de pagar devem submeter-se ao imposto[...]” (QUINTANA, 1994, p.
XXXV, tradução nossa) 225, enquanto a igualdade seria o fato que de “as pessoas em
igual situação devem receber o mesmo tratamento, devendo conceder-se um
tratamento desigual as pessoas que encontrem em situações diferentes.”
(QUINTANA, 1994, p. XXXV, tradução nossa).226
Resta inegável, portanto, que analisar a igualdade tributária implica
necessariamente em verificar a capacidade que cada cidadão tem de contribuir com
este ônus e diferencia-los conforme esta análise, assim, muito bem coloca a doutrina
quando afirma que a capacidade contributiva é um instrumento do princípio da
igualdade (ÁVILA, 2012. p. 434).
3.1.2 Capacidade Contributiva
O princípio da capacidade contributiva tem sua principal fundamentação na
proteção do mínimo existencial e na dignidade da pessoa humana, visto que
determina à tributação a devida atenção ao que se faz possível tributar sem afetar a
vida digna do cidadão. Luciano Amaro (2010, p. 138) afirma muito acertadamente
quando explica que “O princípio da capacidade contributiva inspira-se na ordem
natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo
modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água.”
Logo, não havendo riqueza, o cidadão não possui nenhum mecanismo para o
pagamento dos tributos que não acarrete em afetar sua vida pessoal. Neste sentido,
o mínimo existencial é o limite da tributação, visto que este de forma alguma pode
ser atingido, sob consequência de se limitar a sobrevivência digna da pessoa, sua
“Todas las personas naturales y jurídicas con capacidad de pago deben someterse al impuesto”.
“Las personas en situación igual han de recibir el mismo trato impositivo, debiendo concederse un
trato tributario desigual a las personas que se hallen en situaciones diferentes”.
225
226
422
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
liberdade, ou, inclusive, quando direcionada as pessoas jurídicas, inviabilizar sua
própria existência e poder de negociação no mercado.
Entretanto, importante ressaltar que o critério do mínimo existencial, por si só,
não apresenta certa objetividade em se entender quanto é necessário para uma vida
digna, o que claramente pode ser variável pelas condições vividas por cada
indivíduo. Neste sentido, deve-se destacar a diferenciação apresentada por
Francesco Moschetti (1980, p. 265) entre capacidade contributiva e capacidade
econômica, sendo estas quaisquer manifestações de riqueza realizadas pelo
cidadão e aquela apenas a parte desta riqueza que de fato pode ser direcionada aos
tributos, após a devida análise das condições pessoais e familiares desse.
No que se refere a legislação brasileira, a capacidade contributiva vem
atualmente prevista no artigo 145, § 1° da Constituição Federal, afirmando a
premissa de que o legislador deverá “sempre que possível” verificar a capacidade
contributiva.
Deve-se dizer que tal expressão erroneamente leva a crer que a pessoalidade
exercida em tal verificação seria submetida ao poder discricionário do legislador, isto
é, a pensar que o legislador poderia determinar aquilo que julga possível ou
impossível, contudo, deve-se entender no sentido de que “apenas sendo impossível,
deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de
acordo com a capacidade econômica subjetiva do contribuinte.” (BALEEIRO, 2010,
p. 1097).
Logo, levanta-se a questão acerca da verificação quando tal análise se faria
impossível. Neste sentido, necessário se faz adentrar na aplicabilidade do princípio
em relação aos tributos extrafiscais e indiretos, visto que são os que demonstram
maior dificuldade em se compreender se são abrangidos pela capacidade
contributiva ou não.
3.1.2.1 Capacidade contributiva nos impostos extrafiscais e indiretos
Depreende-se que os impostos extrafiscais visam induzir o contribuinte a
praticar ou não praticar determinada conduta, logo, o imposto extrafiscal pode ser
incentivador ou desincentivador. Diante disto, a doutrina se interroga acerca da real
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
aplicação da capacidade contributiva quanto aos impostos com finalidade extrafiscal,
visto que se torna aparentemente difícil conciliar a elevação ou isenção de
determinado imposto e atender a capacidade contributiva, uma vez que tal
conciliação poderia afastar a própria finalidade extrafiscal, qual seja a realização de
um ato ou não.
Alguns autores defendem a total incompatibilidade entre a extrafiscalidade e o
princípio da capacidade contributiva (TIPKE, 2002, p. 46), bem como se tem na
doutrina o ponto de vista contrário, com enfoque na compatibilidade completa entre
os institutos (MITA, 2006, p. 127). Entretanto, foca-se na posição de Regina Helena
Costa (2003, p. 72 – 73) que afirma sobre a possível compatibilidade entre impostos
extrafiscais e a capacidade contributiva, quando esta é aplicada de forma atenuada.
Tendo em vista a tutela de outros princípios, isto pois a Constituição deve ser
analisada como um todo, acredita-se ser essa a interpretação mais próxima da
realidade pois, apesar de atenuada pela aplicação de outros objetivos e proteções
constitucionais, a capacidade contributiva ainda seria um limite a tributação. Isto é,
havendo a elevação da carga tributária para a inibição de determinada conduta,
ainda não poderá esta ser tanta que atinja o mínimo existencial e se configure como
confisco.
No que se refere aos impostos indiretos, primeiramente é preciso
compreender que, quanto a relação destes com a capacidade contributiva, esta deve
ser analisada sob o ponto de vista do contribuinte “de fato” e não do “de direito”,
pois, caso contrário, “o princípio poderia ser abandonado, para efeito de tributação
de alimentos básicos e de remédios, a pretexto de que os contribuintes de direito
dos impostos aí incidentes são empresas de altíssimo poder econômico” (AMARO,
2010, p. 141).
Casalta Nabais (1998, p. 481) e outros doutrinadores entendem que há
capacidade contributiva nos impostos indiretos, mas de uma forma muito branda,
que exige, ainda, a aplicação de outros princípios constitucionais que venham a
corrigir tal problemática. É diante deste fato que, quando se trata de capacidade
contributiva nos impostos indiretos, tem-se em discussão também o princípio da
seletividade.
Parece claro que aquele individuo considerado pobre não consumirá, em
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
regra, artigos de luxo, devido sua falta de capacidade para arcar com a compra
destes, entretanto, tal situação não parece tão acertada quando se coloca em
discussão a repercussão dos valores incidentes sob itens de necessidade básica. A
compra de um pacote de feijão não necessariamente indica que a obtenção deste
não está sacrificando outras necessidades do indivíduo, como a moradia digna ou a
educação, enquanto para outra parte da população a compra do mesmo produto em
nada influencia nas demais necessidades vitais.
Portanto, verifica-se que a aplicação do princípio da seletividade muito pouco
resolve o problema da capacidade contributiva nos impostos indiretos, pois, apesar
da menor alíquota em itens considerados essenciais, ainda assim retira-se das mãos
dos economicamente menos favorecidos valores que poderiam ser aplicados para a
manutenção da sua vida pessoal, logo, os impostos indiretos acabam possuindo um
caráter regressivo.
Assim, apesar de auxiliar, parcialmente, no consumo de itens fundamentais,
não seria razoável analisar a capacidade contributiva nos impostos indiretos
dividindo tal análise entre bens indispensáveis ou não, de forma que resta inegável
que os impostos indiretos não conseguem completamente atender a capacidade
contributiva dos indivíduos.
3.1.3 Princípio da Redistribuição
O termo redistribuição, quando visto dentro do contexto apresentado, por si só
já reflete o conteúdo de seu princípio. É possível certamente imaginar, e visto que
correto compreender, que a redistribuição se relaciona com as noções de
solidariedade, justiça fiscal e capacidade contributiva.
No Brasil, a Constituição Federal em seu artigo 3° apresenta os objetivos
fundamentais que a nação deve buscar, entre eles a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais.
Sendo estes objetivos fundamentais,
dificilmente seria possível sustentar que a tributação estaria livre de promovê-los.
Ainda que fosse possível, o legislador confirma a extensão de tais objetivos aos
tributos quando confirma no artigo 170 da Constituição Federal que a ordem
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
econômica terá por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, tendo entre seus princípios a redução das desigualdades regionais e
sociais.
Compreende-se que a redistribuição é um processo contínuo que deve visar
corrigir a distribuição primária causada pelo mercado (NEUMARK, 1994, p. 211), isto
é, afasta-se neste sentido as desigualdades consequenciais dos diferentes objetivos
de vida de cada indivíduo, uma vez que este é o desempenho de sua própria
liberdade (GODOI, 1999, p. 211).
Deve-se dizer que a redistribuição ocorre de duas maneiras, primeiramente
pela própria forma que o ônus dos tributos é dividido entre os indivíduos da
sociedade e, ainda, por meio da definição dos próprios gastos públicos, momento
seguinte a realização do ato de tributar (MACHADO, 2010, p. 45).
A redistribuição, pela forma como o ônus da tributação é distribuído pela
sociedade, trás consequentemente a discussão acerca da progressividade, que não
deve ser confundindo com a proporcionalidade, visto que
A progressividade não é uma decorrência necessária da capacidade
contributiva, mas sim um refinamento desse postulado. A proporcionalidade
implica que riquezas maiores gerem impostos proporcionalmente maiores
(na razão direta do aumento da riqueza). Já a progressividade faz com que
a alíquota para as fatias mais altas de riqueza seja maior (AMARO, 2010, p.
142).
Por outro lado, a redistribuição por meio dos gastos públicos, momento
seguinte à tributação, envolve além da própria prestação de serviços pelo Estado,
também, a redistribuição de renda.
Neste sentido é necessário ponderar que a redistribuição é um limitador do
ato de tributar, quando se faz pela distribuição do ônus tributário, mas, ao mesmo
tempo, se torna elemento de correção dos atos governamentais que, de alguma
forma, ferem seus próprios limitadores. Se o sistema tributário nacional não atende
alguns requisitos fundamentais estabelecidos a ele, como por exemplo a análise da
capacidade contributiva, exigível se faz a existência de meios redistributivos que
visem corrigir tais adversidades e retorne o conceito de justiça tributária.
426
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
4 IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO
Diante do exposto acerca do sistema tributário, resta inegável a existência de
lacunas legislativas e atividades estatais que, de alguma forma, permitem a
inadequação da tributação com seus princípios norteadores.
De destaque dessa inadequação, entende-se a verificação incompleta da
capacidade contributiva em atuações tributárias do Estado, quando se utiliza de
alguns métodos extrafiscais e, principalmente, quando impõe impostos indiretos. Por
este motivo, tendo em vista o principio da redistribuição, entende-se necessário, por
parte do próprio Estado, a correção deste ato que vai além dos reais limites
atribuídos a este.
Diante disto é que se apresenta o Imposto de Renda Negativo, que por meio
do próprio sistema tributário, visa atender àqueles que não possuem capacidade
contributiva e ainda assim permanecem dentro deste sistema.
4.1 O CONCEITO INICIAL: MILTON FRIEDMAN
Muito embora se tenha breves esboços na literatura acadêmica já na década
de 40 sobre o Imposto Negativo ou Imposto de Renda Negativo (IRN), o instituto
apenas tornou-se definitivamente reconhecido com o economista norte americano
Milton Friedman em 1962 no livro “Capitalismo e Liberdade”, no qual faz sua
primeira explicação acerca desta possível forma de distribuição de renda.
Basicamente, segundo a proposta de Friedman, o IRN se caracteriza pelo
mecanismo do próprio Imposto de Renda experimentado atualmente, contudo
aplicado de forma negativa em proporções inferiores ao mínimo tabelado. Isto é,
assim como ultrapassando certo limite de valor, resta demonstrada a capacidade
contributiva e o sujeito passa a estar obrigado a determinado pagamento de
imposto, estando este com renda abaixo de determinado valor tabelado e, portanto,
não havendo capacidade contributiva, estaria obrigado a receber do Estado uma
complementação em dinheiro da diferença entre o realmente recebido e o mínimo
preestabelecido, em um cálculo porcentual.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Importante salientar que as porcentagens aplicadas sob o cálculo do subsídio
poderiam ser graduadas, no mesmo modo como o próprio pagamento do imposto de
renda, desta forma, havendo um limite claro de qual o valor mínimo que uma pessoa
deve receber como garantia de renda (FRIEDMAN, 1977, p. 167), supondo que esta
não tenha nenhuma além da oferecida pelo subsídio.
O IRN, em sua concepção original, apresentaria, assim, a possibilidade de
mitigar a pobreza por meio da transferência de renda sem interferir no mercado
(FRIEDMAN, 1977, p. 167), bem como, se destina a auxiliar especificadamente o
pobre, não categorizando o auxílio por qualquer outra motivação que não sua renda
e número de familiares (dependentes), caso o beneficio seja calculado por família.
Assim, aqueles seriam de fato amparados não por terem certa ocupação ou
idade, mas apenas pelo fato de não possuírem renda suficiente a manutenção digna
de suas vidas, sendo, portanto, o IRN substitutivo e centralizador dos programas de
distribuição de renda, facilitando inclusive sua manutenção pelo Estado e diminuindo
as burocracias da concomitância de diversos programas.
Percebe-se que o conceito de o subsídio ser pago em dinheiro é um dos
pontos mais importantes deste instituto em especial, visto que valoriza a liberdade
do indivíduo e influi apenas indiretamente na atuação do mercado, através do
consumo. Desta forma, o IRN está possibilitando a escolha pelo destinatário da
utilização dos valores recebidos, na forma que mais lhe convém.
4.2 VARIAÇÕES E CRÍTICAS AO IRN
Após o IRN tomar maiores proporções nas discussões políticas, como
consequência natural o instituto passou a ser alvo de análises críticas e propostas
de variações. Sendo assim, autores passaram a apresentar pontos que julgaram
capazes de aperfeiçoar o programa proposto por Friedman, tornando-o mais
adaptável e praticável, bem como apontar os defeitos teóricos e práticos do instituto,
entre eles, destaca-se o possível desincentivo ao trabalho e a utilização dos valores
inadequadamente.
Certamente, apresenta-se a questão do desincentivo ao trabalho como
suposta consequência do recebimento de transferências em dinheiro, justificada pela
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
indagação referente a falta de estímulo para, por meio de seus próprios esforços, o
beneficiário adquirir renda.
Robert Lampman foi um autor que mais escreveu acerca do instituto e sua
visão se distancia da proposta apresenta por Friedman. Para Lampman o IRN não
seria centralizador dos programas de distribuição de renda, mas deveria ser um
complemento às demais prestações do Estado, bem como, o autor propõe a
possibilidade da distinção entre aqueles capazes de trabalhar e os não capazes, de
forma que os primeiros passariam a receber menores subsídios que os segundos
(MOFFIT, 2004, p. 2).
Esta distinção não se caracteriza diretamente como a aplicação de work
requirements, pois não exige exclusivamente a condição de se estar trabalhando,
contudo, age com efeito muito próximo, pois condiciona àqueles aptos ao trabalho
menores benefícios e os incita a maior necessidade de estarem dentro do mercado
de trabalho.
Por outro lado, muito embora o desincentivo ao trabalho seja uma crítica de
destaque na doutrina acerca do tema, se faz importante salientar que a própria ideia
do IRN ser em cálculo porcentual já apresenta a possível manipulação dos
incentivos ao trabalho, sem a exclusiva necessidade da aplicação de work
requirements ou diferenciações entre os beneficiários. Isto pois, compreende-se que
a taxa de redução do beneficio, proposta por Friedman como 50 por cento, atua na
realização do cálculo fazendo com que o indivíduo receba maior valor quando
trabalha do que quando não o faz, conforme se demonstra:
Em 1978, as deduções importaram em 7.200 dólares por família de quatro
pessoas, e nenhuma acima da idade de 65 anos. Suponhamos que
estivesse em vigor o imposto de renda negativo, com uma taxa de subsídio
em 50% sobre as deduções não utilizadas. Neste caso, uma família de
quatro pessoas que não houvesse auferido renda se qualificaria para um
subsidio de 3.600 dólares. Se seus membros houvessem arranjado
emprego e auferido renda, o volume do subsidio seria rebaixado, mas a
renda total da família – subsidio mais renda –teria subido. Se a renda
houvesse sido de 1.000 dólares, o subsidio seria baixado para 3.100
dólares e a renda total chegaria a 4.100 dólares (FRIEDMAN; FRIEDMAN,
1980, p. 127-128).
No cálculo apresentado, o valor do benefício varia conforme a renda anterior
auferida, sendo independente disso aplicada uma taxa de redução, desta forma,
429
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
percebe-se que o montante total recebido pelo indivíduo será sempre maior quanto
houver renda anterior auferida.
Outra crítica apontada pela doutrina se refere a destinação dos valores
recebidos pelos indivíduos, uma vez que sendo a transferência feita em dinheiro,
deixa-se ao beneficiário a escolha de seus gastos e não se garante que estes
valores sejam realmente utilizados para os fins propostos pelo programa.
Claramente, o IRN, assim como qualquer outro programa de distribuição de
renda por meio de transferência direta de dinheiro, tem por objetivo mitigar a
pobreza, oferecendo, assim, uma possibilidade do sujeito atingir a igualdade de
oportunidades, entretanto, é essencial compreender que neste tipo de transferência
de renda, não cabe ao Estado invadir os anseios do sujeito e obriga-lo a utilizar os
valores de forma previamente estipulada, isto pois, retoma-se a ideia de que o IRN
foi pensado por doutrinadores liberais.
Logo, possível se faz levantar a questão de que criar estas diferenciações,
por sua vez, acabaria afastando um dos principais objetivos do IRN que é a
desburocratização e facilitação da manutenção do sistema pelo Estado.
Neste sentido, apresenta-se a opção de que, uma vez não sendo possível
que o Estado realize as diferenciações entre aqueles que utilizarão o dinheiro em
alimentação ou itens desnecessários, cabível se faz a orientação, por este e pode-se
até supor com auxílio das entidades particulares, sobre as prioridades relacionadas
as finanças familiares, sendo esta uma forma de educação que, consequentemente,
pode vir a gerar maior probabilidade da utilização do benefício dentro das
pretensões e objetivos do programa.
4.3 PROGRAMAS SIMILARES AO IRN NOS ESTADOS UNIDOS
Em geral, prevaleceram durante a trajetória histórica dos EUA os modelos de
programas de assistências de caráter liberal e de necessária comprovação de renda,
assim chamados programas means tested, afastando geralmente os programas de
transferência universal (SOARES, 2010. p. 84). Ademais, importante salientar que,
nos primeiros momentos, os programas de transferência de renda não tinham
caráter federal, visto a falta de centralização neste sentindo e, por isto, deu-se a
430
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
existência de múltiplos programas sociais, que variavam suas características
conforme o estado que os instituiu.
Na década de 30 ocorre, então, o início de uma intervenção federal visando a
padronização dos programas de distribuição de renda e o auxílio financeiro a estes.
Como primeiro passo, realizou-se a criação do SSA (Social Security Act) que
instituiu, entre outras coisas, o ADC (Aid to Dependent Children) (SOARES, 2010. p.
84).
O ADC, que atualmente se denomina TANF (Temporary Assistance for Needy
Families), apesar de constituir-se um programa de transferência de renda em
dinheiro, pouco se parece com o IRN em sua forma original. O objetivo do programa
era o auxílio a especificadamente famílias monoparentais com dependentes,
entretanto, em 1996, após a realização de reformas, além da alteração do nome, o
programa passou a ser direcionado a famílias carentes com dependentes, bem
como, passou a instituir a condição dos beneficiários estarem trabalhando em até 2
anos após o recebimento do primeiro benefício e estabeleceu o pagamento total
limitado a 5 anos (GEORGIA DEPARTMENT OF HUMAN SERVICES, 2015).
Outros programas paralelos também tomaram espaço no país como, por
exemplo, em 1965, o Supplemental Nutrition Assistance Program, também
conhecido como Food Stamp Program, que se caracteriza fundamentalmente dentro
do mecanismo do IRN, contudo, é pago sob a forma de tickets de alimentação.
Compreende-se também a ocorrência de algumas condicionalidades ao trabalho ou
treinamentos àqueles que não possuem dependentes e têm determinada idade,
variando conforme a regulamentação definida por alguns estados. (UNITED
STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE, 2014).
Contudo, apesar da existência de diversos programas americanos, o que se
destaca nas discussões acerca do IRN é o EITC (Earned Income Tax Credit), isto
pois, este programa é, em partes, consequência de uma proposta mais próxima ao
IRN pelo governo norte americano, durante a presidência de Richard Nixon,
denominado FAP (Family Assistance Plan) que não veio a ser efetivamente
aplicado.
O EITC, em sua configuração atual, após a reforma sofrida em 1994, se
caracteriza pela concessão de um crédito tributário, o qual é calculado sobre os
431
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
valores recebidos pelos trabalhadores, dentro de uma tabela específica de
variações, porcentagens e limites, sendo o recebimento independente de
constituição familiar ou existência de dependentes, o que não implica afirmar que os
valores e limites não sejam variantes com a existência ou não dessas circunstâncias
(DEPARTMENT OF TREASURY – INTERNAL REVENUE SERVICE, 2015). Em
2014, o maior benefício seria concedido no valor de 6.143 dólares para aqueles com
3 ou mais crianças, que auferiram renda de 13.700 até 19.200 dólares para solteiros
e até 23.300 dólares para casados (DEPARTMENT OF TREASURY – INTERNAL
REVENUE SERVICE, 2014).
Diante dos requisitos apresentados, depreende-se que o EITC realmente
abrange algumas das características inerentes ao IRN, entretanto, daquele
apresentado por Lampman e não da concepção original formulada por Friedman.
Afirma-se isto pois, claramente o EITC apresenta work requirements, uma vez
que só é pago àqueles com renda auferida anterior ao benefício, proveniente de
trabalhos ou atividades equiparadas, bem como o EITC não representa uma
substituição aos demais programas, mas um complemento aos existentes,
mantendo-se, assim, o TANF, o FSP entre os demais programas americanos
existentes.
4.4 PROGRAMAS SIMILARES AO IRN NO BRASIL
Deve-se dizer que as disparidades existentes entre os indivíduos no Brasil
têm suas origens na própria formação deste, quando, com seu descobrimento
razoavelmente tardio e sua extensão territorial demasiada, baseada em latifúndios,
deu-se a propensão da concentração de terras e de renda, o que inevitavelmente
apenas acentuou as desigualdades sociais e econômicas já existentes (SILVA,
2011, p. 157). Ademais, constata-se a contribuição dos períodos de instabilidade
política e jurídica, para a dificuldade de qualquer ação na alteração da realidade
social do país por parte governamental.
Compreende-se, então, que a pobreza passa a ser uma preocupação ao
Estado efetiva e expressamente após a promulgação da Constituição de 1988,
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
quando se deu nova estabilidade e firmou-se os princípios e objetivos do Estado
Democrático de Direito no Brasil.
Assim, é década de 90 que se tem o maior avanço na ampliação do Estado
nas políticas distributivas e protetoras, por meio de programas efetivamente
implementados como o PRODEA (1993), o Programa Comunidade Solidária (1996),
o PETI (1996) entre outros, até a criação, já a partir dos anos 2000, dos Programas
Fome Zero, Bolsa Escola, Auxílio Gás etc., que posteriormente foram unificados pelo
Bolsa Família.
Concomitantemente a existência dos programas supracitados na década de
90, teve-se em andamento o Projeto de Lei nº 2.561/92, o qual visava a instituição
do Imposto de Renda Negativo, direcionado a âmbito nacional e assinado pelo
Senador Eduardo Suplicy.
O fato da proposta ter sido federal se destacou na conjuntura política do
período, no que se refere aos programas de renda mínima, pois até esta iniciativa,
os projetos com estas mesmas características apenas se voltavam para
implementação municipal ou estadual. Em setembro 1996, 76 projetos de renda
mínima já haviam sido propostos, sendo 1 a âmbito nacional acima citado, 13
estaduais e 67 municipais, que, em porcentagens, representam respectivamente
1%, 17% e 82%. (SPOSATI, 1997, p. 117).
Entretanto, o projeto nunca veio a ser efetivamente aprovado, tendo em vista
as dificuldades políticas envolvidas, sendo que diante do desenvolvimento lento e
pouco esperançoso, Suplicy, em 2003, realizou a apresentação de um novo Projeto
de Lei nº 254/03, que originava no Brasil a Renda Básica da Cidadania.
Diferentemente do projeto anterior, logo em 2004 o projeto foi sancionado e
transformou-se na Lei 10.835/04, que dá direito a todo e qualquer brasileiro, ou
estrangeiro residente há pelo menos 5 anos no país, o recebimento de um valor
mensal a ser regulado pelo poder executivo, o que, atualmente, após 11 anos de
sua vigência, permanece sem qualquer regulamentação satisfativa.
Em certa medida, pode-se afirmar que a omissão quanto a regularização dos
aspectos financeiros da Lei 10.835/04, em grande parte, pode ter sido motivada pela
criação concomitante do Programa Bolsa Família, que recebeu e ainda recebe
433
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
demasiado destaque entre as transferências de renda realizadas pelo Estado
brasileiro.
Destarte, entende-se o Bolsa Família, por sua vez, como a incorporação dos
diversos benefícios que passaram a surgir no período compreendido entre 2000 e
2003, como o Bolsa Escola, Auxílio Gás, Cartão e Bolsa Alimentação, que tiveram,
consequentemente, um curto período de prazo de aplicabilidade (SOARES et al.
2006 p. 9)
Realizado por meio da Lei 10.836/04 e regulamentado pelo Decreto 5.209/04,
o Bolsa Família consiste, basicamente, na entrega de valores as famílias
consideradas carentes, dentro de montantes preestabelecidos, que variam conforme
a quantidade de dependentes, sendo necessário o atendimento de devidas
condicionalidades.
Atualmente, por meio da última alteração realizada pelo Decreto 8.232/14 nos
valores dos benefícios, o Bolsa Família passou a ser pago da seguinte forma: um
benefício fixo para as famílias com renda mensal per capita até R$ 77,00, no valor
de R$ 77,00; um benefício variante pago as famílias com crianças de 0 a 5 anos,
gestantes ou nutrizes de 0 a 6 meses de idade, no valor de R$ 35,00, limitado a 5
por família e um benefício variante devido às famílias com jovens estudantes de 16 e
17 anos, no valor de R$ 42,00, limitado a 2 por família, sendo que, os benefícios
variantes limitam-se àqueles com renda mensal per capita de até R$ 154,00. Por
fim, tem-se o benefício de superação de extrema pobreza, que é pago no valor de
R$77,00 àqueles que, mesmo após o recebimento de benefícios não atingem esta
mesma marca mínima per capita.
Logo, compreende-se que o maior montante a ser pago pelo instituto ficaria
em R$ 413,00, quando verificada a existência de 5 crianças e 2 jovens estudantes
em uma família com renda mensal per capita inferior a R$ 77,00.
Já quanto as condicionalidades ao recebimento, estas podem ser de duas
naturezas: de saúde e educacional. No que se refere à saúde, se faz essencial para
o recebimento do benefício que, sendo gestante, se tenha a correta realização do
pré-natal
e
havendo
nutrizes
e
crianças,
que
estas
tenham
o
devido
acompanhamento da saúde e desenvolvimento, bem como a atualização da carteira
de vacinação. Já no concernente à educação, exige-se a matrícula e frequência
434
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
mínima de 85% àqueles com idade entre 6 a 15 anos, enquanto aos adolescentes
de
16
e
17
anos,
impõe-se
a
frequência
de
75%
(MINISTÉRIO
DO
DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE A FOME, 2015).
Inegável se faz a relevância dos programas de distribuição de renda
brasileiros no combate a desigualdade e a pobreza, especialmente o Bolsa Família,
que muito embora seja ainda em níveis de valores baixos, já auxilia na estrutura de
um país socialmente mais justo. Tal fato é verificável por meio dos estudos
realizados na área, que apresentam que em 1995 o coeficiente de Gini 227 estava em
0,601, em 2005 no patamar de 0,570 e, em 2012 reduzido para 0,530 (INSTITUTO
DE PESQUISA EM ECONOMIA APLICADA, 2013).
Desta forma, muito embora em 1992 tenha se dado a realização de um
projeto de lei efetivamente visando a aplicação do IRN, percebe-se que da mesma
forma como analisado quanto aos programas existentes nos Estados Unidos, os
programas brasileiros que de fato foram colocados em prática se demonstram como
variantes do instituto, sendo os cálculos muito análogos, contudo, ocorrendo
condições impostas não previstas inicialmente na concepção original desta teoria,
assim como a concomitância com outros programas de transferência de renda.
5 CONCLUSÃO
Claramente é possível se entender que o Estado tem papel essencial na
condução do desenvolvimento político, social e econômico da sociedade e, de
alguma forma, precisa estar atuante neste sentido, não podendo se abster de buscar
a manutenção de uma vida digna à seus cidadãos.
É neste panorama que se procurou demonstrar as justificativas para uma
atuação estatal e as limitações dessa, ainda que dentro de um contexto político
liberal, que, muito embora, em um primeiro momento, possa parecer incompatível
com algumas intervenções voltadas ao desenvolvimento social, restou demonstrada
sua compatibilidade com interferências diretas aos indivíduos e justas.
227
O coeficiente de Gini é indicador de concentração de renda que varia entre 0 e 1, sendo o valor de
0 igual a uma distribuição de renda ideal, isto é, todos recebem os mesmos valores, enquanto 1
representa a concentração de renda total, situação em que um único indivíduo recebe todo o valor
analisado. (BORGES; CHADAREVIA, 2010. p. 97.)
435
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Resumir o liberalismo em Estado mínimo e não interferência nas liberdades
individuais apenas o transformaria em uma expectativa irreal, a qual se almejaria a
existência de um mercado regido por si próprio sem quaisquer adversidades
consequenciais. Pois bem, sabendo que esta é uma perspectiva além da realidade
já experimentada, admite-se a intervenção estatal para a manutenção dos efeitos
negativos surgidos nestes contextos econômicos e sociais.
Uma vez permitidas neste cenário, as intervenções realizadas pelo Estado,
para que possuam real aplicabilidade, precisam estar limitadas às liberdades
individuais e serem apenas indiretas à ordem econômica, isto é, a função das
intervenções deve ser de basicamente de duas naturezas: regulamentadoras e/ou
corretivas. Neste sentido, é possível verificar que a intervenção precisa garantir a
própria liberdade por meio da regulamentação desta na sociedade, e, sendo esta
função insuficiente, passar a agir por meio de correções.
No que se refere a palavra liberdade, apresentou-se sua significação mais
importante, qualificada como liberdade substantiva. Entende-se, que este é o
aspecto da liberdade que deve ser o principal foco de tutela pelo Estado, logo, é a
capacidade de que todos possam partir das mesmas posições de escolha e,
portanto, agir conforme suas vontades e determinações, sem estarem presos a
limitações preestabelecidas resultantes de suas condições pessoais.
Isto pois, depreende-se que a pobreza não significa apenas falta de dinheiro,
mas também pode ser entendida como a falta de liberdade substantiva e ambas
possuem uma relação consequencial: sem renda o sujeito não possui meios para
obter liberdades substantivas e sem liberdades substantivas o sujeito não consegue
obter renda, pois não encontra trabalho ou sequer possui forças para isto.
Ocorre que os meios utilizados pelo Estado para a regulamentação e
correção das liberdades, não poderão ser ilimitados ou injustificados, por este
motivo, procurou-se demonstrar a importância dos pressupostos de justiça dentro de
um contexto de convivência em sociedade e como estes se aplicam a legislação, a
qual é elemento fundamental para legitimar a referida atuação estatal, visto que
preestabelece aquilo que pode se esperar do próprio Estado.
Verificada as premissas acima explanadas, conclui-se que ao Estado é
permitida, bem como por vezes necessária, a concretização das devidas
436
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
intervenções estatais, desde que estas sejam justas e condizentes com o
ordenamento jurídico, visando a correção daqueles atos que, apesar de
regulamentados, ainda assim contribuem para a ineficácia da efetivação das
liberdades.
Um destes atos que contribuem para a criação das adversidades às
liberdades encontra-se, nitidamente, na tributação, pois, muito embora o sistema
tributário possua reais justificações de existência e princípios e regras limitadoras,
em determinadas situações estes regramentos se tornam insuficientes, enfatizando
disparidades entre os indivíduos. Logo, passa-se então a analisar como a tributação,
que é um método de intervenção estatal regulamentador, baseado em leis e
princípios, ainda assim contribui na inexistência das liberdades substantivas,
quando, retira de seus contribuintes valores que seriam aplicados para a obtenção
destas e consequentemente os coloca em posição pior do que a inicial.
Tal aspecto da tributação se relaciona diretamente com os princípios da
igualdade e da capacidade contributiva. Analisar a igualdade tributária implica
necessariamente em verificar a capacidade de contribuir que cada cidadão tem e
respeitar esta condição, o que restou demonstrado que se faz completamente
afastado nos impostos indiretos e atenuado nas funções extrafiscais dos tributos.
Diante dessa premissa, depreende-se que os tributos, da forma como hoje
são realizados, afetam muito mais a população carente do que qualquer outra. Logo,
o próprio funcionamento do sistema tributário passa a impor a necessidade da
intervenção corretiva à estas adversidades.
Independente das mais diversas formas de intervenção que podem ser
realizadas, coloca-se instituto do Imposto de Renda Negativo, como uma
consequência lógica de todo o mecanismo tributário atualmente aplicado, que se faz
obrigatório do ponto de vista da capacidade contributiva e auxilia na obtenção de
liberdades substantivas por meio das transferências de renda.
Seu mecanismo se baseia na premissa que se há capacidade contributiva
suficiente haverá o pagamento de impostos, enquanto não havendo o Estado deve
retornar os valores devidos àqueles que deles necessitam para a manutenção de
suas vidas.
437
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
O conceito inicial, proposto por Friedman inicialmente na década de 60, ainda
que não tenha sido colocado efetivamente em prática dentro de suas concepções,
teve papel importantíssimo para o início de uma discussão sobre meios de
distribuição de renda e, a partir deste ponto, suas variações doutrinarias tomaram
relevância no contexto político.
Entendeu-se que as variações especuladas acerca do instituto o moldaram
para
uma
viabilidade
condicionalidades
que,
prática,
em
por
certa
meio
medida,
da
aplicação
politicamente
de
requisitos
facilitaram
e
suas
implementações, mas que, entretanto, não seriam necessárias pela própria lógica da
modelo proposto. Desta forma, nos programas que atualmente estão em prática nos
Estados Unidos e no Brasil, é possível verificar a influência do Imposto de Renda
Negativo, mas muito mais voltado a suas variações e alterações políticas.
Neste sentido, compreende-se que, se estas condicionalidades são realmente
necessárias para a aplicação deste instituto de distribuição de renda, por ora, é
melhor que existam com condicionalidades, do que não existam, visto que conforme
a análise dos dados, especialmente daqueles referentes ao Brasil, atualmente,
convive-se com uma sociedade menos desigual que a 20 anos atrás.
Entretanto, espera-se, dentro destes avanços trazidos pelos programas de
distribuição de renda, com o acesso a educação e uma revolução cultural, que em
algum momento o mecanismo hoje aplicado neste sentido seja entendido do seu
ponto de vista lógico e deixe de precisar de condicionalidades, pois estas, que
facilitam a aplicabilidade dos programas frente a opinião pública, se dão exatamente
pelo fato do desconhecimento deste raciocínio lógico e liberal condizente com as
transferências de renda, que é apresentado pelo Imposto de Renda Negativo, sendo
visto atualmente tais programas como mero assistencialismo e formulação de
injustiças, quando, na verdade, resta este entendimento completamente equivocado.
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442
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO CRITÉRIO DE
DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO
CONTRIBUTORY CAPACITY PRINCIPLE AS A DISCRIMINATION CRITERIA ON
THE TAXATION TREATMENT
Robert Thomé Neto228
Maurício Dalri Timm do Valle229
RESUMO
O presente artigo busca analisar, principalmente, a essência do princípio da capacidade contributiva
na ordem tributária, paralelo, sempre, ao preceito maior da igualdade. Entendido no que consiste a
igualdade, e como esta é aplicada no âmbito do direito tributário, analisar-se-á, dentro de uma
perspectiva doutrinária crítica, a relação direita entre igualdade e capacidade contributiva, bem como
seus limites, suas espécies e aplicabilidade. A capacidade contributiva como subprincípio, está,
indiscutivelmente, na essência do princípio maior da igualdade, ao passo que é uma efetiva
ferramenta de materialização da igualdade no universo tributário. Não obstante a isso, buscar-se-á
compreender a necessária relação existente entre capacidade contributiva e os princípios do ‘mínimo
existencial’ e da ‘proibição dos efeitos de confisco’, na medida em que estes últimos exercem papel
limitador não só à capacidade contributiva, mas, também, ao Estado e ao Legislador. Assim sendo,
caminhará rumo a clarear não só os já mencionados, quantos outros pontos relacionados com o
princípio da capacidade contributiva, para, então, buscar explicar porque a capacidade contributiva,
como princípio da ordem tributária, exerce papel importantíssimo na medida em que serve como
critério de discriminação no tratamento tributário.
Palavras-chave: princípio, igualdade, capacidade contributiva, limite e discriminação no tratamento.
Graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – Faculdade de Direito de Curitiba,
Curitiba, Estado do Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]
229 Mestre e Doutor em Direito do Estado ? Direito Tributário ? pela UFPR. Especialista em Direito
Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pela UFPR. Professor Substituto de Metodologia do
Trabalho Científico em Direito da UFPR. Professor de Direito Tributário e de Direito Processual
Tributário do Centro Universitário Curitiba ? UNICURITIBA. Professor-Coordenador do Curso de
Especialização em Direito Tributário e Processual Tributário e do Curso de Especialização em Direito
Aduaneiro, ambos do Centro Universitário Curitiba ? UNICURITIBA. Associado à Associação
Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito - ABRAFI. Membro do Grupos de Pesquisas
em "Fundamentos do Direito" e em "e-Justiça", ambos orientados pelo Professor Doutor Cesar
Antônio Serbena e do Grupo de Pesquisa em "Direito Tributário Empresarial", orientado pelo
Professor Doutor José Roberto Vieira, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
Membro do Grupo de Investigação - Programa de Acreditación Institucional de Proyectos de
Investigación en Derecho (DeCyT) da Universidad de Buenos Aires. Advogado e consultor tributário.
228
443
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
ABSTRACT
The present project aims to analyze mainly the essence of the contributory capacity principle on the
tax order always parallel with the equality precept. Known what consists the equality and how it is
applied on tax law, it will be analyzed inside of the critical doctrinal perspective, the right relation
between equality and contributory capacity, as well as the limits, their species, applicability etc. The
contributory capacity as sub-principle is, undoubtedly, in the essence of the equality principle, which is
an effective tool of equality materialization in the tax universe. Not restricted to it, the project aims to
comprise the relation between the contributory capacity and the 'existential minimum' and 'prohibition
of the confiscation effects' principles, wherein the latest exercises the limiter role not only related to the
contributory capacity but also related to the State and the Legislator. Therefore, the present project will
clarify not only the mentioned before, but other topics related to the tax law principle to finally
understand why the contributory capacity, as a tax order principle, exercises an important role as soon
as it is a discriminatory criteria.
Keywords: principle, equality, contributory capacity, limit and discriminatory treatment.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 adotou como base o Princípio da Igualdade –
cuja máxima trazida por Aristóteles – consiste em tratar os iguais de maneira igual e
os desiguais de maneira desigual na medida da sua desigualdade.
No âmbito do direito tributário, a igualdade existe na medida em que, o
Estado, trate cada contribuinte em razão de sua capacidade econômica para arcar
com o ônus tributário.
O Princípio da Capacidade Contributiva, como subprincípio do preceito maior
da Igualdade, possui papel concretizador deste, ao passo que busca igualar, a
todos, os impactos causados pelos tributos.
Assim, analisar-se-á, primeiramente, sempre ao lado de entendimentos e
posições doutrinárias, a igualdade como Princípio Constitucional, para então,
adentrar no Princípio da Capacidade Contributiva como sendo um desdobramento
do Princípio da igualdade, ao passo que possui a função de concretizar o que
entende-se por igualdade no âmbito do direito tributário.
Portanto, será objeto de análise, sempre ancorado ao Princípio da Igualdade,
o que consiste Capacidade Contributiva, sua relação com o ‘mínimo vital’ e a
‘proibição do confisco’, bem como suas importantes funções para finalmente, chegar
em suas espécies, a diferença entre capacidade contributiva, financeira e econômica
e sua aplicação nos impostos classificados como diretos e indiretos.
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COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Assim, tratar-se-á do Princípio da Capacidade Contributiva, com enfoque
paralelo ao Princípio da Igualdade, demonstrando que aquele serve como
instrumento efetivador deste, em razão de ser o critério de discriminação no
tratamento tributário.
2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Aristóteles já dizia que a igualdade é elemento indispensável à justiça, por
isso afirmava que a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno sentido do
termo, porque é o exercício atual da virtude completa”. 230
Não é fácil conceituar o Princípio da Igualdade em uma frase pronta e acabada.
Percebe-se que existe hoje muita divergência quanto a sua interpretação e, portanto,
certa dificuldade em conceituá-la. Mas inúmeros autores entendem que somente é
possível falar em igualdade quando a relaciona com o primado da justiça. Pois, há
justiça quando se garantir uma equidade desde o tratamento entre pessoas até entre
situações e coisas.
Assim sendo, perante a lei todos devem, necessariamente, receber
tratamento parificado231, ou seja, o Princípio da igualdade nada mais é do que uma
expressão dos direitos fundamentais do cidadão, em que da mesma forma que
devem nivelar os cidadãos para diminuir suas desigualdades deve também, orientar
o legislador a não agir em desconformidade com a isonomia quando redigir as
normas infraconstitucionais e elaborar a vontade geral.232
A máxima aristotélica já dizia que a igualdade consiste em tratar os iguais de
maneira igual e os diferentes de maneira diferente. Ou seja, todos devem ser
tratados pela lei de igual maneira, porém todos que estejam inseridos dentro de uma
mesma ‘categoria’, ou seja, existem especificidades ou melhor fatores pessoais que,
por consequência destes tornam as pessoas diferentes frente ao direito justificando,
portanto, tratamentos diferenciados.
230
ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco. 6. ed. São Paulo: Martin Claret, 2014. p. 96.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 10.
232 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São
Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 85.
231
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GESTÃO E CONTROLE
Explica Celso de Mello que “as normas legais nada mais fazem que
discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou outras
vêm a ser colhidas por regimes diferentes”233, logo, a lei deve edificar elementos,
situações diferenciais que justifiquem um tratamento desigual e, por consequência,
efeito desuniforme em razão dessa.
Foi com base nesta indagação que a igualdade passou a ser entendida como
tratar os iguais de maneira igual e os desiguais desigualmente na medida de sua
desigualdade, ou seja, pelas ‘diferenças’ serem uma realidade presente dentro da
sociedade não se estaria materializando a igualdade, caso todos recebessem
tratamentos idênticos.
Se estiver certo que dentro de uma sociedade seria impossível falar em tratar
todos de maneira igual atribuindo, portanto, uma visão homogênea individualista do
homem, visto que existem especificidades de cada um que, por consequência direta
dessas tornam as pessoas diferentes, pergunta-se: como definir quem ou o que
deveria ser considerado para atribuir, então, o carimbo de igual ou desigual?
Sendo assim para o Princípio da igualdade “qualquer elemento residente nas
coisas, pessoas ou situações”234, pode ser adotado como fator discriminatório.
Porém, ainda segundo Bandeira de Mello, elementos que não apresentem
pertinência lógica, ou melhor, que sejam aleatórios ao ponto de não serem
justificáveis não podem ser acolhidos pela lei como fatores discriminatórios.
Em síntese, pelo Princípio da Igualdade, devem-se tratar igualmente os iguais
e os desiguais de maneira desigual, na medida da sua desigualdade. Significa dizer,
portanto, que “[...] o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se
desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça”.235 Desde que, o
critério discriminatório possua um nexo lógico uma justificativa racional para que
legitime o tratamento desigual.
233
Ibidem, p. 12.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2014. p. 17.
235 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 36.
234
446
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO ÂMBITO TRIBUTÁRIO
O Princípio da igualdade, no direito tributário consiste, sinteticamente, que todos
aqueles que encontrarem-se em uma mesma condição tributária devem ser tratados de
igual maneira aos olhos da lei, portanto, se a lei tributária conferir determinado benefício ou
isenção tributária, esta deve, por força do aludido Princípio, alcançar todos aqueles que
estão inseridos nesta mesma condição tributária.
Sendo assim, a aplicação da igualdade no direito tributário, depende de um
critério diferenciador e também, de um fim a ser alcançado.236 É certo então, que o
critério que diferenciará o tratamento tributário, por força do princípio da igualdade
tributário deve necessariamente, ter congruência lógica com a finalidade buscada
por ele.
Segundo José Afonso da Silva, o Princípio da Igualdade Tributária é aquele que
“busca a justiça fiscal na distribuição do ônus fiscal na capacidade contributiva do
contribuinte”, ou seja, é esta capacidade contributiva de cada contribuinte que permite que
sejam classificados em diversas ‘categorias’, cada qual seja tributada de maneira diferente.
Dentro de cada “categoria”, o Princípio da Igualdade Tributária garante que os contribuintes
sejam submetidos a idênticos regimes fiscais.
É certo que uma diferenciação dos contribuintes, feita com base em critérios
exclusivamente subjetivos, não sendo, estes, fundamentados e justificados numa
finalidade objetiva constitucionalmente aferível é, segundo Humberto Ávila,
insatisfatório, ou seja, ilegítima, sendo, portanto, uma diferenciação normativa
arbitrária.
Nesta ordem de ideias significa que, a medida de comparação, para ser
legítima (possível) e consequentemente, discriminar o tratamento tributário entre as
classes tributantes, deve necessariamente possuir uma relação conjugada237 com a
finalidade de sua existência.
Neste sentido é imprescindível que exista um nexo de causalidade, ou seja,
uma relação de causa e efeito entre a medida de comparação (critério adotado para
discriminação) e o elemento indicativo da medida de comparação, onde, além disso,
ambos devem estar coligados a uma finalidade que justifique a sua utilização.
236
ÁVILA, Humberto. Tratado de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005. p.
410.
237 ÁVILA, Humberto.Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 51.
447
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
E, para além disso, não basta tão somente, que exista este nexo de
causalidade entre a medida e o elemento indicativo e estes estejam correlacionados
com uma finalidade lógica e sem contradição. A validade de tal medida de
comparação depende, impreterivelmente, de sua compatibilidade com a Constituição
da República.
4 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO DECORRÊNCIA DO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Grande parte da doutrina entende que o princípio da capacidade contributiva é
uma derivação – subprincípio – do, então, princípio da igualdade, cuja função é
materializar a isonomia dentro do âmbito tributário.
Como bem disse, Regina Helena Costa: “A igualdade está na essência da
noção de capacidade contributiva, que não pode ser dissociada daquela”, 238 logo,
pode-se dizer que o princípio da capacidade contributiva possui papel concretizador
da igualdade no que diz respeito à tributação, na medida em que aquele visa igualar,
a todos, os impactos causados pelos tributos.
Na realidade, o princípio da igualdade deve ser entendido como um preceito maior,
geral, aplicado à todos e em qualquer âmbito do direito, vez que emana de direito individual
fundamental. Desse modo, o princípio da capacidade contributiva, por ser um critério
material, viabiliza a concretização da igualdade no universo tributário. Motivo então, que
torna viável o entendimento daquele ser uma decorrência (subprincípio) deste.
Em outros termos, o princípio da igualdade deve abranger todos os campos do
direito, portanto, fala-se em preceito maior/genérico. Afunilando a incidência para o direito
tributário, tem-se que a essencialidade da igualdade está dentro do princípio da capacidade
contributiva, na medida em que busca materializá-la. Desse entendimento retira-se que, no
âmbito tributário, a igualdade revela-se pela capacidade contributiva.
Desse modo, a igualdade no âmbito tributário será efetiva quando o peso do
encargo tributário for igual para todos os contribuintes que encontrarem-se em igual
capacidade contributiva.
Em suma, o princípio da capacidade contributiva é o critério material de aplicação da
igualdade no universo tributário.
Isso porque, o princípio da igualdade, por ser muito
238
COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2003. p. 41.
448
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
genérico, não possui, por si só, critérios materiais para efetivar-se, logo, como sustenta
Humberto Ávila “os homens [...] somente podem ser iguais ou diferentes em razão de um
critério.239
5 CONCEITO DE CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Sendo o princípio da capacidade contributiva o fator de discrímen, ao passo
que busca alcançar e efetivar a igualdade material dentro do direito tributário, no que
consiste, então, o presente princípio?
Atualmente, o princípio da capacidade contributiva está consagrado, na Carta
Magna, em seu artigo 145, parágrafo primeiro, in verbis:
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 240
Um conceito inicial, trazido por Regina Helena Costa, ao dizer que capacidade
contributiva é “A aptidão da pessoa colocada na posição de destinatário legal
tributário para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento
de imposto, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.”241
O ilustre Alfredo Augusto Becker, para definir capacidade contributiva, buscou
relacioná-la com riqueza individual e carga tributária suportada, chegando na ideia
que “a capacidade contributiva é aferida mediante a relação existente entre a
riqueza de um indivíduo e a carga tributária por ele suportada”.242
Para Fernando Aurelio Zilveti, a capacidade contributiva é o princípio segundo
o qual as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os
cidadãos, ou seja, deve haver uma divisão equitativa das despesas estatais na
239
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 434.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm > Acesso em: jul.
2015.
241 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 107.
242 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, 496
- 497
240
449
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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medida da capacidade individual de suportar o encargo fiscal de cada
contribuinte.243
Trilha o mesmo sentido Stuart Mill ao entender que o princípio da capacidade
contributiva significa distribuir a contribuição de cada pessoa para com os gastos
públicos de tal forma que ela não sinta nem mais nem menos incômodo, com a cota
que lhe cabe pagar, do que qualquer outra.244
Significa dizer, em palavras mais simples, que aquele(s) que apresenta(m),
em termos econômicos, ‘mais’, pague(m) proporcionalmente mais do que aquele(s)
que apresenta(m) ‘menos’. Logo, como explicou Carrazza: “as pessoas, pois, devem
pagar impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, de seus índices de
riqueza”.245
Em suma, capacidade contributiva é a aptidão que as pessoas têm para,
dentro de um dever de solidariedade, contribuir para com o plano de despesas do
Estado. Esta capacidade contributiva é medida a partir de um fato-signo presuntivo
de riqueza, ou seja, um fator revelador de conteúdo econômico (manifestação de
riqueza).
Portanto, a capacidade contributiva possui duas funções: de um lado
representa o fator discrimén (discriminação), vez que concretiza a igualdade dentro
do campo tributário, na medida que estabelece quem são os iguais e quem são os
desiguais à luz da tributação. Por outro lado, é um importante limitador ao poder de
tributar do Estado, por conta da impossibilidade de se tributar aonde não existir
capacidade contributiva.
Assim, o princípio da capacidade contributiva apresenta dois grandes efeitos
no âmbito tributário, os quais são:
a) O primeiro (aspecto negativo) seria um limite ao poder de tributar, vez
que somente pode sofrer tributação aquele ou aquilo que apresentar
capacidade contributiva – medida a partir de um ‘fato-signo presuntivo
de riqueza’, ou seja, um fato revelador de conteúdo econômico –. Esta
função negativa é responsável pela materialização da igualdade no
âmbito tributário, pois ao representar o fator de discrimén, fixa a
graduação tributária em função da capacidade contributiva.
243
ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São
Paulo: QuartierLatin, 2004. p.134.
244 MILL, John Stuart. Princípios de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290.
245 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 97.
450
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
b) O segundo (aspecto positivo) assegura os “direitos subjetivos do
cidadão-contribuinte”246, na medida em que serve como sensível
limitador ao legislador, proibindo-o de tributar fatos que não sejam
reveladores de riqueza – capacidade contributiva –. Sendo, portanto,
uma garantia fundamental.
6 PRINCÍPIOS RELACIONADOS À CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Sendo a capacidade contributiva um limitador ao poder de tributar, ao passo
que somente pode ser tributado aquilo ou aqueles que apresentarem capacidade
contributiva, ou seja, ‘riqueza’, há de se haver, por conta disso, um limite mínimo
bem como um limite máximo à capacidade contributiva, delimitando o real ‘espaço’
passível de sofrer tributação.
Diante disso, caminha-se no sentido da necessidade do princípio da
capacidade contributiva possuir, efetivamente, um limite ‘máximo’ e ‘mínimo’. Caso
contrário toda e qualquer manifestação de riqueza poderia ser passível de
tributação. É por esta consequência que entram aqui, outros dois princípios, na
medida em que exercem funções limitadoras, vez que delimitam em que momento
começa e em qual encerra-se o ‘intervalo de riqueza’ entendida como capacidade
contributiva passível de ser tributada.
6.1 MÍNIMO EXISTENCIAL
Segundo Zilveti, mínimo existencial (mínimo vital) é a menor parcela de renda,
absolutamente necessária para a sobrevivência digna da pessoa e de sua família. 247
Explica-se, nada mais é do que determinada quantia mínima, que, caso fosse tributada,
estaria por ferir, indiscutivelmente, os direitos fundamentais constitucionais do cidadão,
como o direito à alimentação, saúde, educação, habitação etc.
O parâmetro entendido como mínimo existencial é isento de qualquer tributação, ou
seja, pode-se entendê-lo sendo uma hipótese de imunidade tributária, na medida que
inexiste capacidade contributiva, sendo proibida toda e qualquer tributação sobre esta
parcela de riqueza entendida como ‘mínimo vital’.
246
247
NATOLI, 1979 apud COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed.
atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 52.
ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São
Paulo: QuartierLatin, 2004. p. 203.
451
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Portanto, entende-se que o princípio do mínimo existencial, aplicado
paralelamente com o da capacidade contributiva, exerce função limitadora (limite
inferior). Sendo assim, nem toda aferição de riqueza pode ser passível de tributação;
a capacidade contributiva – espaço de riqueza passível de ser tributado – incide, tão
somente, na porção de riqueza que exceder aquela considerada ‘mínimo vital’, pois
trata-se de direito fundamental consagrado na lei maior.
Nessa ordem de ideias conclui Klaus Tipke e Douglas Yamashita ao
entenderem que “enquanto a renda não ultrapassar o mínimo existencial não há
capacidade contributiva”248, logo, o princípio do mínimo existencial é uma garantia
intributável, ancorada nos fundamentos de liberdade, dignidade humana e
igualdade.
Em suma, entende-se que a impossibilidade de incidir tributação sobre a
riqueza denominada mínimo existencial, provém da ausência de capacidade
contributiva, ao passo que a pessoa encontrada nesta faixa econômica, possui
somente aquele patrimônio mínimo necessário para a manutenção de sua existência
digna e de sua família, não devendo, portanto, incidir qualquer quantia a título de
tributo.249
6.2 NÃO CONFISCO
Se o princípio do mínimo existencial é um ‘limite mínimo’ à capacidade
contributiva, uma vez que só é passível de sofrer tributação aquela parcela
representativa de riqueza que o exceder. Faz-se necessário, também, que esta
parcela de riqueza tributável venha a ter um ‘limite máximo’ (superior), pois caso não
houvesse, o legislador teria poder arbitrário de tributar, qualquer quantia, desde que
respeitado o mínimo existencial.
Foi diante disso, que fez-se necessário, a existência do princípio do não efeito
de confisco (não confisco), previsto no artigo 150, inciso IV da Lei maior, in verbis:
248
249
TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva.
São Paulo: Malheiros, 2002. p.34.
VALLE, Maurício Darli Timm do. Princípios Constitucionais e Regras-Matrizes de Incidência
do Imposto Sobre Produtos Ind.ustrializados – IPI. 414f. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. p. 196.
452
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;250
Significa dizer, que todo e qualquer tributo possui um ‘limite máximo’,
impossibilitando, portanto, que haja a violação, por consequência do elevado grau
da tributação, dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade dos
contribuintes. Assim, por força do princípio do não confisco, proíbe-se que o tributo
exceda o seu ‘limite máximo’, e por consequência, apresentar efeitos de confisco,
acabando com a capacidade contributiva do sujeito passivo.
Como bem sintetizou Regina Helena Costa, a capacidade contributiva deve
ser um limite da tributação, permitindo, portanto, a manutenção do mínimo vital, bem
como inibindo que a progressividade tributária venha a atingir níveis de confisco.251
Mas então o que vem a ser Confisco? Explica Regina Helena Costa, ao
entender que confisco é “... a absorção total ou substancial da propriedade privada
pelo Poder Público, sem a correspondente indenização”.252 Assim sendo, confisco é
quando o Estado, no todo ou em parte, apropriar-se de maneira injusta, do
patrimônio e/ou renda dos contribuintes de modo a comprometer-lhes em sua
liberdade, propriedade e dignidade, em razão da insuportabilidade da carga
tributária.
Outro ponto seria quando ou em que momento o tributo passa a ter efeitos de
confisco, sendo, então, proibido à luz da Constituição? A resposta está intimamente
relacionada com o princípio da capacidade contributiva, ao passo que será
considerado confiscatório quando determinado tributo exceder a capacidade
contributiva do sujeito, acarretando a desestimular, prejudicar, ou inviabilizar o
exercício dos direitos de propriedade e liberdade do cidadão.253
250
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: jul.
2015.
251 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 30-31.
252 Ibidem p. 79 e 94.
253 VALLE, Maurício Darli Timm do. Princípios Constitucionais e Regras-Matrizes de Incidência
do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI. 414f. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. p. 187.
453
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em suma, as pessoas políticas, no exercício de suas competências, devem
necessariamente, sob pena de violação do princípio do não confisco, levar em consideração
a capacidade contributiva como parâmetro na imposição do ônus fiscal. Sendo assim,
qualquer carga tributária que ultrapassar os limites da capacidade contributiva, ou, ainda,
incidir sobre a parcela de riqueza considerada ‘mínimo vital’, será inconstitucional.
7 PRISMAS DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
7.1 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA OBJETIVA (ABSOLUTA)
A capacidade contributiva absoluta, por assim dizer, funciona como um limite,
ao legislador, no momento que este escolhe os fatos passíveis de tributação. Limite,
pois, somente aqueles fatos manifestamente reveladores de riqueza poderão ser,
pelo legislador, tributáveis.
Em outras palavras, pelo princípio da capacidade contributiva, em seu sentido
objetivo, a manifestação de riqueza é requisito que confere, a princípio, legitimidade
à imposição tributária.254
Capacidade contributiva em seu caráter objetivo ou absoluto é aquela em que
desconsiderará as características pessoais dos contribuintes, em favor “... da
consideração a elementos médios...”255 Sendo assim, perfaz-se pela manifestação
de riqueza de determinado fato, na medida em que desconsidera as condições
individuais de cada contribuinte, pois presume-se objetivamente.
Assim sendo,
a capacidade contributiva objetiva é aquela em que, por ser inviável – em termos de
praticabilidade tributária – analisar caso a caso, minuciosamente, o caráter pessoal
de cada cidadão, para tantos tributos, estabeleceu-se padrões em que presume-se a
capacidade contributiva por consequência do contribuinte ser proprietário de
determinado bem. Assim, se determinado bem é caracterizado como luxuoso,
conjetura-se, por padrões pré-estabelecidos, que a sua capacidade contributiva é
elevada.
254
255
Ibidem. p. 177.
ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 78.
454
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
Em suma, a capacidade contributiva objetiva revela-se pelo próprio ‘bem’,
pois existe uma presunção de riqueza a partir do estado de propriedade desse,
pouco importando fatores personalíssimos do sujeito passivo da tributação.
7.2 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA SUBJETIVA
Entendido no que consiste a capacidade contributiva em seu prisma objetivo
ou absoluto, por outro viés, a capacidade contributiva em seu prisma subjetivo diz
respeito ao dever de se levar em conta as condições pessoais do sujeito passivo –
contribuinte – com o objetivo de verificar se o mesmo possui aptidão econômica para
com o ônus tributário.
Assim, a capacidade contributiva subjetiva advém quando ocorre uma autêntica
individualização do tributo, levando em apreço, de maneira individualista, circunstâncias
pessoais e familiares de cada contribuinte.
Para José Marcos Domingues de Oliveira, capacidade contributiva subjetiva
diz respeito a parcela da riqueza que será objeto de tributação em face de condições
individuais [...] sendo uma garantia à preservação das necessidades de subsistência
e no padrão de vida que se revelará o conteúdo isonômico do princípio da
capacidade contributiva, tratando portanto, desigualmente os desiguais.256
A capacidade contributiva subjetiva, então, serve como critério de graduação de
impostos na medida em que o quantum que, determinado contribuinte, deve pagar a título
de tributo está individualmente relacionado com a capacidade contributiva desse. É
exatamente aqui, que ocorre a manutenção do ‘mínimo vital’ e que os tributos não alcancem
efeitos de confisco.
É importante deixar claro, que a capacidade contributiva subjetiva pressupõe,
obrigatoriamente, a existência da objetiva, no seguinte sentido: o legislador, deve
necessariamente, eleger situações que manifestem riqueza, ou seja, conteúdo econômico,
para que sejam consideradas passíveis de sofrerem tributação. Após e tão somente, a
existência de conteúdo econômico no fato eleito como tributável, passará a vigorar – dentro
de certa viabilidade – a capacidade contributiva em seu sentido subjetivo, verificando, caso
a caso, de maneira individual, a aptidão que o contribuinte possui para arcar com o ônus
tributário.
256
OLIVEIRA, José
Marcos
Domingues
de. DireitoTributário: Capacidade
Conteúdo e Eficácia do Princípio. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 57.
Contributiva:
455
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
8 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E IMPOSTOS INDIRETOS
Primeiramente faz-se necessário, mesmo que de maneira sucinta, estudar
quais são e no que consiste os impostos ditos como indiretos. Ou seja, qual o critério
de classificação para que determinados impostos sejam classificados como indiretos
ao invés de diretos.
Por diretos, tem-se aqueles impostos que são arrecadados pela pessoa
política, sobre o patrimônio ou renda dos contribuintes. Assim, o ‘contribuinte de fato’
é o mesmo que o ‘contribuinte de direito’ na medida em que não tem a possibilidade
de repassar o ônus tributário para outrem. Em outras palavras, por impostos diretos
temos aqueles em que o ônus econômico recai, necessariamente, sobre o sujeito
que praticou determinado fato previsto como passível de tributação. Tomando-se
como exemplo o imposto de renda.
Por outro lado, por impostos indiretos, tem-se aqueles que incidem sobre os
produtos e serviços consumíveis, tendo a figura de ‘contribuinte de direito’ os
produtores, fornecedores, comerciantes etc. Porém, são ditos indiretos, na medida
em que permitem a possibilidade de repassar o ônus econômico à uma terceira
pessoa – que não praticou o fato gerador previsto na hipótese de incidência como
passível de tributação – porém, cabe à ela suportar a carga tributária da cadeia toda.
Assim, os impostos indiretos, ao incidirem sobre os produtos e serviços, são
recolhidos pelos ‘contribuintes de direito’ – aqueles que realizaram o fato jurídico
previsto como passível ser tributado –, entretanto, possibilita-se que ônus econômico
seja repassado para uma terceira pessoa – assim chamada de ‘contribuinte de fato’.
Geralmente, nas relações de consumo, é o consumidor final quem se enquadra em
‘contribuinte de fato’ e, portanto, suporta todo o ônus econômico.
Como
exemplo de impostos indiretos hoje, temos o Imposto sobre circulação de
mercadorias e serviços (ICMS), Imposto sobre serviços (ISS), Imposto sobre
produtos industrializados (IPI) etc.
Em suma, frisa-se que, esta classificação, mesmo não sendo muito mais
utilizada, é importante para o presente trabalho, na medida em que os tópicos
seguintes estarão coligados à ela, de maneira a buscar uma explicação coesa para
456
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
a impossibilidade de se aplicar o princípio da capacidade contributiva, em seu
prisma subjetivo, nos impostos então ditos indiretos.
8.1 IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
SUBJETIVA NOS IMPOSTOS INDIRETOS.
Quando estudou-se a capacidade contributiva em seu prisma subjetivo, ficou
claro que trata-se de uma individualização do tributo, ou seja, a capacidade
contributiva do sujeito passivo de tributação é delineada considerando fatores
personalíssimos, não havendo qualquer tipo de presunção objetiva ou padronização
no momento da graduação do tributo.
No universo dos impostos ditos indiretos, em que a tributação dá-se sobre os
produtos e serviços pergunta-se: É possível a aplicação do princípio da capacidade
contributiva em seu viés subjetivo nesta classe de impostos?
Nos impostos indiretos, posiciona-se pela impossibilidade de aplicar o
princípio da capacidade contributiva subjetiva, por consequência da inviabilidade de
analisar, caso a caso, individualmente, as condições subjetivas de cada contribuinte
ao adquirirem um produto ou serviço. Como nestes impostos, o ônus econômico é
repassado pelos ‘contribuintes de direito’, – nas relações de consumo – aos
consumidores finais (‘contribuintes de fato’), a impossibilidade apresenta-se tanto do
ponto de vista fiscalizatório quanto arrecadatório. Impossível, pois não há como o
fisco analisar, minuciosamente, caso a caso, as condições individuais dos
consumidores finais no momento da aquisição de produtos ou serviços, para então,
calcular o montante do tributo a ser cobrado.
Exemplificando, é de total inviabilidade que duas pessoas, ao adquirirem o
mesmo produto em um estabelecimento comercial, pagassem preços diferentes por
ele, em consequência de um ser financeiramente melhor do que o outro.
Inviabilidade por conta da impossibilidade de existir uma efetiva fiscalização e, por
conseguinte, discriminação por parte do fisco. Ou seja, não existe como mensurar
diferentes valores, a título de imposto, para mesmos produtos adquiridos por
pessoas diferentes em razão de suas capacidades econômicas individuais, por
conta do gigantesco número de ‘contribuintes de fato’ existentes.
457
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
GESTÃO E CONTROLE
É exatamente por consequência dessa situação, que aplica-se, aos impostos
indiretos, a capacidade contributiva em seu prisma objetivo, ao passo que é
presumido, objetivamente, a capacidade contributiva dos sujeitos pelos produtos ou
serviços por eles adquiridos. Sendo assim, há uma ‘padronização’ dessa presunção,
não levando em consideração, portanto, fatores pessoais.
Consonante a mesma linha de pensamento segue Klaus Tipke, ao entender
que se o princípio da capacidade contributiva realmente fosse minuciosamente
aplicado por leis altamente diferenciadas, as leis tributárias, então não poderiam
mais ser aplicadas isonomicamente, com o emprego razoável de ‘pessoal’ e ‘tempo’,
vez que as autoridades fiscais têm milhões de contribuintes para fiscalizar.257
O princípio da praticabilidade tributária, implícito no ordenamento jurídico,
porém relevante na imposição tributária indireta, atenua a intensidade dos conceitos
de igualdade e de capacidade contributiva. Entretanto, compreende uma série de
recursos que se destinam a simplificar e facilitar a execução em massa das normas.
Contudo, mesmo autorizando a criação de presunções, ficções e simplificadores,
não poderá desconsiderar a essência do princípio da igualdade e da capacidade
contributiva.258
Logo, esta massificação e padronização, por consequência do preceito de
praticabilidade tributária, está por concretizando, na medida do possível ede certa
forma, o princípio da capacidade contributiva bem como o princípio maior da
igualdade, concluindo Cassalta Nabais que “a ideia de praticabilidade exige do
legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e econômica
ou eficiente, ou seja, leis que conduzam a resultados consonantes com os objetivos
pretendidos.”259
257
258
259
TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva.
São Paulo: Malheiros, 2002. p. 38.
COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e Justiça Tributária: Exequibilidade da lei tributária e
direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 55.
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998. p.
621.
458
COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA:
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8.2
PRINCÍPIOS
DA
CONCRETIZADORES
SELETIVIDADE
DA
CAPACIDADE
E
NÃO-CUMULATIVIDADE
CONTRIBUTIVA
OBJETIVA
COMO
NOS
IMPOSTOS INDIRETOS
No sentido que o princípio da praticabilidade tributária atenua sim a
intensidade da capacidade contributiva, por questões de eficácia, economicidade e
efetividade, por conta da imensa quantidade de contribuintes existentes e a
impossibilidade de, nos impostos indiretos, analisar minuciosamente, caso a caso, a
fim de utilizar-se dos fatores econômicos individuais subjetivos de cada sujeito para
delinear a capacidade contributiva de cada um e, por fim, determinar o valor a ser
pago a título de tributo.
Contudo, isso não significa que o princípio da capacidade contributiva é
afastado, completamente, na graduação destes tributos. Embora, tal presunção de
capacidade econômica dê-se objetivamente, o princípio da capacidade contributiva é
sim prestigiado, porém de forma ‘indireta’, se assim possível dizer, por consequência
da aplicação dos princípios da não-cumulatividade e da seletividade.
O princípio da não-cumulatividade é, na verdade, uma verdadeira aplicação
do prestígio de capacidade contributiva objetiva nos impostos indiretos (IPI e ICMS),
ao passo que, segundo Roque Antônio Carrazza, pela regra da não-cumulatividade
o montante recolhido, a título de tributo, em cada operação tributária, formará um
‘crédito fiscal’que, então, será deduzido do quantum de imposto que irá pagar na
próxima operação tributária.260 Ou seja, irá deduzir, do valor devido a título de
imposto em cada operação tributária, o valor já pago na operação anterior.
Pela regra da não-cumulatividade assegura-se a impossibilidade de uma
mesma mercadoria ser multiplamente onerada pelo imposto, afastando aos
contribuintes, a possibilidade de pagarem valores já debitados nas operações
anteriores. Impede-se, portanto, que os impostos, no decorrer das inúmeras
operações de circulação de produtos e prestações de serviços tornem-se um
gravame cada vez mais oneroso, deixando-os restritivos.261
260
261
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 835-836.
COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 100.
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GESTÃO E CONTROLE
Tal garantia impede que os subsequentes na cadeia de produção paguem
impostos cada vez mais elevados, atingindo então, efeitos de confisco (princípio do
não-confisco) e violando o princípio maior da igualdade. Homenageia-se, assim, a
capacidade contributiva, aqui, uma vez que a essência da igualdade encontra-se
neste, e para, além disso, está fortemente ligado ao princípio do não-confisco, na
medida que este é pressuposto limitador daquele.
Pelo princípio da seletividade, quanto mais essencial for determinado produto,
menor deverá ser a alíquota incidente sobre este, ocasionando, desse modo, a
redução do montante pago a título de imposto. O contrário também é verdadeiro,
logo quanto menos essencial for um determinado produto, maior deverá ser a
alíquota incidente sobre esse, aumentando, então, o valor pago a título de tributo.
Fato é que o princípio da seletividade é uma garantia ao já estudado ‘mínimo
vital’, uma vez que a lei maior, em seu artigo 7º garante, entre outros direitos sociais,
o da necessidade básica, alimentação e saúde.262 Logo, os produtos essenciais,
como por exemplo, ‘cesta básica’, devem, por força do princípio da seletividade,
apresentar alíquotas – referentes ao ICMS e IPI –, reduzidas, preservando assim, os
direitos sociais consagrados na lei maior.
É nesse sentido, que posiciona-se no entendimento de que o princípio da
seletividade, também, prestigia o conceito de capacidade contributiva, ao passo que
a seletividade garante a impossibilidade de tributação do ‘mínimo vital’. Contudo,
quem assegura o princípio do mínimo existencial, é o principio da capacidade
contributiva, na medida em que só é passível de sofrer tributação a quantia a qual
exceda este mínimo.
Quando estudou-se a capacidade contributiva objetiva ou subjetiva, ficou
claro que, na maioria dos casos, a capacidade contributiva no seu prisma subjetivo,
não pode ser efetivamente aplicada, por questões não só de praticabilidade
tributária, mas também por ineficácia e inviabilidade. Nestes casos, há uma
‘padronização’ e, portanto, pressupõe objetivamente que determinado sujeito
apresenta capacidade contributiva por consequência de apresentar objetos que
manifestam riqueza, sem, no entanto, levar em consideração qualidades individuais.
262
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: jul.
2015.
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Contudo é claro que, por se tratar de princípio constitucional decorrente do
preceito maior da igualdade, a capacidade contributiva em hipótese alguma, pode
ser totalmente afastada. Em relação aos impostos indiretos, sua inviabilidade
assenta-se no viés subjetivo, entretanto, nada obsta a sua aplicabilidade de forma
indireta, ou seja, em seu viés objetivo.
9 A DIFERENÇA ENTRE A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, A CAPACIDADE
ECONÔMICA E A CAPACIDADE FINANCEIRA
Visto que pelo princípio da capacidade contributiva a carga tributária, em cima
do contribuinte, deve ser relacionada com sua aptidão para suportar o ônus
tributário, ou seja, que possa ser suportada economicamente pelo contribuinte. Fazse necessário, contudo, distinguir os conceitos de três elementos que por parecerem
semelhantes, gerou divergência doutrinária. Trata-se da capacidade contributiva,
econômica e financeira.
Por capacidade contributiva, como já foi visto, trata-se da relação existente
entre a riqueza de um indivíduo e a carga tributária por ele suportada. Em outras
palavras, as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os
cidadãos. Assim, deve haver uma divisão equitativa das despesas estatais na
medida da capacidade individual, dos contribuintes, em suportar o encargo fiscal,
possibilitando, portanto, garantias e direitos fundamentais constitucionais tais como
a livre iniciativa, propriedade privada, dignidade etc.
Por sua vez, capacidade econômica é a simples manifestação de riqueza, ou
seja, qualquer bem ou renda pertencente ao indivíduo será uma manifestação de
riqueza e, portanto, caracterizará a existência de capacidade econômica. Assim
sendo, fala-se na aptidão, genérica, para produzir ou dispor de riqueza, revelando,
pelo menos, indícios de força econômica.263 Como bem disse Regina Helena Costa
“[...] constituem unidades econômicas de possessão e de emprego de recursos
produtivos ou de riqueza”.264
263
264
MOTA FILHO, Humberto Eustáquo César. Introdução ao Princípio da Capacidade
Contributiva. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 80.
COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São
Paulo: Malheiros, 2003. p. 26.
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Por fim, capacidade financeira, está diretamente ligada à ideia de liquidez, 265
ou seja, terá capacidade financeira aquele que apresentar recursos suficientes
necessários para liquidar suas obrigações, em seus tempos, assumidas. Em outras
palavras, capacidade financeira é a condição que o sujeito apresenta para saldar
suas dívidas, no tempo e na forma assumidas.
Nessa ordem de ideias, é evidente que capacidade contributiva não é,
necessariamente, demonstração de disponibilidade financeira, e, para, além disso,
uma pessoa pode apresentar capacidade econômica, e ao mesmo tempo, não
apresentar capacidade contributiva.
Nesse mesmo sentido, um sujeito que adquire um salário mínimo ao mês,
apresenta, sem sombra de dúvidas, capacidade econômica, na medida em que está
se conceitua como a simples manifestação de riqueza, (bens, renda etc.), além
disso, poderia, este mesmo sujeito, apresentar capacidade financeira, ao passo que
consegue quitar, na forma e no tempo, suas obrigações. Porém, este mesmo sujeito
não apresenta capacidade contributiva, pois com a capacidade econômica retida à
um salário mínimo por mês, sua aptidão para com as despesas públicas é
inexistente, uma vez que toda sua renda será destinada à manutenção do ‘mínimo
vital’, conforme já estudado.
Por outro lado, aquele que apresenta capacidade contributiva, deve,
necessariamente, manifestar capacidade econômica, ao passo que aquela
pressupõe esta. Ora, veja, se a tributação está relacionada com manifes
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