1 COLETÂNEA 5 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA Bibliotecária responsável: Sônia Bernini – CRB 9/1210 Centro Universitário Curitiba. Administração Pública Democrática: Gestão e Controle. / Coordenação: Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr, Eloete Camilli Oliveira; organização: José Mário Tafuri, Sandro Mansur Gibran. Curitiba: Centro Universitário Curitiba, 2015. – (Coleção pesquisando direito; v.5) ISBN 978-85-87875-29-7 1. Direito. 2. Administração pública. 3. Democracia. I. SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho. II. OLIVEIRA, Eloete Camili. III. TAFUTI, José Mário. IV. GIBRAN, Sandro Mansur. CDD (20. ed.) – 340 Coordenadores VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR ELOETE CAMILLI OLIVEIRA Organizadores JOSÉ MARIO TAFURI SANDRO MANSUR GIBRAN COLETÂNEA 5 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE AENA 2015 | Curitiba Campus Milton Vianna Filho: Rua Chile, 1.678 - Rebouças - CEP 80220-181 Telefone: +55 41 3213-8700 Site: www.unicuritiba.edu.br Facebook: www.facebook.com/unicuritiba Twitter: www.twitter.com/unicuritiba YouTube:www.youtube.com/unicuritibaoficial SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS ARIANA KONFIDERA COELHO E PAULO HENRIQUE MARTINS DE SOUSA .................................19 SOBERANIA E BIOPOLÍTICA EM GIORGIO AGAMBEN BENJAMIM BRUM NETO E BORTOLO VALLE ...................................................................................45 A LICITAÇÃO PÚBLICA E SUA FINALIDADE DE PROMOVER O DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL CAMILA BACKES E LUCIANO ELIAS REIS ........................................................................................75 LEI 11.441 DE 04 DE JANEIRO DE 2007: FORMA DE DESAFOGAR O PODER JUDICIÁRIO ATRAVÉS DO SERVIÇO NOTARIAL CATIANE DEOLA JACOBOSKI E ADRIANA MARTINS SILVA ..........................................................101 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL CHRISTIANY DOMINGUES DA ROCHA E REGINA MARIA BUENO BACELLAR ............................125 DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CLEITON HENNING DA FONSECA E ROOSEVELT ARRAES .........................................................147 DA (IM)POSSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO MEDIANTE GARANTIA EM EXECUTIVO FICAL GUILHERME REIS GONÇALVES E THIAGO DALSENTER ..............................................................169 A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DO PODER LEGISLATIVO E O PLEBISCITO COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO DEMOCRÁTICO GUSTAVO BOLETTA VIEIRA E ROOSEVELT ARRAES ...................................................................201 ADOÇÃO MONOPARENTAL: UMA ABORDAGEM DA NOVA CONCEPÇÃO FAMILIAR DENTRO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO HELUANA APARECIDA MARIA E ADRIANA MARTINS SILVA ........................................................235 EMPRESAS PÚBLICAS ESTATAIS NO CONTEXTO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE JULYA CARNEIRO LOBO E LUIZ GUSTAVO DE ANDRADE ...........................................................265 O PAPEL DO ESTADO FRENTE À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE KALINA MARIAH ARAUJO DE ALVARENGA E ADRIANA MARTINS SILVA ....................................291 PERFIL DA ATIVIDADE PROFISSIONAL EM ENFERMAGEM NO DIREITO BRASILEIRO LARISSA LIE YAMAZAKI E MARIA DA GLORIA COLUCCI ...............................................................317 AS (IN)CONSTITUCIONALIDADES CONTRATAÇÕES PÚBLICAS DO ARGUIDAS REGIME NAS DIFERENCIADO AÇÕES DIREITAS DE DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4645 E 4655 LUCAS PAULINO DA SILVA E ANA LUIZA CHALUSNHAK ..............................................................337 O ABUSO DE DIREITO NAS RELAÇÕES DE HIPOSSUFICIÊNCIA E SEU IMPACTO NA MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO MARCELA BATISTA FERNANDES E ALAISIS FERREIRA LOPES ..................................................365 POLUIÇÃO MARÍTIMA NOS PORTOS BRASILEIROS PELA ÁGUA DE LASTRO RAFAEL JOPPERT CARVALHO DE SOUZA E MARIA DA GLORIA COLUCCI ...............................393 IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO: O FUNDAMENTO LIBERAL DOS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA RAYZA MAICZAK CARDOSO E NELSON SOUZA NETO .................................................................413 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO CRITÉRIO DE DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO ROBERT THOME NETO E MAURICIO DALRI TIMM DO VALLE ......................................................443 A AUTONOMIA PSÍQUICA DO PACIENTE IDOSO NA ELABORAÇÃO DO TESTAMENTO VITAL NO DIREITO BRASILEIRO VICTOR HUGO SCHMIDT E MARIA DA GLORIA COLUCCI .............................................................469 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE INTRODUÇÃO A Coletânea “Administração Pública Democrática: Gestão e Controle” contém artigos científicos resultantes de pesquisa conjunta de alunos e professoresorientadores do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Abordando temas atuais e de relevante interesse jurídico-social, os artigos resultam de Trabalhos de Curso, apresentados e indicados para publicação, por comissão examinadora composta por docentes da Instituição de Ensino. Inicialmente, a função social da propriedade e a possibilidade de usucapião de bens públicos, são abordadas por Ariana Konfidera Coelho e Paulo Henrique Martins de Sousa, ao analisarem as situações quando estes bens estão vagos e não destinados a um fim público, bem como se há alguma alternativa legal ao uso destes bens pelos particulares, em especial após o advento de julgados que reconheceram a prescrição aquisitiva em prol do particular, indo em sentido contrário ao disposto pela Súmula 340 do STF que veda a usucapião sobre qualquer espécie de bem público. A soberania e biopolítica em Giorgio Agamben, é a base do estudo desenvolvido por Benjamim Brum Neto e Bortolo Valle, ao investigar o conceito de soberania e o de biopolítica a partir de obra de Giorgio Agamben, bem como as articulações entretidas por eles e o alcance das análises que essa articulação possibilita. Analisaram a relação de complementaridade que Agamben identifica em Michel Foucault e Hannah Arendt, de modo a possibilitar um estudo conjunto dos efeitos do poder soberano e da biopolítica. Passaram a uma investigação dos principais conceitos agambenianos que tomam corpo a partir das considerações já feitas, dando-se destaque às suas reformulações conceituais críticas, que servem como um verdadeiro diagnóstico do presente, tanto da situação jurídica como política das sociedades ocidentais. Buscam através dos estudos apresentados, aproximar Direito e Filosofia, a fim de compreender alguns dos problemas teóricos e práticos que a sociedade possa enfrentar. A promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade a ser alcançada pelas licitações está prevista no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993, é temática apresentada por Camila Backes e Luciano Elias Reis. Enfatizam que o 11 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Estado deve, por meio do procedimento licitatório, atingir este fim juntamente com a observância do princípio da isonomia entre os participantes e a seleção da proposta mais vantajosa. Ressaltam que a sua realização é legal e não fere as finalidades da isonomia nem da seleção da proposta mais vantajosa. A Lei 11.441 de 04 de janeiro de 2007, visando a forma de desafogar o poder judiciário através do serviço notarial, faz parte do estudo desenvolvido por Catiane Deola Jacoboski e Adriana Martins Silva, para os fins de aproveitar a estrutura e competência dos Tabelionatos de Notas. Demonstram o que vem a ser um Tabelionato de Notas e como ele funciona, procurando fazer com que as pessoas percebam a importância econômica e social que ronda o serviço extrajudicial, como ele pode ajudar a desafogar o Poder Judiciário, prestando um serviço ágil, eficaz, menos custoso, capaz de solucionar o problema econômico das partes e também auxiliar na resolução do dilema da quantidade de processos aguardando uma solução pelas mãos do Poder Judiciário. Christiany Domingues da Rocha e Regina Maria Bueno Bacellar, demonstram a importância dos recursos naturais para a existência dos seres humanos, visto que diz respeito à garantia da vida humana em que todos dependem do meio ambiente para sobreviver, por intermédio da educação ambiental como instrumento para a efetividade do desenvolvimento sustentável. Destacam a preocupação com a proteção ambiental só foi percebida com a escassez dos recursos naturais e o agravamento da qualidade ambiental. Enfatizam que a partir da busca por este equilíbrio que surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, que visa a satisfação das necessidades atuais sem comprometer as necessidades das futuras gerações. Ressaltam que o meio ambiente ecologicamente equilibrado representa um direito fundamental do homem na Constituição da República de 1988 como pressuposto à sadia qualidade de vida. Através da análise do discurso da segurança no Estado Democrático de Direito, Cleiton Henning da Fonseca e Roosevelt Arraes, delimitam o atual paradigma estatal, pois é atribuído a ele uma diversidade de sentidos, assim estando em uma zona de incerteza. Delimitando o conteúdo do Estado Democrático de Direito. Apresentam os fundamentos e os reflexos do discurso da segurança, esse discurso legitima ações que podem ser enxergadas em dois planos: o primeiro 12 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE é o declarado onde se legitimam ações contrarias ao Estado Democrático de Direito, um exemplo é o Direito Penal do Inimigo, o segundo é velado onde utiliza-se da retórica baseada na segurança para legitimar ações de Estado de Exceção em plena vigência do Estado Democrático de Direito, em tempos de normalidade, utilizando de poderes especiais para agir, sem o respeito a certos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição. Enfatizando os argumentos em prol da suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de garantias previstas no ordenamento jurídico pátrio, Guilherme Reis Gonçalves e Thiago Dalsenter, ressaltam em especial a fiança bancária e o seguro garantia, ambas revestidas deste poder em razão do altíssimo grau de liquidez e certeza, assim como o ocorre com o depósito integral em dinheiro. Apresentam renomados doutrinadores e alguns precedentes judiciais pertinentes ao objeto em apreço – flexibilizando a aplicação do artigo 151 do Código Tributário Nacional –, ainda impera, sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a última palavra sobre a matéria, a negativa da suspensão em foco, ante a taxatividade do artigo 151 supra e do enunciado da Súmula nº 112/STJ. Destacam a importância do monitoramento contínuo do Poder Judiciário frente a estas garantias em virtude de uma eventual nova redação agraciada ao explorado artigo, bem como da auspiciosa evolução trazida pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), equiparando em dinheiro ambas as garantias. Gustavo Boletta Vieira e Roosevelt Arraes enfatizam o estudo a respeito da crise de representatividade do poder legislativo e o plebiscito como forma de participação popular no processo democrático, sendo que, os indicativos encontrados foram a debilidade partidária, a corrupção partidária e carência de credibilidade política e a falta de identificação entre representantes e representados. Sob o contexto deste problema, analisaram a necessidade de um maior fortalecimento da participação popular, no processo democrático, a partir das formas de participação previstas em lei, especialmente através do plebiscito, o qual é a forma mais direta de participação popular. Ao analisar os parâmetros sobre a ausência de dispositivos normativos constitutivos, nos diplomas legais, que legitimem a adoção por pessoas solteiras, Heluana Aparecida Maria e Adriana Martins Silva, determinam seus estudos no 13 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE sentido de que mesmo com a paridade da adoção atribuída aos solteiros, estabelecida pelo artigo 42, do Estatuto da Criança e do Adolescente, inexistem regras especificas que salvaguardem os interesses particulares destes legitimados, já que estes irão constituir a entidade familiar monoparental por adoção, entidade esta que aumenta expressivamente diante da sociedade contemporânea. Fundamentam a respectiva análise, na necessidade de leis específicas que determinem sua estruturação, a fim de proporcionar segurança jurídica, para que não haja necessidade de se recorrer a leis gerais para embasar as teses de adoção por pessoas solteiras, diante dos princípios constitucionais estabelecidos em nossa Constituição Federal de 1988, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente, que proporcionem direitos e garantias que viabilize todo o processo. Demonstrando a importância dos serviços públicos no contexto da saúde e a importância desse direito na perspectiva constitucional e infraconstitucional, Julya Carneiro Lobo e Luiz Gustavo Andrade, apontam que não é possível desvincular serviço público na área da saúde com os princípios que regem esse campo, a fim de alcançar a lógica da prestação do serviço público de saúde por empresas públicas. Através do estudo apresentado, exploram a esfera da administração indireta, caracterizando-a até modular os aspectos da empresa pública. Como modelo de instituição para estudo, chegou-se a EBSERH, denominada de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, e citou-se a problemática que a envolve através da discussão da constitucionalidade dos incisos da lei que a criou pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/STF, concluindo que tais incisos da Lei 12.550/2011 de fato incidem em inconstitucionalidade por vícios materiais. A intervenção estatal frente à situação de violência doméstica contra a criança e o adolescente, é a temática de estudos desenvolvidos por Kalina Mariah Araujo de Alvarenga e Adriana Martins Silva, ao apresentarem investigação teórica e experiência prática. Traçam um paralelo entre a origem da família e da evolução dos direitos fundamentais da criança e do adolescente com a violação de tais direitos, relacionando-a com a violência e, por fim, as formas de resolução de tais conflitos, considerando que não se trata de uma situação rara na realidade atual brasileira. Larissa Lie Yamazaki e Maria da Glória Colucci analisam o perfil da atividade profissional em enfermagem no direito brasileiro, é objeto de estudos apresentados, 14 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE tendo em vista a própria cultura da sociedade brasileira, que vê tal profissão como atividade submissa à Medicina, praticada por pessoas de baixa classe econômica e exercida praticamente por figuras femininas, tendo em vista que, tais pensamentos refletem diretamente na proteção jurídica que a profissão recebe, pois, uma profissão pouco valorizada é ignorada pelos legisladores. Desse modo, a lei vigente - Lei nº 7.498 de 1986, regulamentada pelo Decreto nº 94.406 de 1987 -, apesar de representar à época um avanço para a Enfermagem, é abrangente e incompleta. Por isso, é preciso reformular a base legal da atividade, dando-lhe a devida cautela, sem esquecer que a figura do enfermeiro é reflexo de dois importantes direitos fundamentais previstos constitucionalmente no Brasil: direito à liberdade profissional e direito social à saúde. Abordando os aspectos (in)constitucionais do regime diferenciado de contratações públicas, instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, Lucas Paulino da Silva e Ana Luiza Chalusnhak, analisam circunstancias que envolveram infraestrutura da Copa das Confederações de Futebol 2013, Copa do Mundo de Futebol 2014, Jogos Olímpicos e paraolímpicos de 2016. Demonstraram como funciona o controle de constitucionalidade através de ação direta de inconstitucionalidade no Brasil, as principais inovações e princípios norteadores do RDC, e as principais argüições e defesa relatadas nas Adins 4645 e 4655, ajuizadas no Supremo Tribunal Federal, juntamente com posições divergentes da doutrina. Marcela Batista Fernandes e Alaisis Lopes Ferreira apontam a importância do tema envolvendo o abuso de direito nas relações de hipossuficiência e seu impacto na morosidade do poder judiciário, tendo em vista, o aumento progressivo do número de demandas judiciais, principalmente aquelas ajuizadas por hipossuficientes, o trabalhador e o consumidor por excelência, e como a forma de interpretação da legislação vigente dá margem ao ajuizamento de demandas indevidas, para tanto, analisa-se as normas protetivas do Direito do Consumidor e do Direito Trabalhista. Enfatizam que, por ser atual, não há doutrinas publicadas que analisem especificamente a discussão proposta, razão pela qual a principal fonte de pesquisa é a jurisprudência. As modificações das relações de emprego e consumeristas, atualmente, fundamentam ações indevidas, aquelas em que a 15 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE condição de hipossuficiência tem sido invocada por quem não o é e utilizada para obtenção de proveito econômico ilícito. Enfatizando estudo acerca dos riscos ao meio ambiente marítimo, em especial a invasão de espécies exóticas, por conta do uso da água de lastro sem o devido gerenciamento, bem como as principais medidas adotadas pela comunidade internacional em prol do combate a esta prática, que já é considerado uma das quatro maiores ameaças aos oceanos, Rafael Joppert Carvalho de Souza e Maria da Glória Colucci, elucidam a importância do tema em questão. Apresentam o conceito de poluição e demonstram a necessidade de tutela do meio ambiente através do Direito Ambiental e seus princípios, diante de um estudo acerca dos riscos da bionvasão, por intermédio da Convenção da Água de Lastro de 2004 e a NORMAM 20/DPC. Visando elucidar o imposto de renda negativo, tendo como fundamento liberal dos programas de transferência de renda, Rayza Maiczak Cardoso e Nelson Souza Neto, apresentam como um programa de transferência de renda apontado por vertentes políticas liberais. Destacam, portanto, a possível convergência entre o estado mínimo e a realização de uma distribuição de renda. Expõe os aspectos relacionados à justiça e a necessidade dos valores éticos e morais na realização de regras e princípios de direito uma vez que estes elementos fundamentam legalmente a existência de programas de transferência de renda na sociedade. Destacam o sistema tributário redistribuição, nos princípios apontando a da função igualdade, destes nas capacidade contributiva intervenções estatais e de transferência, visto que a proposta do Imposto de Renda Negativo, como seu próprio nome aduz, se determina pelo conceito de capacidade contributiva inexistente. Analisando a essência do princípio da capacidade contributiva na ordem tributária, paralelo, sempre, ao preceito maior da igualdade, Robert Thomé Neto e Maurício Dalri Timm do Valle, enfatizam uma perspectiva doutrinária crítica, a relação direita entre igualdade e capacidade contributiva, bem como seus limites, suas espécies e aplicabilidade. A capacidade contributiva como subprincípio, está, indiscutivelmente, na essência do princípio maior da igualdade, ao passo que é uma efetiva ferramenta de materialização da igualdade no universo tributário. Não obstante a isso, apresentam a necessária relação existente entre capacidade 16 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE contributiva e os princípios do ‘mínimo existencial’ e da ‘proibição dos efeitos de confisco’, na medida em que estes últimos exercem papel limitador não só à capacidade contributiva, mas, também, ao Estado e ao Legislador. Victor Hugo Schmidt e Maria da Glória Colucci, elucidam a temática pertinente a autonomia do paciente na elaboração do testamento vital à luz do estatuto do idoso, analisando o perfil etário da população brasileira, destacando-se o aumento da sua expectativa média de vida, segundo dados do IBGE, se relaciona à condição do paciente idoso e suas vulnerabilidades. Apontam aspectos importantes da Lei nº 10.741 (Estatuto do Idoso), descrevendo, de forma sucinta, sua estrutura, divisões e subdivisões, ressaltando-se, em seguida, os direitos relacionados à liberdade e à autonomia da pessoa idosa. Por fim, descrevem o conceito de Testamento Vital e sua atual situação no País, bem como, as ações do profissional de saúde diante da autonomia do paciente idoso quando a vontade deste é declarada por intermédio do citado instrumento e sua relação com o Direito e com a Moral. A pesquisa realizada no âmbito do desenvolvimento do Trabalho de Curso pelos alunos concluintes do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, não pode ter os seus resultados restritos à banca examinadora, devem ser compartilhados e quiçá estimular outros profissionais a prosseguir na pesquisa, buscando o aprofundamento das conclusões aqui expostas. Desejamos que a leitura dos temas abordados, envolvendo a “Administração Pública Democrática: Gestão e Controle”, reforcem os ideais de cidadania e justiça, indispensáveis para a sociedade atual. ELOETE CAMILLI OLIVEIRA Doutora pela UFPR. Mestre pela PUCPR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE UNICURITIBA, professor titular – UNICURITIBA, Supervisora do setor de Registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso do UNICURITIBA. 17 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE JOSÉ MARIO TAFURI Mestre e Especialista pela PUCPR. Professor Adjunto do UNICURITIBA, Representante dos Coordenadores no CONSEPE- UNICURITIBA, Coordenador do Curso de Direito – UNICURITIBA. 18 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS THE SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY AND THE POSSIBILITY TO THE CONCESSION OF ADVERSE POSSESSION ON PUBLIC ASSETS Ariana Konfidera Coelho1 Paulo Henrique Martins de Sousa2 SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Usucapião. Aspectos Gerais 2.1 A questão de terras no Brasil 2.2 A função social da propriedade à luz da Constituição Federal de 1988 3 Bens Públicos 3.1 Classificação dos bens públicos 3.2 Caraterísticas dos bens públicos 3.3 Uso dos bens públicos pelos particulares 3.4 Bens Públicos em espécie- terras devolutas 4 Considerações Finais. Referências RESUMO Objetiva-se analisar a possibilidade de usucapião dos bens denominados públicos, quando estes bens estão vagos e não destinados a um fim público, bem como se há alguma alternativa legal ao uso destes bens pelos particulares, em especial após o advento de julgados que reconheceram a prescrição aquisitiva em prol do particular, indo em sentido contrário ao disposto pela Súmula 340 do STF que veda a usucapião sobre qualquer espécie de bem público. A partir de um breve histórico sobre a questão de distribuição de terras no Brasil à luz da função social, refletir sobre a real necessidade da Administração Pública se resguardar de alguns bens, ao mesmo tempo em que inúmeras famílias não possuem acesso à propriedade. Palavras-chave: usucapião, função social da propriedade, bens públicos ABSTRACT The objective is to examine the possibility of adverse possession of public assets when those assets are vague and not intended for a public purpose, and if there is any legal alternative to the use of 1 Acadêmica de Direito da Unicuritiba. [email protected] Professor de Direito na Graduação e na Pós-Graduação; Doutorado em andamento em Direito das Relações Sociais (UFPR); Mestre em Direito das Relações Sociais(UFPR); Parecerista ad hoc de revistas jurídicas científicas, avaliador e pesquisador. [email protected] 2 19 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE these assets by individuals, in particular after the advent of judgments that recognized the acquisitive prescription in favor of private, going in the opposite direction to the provisions by Precedent 340 of the Supreme Court that prohibits the prescription of any kind of public assets. From a brief history of the land distribution issue in Brazil in the light of the social function, reflect on the real needs of public administration to guard against some assets at the same time that many families do not have access to property. Keywords: adverse possession, social function of property, public assets 1 INTRODUÇÃO A usucapião é uma das socialmente mais importantes formas de aquisição de bens imóveis na atualidade. Com ela o legislador permite que uma situação de fato, que se alongou por determinado espaço temporal, se transforme em situação de direito – por meio da declaração judicial capaz de confirmar o domínio da coisa. Para tanto, deve-se exercer a posse de forma “contínua, inconteste, mansa e pacífica, com a intenção de ter a coisa como sua” (PENTEADO, 2008, p. 267), pelo espaço de tempo determinado em lei. Do estudo acerca do tema, permeando entre o direito civil e o administrativo, verifica-se que parte da doutrina entende que os bens públicos não são passíveis de sofrer usucapião, tese confirmada inclusive pela Súmula 3403 do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, com o advento de recentes julgados que versam sobre essa temática, em especial a Apelação 1.0194.10.011238-3/0014 julgada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, questiona-se acerca de quais são os motivos que justificam “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Jurisprudência. Brasília, DF, 13 dez. 1963. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=340.NUME.%20NAO%20S.FL SV.&base=baseSumulas>. Acesso em 20 mai. 2015. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. (5. Câmara Civil). Ação reivindicatória. Detenção. Inocorrência. Posse com "animus domini". Comprovação. Requisitos demonstrados. Prescrição aquisitiva. Evidência. Possibilidade. Evidência. Precedentes. Negar provimento. Apelação Cívil nº 1.0194.10.011238-3/001 – MG. Apelante: Departamento de Estradas Rodagem Estado Minas Gerais – DER/MG. Apelado: Claudio Aparecido Gonçalves Tito e outros. Relator: Desembargador Barros Levenhagen. Coronel Fabriciano, 15 de maio de 2014. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=88AAE22 7802B5D842B1B029DD63AEB03.juri_node2?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10 &numeroUnico=1.0194.10.0112383%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em 21 mar. 2015. 3 20 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE tais soluções adotadas pelo Poder Judiciário no que tange ao reconhecimento da usucapião em terras da Administração Pública que estão abandonadas. Assim, tem-se por objetivo analisar a possibilidade do particular usucapir os bens denominados públicos, pertencentes aos entes da Administração Pública, quando estes bens estão vagos e descumprindo a função social da propriedadegarantia fundamental, prevista no artigo 5º inciso XXIII da Constituição Federal, que surge como um limitador à atuação do particular, em favor do interesse coletivo. Ademais, verificar a real necessidade da Administração Pública se utilizar da tutela protetiva legal no que se refere a propriedade, e se isto não fere direitos individuais. O que vem contribuir para um estudo crítico acerca do impacto da aplicação desse instituto, no sentido de aprofundar a forma como as instituições jurídicas pátrias devem posicionar-se a respeito quanto aos casos de semelhante conflito. 2 USUCAPIÃO. ASPECTOS GERAIS A usucapião é modo originário de aquisição de propriedade que favorece o possuidor em detrimento do proprietário, pois sacrifica “este com a perda de um direito que não está obrigado a exercer.” (GOMES, 2008, p.187). Desta forma, a lei legitima aquele que exerce alguns dos poderes de domínio em desfavor do proprietário que deixou de exercê-los. Há quem veja na usucapião uma punição dada pelo Estado ao proprietário ante sua inércia em relação à propriedade, denominada corrente subjetiva. (WALD, 2009, p. 193) A outra corrente, denominada objetiva, fundamenta a usucapião na segurança e na utilidade social, no sentido de dar estabilidade à propriedade, bem como proteção às situações dominiais. A usucapião é, portanto, um meio de sanar os vícios, defeitos e incertezas em torno da propriedade. (GOMES, 2008, p. 187188) No direito brasileiro há mais de uma modalidade de usucapião, que se diferenciam basicamente pela questão temporal exigida por lei para a caracterização da propriedade. Dentre as diferentes modalidades, há características comuns, que são a posse qualificada, a coisa e o tempo. 21 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em relação à posse, tendo em vista que não é pacífico no ordenamento brasileiro qual a teoria adotada, se a Teoria Subjetiva de Friedrich Karl Von Savigny ou a Teoria Objetiva de Rudolf Von Ihering, é importante fazer uma breve diferenciação entre ambas. Para Savigny a essência da posse está na intenção do possuidor de ter aquela coisa como sua, sendo necessário além da vontade (animus) o domini. Para Ihering, o importante é como a sociedade vê o possuidor em relação à coisa, sendo irrelevante a vontade daquele que possui, estando animus e domini contido um em outro. Apesar disto, nos casos concretos é conferida a proteção possessória às situações com e sem o animus domini. (FACHIN, 1988, p. 31) Tais teorias contribuem para que seja verificada, nos casos concretos analisados por meio dos julgados da Apelação Cível 7493367 5 do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quais os direcionamentos utilizados pelos julgadores ao justificar a posse para a usucapião. Neste, o relator justifica seu voto, dentre outros argumentos, pela diferenciação entre posse e detenção baseada na Teoria Subjetiva, quando relata que a posse, sem o animus de tê-la como sua, constitui-se simples detenção, o que não é o caso nos autos, tal como demonstrado nas provas apresentadas. Também no julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, analisa-se os elementos da posse para a concessão da usucapião, utilizando-se a teoria de Savigny para a verificação da qualificação da posse para a ocorrência da prescrição aquisitiva. In verbis: “posse ininterrupta do referido imóvel, [...] com intenção de dona e pelo lapso temporal exigido”. Assim, verifica-se que nestes dois casos, os julgadores adotaram a teoria de Savigny no que tange ao conceito de posse. 5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (17. Câmara Cível). Ação de usucapião especial urbano. Pedido julgado improcedente. Imóvel pertencente à autarquia municipal. Sociedade de economia mista. Bem passível de aquisição por usucapião. Imóveis ocupados por particulares há aproximadamente três décadas, sem oposição. Posse exercida de forma mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini. Transferência do imóvel ao município como forma de redução do capital que não tem o condão de obstar pedido de reconhecimento de domínio. Preenchimento dos requisitos necessários à aquisição da propriedade. Recurso provido. Apelação Cívil nº 7493367 – PR (07493367). Apelante: Marilene Gimenes. Apelados: URBS – Urbanização de Curitiba S/A e Município de Curitiba. Relator: Lauri Caetano da Silva. Curitiba, 01 de junho de 2011. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19761575/apelacao-civel-ac-7493367-pr-0749336-7/inteiroteor-104554056>. Acesso em 20 mar. 2015. 22 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A posse necessária para a usucapião é aquela qualificada, isto é “contínua, inconteste, mansa e pacífica, e com intenção de ter a coisa como sua.” (PENTEADO, 2008, p. 267) Contínua significa que o possuidor deve permanecer por um lapso temporal ininterrupto no exercício do domínio. Inconteste, que a posse não poderá ser objeto de questionamentos judiciais ou extrajudiciais, isto é, não deve ser de interesse de outra pessoa ou do Estado, Município, União, etc. A posse também deverá ser justa, socialmente visível, não violenta, clandestina nem precária. Posse violenta é aquela que se obtém com o uso da força, seja esta força dirigida a pessoa do possuidor, sua família ou a partir do bem. Posse clandestina é a posse que não é pública, a posse onde se esconde a figura do possuidor. A posse precária é aquela obtida por meio do abuso de confiança, normalmente partindo de um contrato, em que há o descumprimento de alguma cláusula contratual. (PENTEADO, 2008, p. 472) Quanto ao objeto da usucapião, este deverá ser coisa hábil (res habilis): significa que o bem tem que ser possível de ser adquirido pela usucapião. De modo geral, os bens públicos, os bens de família e os bens penhorados não podem ser usucapidos. (PENTEADO, 2008, p. 269-270) Evidentemente que os chamados bens públicos de uso comum (ruas, estradas, rios navegáveis) são sempre inalienáveis. [...] discute-se, ainda, se a inalienabilidade de uma coisa implica em sua imprescritibilidade. E a resposta é pela negativa. O gravame imposto, no direito privado, sobre determinado bem, é indiferente àquele que está usucapindo. Com isso não se quer afirmar que a inalienabilidade está ligada ao proprietário, tão somente, porém, a proibição de alienação não obsta a usucapião de terceiro. A expressão ‘insuscetíveis de apropriação’ traz à tona a discussão sobre a imprescritibilidade dos bens públicos, especialmente as chamadas terras devolutas. (WALD, 2009, p. 61) Em relação ao tempo, é necessário que transcorra certo espaço temporal para que se consolide a situação jurídica. Esse domínio sobre a coisa deve se dar na “ausência de interrupção, suspensão ou causa obstativa de contagem deste tempo.” (PENTEADO, 2008, p. 270) 23 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.1 A QUESTÃO DE TERRAS NO BRASIL Em que pese o instituto da usucapião tenha origem no direito romano, é necessário fazer uma breve análise histórica da questão de terras no país, tendo como plano de fundo a usucapião. O Brasil herdou o instituto das Sesmarias da Coroa portuguesa. Tal instituto consistia num modo de obrigar os possuidores de terra a produzir, e os detentores de força de trabalho a trabalhar para os proprietários, sob pena de expropriação, açoite ou desterro. Pode-se dizer que a Sesmaria foi a primeira lei agrária da Europa. “A lei de sesmaria assumiu integralmente a ideia da propriedade como o direito de usar a terra e, mais do que isso, a obrigação de nela lavrar.” (MARÉS, 2003, p. 27-30) As sesmarias no Brasil, ao contrário do modelo original europeu, que visava dar a terra àquele que a quisesse produzir, foi concedida àquele que tivesse condições financeiras de explorar o trabalho alheio, seja por escravos ou por trabalhador livre, sendo então ocupadas pelos próprios sesmeiros, que eram a autoridade responsável pela concessão das terras, e que aos poucos concederamna para seus próximos, amigos e familiares, criando verdadeiros latifúndios para a manutenção da elite local. Assim, não respeitaram as terras indígenas e nem a extensão recomendada, que era “de tamanho não tão grande que não pudesse o beneficiário mesmo aproveitar.” (MARÉS, 2003, p. 61). Na versão brasileira as sesmarias foram negadas a quem quisesse trabalhar e produzir. Em 1822, tal modelo agrário foi substituído, visto não mais coincidir com o modelo de respeito à propriedade como direito absoluto imposto pelo pensamento liberal capitalista dos séculos XVIII e XIX. Este período de transição, até que um novo modelo fosse incorporado, perdurou por 28 anos. Aqueles que possuíam o documento de aquisição de propriedade sesmarial permaneceram como titulares das terras. Neste período, àquele que fizesse a terra produzir, era concedida a propriedade, visto tratar-se de um período de recessão, com a decadência na comercialização do açúcar bem como de ouro e diamantes. (GALEANO, 2010, p. 187) 24 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Somente em 1850 com a Lei Imperial de Terras, foi conceituado um novo instituto: o das terras devolutas. Essa nova lei só foi estabelecida devido ao novo período de ascensão econômica brasileira: a produção e comercialização do café, sendo do interesse daqueles que efetivamente detinham o poder dificultar o acesso à terra. (GALEANO, 2010, p. 187) Terras devolutas passaram a ser aquelas terras que não foram adquiridas legalmente, em relação às quais não havia direito de propriedade definido, nem se gerava domínio e não se possuía título de reconhecimento de propriedade. Existiam, portanto, três situações jurídicas distintas em relação à terra naquele momento: 1) os imóveis ocupados pela Coroa, com ou sem um título; 2) os bens dos particulares que pudessem comprovar sua titulação; e 3) enorme quantidade de terra com situação jurídica indeterminada, que significa que estavam abandonadas ou ocupadas por particulares sem título da propriedade. Somente esta terceira modalidade é que ficou qualificada como terra devoluta ou devolvida. (JUSTEN FILHO, 2009, p. 948) “Devoluta é a terra que devolvida ao Estado, esse não exerce sobre ela o direito de propriedade, ou pela destinação ao uso comum, ou especial, ou pelo conferimento de poder de uso ou posse a alguém.” (PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 523). Não se levou em conta se havia domínio de outrem, seja de indígenas, de escravos libertos ou de colonos. Aquele que adquiria a terra teria o direito de retirar quem estivesse ilegalmente vivendo nela, com auxílio inclusive da força policial. Ademais, tais terras só poderiam ser adquiridas por meio de compra, e como não era do interesse político a aquisição das terras pela maioria da população de baixa renda, os preços eram altos e inacessíveis aos trabalhadores livres. Em resumo, retirou-se qualquer direito do cidadão de reivindicar por terras devolutas. Isto porque as elites temiam perder mão-de-obra, haja vista que os escravos libertos e os colonos recém-chegados da Europa e Ásia iriam preferir, caso estivesse acessível a estes, trabalhar em terras próprias a vender sua mão-de-obra aos detentores de terras. Diante deste cenário, a elevação do preço das terras devolutas foi medida arquitetada para manter um sistema de mão-de-obra barata e evitar a marcha dos trabalhadores para os campos. (MARÉS, 2003, p. 71) 25 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A marcha para o interior do país só ocorreu por interesse alheio, sendo que os trabalhadores alargavam as fronteiras a mando dos latifundiários, que foram tomando posse dos grandes espaços vazios selva adentro. Os latifundiários ampliaram de tal forma suas propriedades que entre 1850 e 1860, “65 latifúndios brasileiros absorveram uma quarta parte das novas terras incorporadas à agricultura.” (GALEANO, 2010, p. 188) Este sistema de transferência de direitos originários de terras devolutas contaminou o direito nacional ao ponto de que jamais a doutrina e a jurisprudência tenham aceitado a usucapião de bem público, sob o argumento de que se trata de bem indisponível. Segundo Marés, este argumento não se sustenta, pois para a caracterização da usucapião é necessário o uso privado do bem, que, se caracterizado, anularia o uso público. (MARÉS, 2003, p. 75-76). Além disso, as terras devolutas estão disponíveis para o Estado vendê-las, logo não há uso, nem destinação social sobre as mesmas, argumentação inconsistente em relação à negativa de usucapião. A partir da criação dos Estados em 1891, as terras devolutas passaram a ser da responsabilidade dos mesmos, que detiveram competência legislativa para alterar e Lei de Terras e com isso, mantiveram o injusto sistema latifundiário local e as disputas entre terras e ocupações ilegais. O Decreto-Lei n. 9.760 de 1946 confirmou a definição de terras devolutas trazidas pela Lei de Terras de 1850, no sentido de que “são as terras públicas a que não foi dada destinação de uso público (uso comum do povo, uso especial) ou particular, embora, por sua história sejam públicas por ‘devolução’.” (PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 527). Pode-se afirmar que as terras devolutas de 1850 correspondem aos imóveis dominiais de hoje (JUSTEN FILHO, 2009, p. 949), inclusive aplicando àquelas o mesmo regime dos bens dominiais. Foi neste contexto que a Súmula 340 do STF foi editada, sendo publicada em 1963, na vigência do Código Civil de 1916 e baseada em julgados repetitivos bastante antigos (Recurso Extraordinário 4369-SP de 19436; Recurso Extraordinário 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Bens públicos. Usucapião. Inadmissibilidade. Recurso extraordinário nº 4369 – SP. Recorrente: Municipalidade de São Paulo. Recorrida: Margarida da Silva. Relator: Ministro Bento de Faria. São Paulo, 21 de setembro de 1943. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=116150>. Acesso em 21 mar. 2015. 26 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 7387-SP de 19467 e Recurso Extraordinário 51265-MG de 19638). Logo, verifica-se que o Código Civil de 1916 apenas manteve o disposto na Lei de Terras de 1850, bem como a Súmula repetiu aquilo já anteriormente estabelecido. O Estatuto da Terra promulgado em 30 de novembro de 1964 previa em seu texto a reforma agrária, na tentativa de corrigir as injustiças sociais, porém não alterava a garantia da propriedade privada, que continuava a ser vista como um direito inviolável, acima de todos os demais direitos, um direito absoluto. A grande modificação foi a de prever a possibilidade de desapropriação da terra quando não cumprida a função social, ainda que num primeiro momento essa previsão não tenha trazido grandes alterações por conta da interpretação que fôra feita de lei. Porém, foi a partir desse instrumento legal que a Constituição de 1988 trouxe a questão da função social da propriedade como princípio, elencado entre os diretos e garantias fundamentais, previsto no artigo 5º, XXIII. (MARÉS, 2003, p.110) 2.2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição Federal, ao garantir o direito à propriedade, também determina que esta propriedade atenda à função social, seja do ponto de vista dos direitos fundamentais, seja do da ordem econômica. A função social da propriedade é preceito que impõe ao titular da propriedade atuação de forma que não ofenda a comunidade em geral, determinando obrigações, sujeições ou ônus, tais como a manutenção de um ambiente sadio e equilibrado, respeito ao patrimônio histórico e cultural, paz, etc. 7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for a sua natureza, ex-vi dos arts. 66 e 67 do Código Civil e leis posteriores. Jurisprudência. Reforma do acórdão recorrido. Recurso extraordinário nº 7387 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorrido: Antônio Ribeiro Gato e outros. Relator: Ministro Laudo de Camargo. São Paulo, 19 de agosto de 1946. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=526887>. Acesso em 21 mar. 2015. 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Construção de barracões e pequenas propriedades em terras de domínio patrimonial do Estado. A mero “detentio” de terras públicas não gera posse útil “ad interdicta” ou “ad uso capionem.” Recurso Extraordinário nº 51265 – MG. Recorrente: Laminação de Ferro S.A – LAFERSA. Recorrido: Gabriel José Pereira e outros. Relator: Ministro Hermes Lima. Brasília, 30 de agosto de 1963. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=150194>. Acesso em 21 mar. 2015. 27 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Os preceitos legais que asseguram a função social da propriedade são limites ao poder do proprietário, sendo normas de ordem pública. (GOMES, 2008, p. 11). Esta função consiste: 1) na privação de alguma das faculdades exercidas por aquele que detém o domínio; 2) no estabelecimento de condições para que o proprietário exerça suas faculdades; 3) no atendimento a certos direitos econômicos e coletivos em relação aos bens produtivos. (GOMES, 2008, p. 125) A função social relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício. E por uso da propriedade é possível apreender o modo com que são exercitadas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de propriedade. (FACHIN, 1988, p. 17) O regime jurídico da propriedade privada é subordinado ao Direito Civil, mas também ao Direito Constitucional. No âmbito privado, o princípio da função social limita os atos do proprietário a fim de que não prejudique o interesse social. Já no âmbito constitucional, é consagrada a tese de que existem várias propriedades, por exemplo, a pública, a privada, a social etc., e para cada uma delas o princípio da função social atua e limita diferentemente. Para a propriedade privada a Constituição Federal de 1988 impõe limitações ao caráter absoluto, exclusivo e perpétuo. As limitações constituem qualquer ato que afete o direito de propriedade e têm como espécies: 1) as restrições, que limitam o caráter absoluto; 2) as servidões, que limitam o caráter exclusivo; e 3) a desapropriação, que limita o caráter perpétuo da propriedade. A Constituição Federal, em seu artigo 186 define os requisitos para que o imóvel rural cumpra a função social: 1) aproveitamento racional do solo; 2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3) observação das disposições que regulam as relações de trabalho; 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O artigo 184, por sua vez, prevê a desapropriação do imóvel que não cumpra a função social, modalidade de desapropriação que tem como fim a reforma agrária, de modo a possibilitar que esta terra seja adquirida por alguém que a fará produzir, uma forma de corrigir as injustiças sociais, que afinal seria o objetivo principal da 28 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Carta Magna. Essa desapropriação é de competência exclusiva da União (MARÉS, 2003, p. 124), e o então proprietário será indenizado com títulos da dívida agrária. Assim, a usucapião de bem público, no qual são garantidos todos os direitos de proprietário (como usar, fruir e alienar), não seria possível. No entanto, em determinadas situações, há a necessidade de legitimar algumas ocupações que atendam às condições estabelecidas pela lei do ente proprietário daquela terra, convertendo a propriedade em favor dos ocupantes desfavorecidos de propriedade. Seria uma forma de atender ao preceito do artigo 170, III, da Constituição Federal do Brasil, isto é, da função social da propriedade. (MEIRELLES, 2011, p. 586.) 3 BENS PÚBLICOS O artigo 98 do Código Civil vigente estabelece que bens públicos são os bens de domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público, que por sua vez são aquelas descritas no artigo 41 do mesmo Codex. Apesar da divergência doutrinária acerca da conceituação de tal tema, pode-se dizer que bens públicos são “os bens jurídicos atribuídos à titularidade do Estado, submetidos a regime jurídico de direito público, necessários ao desempenho das funções públicas ou merecedores de proteção especial”. (JUSTEN FILHO, 2009, p. 900) Além daqueles bens pertencentes à União, Estados, Distrito Federal, Municípios e as suas respectivas autarquias e fundações, também são considerados públicos os bens do particular afetados à prestação de um serviço público, no espaço temporal que perdurar a afetação. “O conjunto dos bens públicos formam o domínio público, que inclui tanto bens móveis quanto imóveis.” (MELLO, 2011, p. 931) A expressão domínio público comporta mais de um significado, podendo ser definido como: os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios, Distrito Federal e autarquias); num conceito menos amplo, designar os bens afetados a um fim público, compreendendo os bens de uso comum e os bens de uso especial; e em sentido muito restrito pode significar apenas os bens destinados ao uso comum do povo. (DI PIETRO, 2011, p. 672-673) 29 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A interpretação da segunda parte do artigo 98 do livro civilista leva ao entendimento de que os bens dos entes da Administração Indireta, a saber, as sociedades de economia mista e empresas públicas, (previstas no artigo 173, parágrafo 1º, II da Constituição Federal), não são bens públicos enquanto não exercerem atividade de interesse eminentemente público. (GASPARINI, 2011, p. 943) A análise quanto à inclusão ou não destes bens é pertinente devido ao posicionamento dos tribunais em conceder ou não a usucapião sobre os bens das empresas públicas. No sentido de não considerar os bens das sociedades de economia mista como bens públicos é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná no julgamento da Apelação Cível 7493367. Neste julgamento tem-se concedida a usucapião sobre bens da URBSUrbanização de Curitiba, sociedade de economia mista, pois esta não deu destinação pública ao imóvel, visto que ciente quanto à utilização do bem para fins de moradia por particulares, se absteve de intervir na posse no sentido de promover sua desocupação. “Se alguém é privado da posse e se mantém inerte, age de modo a deixar que a função social da propriedade milite em prol de outrem.” (MARÉS, 2003, p. 73) Ressalta o julgado que no momento da compra do imóvel, o mesmo não estava regularmente integrado ao patrimônio do vendedor, mas que o adquirente também não se assegurou das condições daquele bem no momento da compra e venda, sendo ônus do comprador tal verificação. Ademais, no momento da transação, a prescrição aquisitiva já estava operada em favor do possuidor, sendo o argumento de o bem integrar os bens públicos irrelevante, devido ao fato da propriedade da Administração Pública ser posterior à posse de terceiro. Uma vez presentes os requisitos para a usucapião, esta foi reconhecida. Deste modo, a depender do conceito de quais bens integram o domínio público, pode-se resumir que serão bens públicos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público interno, sendo todos os demais considerados bens de particulares, tese confirmada também pelos precedentes do Superior Tribunal de 30 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Justiça no Recurso Especial 120.702 – DF9 e Tribunal de Justiça do Estado do Paraná na Apelação Cível 240.998-110. Aqui verifica-se que muito embora a Súmula 340 do STF estabeleça a impossibilidade de usucapião dos bens públicos de qualquer espécie, já há entendimento no sentido de que os bens das sociedades de economia mista que estejam sem destinação pública podem ser adquiridos por meio da usucapião, sendo, portanto, uma afronta ao disposto pela Súmula, caso não seja conceituado quais bens integram o patrimônio público. 3.1 CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS O Código Civil de 2002 faz uma divisão tripartite dos bens públicos, de acordo com a destinação ou afetação dos bens, que consiste na “preposição de um bem a um dado destino categorial de uso comum ou especial, assim como a desafetação é sua retirada do referido destino.” (MEIRELLES, 2011, p. 922) Logo, segundo o artigo 99, são classificados em: 1) bens de uso comum, que podem ser utilizados por todos, como mares, ruas, estradas e praças; denominados também de bens do domínio público; 2) bens de uso especial, tais como as repartições públicas, os locais onde se realiza a atividade pública; também denominados de bens patrimoniais indisponíveis; 3) bens dominicais ou dominiais, que são as terras ou terrenos em geral, sobre os quais o Estado possui senhoria, seja direito real ou direito pessoal, também denominados bens patrimoniais disponíveis. Além disso, constitui também bem público quando a lei não dispor em 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (4. Turma). Usucapião. Sociedade de Economia Mista. CEB. O bem pertencente à sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. Precedente. Recurso conhecido e provido. Recurso Especial nº 120.702 – DF (1997/0012491-6). Recorrente: Ailton Bento da Silva – Espolio. Recorrido: Companhia Energética de Brasília - CEB. Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 23 de junho de 2001. Disponível em: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/318534/mod_resource/content/1/%28STJ%29%20REsp% 20120702%20-%20Ruy%20Rosado%20de%20Aguiar.pdf>. Acesso em 20 mar. 2015. 10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (9. Câmara Civil. Tribunal de Alçada). Ação de usucapião extraordinária. Bem pertencente à sociedade de economia mista. Possibilidade de ser usucapido. Precedentes no STJ. Anulação da sentença de primeiro grau. Recurso conhecido e provido. Apelação Cível nº 240.998-1. Apelante: Pedro Moreira e outro. Apelado: Companhia de Desenvolvimento de Curitiba – CIC. Relator: Desembargador Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira. Curitiba, 02 de março de 2004. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6372249/apelacao-civel-ac-2409981-pr-0240998-1/inteiroteor-12491154>. Acesso em 20 mar. 2015. 31 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE contrário, o patrimônio das pessoas jurídicas de Direito Público com estrutura de Direito Privado. (MEIRELLES, 2011, p. 565) Os bens de uso comum são os bens de domínio público do Estado, isto é, “o conjunto das coisas móveis e imóveis de que é detentora a Administração Pública, afetados quer a seu próprio uso, quer ao uso direto ou indireto da coletividade, submetidos a regime jurídico de direito público.” (DI PIETRO, 2011, p. 673) São exemplos os mares, as praias, os rios, as estradas, as ruas, as praças, as áreas verdes e de lazer. (GASPARINI, 2011, p. 946) Os bens de uso especial são os bens móveis e imóveis destinados à execução dos serviços públicos, isto é, o espaço utilizado pela Administração Pública para executar tal serviço. (DI PIETRO, 2011, p. 672) A utilização destes bens, isto é, o uso e o gozo, é exercida pelas pessoas que detém sua propriedade: a União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquia e fundações públicas. Ao contrário dos bens de uso comum e especial, os bens dominicais, por não terem afetação pública, são bens de patrimônio disponíveis, portanto, alienáveis. A afetação, conforme exposto anteriormente, significa dar ao bem uma destinação, seja para o uso comum ou especial. Desta forma, ou os bens serão afetados e se classificarão como bens de uso comum ou de uso especial; ou serão desafetados e serão classificados como bens dominicais. Pode-se dizer que os bens desta categoria são “a parcela de bens que pertence ao Estado em sua qualidade de proprietário”. Neste viés, submetem-se ao regime jurídico de direito privado, parcialmente derrogado pelo direito público. (DI PIETRO, 2011, p. 678-679) 3.2 CARACTERÍSTICAS DOS BENS PÚBLICOS Sob o aspecto jurídico, à luz da destinação, há dois grupos de bens: os do domínio público do Estado, incluindo os de uso comum e uso especial; e os de domínio privado do Estado, donde estão os bens dominicais. Cada uma das modalidades possui regime jurídico próprio, sendo que para os bens do domínio público do Estado aplicável a previsão legal quanto a inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade. 32 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Inalienabilidade está definida pelo Código Civil nos artigos 100 e 101, significa que tais bens não podem ser objeto de relação jurídica privada, seja compra e venda, doação, permuta, dentre outros; sendo, portanto, bens fora do comércio. Adentram esta classificação os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial, podendo, para os dois casos, considerar a inalienabilidade como absoluta, enquanto durar a afetação. Impenhorabilidade consiste na impossibilidade de leiloar os bens para que os credores sejam adimplidos, assim como a impossibilidade de gravar os bens com direitos reais de garantia, pois há formas específicas para a satisfação do crédito contra o Poder Público inadimplente. Neste sentido, disciplina o artigo 100 da Constituição Federal, a exclusão quanto à possibilidade de penhora de bens públicos pertencentes à União, Estados e Municípios. A imprescritibilidade significa que os bens públicos, independentemente de qual categoria pertençam, não são suscetíveis de usucapião. A imprescritibilidade está prevista no artigo 102 do Código Civil e também na Súmula 340 do STF. Esse precedente foi construído a partir de posicionamento repetitivo, baseado na previsão trazida pelo Código Civil de 1916 quanto à impossibilidade da usucapião sobre os bens públicos. Os bens dominicais podem ser alienados, desde que haja lei autorizativa para tal. A Constituição e a legislação ordinária preveem normas restritivas em relação aos bens dominicais. Dentre estas, importante destacar: a) a impossibilidade das terras devolutas serem alienadas ou cedidas a título gratuito, sendo permitido somente em casos excepcionais (Decreto-lei 9760, artigo 2030); b) quando for possível ocorrer a alienação de bem imóvel, será exigível a prévia avaliação, assim como a demonstração do interesse público, sendo realizada por meio de licitação e autorização legislativa (Lei 8666/1993, artigo 17); e, c) que as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados por ações discriminatórias são indisponíveis (art. 225, parágrafo 5º, Constituição Federal). A dúvida quanto à possibilidade da usucapião traz como ponto importante de discussão o tema dos bens dominicais, devido ao seu caráter de bens sem destinação (afetação), qualidade que fere o princípio constitucional da função social da propriedade; isto é, dar à terra destinação que atenda aos interesses de toda a 33 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE coletividade e não apenas do proprietário, exigência a ser cumprida com rigor pelos particulares, mas que é dispensada à Administração Pública. Mesmo após a consolidação do entendimento jurisprudencial acerca da impossibilidade de usucapir qualquer bem público, inclusive os dominicais, confirmada com o advento da Súmula 340 do STF, as Constituições de 1934, 1937 e 1946 ainda previam exceções, como o caso da usucapião pro labore, quanto ao direito à propriedade àquele que cultivasse a terra com seu próprio trabalho e o de sua família. A Constituição de 1967 não mais vem versar sobre a usucapião, mas valorizar o trabalhador do campo que utilizasse a terra para sua morada e sobrevivência, permitindo que lei federal concedesse a legitimação de posse, antes alicerçada quanto ao direito de preferência na aquisição do bem pelo valor histórico, de terras com até 100 hectares que se tornassem produtivas. A Lei 6.969/ 81 previa a usucapião especial, que consistia na possibilidade de tornar-se proprietário de terras devolutas situadas em área rural, desde que exercida e posse durante cinco anos sem interrupção nem oposição. Essa mesma legislação também estabelecia outros requisitos para a usucapião pro labore, como não possuir outra propriedade e que a área não pudesse ultrapassar 25 hectares. (DI PIETRO, 2011, p. 680) Os bens públicos, por força de legislações anteriores, e atualmente confirmados pela Súmula 340 do STF somada ao artigo 183, parágrafo 3º da Constituição Federal, não podem ser adquiridos por usucapião, estejam em áreas rurais ou urbanas. O questionamento que o presente trabalho se propõe a fazer baseia-se em recentes julgados. Num deles, confirmado em sede de Apelação, concedeu a usucapião em imóvel “pertencente” anteriormente à autarquia do Departamento de Estradas e Rodagem de Minas Gerais. Nesse julgamento, Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001 – MG, há a confirmação da posse, em face ao atendimento dos requisitos legais para tal, seja a posse contínua, ininterrupta, pacífica, pública e revestida com o animus domini, por mais de 30 anos, afastando desta forma a mera detenção. Quanto ao fato do imóvel ser um bem público, portanto, imprescritível (devido pertencer a uma autarquia estadual), o fundamento para a concessão da usucapião 34 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE deve-se à argumentação de que o imóvel usucapiendo não está inserido em área de domínio público, bem como ao fato de tal bem não estar afetado à prestação de nenhum serviço público, estando assim sem nenhuma destinação social, além da presença de lei autorizativa para o assentamento de famílias que estão no local. Dependendo do conceito de domínio público adotado, pode-se entender que é possível a usucapião de bem dominical. Se adotar o conceito mais amplo, que engloba os bens das pessoas jurídicas de direito público interno, políticas e administrativas, tal concessão iria contra lege, visto que os bens da autarquia estadual estariam dentre aqueles incluídos no domínio público. Outrossim, no conceito menos amplo os bens de domínio público compreenderiam os bens de uso comum e os bens de uso especial, sendo admitida tal concessão somente à luz da falta de destinação pública do imóvel. No conceito mais restritivo, que só admite bens de domínio público como aqueles bens de uso comum do povo, a medida de conceder usucapião seria acertada, visto que não se trata de um bem de uso comum do povo. Assim, pode-se concluir que, por exclusão, o julgador tem por base a doutrina que considera que os bens da autarquia não integram os bens de domínio público, sendo, portanto ou um bem dominical ou um bem de uso especial sem destinação pública adequada. 3.3 USO DOS BENS PÚBLICOS PELOS PARTICULARES A utilização dos bens públicos por particulares é possível, sendo que para cada modalidade é permitido um tipo de utilização. As formas de uso especial dos bens públicos podem ocorrer pela autorização de uso, permissão de uso e concessão de uso como direito real resolúvel, entre outros. Aos bens de uso comum pode haver a autorização de uso, permissão de uso; aos bens de uso especial pode haver a concessão de uso; e aos bens dominicais a concessão de direito real de uso, concessão de uso especial de moradia e autorização de uso. A autorização de uso é ato unilateral e discricionário, na qual a Administração permite ingerência individual sobre um bem público, outorgado em caráter transitório, podendo ser com ou sem prazo determinado de uso, que independem 35 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE tanto de lei autorizativa quanto de licitação. É ato precário, deste modo, pode ser revogado a qualquer momento. Confere poucos poderes e garantias ao usuário, que tem a faculdade e não o dever de utilizá-lo. Por exemplo, a ocupação de terrenos baldios. A permissão de uso é ato unilateral no qual a Administração faculta ao particular a utilização de determinado bem público, podendo conter ou não condições, ser gratuito ou remunerado, por tempo certo ou indeterminado. Entretanto, quando o interesse público exigir, a permissão poderá ser revogada. Pode recair sobre bens de qualquer natureza. Ocorre por exemplo com as bancas de jornal, fato que faz com que essa modalidade não necessite de lei autorizativa, mas que dependa de licitação. (MEIRELLES, 2011, p. 571). Não é uma faculdade do particular utilizar, mas sim uma obrigação, sob pena de não utilizando perder a permissão. As diferenças entre a utilização e a permissão são: a autorização é uma faculdade de uso privativo, atendendo ao interesse do beneficiário, ao passo que a permissão implica a utilização para fins coletivos; por consequência, a precariedade é mais acentuada na autorização; e por fim, na autorização, o permissionário tem a faculdade de uso, já na permissão é uma obrigatoriedade o uso, sob pena de revogado o seu uso. (DI PIETRO, 2011, p. 697) A concessão de uso é um contrato administrativo com um particular para utilização do bem de acordo com destinação específica. A utilização dos bens dominiais pelo particular é caracterizada pelo uso dos instrumentos de direito privado, tais como a locação, arrendamento e o comodato. (JUSTEN FILHO, 2009, p. 941). Entretanto, é um contrato de direito público, sinalagmático, podendo ser oneroso ou gratuito, comutativo e intuitu personae, isto é, não pode ser transferido a outrem sem autorização da Administração. A concessão pode ser do tipo concessão especial de uso para fins de moradia. Consiste na figura jurídica criada por meio da Medida Provisória 2.220/2001 para legalizar a ocupação irregular de terrenos públicos pela população de baixa renda. Sendo, pois, concedido para o indivíduo que até 31 de junho de 2001 tivesse em sua posse área de até 250 metros quadrados em área pública urbana, utilizando como moradia e que não possuísse ou fosse concessionário de 36 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE outro imóvel urbano ou rural. É um direito real sobre coisa alheia, resolúvel, que pode ser concedido, inclusive, de forma coletiva, mediante termo administrativo ou sentença judicial. (MEIRELLES, 2011, p. 575-576) É possível traçar um paralelo com a usucapião especial prevista no artigo 183 da Constituição Federal, visto que os requisitos para a obtenção, a posse pelo prazo de cinco anos e a vedação à transmissão aos herdeiros são idênticos aos daqueles institutos, podendo ser entendido como uma alternativa legislativa à “usucapião” de um bem público. A outra modalidade é a concessão de direito real de uso, que consiste na utilização de bem público dominical, por meio de um contrato gratuito ou remunerado concedido ao particular para que utilize o terreno público para fins de edificação, urbanização, industrialização, ou outra atividade de interesse social. Depende de autorização legal para ocorrer. (MEIRELLES, 2011, p. 577) Seu surgimento se deve a uma forma da própria Administração e seus entes utilizarem os imóveis uns dos outros; e depois, com a emenda feita pela Lei 11.481/2007 no Decreto-lei 271/1967, como forma de “regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência [...].” Assim, observa-se que a doutrina do direito administrativo conceitua e permite algumas formas do particular utilizar-se de bens públicos, modalidades em que só se transfere a posse e outras que transfere inclusive a propriedade. Desta forma, o entendimento advindo com a Súmula 340 do STF, que se consolidou em 1963 é de certa forma contornado com institutos mais atuais de utilização de tais bens, trazidos pela legislação administrativista, que vigoram desde 1993. 3.4 BENS PÚBLICOS EM ESPÉCIE- TERRAS DEVOLUTAS As terras devolutas são espécie de terras públicas, que integram os bens dominicais, sendo definidas como “aquelas que não estão destinadas a qualquer uso público nem incorporadas ao domínio privado.” Por não terem destinação, poderiam ser classificadas como terras disponíveis, integrando assim os bens dominicais. 37 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Entretanto, a Constituição Federal de 1988, no artigo 225, parágrafo 5º, estabelece que as mesmas são indisponíveis. Tal dispositivo constitucional merece uma análise mais aprofundada, pois, ao considerá-las indisponíveis, inclui as terras devolutas no mesmo regime jurídico que os bens de uso comum e especial. Quanto à definição do que sejam as terras devolutas e as terras arrecadadas pelos Estados por ações discriminatórias, importante salientar que “não significa que as terras devolutas deixem de sê-lo depois de arrecadadas.” (DI PIETRO, 2011, p. 723-724) Elas serão indisponíveis mesmo enquanto não forem afetadas, e quando afetadas integrarão os bens de uso especial. Ainda, ao mencionar terras devolutas ou terras arrecadadas pelos Estados por ações discriminatórias, que são aquelas já incorporadas ao patrimônio público, gera a dúvida quanto à aplicabilidade de tal dispositivo aos dois casos, ou se ao contrário, as terras devolutas podem ser consideradas disponíveis antes de serem incorporadas ao patrimônio público. Logo, em relação às terras incorporadas não há dúvida quanto a impossibilidade de usucapião. Já em relação às outras, surgem controvérsias na jurisprudência e nos Tribunais Superiores. Para o STJ, Recurso Especial 674.558 RS11, cabe ao poder público provar que se trata de terra devoluta, não sendo a simples ausência de registro imobiliário causa suficiente para tal prova. Para o STF, Recurso Extraordinário 72020 – SP12, no entanto, cabe ao particular fazer tal prova. “Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado, presunção juris tantum de que sejam terras devolutas, cabendo a este provar a titularidade pública do bem. Caso contrário, o terreno pode ser usucapido.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (4. turma). Usucapião. Faixa de fronteira. Possibilidade. Ausência de registro acerca da propriedade do imóvel. Inexistência de presunção em favor do estado de que a terra é pública. Recurso especial nº 674.558 RS (2004/0071710-7). Recorrente: União. Recorrido: Nair Nogueira de Vasconcelos – Sucessão. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 13 de outubro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=919322&nreg=200400717107&dt=2009 1026&formato=HTML>. Acesso em 21 mar. 2015. 12 “Não cabe ao estado provar que determinada gleba é devoluta: cabe a quem afirma no domínio particular o ônus da prova [...]”.BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Usucapião. Alegação de serem devolutas as terras. Afirmativa de que o imóvel entrou para o domínio particular, em face das provas, e admissibilidade de sua ulterior aquisição por usucapião. Inexistência de ofensa a direito federal ou de dissídio pretoriano. Recurso extraordinário não conhecido. Recurso Extraordinário nº 72020 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorridos: Renato de Oliveira Ferreira Coelho e sua mulher. Relator: Ministro: Rodrigues Alckmin. São Paulo, 11 de setembro de 1973. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=167800>. Acesso em 20 mar. 2015. 11 38 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE As terras devolutas passam por procedimento administrativo e judicial para sua demarcação, separando o que é público daquelas na posse dos particulares, que no fim do processo terão o título de legitimação da posse em benefício daqueles que preencherem os requisitos já expostos em item anterior. O procedimento judicial é subsidiário ao administrativo e somente é iniciado nos casos de dispensa ou ineficiência deste e nos casos de alteração de áreas posteriormente ao início do processo ou em caso de pessoas que não atenderam ao chamamento administrativo. É pelo rito sumaríssimo e por meio de sentença a questão da concessão da propriedade para o particular requisitante, definido o restante das áreas como terras devolutas. O procedimento administrativo inicia-se com o chamamento dos interessados que estejam nas áreas discutidas naquele processo. Os particulares apresentam seus títulos de domínio. Das terras com títulos incertos ou duvidosos tem-se iniciada fase judicial. Dos inequívocos, será iniciada a próxima fase de demarcação, isto é, a delimitação das terras e o consequente registro daquelas legitimadas em favor do particular e a definição daquelas devolutas. (DI PIETRO, 2011, p. 726-727) Diante de todo o exposto, verifica-se que a manutenção das terras devolutas como terras impossíveis de usucapir é mais uma questão de manter o status quo trazido desde a Coroa do que de fato uma necessidade do Estado. Há diversas propriedades dos entes da Federação que não estão destinadas a nenhuma função pública e sobre as quais a Administração nem sequer conhece como de sua propriedade. Ainda, devido ao fato do Brasil não ter realizado uma distribuição equitativa de terras, verifica-se que são mantidos os grandes latifúndios, bem como permanece inacessível à grande população de baixa renda o acesso à propriedade, seja devido aos altos custos, seja devido a manutenção das terras devolutas e dos bens dominicais no poder da Administração, que, nos casos das ações de usucapião são intimados a manifestar-se quanto ao interesse na propriedade a ser usucapida. 39 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A problemática lançada tem como base as recentes soluções adotadas por magistrados no que tange ao reconhecimento da usucapião em terras da Administração Pública, bem como as situações fáticas – como domínio e posse que basearam tais decisões. Quanto ao conceito de posse, como não é definido qual teoria se aplica, nos casos concretos é conferida a proteção possessória nas posses com e sem o animus domini, bem como a concessão da usucapião, independentemente da teoria da posse adotada. A presente discussão teórica teve como objetivo abrir questionamentos acerca da real necessidade da Administração Pública ainda se resguardar dos bens dominicais para compor seu patrimônio. Quanto à questão de terras no Brasil, se as terras devolutas necessitam mesmo dessa tutela protecionista, principalmente devido ao advento do princípio constitucional da função social da propriedade que também deveria ser aplicada aos bens público, com os mesmos critérios daqueles dispensados aos particulares. Neste mesmo sentido do atendimento à uma função social, é possível a interpretação de que a concessão especial de uso para fins de moradia, que ocorreu por meio da Medida Provisória 2.220/2001, com objetivo de, através do atendimento da função social da propriedade, dar direito à moradia às populações de baixa renda, pode ser interpretada como uma brecha legal à proibição da usucapião A usucapião é, portanto, uma forma de reequilibrar as relações sociais, restabelecendo a função social da propriedade. Da análise do principal julgado sobre o tema, a usucapião foi concedida devido ao entendimento de que o bem em questão, que seria de propriedade do DER-MG (autarquia estadual) não integrava os bens de domínio público e estava descumprindo sua função social. Apesar do entendimento sumulado quanto à impossibilidade da usucapião sobre os bens públicos, verificou-se que é possível a usucapião de bens públicos da Administração Pública Indireta, quando tais entes não dão destinação correta aos bens. Igualmente, é possível verificar a prescrição aquisitiva de acordo com o entendimento dos julgadores acerca do que sejam bens de domínio público, isto é, se este adota um conceito mais ou menos amplo, considerando como domínio 40 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE público todos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios, Distrito Federal e autarquias), ou se se adota um conceito intermediário de acordo com a afetação do bem, compreendendo os bens de uso comum e os bens de uso especial, ou se no sentido muito restrito onde somente os bens de uso comum do povo seriam considerados de domínio público. Deste modo, verifica-se que a impossibilidade de usucapião sobre os bens públicos é entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal (Súmula 340), com base em julgados bastante antigos, antes da égide da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Daí, provavelmente, a contemporânea viragem jurisprudencial que vem ocorrendo, ainda timidamente em nossos tribunais. REFERÊNCIAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Bens públicos. Usucapião. Inadmissibilidade. Recurso extraordinário nº 4369 – SP. Recorrente: Municipalidade de São Paulo. Recorrida: Margarida da Silva. Relator: Ministro Bento de Faria. São Paulo, 21 de setembro de 1943. Disponível em:<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=116150>. Acesso em 21 mar. 2015. ______. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for a sua natureza, ex-vi dos arts. 66 e 67 do Código Civil e leis posteriores. Jurisprudência. Reforma do acórdão recorrido. Recurso extraordinário nº 7387 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorrido: Antônio Ribeiro Gato e outros. Relator: Ministro Laudo de Camargo. São Paulo, 19 de agosto de 1946. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=526887>. Acesso em 21 mar. 2015. ______. Supremo Tribunal Federal. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Jurisprudência. Brasília, DF, 13 dez. 1963. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=340.NUME.% 20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso em 20 mai. 2015. ______. Supremo Tribunal Federal. (2. Turma). Construção de barracões e pequenas propriedades em terras de domínio patrimonial do Estado. A mero “detentio” de terras públicas não gera posse útil “ad interdicta” ou “ad uso capionem.” Recurso Extraordinário nº 51265 – MG. Recorrente: Laminação de Ferro S.A – LAFERSA. Recorrido: Gabriel José Pereira e outros. Relator: Ministro Hermes Lima. Brasília, 30 de agosto de 1963. Disponível em: 41 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=150194>. Acesso em 21 mar. 2015. ______.Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do loteador concessão de uso e espaço aéreo e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1967. ______. Supremo Tribunal Federal. (1. Turma). Usucapião. Alegação de serem devolutas as terras. Afirmativa de que o imóvel entrou para o domínio particular, em face das provas, e admissibilidade de sua ulterior aquisição por usucapião. Inexistência de ofensa a direito federal ou de dissídio pretoriano. Recurso extraordinário não conhecido. Recurso Extraordinário nº 72020 – SP. Recorrente: Fazenda do Estado. Recorridos: Renato de Oliveira Ferreira Coelho e sua mulher. Relator: Ministro: Rodrigues Alckmin. São Paulo, 11 de setembro de 1973. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=167800>. Acesso em 20 mar. 2015. ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal, Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/const/con1988/CON1988_07.05.2015/CON198 8.asp>. Acesso em: 20 mai. 2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. (4. Turma). Usucapião. Sociedade de Economia Mista. CEB. O bem pertencente à sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. Precedente. Recurso conhecido e provido. Recurso Especial nº 120.702 – DF (1997/0012491-6). Recorrente: Ailton Bento da Silva – Espolio. Recorrido: Companhia Energética de Brasilia - CEB. Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 23 de junho de 2001. Disponível em: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/318534/mod_resource/content/1/%28ST J%29%20REsp%20120702%20-%20Ruy%20Rosado%20de%20Aguiar.pdf>. Acesso em 20 mar. 2015. ______. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (9. Câmara Civil. Tribunal de Alçada). Ação de usucapião extraordinária. Bem pertencente à sociedade de economia mista. Possibilidade de ser usucapido. Precedentes no STJ. Anulação da sentença de primeiro grau. Recurso conhecido e provido. Apelação Cível nº 240.998-1. Apelante: Pedro Moreira e outro. Apelado: Companhia de Desenvolvimento de Curitiba – CIC. Relator: Desembargador Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira. Curitiba, 02 de março de 2004. Disponível em: <http://tjpr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6372249/apelacao-civel-ac-2409981-pr-02409981/inteiro-teor-12491154>. Acesso em 20 mar. 2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. (4. turma). Usucapião. Faixa de fronteira. Possibilidade. Ausência de registro acerca da propriedade do imóvel. Inexistência de presunção em favor do estado de que a terra é pública. Recurso especial nº 674.558 - RS (2004/0071710-7). Recorrente: União. Recorrido: Nair Nogueira de Vasconcelos – Sucessão. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 13 de 42 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE outubro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=919322&nreg=200400 717107&dt=20091026&formato=HTML>. Acesso em 21 mar. 2015. ______.Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. (17. Câmara Cível). Ação de usucapião especial urbano. Pedido julgado improcedente. Imóvel pertencente à autarquia municipal. Sociedade de economia mista. Bem passível de aquisição por usucapião. Imóveis ocupados por particulares há aproximadamente três décadas, sem oposição. Posse exercida de forma mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini. Transferência do imóvel ao município como forma de redução do capital que não tem o condão de obstar pedido de reconhecimento de domínio. Preenchimento dos requisitos necessários à aquisição da propriedade. Recurso provido. Apelação Cívil nº 7493367 – PR (0749336-7). Apelante: Marilene Gimenes. Apelados: URBS – Urbanização de Curitiba S/A e Município de Curitiba. Relator: Lauri Caetano da Silva. Curitiba, 01 de junho de 2011. Disponível em: <http://tjpr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19761575/apelacao-civel-ac-7493367-pr-07493367/inteiro-teor-104554056>. Acesso em 20 mar. 2015. ______. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. (5. Câmara Civil). Ação reivindicatória. Detenção. Inocorrência. Posse com "animus domini". Comprovação. Requisitos demonstrados. Prescrição aquisitiva. Evidência. Possibilidade. Evidência. Precedentes. Negar provimento. Apelação Cívil nº 1.0194.10.011238-3/001 – MG. Apelante: Departamento de Estradas Rodagem Estado Minas Gerais – DER/MG. Apelado: Claudio Aparecido Gonçalves Tito e outros. Relator: Desembargador Barros Levenhagen. Coronel Fabriciano, 15 de maio de 2014. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jses sionid=88AAE227802B5D842B1B029DD63AEB03.juri_node2?numeroRegistro=1&to talLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0194.10.0112383%2F001&pesqu isaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em 21 mar. 2015. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011. FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Sergio Faraco. São Paulo: L&PM, 2010. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 16.ed.atual. São Paulo: Saraiva, 2011. GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 4.ed.rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. 43 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE MARÉS, Carlos Frederico. 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São Paulo: Saraiva, 2009. 44 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE SOBERANIA E BIOPOLÍTICA EM GIORGIO AGAMBEN SOUVERAINETÉ ET BIOPOLITIQUE CHEZ GIORGIO AGAMBEN Benjamim Brum Neto13 Bortolo Valle14 SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Sobre a politização da vida 2.1 Poder soberano e biopolítica em Michel Foucault 2.2 Animal laborans e Homo sacer 3 A modernidade política segundo Giorgio Agamben 3.1 O paradoxo da soberania 3.2 A soberania como bando 3.3 Homo sacer: sobre a sacralização da vida 4 Considerações finais. Referências. RESUMO O presente trabalho tem por objetivo investigar o conceito de soberania e o de biopolítica a partir de obra de Giorgio Agamben, bem como as articulações entretidas por eles e o alcance das análises que essa articulação possibilita. Em função disso, primeiro analisa-se a relação de complementaridade que Agamben identifica em Michel Foucault e Hannah Arendt, de modo a possibilitar um estudo conjunto dos efeitos do poder soberano e da biopolítica. Em seguida, passa-se a uma investigação dos principais conceitos agambenianos que tomam corpo a partir das considerações já feitas, dandose destaque às suas reformulações conceituais críticas, que servem como um verdadeiro diagnóstico do presente, tanto da situação jurídica como política das sociedades ocidentais. O presente texto trata-se, portanto, de uma tentativa de aproximar Direito e Filosofia, a fim de compreender alguns dos problemas teóricos e práticos que tanto juristas quando cidadãos em geral possam enfrentar. Palavras-chave: Agamben, soberania, biopolítica, direito, política de Direito do Unicuritiba e integrante do Grupo de Pesquisa “A justiça política e o Direito Eleitoral no Estado Democrático de Direito”. E-mail: [email protected] 14 Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1983), Especialização em Filosofia da Educação (1984) e em Didática do ensino Superior (1986), ambos pela PUCPR. Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor da Faculdade Vicentina de Filosofia e professor titular do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Tem trabalhado com as disciplinas de Filosofia e Direito, Filosofia Antiga e Medieval, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Mente. As pesquisas em desenvolvimento têm sido nucleadas sobre o pensamento de Wittgenstein, mais especificamente sobre a questão do "inefável", bem como sobre o tema da religião no autor. Participa de Grupo de Pesquisa em Epistemologia com ênfase na questão do método e da verdade. 13Acadêmico 45 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE RÉSUMÉ Le présent travail a pour but de rechercher le concept de souveraineté et celui de biopolitique à partir de l´oeuvre de Giorgio Agamben, ainsi comme leur articulation et la portée des analyses que cette articulation permet. Pour ce faire, d´abord, on analyse le rapport de complémentarité qu´Agamben identifie chez Michel Foucault et Hannah Arendt, de façon à permettre un étude conjoint des effets du pouvoir souverain et de la biopolitique. Ensuite, on passe à l´analyse des principaux concepts agambeniens qui prennent corps à partir des considérations déjà faites, em mettant em relief les refonte conceptuelles critiques, qui servent comme un véritable diagnostique du présent, soit dans les situations juridiques, soit dans les situations politiques des sociétés occidentales. Le présent texte vise donc d´un essaye de rapprocher le Droit de la Philosophie, afin de comprendre quelques problèmes théoriques et pratiques auxquels les juristes et es citoyens peuvent faire face. Mots-clés: Agamben, souveraineté, biopolitique, droit, politique 1 INTRODUÇÃO A temática que aqui nos propomos a partir de Giorgio Agamben é um debate direto com Michel Foucault. Ao menos a partir do diagnóstico que Agamben nos fornece em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, a vida está implicada no direito numa relação de violência. Isso por que vida e direito só são articulados sob a forma da soberania, que já Foucault definia como “poder de fazer morrer ou deixar viver”. Mas essa soberania, tanto para Agamben quanto para Foucault, esse modo de capturar a vida, de dela lançar mão como objeto privilegiado, não é algo que está no passado. Sobretudo em Agamben, não há uma distinção essencial entre soberania e biopolítica. Ao contrário, se fizermos uma leitura paralela de Agamben e Foucault, observamos que enquanto Foucault parece deixar propositalmente aberta a relação entre biopolítica e soberania (DUARTE, 2015)15, Agamben, ao trazer o debate de Foucault para o estudo da máquina jurídico-política do ocidente, enxerga uma continuidade entre ambas as formas de poder. Essa negação de Agamben de que haja uma separação, mesmo que teórica (de direito), do poder soberano com a biopolítica acarretará consequências bastante drásticas para o seu pensamento, e o distanciará de forma definitiva das pretensões foucauldianas. 15André Duarte argumentará que a biopolítica em Foucault deve ser entendida em sua plasticidade própria, largo o suficiente para compreender um amplo dispositivo histórico-político, que abarcaria distintos modos de governação da vida, seja por meio de políticas estatais, violentas ou não, seja por meio de induções comportamentais promovidas pelo mercado neoliberal. 46 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE De todo modo, voltando-nos para a realidade histórica, certo é que nunca houve e nunca haverá uma sociedade em que apenas o poder soberano estará presente; tampouco houve ou haverá uma sociedade em que apenas a biopolítica estará presente. É essa relação entre soberania e biopolítica, portanto, como um desdobramento da relação entre direito e vida, que se faz pertinente de ser pensada. Também em relação a Hannah Arendt a hermenêutica, em sua forma pura e simples, é ultrapassada. Apesar de suas intensas análises sobre o totalitarismo, faltou-lhe a biopolítica para que a real natureza dessa questão fosse explicitada. É aí que entra Foucault, que teria se debruçado bastante sobre a biopolítica, mas jamais realizara o nexo essencial que ele guarda com os campos de concentração propriamente ditos. Esse argumento de Agamben ganha ainda mais peso quando lemos em Homo sacer que o campo de concentração é o paradigma da biopolítica contemporânea (AGAMBEN, 2010, p. 116). É verdade que Foucault realiza um estudo sobre o nazismo e sobre o racismo de Estado, mas, para Agamben, as análises de Foucault nesse aspecto não foram até o essencial. Por sua vez, o campo, como fruto da exceção declarada pelo chefe do poder executivo, consiste, sobretudo a partir de Carl Schmitt, numa previsão jurídica normativa teoricamente fundamentada. Isso significa que é preciso de fato realizar um estudo conjunto dos campos de concentração, da biopolítica e do embasamento jurídico que, juntos, permitiram que a democracias contemporâneas tivessem esse sutil limiar com o totalitarismo e suas técnicas de governo. A vida, nesse cenário biopolítico, nunca é apenas um dado biológico. De antemão, a vida aparece como uma tarefa política, uma política que se ocupa da vida, uma biopolítica. Como bem nos lembra Agamben, a diferença entre democracia e totalitarismo é uma questão de grau, e não uma questão de natureza, e o que caracteriza o totalitarismo do século XX é a identidade dinâmica entre vida e política (AGAMBEN, 2010, p. 111). É preciso, portanto, se avaliar as técnicas de governo, os dispositivos que de fato compactuam com essa política e esse direito que capturam a vida, controlam-na, desfazem-se dela ou simplesmente abandonam-na à própria sorte. 47 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 SOBRE A POLITIZAÇÃO DA VIDA Michel Foucault e Hannah Arendt são dois dos maiores filósofos do século XX e ambos, cada um de sua forma, teorizaram os fenômenos políticos de que foram contemporâneos. É no interior da diversificada obra de cada um desses autores que Agamben irá encontrar o fundamento para toda a sua investigação jurídico-política de maior envergadura presente no projeto Homo sacer. O fenômeno comum ao francês e à alemã que servirá de ponto de partida para Agamben é o da politização da vida. Mas o que poderíamos chamar de “limiar da modernidade biológica” de uma sociedade se situa no momento no qual a espécie entra como questão em suas próprias estratégias políticas. O homem, por milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de uma existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente (FOUCAULT, 1976, 188). Para Arendt, Foucault e Agamben, portanto, o ingresso da vida biológica no centro da política, processo esse que Agamben denomina politização da vida, corresponde ao evento importantíssimo da história política ocidental. Decisivo, porém, é o fato de que essa vida nua tenha saído das margens e tenha passado a ocupar o centro da política (AGAMBEN, 2010, p. 16), confundindo-se com o espaço político ele mesmo. Esse último fenômeno é responsável por uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico. Segundo Agamben, Somente em um horizonte biopolítico, de fato, será possível decidir se as categorias sobre cujas oposições fundou-se a política moderna (direito/esquerda; privado/público; absolutismo/democracia etc.), e que se foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadeira zona de indiscernibilidade, deverão ser definitivamente abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o significado que naquele próprio horizonte haviam perdido (AGAMBEN, 2010, p. 112). É no entrecruzamento desses dois autores, que dialogam diretamente (Foucault) ou indiretamente (Arendt) com a biopolítica que Agamben produzirá seus trabalhos. 48 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.1 FOUCAUL: DO PODER SOBERANO À BIOPOLÍTICA No curso que deu no Collège de France em 1976, “Em defesa da sociedade (Il faut défendre la société)”, a questão sobre a qual Foucault se debruçou foi sobre possibilidade de se lançar mão do princípio da guerra para a decriptação das relações de poder (SPECTOR, 1997, p. 196). Essa hipótese, a qual Foucault chama de “hipótese Nietzsche”, foi inspirada pela falta de um modelo adequado para a compreensão do poder político. Até então, todas as referências e estudos dedicados à questão do poder político incorriam nos vícios das teorias jurídico-filosóficas. A questão tradicional, segundo Foucault, era: como que o direito pode conter o poder? Ou ainda: como o direito pode legitimar os atos do soberano? Essas são as questões que estiveram sempre presentes nas reflexões sobre o poder, e que ganharam destaque com a reativação do direito romano no meio da Idade Média (FOUCAULT, 1997, p. 23). Para Foucault, no entanto, muito antes de se perguntar sobre o que é o poder, trata-se de perguntar pelo “como do poder” (FOUCAULT, 1997, p. 21). Isto é, Foucault está interessado em investigar os tipos de poderes que são capazes de produzir discursos de verdade, ou ainda, sobre os efeitos de verdade emitidos por esses poderes. Logo, o poder, conforme entendido por Foucault, goza de um sentido muito mais amplo e analítico que a noção tradicional de poder. Em A vontade de Saber, primeiro volume da História da sexualidade, publicado no mesmo ano em que pronunciou o curso “Em defesa da sociedade”, Foucault retoma esse mesmo problema das construções jurídico-políticas, que fazem uso de uma noção de poder necessariamente negativa, repressiva. Dessa conjuntura histórica, Foucault destaca como principal característica do poder soberano o direito de vida e de morte, provavelmente proveniente da antiga pátria potestas que concedia ao pai de romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos como bem entendesse. O mesmo valia para os escravos nesse registro histórico. Em ambos os casos, a lógica era a de que da mesma forma como o pai deu/permitiu a vida, a ele era concedido o direito de retirá-la (FOUCAULT, 1976, p. 177). As modernas doutrinas políticas, no entanto, como bem lembra Foucault, já não levam essa lógica tão ao pé da letra. Os teóricos clássicos já não consideram que esse 49 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE poder soberano possa ser exercido de forma absoluta e incondicional na lógica privada romana (FOUCAULT, 1976, p. 177). A moderna doutrina da soberania entende que o exercício de direito de vida e de morte sobre os súditos se dá de uma forma indireta, quando o “corpo” do soberano, sua existência ou sua autoridade estão ameaçados. É por isso que o mais correto seria afirmar que ao soberano é lícito expor a vida dos súditos num caso de ameaça externa. Para sua defesa própria, portanto, o soberano é legitimado a fazer guerra. Já quando a vida do soberano sofre uma ameaça interna, entende-se preenchida a condição para que o soberano exerça sobre a vida do súdito um poder direto, o poder de fazer morrer. A partir dessa observação Foucault conclui que o poder soberano é um poder de “fazer morrer ou deixar viver” (FOUCAULT, 1976, p. 178), pois o poder sempre se exerce sobre a vida a partir da morte, a partir da possibilidade de subtraí-la, de eliminá-la. Tendo em vista essa caracterização do poder soberano, é preciso se levar em conta um princípio geral que guiou Foucault em suas pesquisas sobre o mesmo: os edifícios jurídicos de nossa sociedade foram elaborados à requisito e em benefício do poder real. “Dito de outra forma, creio que o personagem central, em todo o edifício jurídico ocidental, é o rei. O Rei é o que está em questão, é do rei, de seus direitos, de seu poder, dos limites eventuais de seu poder” (FOUCAULT 1997, p. 23). Logo, a teoria do direito, criada inteiramente em torno do poder real, tem como problema central a questão da legitimação da soberania. Com efeito, Dizer que o problema da soberania é o problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente por função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação, para fazer aparecer no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania e de outro, a obrigação legal de obediência (FOUCAULT, 1997, p. 24). A partir disso, Foucault enxerga a necessidade de se inverter a análise do discurso do direito. É preciso, segundo o francês, ir além da realeza, desse sujeito centralizador do direito. A análise do poder no âmbito jurídico não deve se deter ao estudo da lei. Também são veículos importantes do direito o conjunto de aparelhos, instituições, regramentos que aplicam o direito. Ou seja, o direito é veiculado e 50 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE realizado tanto por relações de soberania, cuja função é a legitimação do poder, quanto relações de dominação em suas múltiplas formas. É esse lado, das relações de dominação, que interessa à Foucault nesse momento. E por dominação não se deve entender essa relação entre rei, na posição central, e súditos, como se estivéssemos a falar de uma relação de obediência, nem de dominação num sentido global, no sentido de que há grupos que dominam outros grupos. Para conseguir essa expansão de seu campo de análise para além da tradicional análise da soberania, Foucault estabelece algumas premissas metodológicas que podem ser resumidas da seguinte forma: apreender o poder na extremidade de suas manifestações jurídicas, isto é, no local em que ele é menos jurídico; apreender o poder em sua face mais externa, direta e imediata, tendo em vista seus efeitos reais; o poder deve ser visto em forma de rede, como algo que transita entre os indivíduos, e não necessariamente se aplica a eles; a análise deve seguir sempre o sentido ascendente, ou seja, a partir dos mecanismos infinitesimais (de baixo) até as formas de dominação globais; por fim, na base, as redes de poder não dão origem a ideologias, mas a instrumentos efetivos de formação de acúmulo de saber, dentre eles, métodos de observação, técnicas de registro, de procedimentos, de investigação e de pesquisa (FOUCAULT, 1997, p. 25-30). Diante dessa metodologia, que Foucault retoma e reformula incessantemente16, o filósofo se afasta da teoria marxista “segundo a qual o Estado, composto de um aparelho repressivo e de um aparelho ideológico, é instrumento de opressão da classe dominante” (SPECTOR, 1997, p. 69)17. Isso significa que a análise desempenhada por Foucault não parte de uma contradição fundamental encontrada no seio de sociedade, tal como de proletários e detentores dos meios de produção, como se essa contradição correspondesse a uma lei do funcionamento histórico das sociedades. Ao contrário, Foucault parte do poder em sua multiplicidade, heterogeneidade e difusão, sem conceber estruturas prévias e fixas de ordenação social. Mesmo as instituições, tão analisadas e comentadas por Foucault, nada mais são do que produtos históricos, resultado do corpo a corpo, dos funcionamentos e 16Uma das características da obra foucauldiana é essa disposição em retomar seus escritos precedentes, sem que haja uma mudança radical em sua abordagem. Trata-se, antes, de um trabalho árduo e constante de refinamento de suas análises. 17“(…) selon laquelle l´État, composé d´un appareil répressif et d´un appareil idéologique, est l´instrument d´oppression de la casse dominante“. 51 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE não funcionamentos das relações sociais entretidas. As instituições correspondem à cristalização das relações de força presentes no campo social, e que podem, aí sim, servir de amparo à dominação. A forma como Foucault aborda as instituições, portanto, não é compatível com a análise das superestruturas das teorias marxistas (SPECTOR, 1997, p. 69). A dedução, segundo Foucault, é sempre a perspectiva mais fácil. Sendo a mais fácil, o filósofo desconfia dela, por ser também a mais apressada e a menos criteriosa. “Eu creio que qualquer coisa pode ser deduzida do fenômeno geral da dominação da classe burguesa” (FOUCAULT, 1997, p.28). Ou seja, para Foucault, não se trata de negar que haja uma classe burguesa ou que ela de fato exerça uma dominação global. Ele só não está de acordo com essa metodologia descendente (por dedução) dos fenômenos, que em última instância tem como princípio de inteligibilidade último um sujeito como causa, algo como um sujeito da história. Logo, se há técnicas de dominação exercidas pela classe burguesa, Foucault nos orienta a investigar a forma pela qual essas técnicas se tornaram interessantes para ela, isto é, sem ver a classe burguesa como a instauradora de técnicas. É preciso se buscar antes os efeitos, do que propriamente as causas. O raciocínio de Foucault parte da constatação da existência de mecanismos de controle que se tornaram técnicas economicamente profícuas e politicamente úteis (FOUCAULT, 1997, p. 29). A partir dessa utilidade e dessa rentabilidade das técnicas é que elas se apresentam como interessantes para a burguesia, as quais passam a fazer uso das técnicas. Em suma, é preciso se desvencilhar do modelo do Leviatã, desse modelo de um homem artificial, que englobaria todos os indivíduos reais, e cujos cidadãos seriam o corpo, mas cuja alma seria a soberania. É necessário estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata-se de analisar a partir das técnicas e táticas de dominação (FOUCAULT, 1976, P. 30)18. A partir de sua metodologia própria, Foucault nos mostra que o poder político extrapola a teoria jurídica. Ele a ultrapassa, a transborda. A partir dos séculos XVI e 18“En somme, il faut se débarrasser du modèle du Léviathan, de ce modèle d´un homme artificiel, à la fois automate, fabriqué et unitaire également, qui envelopperait tous les individus réels, et dont les citoyens seraient le corps, mais dont l´âme serait la souveraineté. Il faut étudier le pouvoir hors du modèle du Léviathan, hors du champ délimité par la souveraineté juridique et l´institution de l´État ; il s´agit de l´analyser à partir des techniques et tactiques de domination”. 52 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE XVII (que na periodização foucauldiana corresponde à época clássica), Foucault detecta a emergência de uma nova configuração de poder que ilustra bem isso: trata-se de emergência do poder que incide sobre a vida. A introdução da biopolítica como chave de leitura da política contemporânea foi feita por Foucault ao grande público em 1976, no último capítulo de A vontade de saber. O conceito também foi aprofundado no curso que Foucault ministrou no mesmo ano no Collège de France, Em defesa da sociedade, quando serviu de suporte crítico do modelo jurídico de análise do poder. Mas a biopolítica, assim como o poder disciplinar – outra forma de poder que parecia não poder ser explicada pelo direito – estava comprometida não com o registro da norma, do jurídico, mas do normalizador. É a partir desse poder normalizador que Foucault irá dedicar seus dois próximos cursos ministrados na mesma instituição. Esse poder normalizador, por sua vez, não poderia ser investigado da mesma forma que o poder jurídico. Por essa razão, Foucault recorre ao conceito de “dispositivo”, que faz referência a uma rede heterogênea de poder, saber que são os responsáveis pela produção da experiência dos indivíduos no que diz respeito a determinados temas. É assim com sua formulação do dispositivo da sexualidade. Como explica Spector, a sexualidade para Foucault aparece como um problema central, pois ela se encontra no ponto de encontro dos dois níveis de atuação do poder normalizador, que é anatomopolítica e a biopolítica, isto é, a disciplina e a regulação, ou ainda, o corpo individual e a espécie (SPECTOR, 1997, p. 69). Segundo Agamben, Foucault teria o mérito de realizar essa grande descoberta do caráter biopolítico da política moderna, mas lhe faltara um estudo mais aprofundado que o permitisse articular a biopolítica ao fenômeno totalitário, o que o teria levado a não abordar o principal fenômeno biopolítico da modernidade que é o campo de concentração. Esse é um paço que só será possível com as precisas análises de Arendt. 2.2 DO ANIMAL LABORANS AO HOMO SACER Hannah Arendt é uma inspiração para Agamben em inúmeros sentidos. A começar pela distinção que a autora faz em A condição humana entre oikos e pólis, 53 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE a primeira correspondendo ao domínio da zoé, a segunda ao domínio da bíos. Conforme já visto com Foucault, a modernidade política no ocidente é marcada pela inversão dessas categorias clássicas, de modo que a zoé, a vida nua segundo Agamben, se torna o objeto privilegiado do poder. No entanto, assim como faltara a Foucault a análise das categorias jurídicas em seu trato da biopolítica, Arendt jamais dera o passo decisivo de unir as análises de A condição humana a seu Origens do totalitarismo. Esse passo, dado finalmente por Agamben, é fundamental para o desvelamento da verdadeira natureza do campo de concentração, que não deve ser entendido exclusivamente do ponto de vista jurídico, isto é, como um local onde o direito se aplica desaplicando-se, ou ainda, onde a lei é existente (continua a viger), mas não é aplicada (enforced); o campo de concentração para Agamben não é apenas um lugar onde os que nele residem estão com suas garantias fundamentais suspensas, mas é um espaço de produção da vida nua, vida essa que nada mais é do que o produto por excelência dessa política da biopolítica. Para além, ainda, dessa frutífera análise do fenômeno totalitário, Arendt contribui para pensarmos a distinção entre política e violência, tendo sobretudo como pano de fundo histórico uma política que se dá necessariamente como violência. Arendt, conforme afirma Duarte, entende que por detrás da confusão tradicional entre poder e violência - e ainda outras noções como força (force), autoridade (authority), vigor (strengh) – esconde-se a questão crucial de quem domina quem (DUARTE, 2010, p. 305). O encadeamento lógico das noções poder, dominação, obediência, coerção e violência é um vício da tradição que acaba por ofuscar o “fenômeno essencial não violento da geração do poder por meio da ação coletiva concertada” (DUARTE, 2010, p. 305). As análises de Arendt, portanto, pretendem, assim como as de Agamben, trazer à luz a diferença essencial entre a “política radicalmente democrática, considerada em termos da participação coletiva e do discurso persuasivo entre uma pluralidade de agentes, e a violência [...] que destrói o livre curso das relações de poder entre os cidadãos” (DUARTE, 2010, p. 305). Violência e poder, contrariamente ao que afirma a tradição política, são inversamente proporcionais à medida que quanto maior a legitimidade de um poder, menos violento ele será; o mesmo vale para o sentido contrário: quanto menor a 54 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE legitimidade do poder instituído, maior dispêndio de violência será necessário para manter o poder estabelecido (DUARTE, 2010, p. 305). Tanto Agamben quanto Duarte entendem que ultrapassar o texto de Arendt e unir seus escritos à noção de biopolítica não implicaria um conflito fundamental com o espírito arendtiano; ao contrário, essa interpretação pouco ortodoxa dos textos de Arendt permitiria a adesão a um de seus principais ensinamentos políticos, que é o comprometimento com a compreensão do próprio presente. Nesse sentido, afirma Duarte que A noção de biopolítica [...] permite demonstrar que a reflexão de Arendt ilumina as principais crises políticas da modernidade tardia, nas quais experimentamos a política sob diferentes modalidades da violência, seja ela a violência extraordinária do totalitarismo, ou a violência ordinária levada a cabo por meios burocrático-policiais nas democracias realmente existentes (DUARTE, 2010, p. 308). Além disso, a hipótese mais radical e interessante que podemos extrair de uma leitura conjunta de Arendt e de Agamben diz respeito “às fundamentais diferenças fenomênicas existentes entre o Estado democrático de direito e o Estado totalitário” (DUARTE, 2010, p. 308). Não se trata de afirmar que entre as democracias liberais e o totalitarismo haja uma identidade, uma natureza comum. Antes, o que Agamben parece identificar, e que é possível de se projetar para os trabalhos de Arendt, é que há um “vínculo biopolítico entre a violência política contemporânea, em suas formas totalitárias, e a glorificação dos ideias e valores do animal laborans” (DUARTE, 2010, p. 315-316)19. Isso leva Duarte a afirmar que “tanto no totalitarismo quanto nas democracias liberais de massa e mercado, ainda sobre graus e modalidades totalmente distintos, o que vemos é a redução do homem como agente político à figura do animal laborans e do homo sacer” (DUARTE, 2010, p. 309). Novamente, enxergamos essa dimensão da zoé assumindo o lugar do que a bíos detinha no pensamento político clássico. A condição humana, Arendt “argumenta que a Revolução industrial, ao trazer a ampliação sem precedentes do âmbito das necessidades naturais e do trabalho e do consumo, trouxe consigo a transformação do homo faber, o tipo de homem moderno concebido como fabricante artesanal de obras duráveis, no animal laborans, o homem contemporâneo concebido como trabalhador constantemente empenhado na manutenção do ciclo vital da espécie e da própria sociedade em que vive”. 19Em 55 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Se para Agamben o campo de concentração é o paradigma político da modernidade, para Arendt o totalitarismo - fenômeno que inaugurou a técnica do campo tal como o concebemos hoje - é visto ao mesmo tempo como uma ruptura e como cristalização dos fenômenos políticos precedentes. Segundo Duarte, trata-se, de um lado, de uma ruptura, “pois o considerou como fenômeno político sem precedentes históricos, irredutível às formas de dominação políticas previamente registradas pela tradição do pensamento político, tais como as ditaduras, tiranias e despotismos” (DUARTE, 2010, p. 310). Por outro lado, Arendt jamais faz do totalitarismo e de suas técnicas um evento supra histórico. O totalitarismo não é um “acidente no percurso da realização crescente da liberdade” (DUARTE, 2010, p. 311); antes, ele é “a resultante de uma série de condições históricas e sociais que dizem respeito ao coração mesmo da política na modernidade, as quais tornaram possível a conjugação da ciência, da tecnologia e da burocracia administrativa” (DUARTE, 2010, p. 311). É a partir dessa historicidade do fenômeno totalitário que surge o dever de nos atentarmos às presenças de elementos políticos que funcionam como radicais livres que a depender da conjuntura podem reagir e desencadear novos fenômenos totalitários. Já ao final de suas conspirações sobre o totalitarismo, Arendt nos adverte sobre a insuficiência da derrota do nazismo e do stalinismo, o que por si só “não eliminaria a tentação de recorrer a soluções totalitárias enquanto ainda estivermos diante de massas humanas desprovidas de voz e de um lugar próprio no mundo” (DUARTE, 2010, p. 311-12). O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. (...) Os nazistas e bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de extermínio, que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso de população, das massas economicamente supérfluas e socialmente sem raízes, são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência. As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem (ARENDT, 1987, p. 510-511). 56 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Mas quando se pretende conectar o pensamento de Arendt à biopolítica, o percurso necessário é aquele por meio do qual a autora elucida a transformação histórico-ontológica do agente político em animal laborans. O que Agamben chama de politização da vida tem seus germes num processo que Arendt detecta a partir do século XIX que diz respeito a uma política que é comprometida com o “crescimento não natural do natural” (unnatural growth of the natural) (DUARTE, 2010, p. 310). A partir dessa fórmula enigmática, Arendt parece estar se referindo a redução do homem ao ciclo repetitivo do seu próprio funcionamento vital que se deu sobretudo nas modernas sociedades industriais de massa, nas quais o trabalho contínuo garante a sobrevivência do trabalhador e da espécie mediante a produção voltada ao consumo imediato. A partir desse modo de produção, que transforma a vida num ciclo infernal de trabalho e consumo, os indivíduos passam a ter cada vez menos espaço, disponibilidade e disposição para ter suas interações no espaço público (onde a política de fato tem lugar). É dessa forma que se deve compreender o processo por meio do qual o espaço público foi gradualmente convertido no espaço privado das trocas econômicas (DUARTE, 2010, p. 316). Em tal sociedade, o direito ao trabalho converte-se em necessidade de trabalhar, pois é um pressuposto da própria existência. De acordo com Arendt, A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega num instante em que só se pode ser contraproducente. A sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. (...) O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente, nada poderia ser pior (ARENDT, 1995, p. 12-13). A dimensão biopolítica, portanto, do trabalho de Arendt está nesse ciclo vicioso de uma política que tem como objetivo o incremento da vida e da felicidade do animal laborans. Como já se viu com Foucault, no entanto, essa preocupação, esse cuidado com a vida do animal laborans vem acompanhado da multiplicação das repressões violentas e dos genocídios, que não se dão necessariamente em suas formas diretas. Basta lembrarmos que a fórmula da biopolítica é “fazer viver e 57 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE deixar morrer”. Como afirma Duarte, “a tese arendtiana de nossa atual experiência da política, que a assume em termos do controle administrativo e do constante incentivo das necessidades vitais do animal laborans, tem como correlato o assassinato em pequena, média ou larga escala” (DUARTE, 2010, p. 323). A partir de uma reflexão sobre aqueles que foram abandonados à própria sorte, isto é, sobre a experiência dos internos dos campos de concentração, dos refugiados e dos apátridas, Arendt conclui pela impossibilidade de se fundar uma verdadeira política sobre a mera vida ou mesmo sobre a natureza humana. Esse fundamento na nudez humana é condição suficiente para que haja a redução do animal laborans à condição de vida nua do homo sacer. A concepção de política para Arendt, portanto, é apartada de qualquer substrato natural ou qualquer coisa que já se conceba misteriosamente dada de antemão; a política para Arendt tem a ver com a construção de um “mundo comum”, artificial, e tem por pressuposto uma pluralidade humana, uma pluralidade de agentes (DUARTE, 2010, p. 324-325). Um bom exemplo dessa ideia de artificialidade contra natureza está na explicação que Arendt dá sobre sua concepção de igualdade: A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo, por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais. A nossa vida política baseia-se na suposição de que podemos produzir a igualdade através da organização, porque o homem pode agir sobre o mundo comum e muda-o e construí-lo juntamente com os seus iguais e somente com os seus iguais (ARENDT, 1987, p. 325). É também com essa necessidade de se afastar do simplesmente natural, que Arendt constrói sua célebre afirmação de que a cidadania é “o direito a ter direitos”, tendo em vista que a eficácia dos direitos humanos está vinculada ao pertencimento dos homens a uma comunidade por eles construída, e que essa comunidade o reconheça, o dignifique e o proteja (DUARTE, 2010, p. 325). A partir dessas linhas gerais do pensamento de Arendt, Agamben pode somala às análises biopolíticas de Foucault, e pensar a violência que faz parte da política estatal contemporânea ao caráter biopolítico que a possibilita e fundamenta. 58 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3 A MODERNIDADE POLÍTICA SEGUNDO GIORGIO AGAMBEN Até agora, pudemos constatar a pertinência do diagnóstico biopolítico de Foucault e das considerações pertinentes à violência com Arendt. A partir de agora, o que pretendemos adentrar alguns conceitos de Agamben que não são tão evidentes e que colocam problemas a todos os leitores de primeira mão de sua obra. Nesse sentido, abordaremos, primeiro, a questão do paradoxo da soberania. Em segundo lugar falaremos da soberania como bando. Por fim, falaremos do homo sacer, dessa figura extremamente enigmática e da qual Agamben lança mão como paradigma de compreensão da modernidade. 3.1 O PARADOXO DA SOBERANIA Segundo Agamben, o paradoxo da soberania se anuncia na frase “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. Essa afirmação ganha sua máxima compreensão se aliada à ideia de Schmitt de que o soberano é aquele que declara o estado de exceção e, portanto, é aquele que detém a capacidade de suspender o ordenamento jurídico, o que não o exclui totalmente do próprio ordenamento, que precisa de uma decisão sobre essa suspensão para saber se a constituição será in toto suspensa (AGAMBEN, 2010, p. 22). A noção de exceção, que ilumina todo o raciocínio de Schmitt e que já foi aprofundada quando dele tratamos, entra agora em cena também em Agamben. O problema da exceção, amplamente trabalhado em Homo sacer, é exemplarmente explicado em Estado de exceção, onde Agamben o relaciona ao problema da soberania, situado por sua vez no debate entre Schmitt e Benjamin. É aqui que o “antídoto” benjaminiano, ao qual fizemos referência na seção dedicada à Schmitt aparece em sua plenitude. De acordo com Agamben, a diferença do trato que cada um desses autores confere à violência é essencial para se compreender o problema, pois a soberania da lei é insuficiente e não pode prescindir da violência para conservar sua potência (tal como o quer Kelsen). O estatuto da violência, que pode ser averiguado em seu comentário à Hobbes, é essencial para Agamben tendo em vista que 59 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A violência do estado de natureza nunca é um estágio superado, uma ameaça removida nos primórdios da vida política: antes pelo contrário, ela é constitutiva da polis como seu princípio interno, de modo que se mantém presente como possibilidade permanente da decisão soberana sobre o estado de exceção (GIACÓIA, 2008, 40). O estado de exceção, como já visto, consiste num “momento de suspensão radical do direito em função de sua própria conservação” (BOLTON, 2012, p. 163), isto é, numa pragmática da decisão soberana, da auctoritas. Agamben fornece uma explicação breve desse aspecto da auctoritas na seguinte passagem: No caso extremo – ou seja, aquele que melhor a define, se é verdade que são sempre a exceção e a situação extrema que definem o aspecto mais específico de um instituto jurídico – a auctoritas parece agir como uma força que suspende a potestas onde ela agia e a reativa onde ela não estava mais em vigor. É um poder que suspende ou reativa o direito, mas não tem vigência formal como o direito (AGAMBEN, 2004, p. 121). Segundo Schmitt, a legitimidade sobre o estado de exceção é proveniente de si mesma enquanto ela se manifesta como verdadeiro poder constituinte, que mesmo sendo fora da lei, conserva consigo algo de jurídico. Segundo Bolton, A topologia da soberania configurada aqui mostra que a exceção é o ‘exterior’ que o próprio ordenamento jurídico abre em seu “interior” toda vez que a soberania não será mais que a pragmática da decisão capaz de articular o “fora” com o “dentro” do direito em um só movimento (BOLTON, 2012, 163). Mas essa é apenas uma das versões da história. Agamben acrescenta à análise da soberania em sua relação com o estado de exceção as críticas de Benjamin. Segundo Agamben, Benjamin em Para uma crítica da violência, 1921 (BENJAMIN, 2011) visava assegurar a possibilidade de uma violência absolutamente “fora” (ausserhalb) e “além” (jenseits) do direito. Com isso, Agamben entende que filósofo pretende desativar a dialética do que ele chama de “violência mítica”, substituindo-a por uma violência sem fim algum. Essa violência mítica, segundo Benjamin, se desdobra em “violência fundadora” (rechtsetzende Gewalt) e “violência conservadora” (rechtserhaltende Gewalt) do direito, as quais constituem 60 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE dialeticamente uma repetição, uma circularidade (AGAMBEN, 2004, p. 84). Para enfrentar essa circularidade dialética, isto é, essa alternância entre fundação e conservação do direito, é que Benjamin formula uma terceira figura, que ele chamará de “pura” (reine) capaz de acabar com essa circularidade e instaurar uma nova época histórica. Essa violência pura – ou divina, como ele também a chama, e que na esfera humana é revolucionária – não põe, nem conserva o direito, mas o depõe (Entsetzung des Rechts). Essa violência pura, sem fim, pura medialidade, é o que instaura uma espécie de interrupção messiânica20 através da qual se quebra a circularidade da violência mítica sobre a qual se desenvolve a soberania. Agamben ainda destaca uma segunda crítica à teoria schmittiana da soberania. Em Sobre o conceito de História (BENJAMIN, 1987, p. 222-223), 1940, Benjamin faz uma outra distinção que podem ser lidas em conjunto com as duas formas de violência elencadas no texto de 1921. Benjamin afirma em sua oitava tese sobre o conceito de história o seguinte: A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável (BENJAMIN, 1987, p. 222-223) Verificamos aqui a referência a um “verdadeiro estado de exceção”. Com efeito, é essa a proposta de Benjamin, isto é, a de instaurar o verdadeiro estado de exceção que leve em conta uma outra versão da história- uma história não 20O tema do messianismo é bastante complexo e não teremos tempo de abordá-lo em detalhes na presente pesquisa. Em breves palavras, esse tema do messianismo é presente em diversos pensadores da época, sobretudo entre os judeus, que aguardam ainda a vinda de Cristo. Em Walter Benjamin, Hannah Arendt e até mesmo em Franz Kafka, o tema do messianismo ganha contornos de ação revolucionária. Trata-se, antes, de uma espécie de ação originária, revolucionária e criativa, capaz de inovar no mundo, do que propriamente a vinda de Cristo à terra. 61 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE jupteriana (FOUCAULT, 1997, p.60)21 - uma versão que seja contada pelos oprimidos, e não pelos opressores. Esse verdadeiro estado de exceção tem uma função análoga à da violência pura do ensaio de 1921: se antes o objetivo era a interrupção da circularidade dialética entre as duas formas de violência mítica, instauradoras e mantenedoras da lógica da soberania, o verdadeiro estado de exceção pretende abolir qualquer formação soberana, suspendendo a suspensão mesma do direito, que é a característica fundamental da soberania segundo Schmitt. 22 O verdadeiro estado de exceção, proposto por Benjamin, que implica uma nova concepção de história e uma quebra da lógica da soberania, vem se contrapor ao estado de exceção fictício, que é o proposto, segundo Benjamin, por Schmitt, o qual não abre espaço para mudanças reais, mas apenas a manutenção do status quo, a manutenção da soberania enquanto tal. Logo, enquanto Carl Schmitt buscava legitimar a introdução da violência anômica (que extrapola os limites legais) por meio da noção de exceção, a qual está vinculada à própria definição de soberania para o jurista, Benjamin estaria realizando exatamente o movimento contrário, a saber, não o de capturar e legitimar pelo direito o uso de uma violência supra ou extralegal, mas justamente o de libertá-la do direito, de excluí-la do ordenamento como uma previsão normal. Esse também parece ser o raciocínio de Agamben. A resistência, a luta contra esse direito que alia soberania e biopolítica não se dá por meio estritamente legais, mas por meio de ações políticas. Portanto, Agamben está plenamente de acordo com Benjamin quanto à necessidade de se assegurar que haja poderes que extrapolem o jurídico. O direito não deve, como pretende Kelsen - e a própria teoria do Estado democrático - exaurir as possibilidades de resistência e de ação política. Pelo contrário: Agamben entende que é preciso questionar essa potência da máquina jurídica, que nas sociedades democráticas contemporâneas só tem se reforçado. O que Agamben faz, portanto, é denunciar essa estrutura de exceção, que está mais presente no cotidiano dos Estados do que imaginamos. Se o campo se tornou a técnica de governo dos Estados totalitários, não devemos nos enganar e 21De uma forma geral, pode-se dizer que a história, até tarde e ainda em nossa sociedade, foi uma história da soberania, uma história que se manifestou na dimensão e em função da soberania. É uma história “jupteriana”. “D´une façon générale, on peut donc cire que l´histoire, jusque tard encore dans notre société, a été une histoire de la souveraineté. C´est une histoire ‘juptérienne’”. 22Basta lembrar que soberano, para ele, é aquele que decide sobre o estado de exceção. 62 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE achar que só o campo de concentração nazista ou stalinista compactuem dessa lógica soberana-biopolítica. Para Agamben, as prisões em condições desumanas, as favelas sem condições habitacionais algumas, e também a situação dos apátridas, dentre tantos outros exemplos, consistem em decisões biopolíticas soberanas. Não fazer valer a lei para um certo tipo de vida, ou ainda, selecionar quais vidas merecem o respaldo jurídico: esse é reflexo mais evidente do paradoxo da soberania. 3.2 A SOBERANIA COMO BANDO Até agora, a questão da soberania foi apresentada em sua relação intrínseca ao problema da exceção, que revela em última instância o paradoxo da soberania. Como veremos agora, o dispositivo da exceção será retomado por Agamben pela noção de bando, a fim de tornar esses paradoxos jurídico-políticos uma verdadeira condição da política ocidental, como um verdadeiro dado ontológico. Conforme vimos A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso particular que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção não está, logo, sem relação alguma com a norma; ao contrário, esta [a norma] se mantém em relação com o aquele [o caso] sob a forma de suspensão. A norma se aplica à exceção se desaplicando, se retirando dela. Por consequência, o estado de exceção não é caos que precede o ordenamento jurídico, mas a situação que resulta de sua suspensão (AGAMBEN, 2010, p. 25) Para caracterizar ainda mais precisamente essa exceção, Agamben recorre à noção de bando (AGAMBEN, 2010, p. 35)23, sugerida pelo filósofo Jean-Luc Nancy, para mostrar como se dá essa relação ininterrupta entre algo que é “entregado a uma separação” e o seu pressuposto. A noção de bando é usada por Agamben como uma estrutura histórico-ontológica que ilustra a operação realizada pela exceção soberana. É um termo que guarda em si uma aporeticidade semântica capaz de expressar a dupla vinculação da exceção. O que está em jogo no bando é 23Como bem lembra Agamben, trata-se de uma noção proveniente do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quando o comando e a insígnia do soberano. 63 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE a captura e a exclusão da vida, uma exclusão-inclusiva da vida. O que Agamben chama de bando, portanto, é a potência da lei de manter-se na própria privação, de aplicar-se, desaplicando-se. O banido não é apenas posto fora da lei e como se a esta indiferente fosse, mas é abandonado e colocado em risco num umbral de indistinção entre interior e exterior, direito e fato, bíos e zoé. É a partir da noção de bando que Agamben parece expor em sua forma mais explícita o paradoxo da soberania: “não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2010, p. 35) Isto é, uma vez que consideramos que a exceção é a estrutura da soberania, esta já não pode mais ser concebida exclusivamente numa acepção puramente política, nem mesmo puramente jurídica. A soberania, tendo sua estrutura pensada a partir da exceção, não pode ser pensada como o resultado de uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a uma norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen). A soberania é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão (AGAMBEN, 2010, p. 35). A relação originária da lei para com a vida a partir dessa caracterização da soberania em função da exceção não é a de aplicação, mas a de a-bando-no, o que quer dizer que a lei só pode ser aplicada porque ela se suspende e em última instância a vida resta à mercê do (abandonada ao) poder. O bando, portanto, nada mais é do que uma outra forma de se referir à relação de exceção: Não é a exceção a que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendose, dá lugar à exceção e só desse modo se constitui como regra, mantendose em relação com ela. O particular ‘vigor’ da lei consiste nessa capacidade de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamamos relação de exceção a essa forma extrema de relação que inclui algo só por meio de sua exclusão (AGAMBEN, 2010, p. 35). Disso podemos reter que é a capacidade da regra de suspender a si mesma o que a constitui como regra, ao contrário da exceção, que não se subtrai à regra. Ao se auto suspender, a regra entraria num estado que Agamben, novamente na esteira de Nancy, afirma como sendo o da “vigência sem significado”. É a esse particular “vigor” da lei, a essa capacidade de continuar vigente, embora sem produzir seus efeitos, que a lei é constituída como lei. “Vigência sem significado”, “pura forma de lei” e “forma vazia da relação”: são essas outras formas pelas quais Agamben se 64 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE refere à essa relação de exceção, ou ainda, de bando. Para o italiano, é preciso se pensar para além disso tudo, é preciso se pensar verdadeiramente o estado de exceção sem uma referência à lei; é necessário se pensar uma configuração na qual lei e vida se encontrem numa zona de indiscernibilidade, o que configuraria o estado de exceção desejável por Agamben (e não aquele fictício e dependente da lei como em Schmitt). Por caracterizar o estado de exceção a partir da estrutura ontológico-política do bando é que o problema jurídico-político da exceção soberana se torna um problema estritamente biopolítico. Para o italiano, o bando consiste num dispositivo biopolítico que inclui a vida no ordenamento jurídico apenas na forma de uma exclusão. Isso significa que para Agamben a exceção é o segredo mais íntimo da soberania, sua forma mais originária. Isso também significa que Agamben apenas toma a definição de soberania de Schmitt como ponto de partida, colocando agora a soberania não mais como a capacidade daquele que se diz soberano em declarar o estado de exceção, mas como uma estrutura originária pertencente ao direito por meio da qual ele próprio é capaz de capturar a vida. Com efeito, deixa-se de contar com a existência de um sujeito que realiza as operações que Schmitt atribui ao soberano, como a da decisão sobre o estado de exceção, isto é, da aplicação ou não da lei. A soberania em Agamben, assim como a relação de exceção, aparecem como uma qualidade do próprio direito (CASTRO, 2012, p. 61).24 Toda essa caracterização feita por Agamben da soberania operacionalizada pela exceção a partir da estrutura ontológico-político do bando implica que sua concepção de biopolítica seja bastante diferente da de Foucault. Enquanto este reserva a noção de biopolítica para designar a configuração histórica do poder que a partir do século XVIII começa a invadir a vida inteiramente (o que em termos agambenianos é traduzido como “politização da zoé”), para Agamben, a biopolítica constitui a estrutura histórico-ontológica da política no ocidente. Para o italiano, falar 24Ser uma qualidade intrínseca ao direito não quer dizer exclusiva a ele. Como bem nota o professor Edgardo Castro, essa relação de bando, que equivale à relação de exceção, é um conceito que transcende a problemática da qual se ocupam especificamente as páginas de Homo sacer. Essa mesma estrutura perpassa todos os âmbitos do pensamento do nosso tempo, com destaque para o caso da linguagem: “também ela [a linguagem] funciona como um mecanismo de exclusão-inclusiva. Como a lei pode ser aplicada na medida em que está em relação com um não aplicável; na língua (langue), distinta da palavra (parole), os termos têm sentido independentemente de sua denotação e podem aplicar-se aos casos singulares na medida em que mantêm-se com eles em uma relação de pura potência”. 65 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE em política no ocidente implica falar em biopolítica. Por sua vez, estabelecer essa co-originariedade entre política e biopolítica tem por consequência a necessidade de se pensar a soberania e a vida nua de forma simétrica e numa íntima cumplicidade. A partir dessa cumplicidade entre política e biopolítica no ocidente, isto é, dessa relação intrínseca e necessária entre poder soberano e vida nua, Agamben se vê autorizado a enunciar uma de suas grandes teses: a relação política originária é o bando, relação essa que foi desnudada sobretudo na modernidade com o fenômeno do campo de concentração (AGAMBEN, 2010, 176). Nesse sentido é que a biopolítica ocupa o lugar de matriz originária sobre a qual se funda o ocidente. Além disso, dessa mesma constatação, Agamben lança mão de uma das grandes contribuições das análises feitas por Foucault, que diz respeito ao aspecto eminentemente produtivo do poder, a fim de elucidar sua segunda grande tese: “o rendimento fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé e bíos” (AGAMBEN, 2010, p. 176). Dessa forma, a vida nua não é concebida como um dado natural, mas um produto do poder soberano. Assim, não há que se falar - ao menos para Agamben - numa vida isenta às malhas do poder (uma conclusão que compartilha com Foucault), numa vida pré-estatal, pré-contratual tal como os mitologemas liberais costumam propor. A vida na reflexão agambeniana está sempre já capturada, já inscrita no registro, nos códigos e nos dispositivos do biopoder. Resta dizer que a noção de bando é usada por Agamben numa tentativa de redirecionar a questão da soberania para além da relação de exceção e afastá-la das teorias contratualistas. Apesar de prescreverem a mesma coisa (o bando e a relação de exceção), o primeiro consiste numa chave para se transpor o problema da soberania, que em princípio é um problema da filosofia política, para a dimensão da filosofia primeira, isto é, para a ontologia. É nesses termos que Agamben continuará explorando o paradoxo da soberania, e entrevendo sua possível superação através do Benjamin chama de messianismo, e que na verdade diz respeito à uma nova forma de se pensar a história, de pensar a relação dos homens com o tempo e, assim, de se abrir espaço para uma nova forma de ação política, de uma ação política inovadora e revolucionária. 66 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.3 HOMO SACER: SOBRE A SACRALIZAÇÃO DA VIDA Já em no ensaio de 1921, Para uma crítica da violência, Walter Benjamin intui a necessidade de se indagar sobre o dogma da sacralidade da vida, o que habitualmente se tratou como uma questão do domínio da antropologia. Seu interesse, no entanto, pela sacralidade da vida, já aparece de certa forma vinculado à questão da soberania. Com efeito, tendo em vista sua tentativa de desconstrução do problema jurídico-político da soberania é que Benjamin chega à questão da sacralidade da vida, o que faz desta, por si só, uma das questões centrais da política. A retomada de Agamben desse ensaio permite que o italiano reinscreva o problema da biopolítica como um processo articulado à questão da sacralidade no ocidente. No ensaio Elogio da profanação, Agamben afirma que Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente ‘sagradas’) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas ‘religiosas’). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens (AGAMBEN, 2007, p. 65). A partir de tal citação podemos inferir o status que a figura do homo sacer (AGAMBEN, 2006, 142)25 possui na obra de Agamben, notadamente no que diz respeito à sua “especial indisponibilidade”. Essa figura que ele resgata do contexto jurídico romano é usada como paradigma para denunciar a ambivalência da sacralidade da vida. Segundo o filósofo, essa ambivalência está associada à própria duplicidade do sacer que significa tanto “augusto, consagrado aos deuses”, como 25A primeira ocorrência do termo Homo sacer nas obras de Agamben não foi na série que leva esse nome que se iniciara em 1995 com a publicação do primeiro volume “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I”, mas no livro “A linguagem e a morte”. Nesse sentido: “Por esta razão o sagrado é necessariamente uma noção ambígua e circular (sacer significa, em latim, abjeto, ignominioso e, ao mesmo tempo, augusto, reservado aos deuses; e sacros são a lei, e igualmente, aquele que a viola (...)). Aquele que violou a lei, em particular o homicida é excluído da comunidade, é, pois, repelido, abandonado a si mesmo e, como tal, pode ser morto sem delito: homo sacer ist est quem populus iudicavit ob maleficium; neque faz est eum immolari, sed qui occidit paricidi non damnatur”. 67 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE “maldito, excluído da comunidade”. Esse caráter ambíguo do sacer já fora descrito por Émile Benveniste, linguista célebre e referência de vários trabalhos de Agamben, que, no entanto, se deteve aos aspectos antropológicos e culturais do problema (AGAMBEN 2010, p. 79)26. Agamben segue, então, a pista de Benjamin, e transpõe a questão da sacralidade para a reflexão jurídico-política em torno do problema da soberania. É essa leitura inspirada em Benjamin que permite a Agamben entender que o homo sacer está, por definição, numa dupla e aporética condição: é insacrificável e ao mesmo tempo matável. (...) o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação, nem como um sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana (...) (AGAMBEN, 2010, p. 84) A impossibilidade do sacrifício e a possibilidade de ser vítima de um homicídio que não constitui crime representa, na perspectiva de Agamben, que o sacer se defina também por uma relação de dupla exclusão: de um lado, uma exclusão do direito divino (insacrificável), e por outro uma exclusão do direito humano (matabilidade). O sacer, portanto, é objeto de violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício, isto é, ele é subtraído à esfera do profano e do religioso ao mesmo tempo, o que, segundo Agamben, o implica numa zona de indistinção (AGAMBEN, 2010, p. 87). Uma das interpretações para essa sacralidade é que ela seria, talvez, a forma originária de implicação da vida nua na ordem jurídicopolítica, o que concederia ao termo homo sacer o significado de uma relação política originária, isto é, a vida como objeto de uma exclusão inclusiva, a vida abandonada, à mercê do soberano (AGAMBEN, 2010, p. 86). Com efeito, conclui Agamben, decisivo é, porém, que esta vida sacra tenha desde o início um caráter eminentemente político e exiba uma ligação essencial com o terreno sobre o qual se funda o poder soberano (AGAMBEN, 2010, p. 100). Isso porque homo sacer e soberano são opostos 26As obras de consulta citadas por Agamben são Essais sur le sacrifice de Hubert e Mauss, 1899, Völkerpsychologie, de Wundt, 1905, e ainda Formes élémentaires de la vie religieuse de Emile Durkheim, 1912. 68 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE simétricos, na medida em que ambos consistem em conceitos-limites e residem na zona de indistinção da soberania. Por um lado, o homo sacer é aquele que pode ser morto por qualquer um, sem punição prevista para seu homicida, e que tampouco não pode ser sacrificado; por outro, o soberano é aquele que pode matar impunemente, e que ao exercer seu poder não realiza sacrifício algum. Dupla suspensão, portanto, para ambos, do direito humano e do direito divino. A figura do homo sacer é paradigmática para a compreensão do processo que levou ao acirramento, na modernidade, entre política e biopolítica. A sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea, que, como tal, desloca-se em direção a zonas cada vez mais vastas e obscuras, até coincidir com a própria vida biológica dos cidadãos. Se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.( AGAMBEN, 2010, p. 113). Essa citação pode ser entendida como um diagnóstico da modernidade a partir dessa noção de sacralidade. A modernidade estaria longe de um afastamento das formas do sagrado (SAFATLE, 2007)27. Ao contrário, Agamben é um autor que enxerga na modernidade a consumação de aspectos teológicos, dentre eles a consumação da figura do sacer. É isso que Agamben quer dizer quanto diz que “a sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea”. A isso se soma a afirmação da expansão dessa sacralidade “a zonas cada vez mais vastas e obscuras até coincidir com a própria vida do cidadão”, o que torna a todos virtualmente sacri, isto é, o que abandona todos os cidadãos a um ordenamento jurídico-político que pode implantar a qualquer tempo e por qualquer razão uma zona de exceção. 27Max Weber possui um conceito de secularização do qual Agamben não compartilha. O italiano segue as vias da secularização abertas por Carl Schmitt, Walter Benjamin e Georges Bataille, autores esses que não concebem a secularização a partir da decadência do teológico como fonte da verdade, dando lugar à um (ou mais) processo(s) de racionalização, como no caso de Weber, mas enxergam a modernidade como a consumação última do teológico. Como se o sagrado, de forma mais sutil, e por isso de forma mais ardilosa, estivesse presente em todas as esferas de nossas vidas da maneira mais presente possível. Na contramão disso temos Hans Blumemberg, autor que critica veementemente a ideia de secularização, a qual diminuiria o papel da modernidade em sua ruptura com a tradição, notadamente a tradição medieval. 69 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Por sua vez, é justamente por meio desse caráter de sacralidade da vida, tomada em sua ambivalência mais própria, que podemos compreender a relação entre biopolítica e totalitarismo, tal como proposta por Agamben. A biopolítica é possível como chave hermenêutica do totalitarismo para Agamben porque essa zona de exceção, que nunca será declarada formalmente, é sempre existente com respeito a uma certa classe de cidadãos. Para essa população, da qual “é preciso defender a sociedade” - para usarmos uma expressão foucauldiana - o estado de exceção é permanente, é a regra. É isso que teria faltado às análises de Hannah Arendt, que se deteve num conceito mais clássico de totalitarismo, e não se deu conta de que o totalitarismo contemporâneo só é possível de ser pensado a partir da biopolítica. Para Agamben, não há totalitarismo sem biopolítica. O totalitarismo moderno não pode ser compreendido a partir da noção de adversários políticos, como se se tratasse de uma relação de amigo e inimigo do Estado. O totalitarismo moderno se caracteriza pela possibilidade do extermínio massivo de cidadão considerados como simples seres viventes pertencentes a uma população que por alguma razão não são integráveis à sociedade que o Estado pretende defender. Não se trata, portanto, de se defender de um povo, de uma nação, mas de uma população. É por isso que a biopolítica é tão importante para a compreensão do totalitarismo moderno para o Agamben: nele, não se quer eliminar indivíduos em função de questões políticas, mas por questões biológicas (como no caso do judeu, do croata, do palestino, do muçulmano). É por isso que uma das conclusões do primeiro livro da série Homo sacer é que “o campo, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do ocidente” (AGAMBEN, 2010, p. 176). Não é a cidade, pois por definição as disputas na cidade são disputas políticas, mas o campo o que elucida a política moderna em sua essência. A partir dessa leitura que Agamben faz da modernidade e das manifestações biopolíticas da modernidade é que se evidencia a relação de bando como a relação constitutiva da política ocidental, e não do regime de representação das teorias contratualistas. “O campo – diz o filósofo – é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar a regra” (AGAMBEN, 2002, p. 49). O campo é para Agamben o local onde a sacralidade no ocidente se torna mais evidente. 70 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O que pretendemos aprofundar na presente pesquisa foram os fundamentos teóricos do pensamento de Giorgio Agamben, isto é, seus temas e conceitos políticos centrais. Longe de pretendermos esgotar o potencial crítico desses conceitos, entendemos que as noções e deslocamentos aqui trabalhados são essenciais para aqueles que pretendem refletir sobre a política contemporânea. Sobretudo no que diz respeito aos direitos humanos, Agamben parece fornecer instrumentos críticos extremamente pertinentes e radicais, de modo que seu leitor se sente de fato impelido a recolocar em questão aquilo que nos aparece como evidente. Exemplo disso é a advertência que Agamben faz em seu Estado de exceção de que não é por acaso que os direitos humanos, enquanto resultado de políticas liberais, surjam num contexto em que cada vez mais vidas são colocadas em risco e expostas à morte. Mais sintomático ainda é o fato de que os Estados, que são os instituidores e deveriam ser os garantidores dos direitos humanos passaram a ser os maiores violadores de direitos humanos no século XX. Agamben nos leva, portanto, a desacreditar que haja algo como uma democracia propriamente dita ou um Estado totalitário puro. A partir dos teóricos estudados, o que se depreende é que há dispositivos e técnicas políticas que ganharam força no ocidente e que se tornaram úteis à manutenção da lógica perversa da soberania e que estão presentes em praticamente todos os estamos ditos democráticos. Esse trabalho foi especialmente dedicado ao estudo das fontes filosóficas da biopolítica e da soberania – isto é, da política em seus aspectos contemporâneos mais urgentes. Teve-se por objetivo, primeiro, mostrar a partir de Foucault de que forma a noção jurídica de poder veio perdendo força explicativa dos fenômenos políticos contemporâneos. Nesse sentido, mostramos que o pensamento a partir do edifício da soberania é limitado e que é necessária uma reflexão a partir do poder em sua diversidade de manifestação. Disso decorre a “descoberta”, primeiro da disciplina e em seguida da biopolítica, que, juntos, passam a constituir novos paradigmas de compreensão da realidade atual. Mas se Foucault lapidou exemplarmente a noção de biopolítica, coube à Hannah Arendt pensar o campo de 71 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE concentração e os fenômenos totalitários, que ao ver de Agamben são o resultado da promíscua relação existente entre poder soberano e biopolítica. Num segundo momento do artigo, pretendeu-se aprofundar alguns dos principais conceitos trabalhados por Agamben no início de sua obra propriamente política, notadamente o problema do paradoxo da soberania, a reformulação da questão da exceção em bando e por último o caráter enigmático da figura paradigma da política contemporânea para Agamben é que o homo sacer. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. ______. Estado de exceção. Tradução Iraci. D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. ______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 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Logo, o Estado deve, por meio do procedimento licitatório, atingir este fim juntamente com a observância do princípio da isonomia entre os participantes e a seleção da proposta mais vantajosa. O conceito de desenvolvimento sustentável tem como ideia principal aquele que consegue atender as necessidades do presente, mas sem comprometer as futuras gerações de atenderem as suas próprias necessidades. O desenvolvimento sustentável foi recepcionado pelo ordenamento jurídico pátrio e é considerado um direito fundamental da terceira dimensão. As licitações sustentáveis levam em consideração critérios de sustentabilidade, através da utilização do poder de compra do Estado, sendo este um instrumento de implementação de políticas públicas. A sua realização é legal e não fere as finalidades da isonomia nem da seleção da proposta mais vantajosa. Palavras-chave: licitação, desenvolvimento, desenvolvimento nacional sustentável, finalidades, promoção. Acadêmica da graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba. Email: [email protected] 29 Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito de Curitiba; Mestre em Direito Econômico pela PUC-Paraná; Especialista em Direito Administrativo e em Processo Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar; Presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da OAB PR; Professor Universitário. 28 75 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT The promotion of national development as sustainable new purpose to be achieved by bidding is provided for in Article 3 of Law no. 8,666 /1993. Therefore, the State must, by means of competitive bidding procedure, achieve this order along with the observance of the principle of equality between the participants and the selection of the most advantageous tender. The concept of sustainable development has as main idea that fails to meet the needs of the present without compromising the future generations to meet their own needs. Sustainable development has been approved by legal parental rights and is considered a fundamental right of the third dimension. Bids sustainable take into account criteria of sustainability, through the use of the purchasing power of the State, this being an instrument for the implementation of public policies. Its implementation is legal and does not violate the purposes of isonomy nor the selection of the most advantageous tender. Keywords: bidding, development, national development sustainable, purposes, promote. 1 INTRODUÇÃO O dilema de continuar com o consumo, mas ao mesmo tempo promover o desenvolvimento nacional sustentável vem ganhando forças atualmente. Seria o caso de pensar em fomentar as práticas de consumo, mas sustentavelmente, ou seja, garantindo o crescimento da atual geração e concomitantemente dando oportunidade às futuras gerações de utilizarem dos mesmos recursos. O desenvolvimento nacional está previsto no artigo 3º, inciso II, da Constituição Federal, encontrando-se no rol dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. O artigo 3º da Lei 8.666/1993, conhecida como Lei de Licitações e Contratos Administrativos, harmoniza-se com o acima exposto ao ter sua redação alterada pela Lei 12.349/2010, apresentando a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como mais uma finalidade da licitação. A definição para um conceito de desenvolvimento sustentável iniciou-se no ano de 1987, pela Organização das Nações Unidas – ONU, através do relatório Brundtland, e a partir desse relatório vários estudos acerca do tema vêm sendo feitos. Mas como promovê-lo? Uma boa maneira é usar das políticas públicas que incentivem um desenvolvimento econômico, mas sustentável. Sendo assim, nada melhor que o próprio poder público utilizar de sua força para o bem de todos. Sabese que o Governo Brasileiro movimenta, com a aquisição de compras e contratações 76 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de serviços, cerca de 15% do seu Produto Interno Bruto – PIB.30 Portanto, é considerado um grande consumidor desse mercado. Para poder contratar esses bens e serviços, a Administração Pública deve adotar o procedimento licitatório, previsto no Artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que assim dispõe: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública”. Essa obrigatoriedade é necessária porque os recursos dispostos vem dos impostos pagos pela população, sendo assim mister que os gastos públicos sejam destinados da melhor maneira possível e visando à melhor qualidade. Decorrente da obrigatoriedade de licitar e de ditar (dentro dos limites legais) as normas para contratar com ela, surge a possibilidade de utilizar as licitações para promover o desenvolvimento sustentável. Assim, leva-se em conta o seu grande poder de compra para criar a oportunidade de incentivar condutas ambientalmente éticas e fazer que tais condutas tornam-se comuns na sociedade. Deste modo, surge mais uma finalidade da licitação: promover o desenvolvimento nacional sustentável. Esse tema tem relevância grandiosa, pois implica mudanças não só por parte do Poder Público em todas as fases do procedimento licitatório e, posteriormente, da contratação, mas também por parte dos fornecedores que devem adaptar-se e aos seus produtos/serviços de acordo com normas sustentavelmente corretas. Nota-se, portanto, que além de ser observado o princípio da isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável deve ser igualmente observada em todas as fases licitatórias. Porém, a adoção de medidas sustentáveis ainda gera muitas dúvidas. Será que isso é legal? Fere o Princípio da Isonomia? E a observância da proposta mais vantajosa? O presente artigo pretende, num primeiro momento, abordar sobre o tema do desenvolvimento sustentável, apresentando o seu conceito, como foi recepcionado pelo ordenamento jurídico e sua previsão como direito fundamental. Posteriormente, será demonstrada uma breve explanação sobre a finalidade licitatória da promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Logo após, será 30 BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Licitação sustentável. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixos-tematicos/item/526&gt>. Acesso em: 30 de mar. de 2015. 77 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE apresentado o conceito de licitações sustentáveis, o porquê do seu surgimento, se é legal adotar critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios e em quais momentos os critérios sustentáveis devem ser utilizados. Por fim, pretende-se analisar se existe conflito entre as finalidades licitatórias, se a utilização do princípio da sustentabilidade fere os princípios da isonomia e da vantajosidade, ou seja, se a observância daquele durante todo o procedimento, exclui estes. 2 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL O conceito de Desenvolvimento Sustentável começou a ser difundido no ano de 1987, através do Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum, organizado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas – ONU: O desenvolvimento sustentável não é um estado permanente de harmonia, mas um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, a orientação dos investimentos, os rumos do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão de acordo com as necessidades atuais e futuras. (...) Assim, em última análise, o desenvolvimento sustentável depende do empenho político.31 De acordo com o Relatório: “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”.32 Entre os dias 3 a 14 de junho de 1992, aconteceu a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92 ou Eco 92), estabelecendo 27 (vinte e sete) princípios para a implementação do desenvolvimento sustentável. De acordo com o princípio 8: 31 COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues>. Acesso em: 20 de ago. de 2014. 32 COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues>. Acesso em: 20 de ago. de 2014. 78 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas adequadas.33 A partir de sua análise, percebe-se o papel do Estado como responsável por promover práticas sustentáveis de produção e consumo, na qualidade de consumidor, através de políticas públicas. A ideia de adotar práticas sustentáveis para a produção e para o consumo deu início aos vários conceitos de desenvolvimento sustentável. Para Ignacy Sachs (2008, p. 36): O desenvolvimento sustentável obedece ao duplo imperativo ético da solidariedade com as gerações presentes e futuras, e exige a explicitação de critérios de sustentabilidade social e ambiental e de viabilidade econômica. Estritamente falando, apenas as soluções que considerem estes três elementos, isto é, que promovam o crescimento econômico com impactos positivos em termos sociais ambientais, merecem a denominação de desenvolvimento. Para Daniel Ferreira, em seu livro A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, o desenvolvimento é triplamente sustentável, nos seus vieses econômico, social e ambiental (FERREIRA, 2012, p. 52). A sustentabilidade econômica, ressalta-se, deve levar em consideração: (...) uma eficiência mínima dos sistemas econômicos no esforço de assegurar, de forma contínua, o aumento do PIB e do PPC34, retroalimentando a economia e assim fazendo surtir os efeitos benéficos, adrede referidos, no tecido social (FERREIRA, 2012, p. 53). A sustentabilidade social, para o autor, é mais complexa por sua dimensão psicológica. Ele apresenta outro lado dessa sustentabilidade, observando que 33 Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro de 3 a 14 de Junho de 1992. Declaração da ECO-92 sobre ambiente e desenvolvimento. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em 24 de set. de 2014. 34 Para esclarecimento, PIB é o produto interno bruto enquanto PPC é a paridade do poder de compra. 79 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE somente ela é que autoriza a perpetuação da espécie humana, sendo a “responsável pela manutenção dos micro-universos sociais, aqueles referidos e referíveis apenas por meio da cultura, de modo a garantir sua identidade” (FERREIRA, 2012, p. 53). Entende também que a sustentabilidade econômica é reforçada pela sustentabilidade social e vice-versa. Por fim, a sustentabilidade ambiental: Deve ser assumida como um freio, não no sentido de atrasar o avanço na direção do desenvolvimento, mas de dar a temperança necessária à escolha da velocidade e dos caminhos eleitos no rumo à ecossocioeconomia do amanhã (FERREIRA, 2012, p. 55). A partir das considerações acima, inicia-se uma ideia tríplice do que é o desenvolvimento sustentável, criando uma harmonia entre meio ambiente, sociedade e economia. Contudo, o autor Juarez Freitas, em seu livro Sustentabilidade: direito ao futuro, entende que a sustentabilidade é multidimensional, nos seus vieses ético, jurídico-político, social, econômico e ambiental (FREITAS, 2011, p. 337). Para ele, é o conceito de desenvolvimento sustentável: É o princípio constitucional que determina, independentemente de regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem de todos (FREITAS, 2011, p. 51). A partir dos conceitos expostos, percebe-se uma influência do relatório de Brundtland em todos eles, visando à satisfação das necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem suas próprias necessidades. 80 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO ORDENAMENTO JURÍDICO O direito ao desenvolvimento está referenciado, em primeira análise, no preâmbulo da Constituição Federal, comprometendo-se a construir um Estado Democrático assegurando esse direito a todos os brasileiros. Em seguida, a Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso II, objetiva garantir o desenvolvimento nacional e cumulativamente construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III) e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). Manoel Messias Peixinho e Suzani Andrade Ferraro sustentam que o: Direito ao desenvolvimento nacional é norma jurídica constitucional de caráter fundamental, provida de eficácia imediata e impositiva sobre todos os poderes do Estado e, nesta direção, não pode se furtar a agir de acordo com as respectivas esferas de competência, sempre na busca da implementação de ações e medidas de ordem política, jurídica ou irradiadora que almejam a consecução daquele objetivo fundamental.35 Deste modo, o reconhecimento do desenvolvimento nacional como princípio constitucional fundamental e impositivo, servirá de base para a aplicação das normas tanto constitucionais como infraconstitucionais, além de servir de base para suas interpretações, impondo-se perante todos os poderes. É importante salientar, ainda, que a Constituição Federal dispõe em seu texto referências ao desenvolvimento tecnológico e econômico (artigo 5º, inciso XXIX), ao desenvolvimento econômico e social (artigo 21, inciso IX), ao desenvolvimento urbano (artigo 21, inciso XX), ao desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (artigo 35, inciso III), ao desenvolvimento geoeconômico e social (artigo 43), ao desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País (artigo 151, inciso I), ao desenvolvimento de acordo com os planos regionais (artigo 35 PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, Belo Horizonte, 16., 2007. Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. p. 6963. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf.>. Acesso em: 21 out. 2014. 81 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 159, inciso I, alínea “c”), ao desenvolvimento regional (artigo 163, inciso VII), ao desenvolvimento social e econômico fomentado pelo turismo (artigo 180), ao desenvolvimento das funções sociais da cidade (artigo 182), ao desenvolvimento equilibrado do País (artigo 192), na área da saúde, ao desenvolvimento científico e tecnológico (artigo 200, inciso V), ao desenvolvimento cultural do País (artigo 215, § 3º), na área da cultura, ao desenvolvimento humano, social e econômico (artigo 216A) ao desenvolvimento científico (artigo 218), por meio do mercado interno, ao desenvolvimento cultural e socioeconômico (artigo 219), e, por meio de recursos do PIS, ao desenvolvimento econômico (artigo 239, § 1º). 2.2 DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL COMO DIREITO FUNDAMENTAL A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi promulgada em 1986, determinando em seu artigo 1º que: O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. 36 Este documento veio para formalizar o desenvolvimento como “interdependente a indivisível aos demais direitos humanos” (SOARES, 2010, p. 470). De acordo com Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, para que algum direito seja considerado fundamental, necessita-se a presença de três elementos: o Estado, o indivíduo e o texto normativo regulador entre o Estado e o indivíduo (DIMOULIS; MARTINS, 2009, p. 21-23). Com base no acima exposto, percebe-se que, apesar do direito ao desenvolvimento sustentável não estar expressamente previsto no rol do artigo 5º da 36 Declaração sobre o direito ao desenvolvimento 1986. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015. 82 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Constituição Federal, enquadra-se nos requisitos sendo assim considerado um direito fundamental. Para Gustavo Henrique Justino de Oliveira, o direito ao desenvolvimento se enquadra na terceira dimensão dos direitos fundamentais, por se relacionar aos valores atinentes à solidariedade e à fraternidade (OLIVEIRA, 2009. p. 13-14). Conforme Ferreira Filho: Note-se, ademais, que esses direitos não são direitos individualizáveis, nem têm como o titular o ser humano. Este titular são os povos, as nações, os Estados, as coletividades, conforme se prefira. Igualmente, sua fundamentalidade não decorre da eminente dignidade humana (salvo mui longínqua e vagamente), mas sim de uma convicção quanto à sua importância (FERREIRA FILHO, 2010, p. 90). Se a Administração Pública deixar de adotar medidas que visem ao fomento das diversas áreas, como do microempreendedorismo, da preservação ambiental, da inclusão social e da salvaguarda dos direitos trabalhistas, estará violando o direito fundamental ao desenvolvimento nacional sustentável, portanto, os interessados podem cobrar a satisfação desse direito fundamental37 perante o Poder Público. Para Daniel Ferreira, o fato do direito ao desenvolvimento se tratar de um direito fundamental, em sua face poderá ser invocado o princípio da vedação ao retrocesso38, com o significado de impedir que os poderes públicos recuem naquilo que realiza ou prestigia a concretização deste direito. Em síntese, se alguma postura legislativa fosse assumida favorecendo o direito fundamental ao desenvolvimento, o 37 FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos. p. 59. 38 O princípio da proibição do retrocesso social, para o professor José Joaquim Gomes Canotilho, pode ser formulado da seguinte maneira: “o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (“lei da segurança social”, “lei do subsídio do desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.” CANOTILHO, J. J. Gomes, 1998 apud FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos.p. 58. 83 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE retrocesso injustificado pode ser objeto de impugnação administrativa ou judicial (FERREIRA, 2012, p. 57). 3 FINALIDADES DA LICITAÇÃO: PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL O próprio artigo 3º da Lei nº 8.666/93 elenca as finalidades do procedimento licitatório, sendo elas: a seleção da proposta mais vantajosa, a isonomia entre os participantes e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Deve-se conseguir chegar a esses objetivos respeitando os princípios norteadores da licitação. Não existe hierarquia entre as finalidades, todas têm a mesma importância e servem para ajudar na legalidade do procedimento licitatório. Portanto, as três finalidades devem ser atingidas conjuntamente. Não é suficiente a efetivação de somente uma ou duas, sob a pena da licitação não ser considerada válida. A Medida Provisória nº 495/2010 converteu-se na Lei nº 12.349/2010 apresentando a ideia de que o desenvolvimento nacional sustentável é um meio de fomento público através das contratações públicas. Com isso o artigo 3º da Lei nº 8.666/1993 instituiu a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade licitatória. O Decreto nº 7.746/2012 regulamentou o artigo 3º da supracitada Lei, estabelecendo normas gerais para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. De acordo com seu parágrafo 4º são diretrizes de sustentabilidade: I – menor impacto sobre recursos naturais como flora, fauna, ar, solo e água;II – preferência para materiais, tecnologias e matérias-primas de origem local;III – maior eficiência na utilização de recursos naturais como água e energia;IV – maior geração de empregos, preferencialmente com mão de obra local;V – maior vida útil e menor custo de manutenção do bem e da obra;VI – uso de inovações que reduzam a pressão sobre recursos 84 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE naturais; e VII – origem ambientalmente regular dos recursos naturais utilizados nos bens, serviços e obras.39 Diante do exposto, percebe-se que, com a inclusão da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como terceira finalidade legal da licitação, surge uma nova função social a ser observada pela lei. Para Daniel Ferreira, a nova função social da licitação passa a configurar “como uma obrigação genérica e ordinária, da qual o gestor público apenas poderá se desonerar por justa causa, devidamente motivada e comprovada” (FERREIRA, 2012, p. 39), e, caso contrário “estará a descumprir uma finalidade (de três) para a licitação, contaminando-a de vício insanável” (FERREIRA, 2012, p. 39). Segundo Luciano Elias Reis, as licitações devem ser examinadas também como um instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável (e não só como um processo com caráter puramente econômico). Sendo assim, os certames deverão perquirir aspectos ambientais, sociais e econômicos relacionados às propostas e aos licitantes.40 A inserção da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como finalidade da licitação leva a crer que as compras governamentais podem ser instrumento para fomentar a sustentabilidade no âmbito nacional. Entretanto: (...) a conscientização do “poder de compra” governamental é imprescindível para que todos os entes políticos assumam que, isoladamente ou em conjunto, interferem de forma profunda na condução dos negócios privados (FERREIRA, 2012, p. 41). Deste modo, tanto os contratos como as licitações podem estimular a adaptação voluntária da indústria, do comércio e da prestação de serviços à satisfação do desenvolvimento nacional sustentável (FERREIRA, 2012, p. 45). 39 PRESIDÊNCIA da República. Decreto nº 7746 de 05 de junho de 2012. Diário Oficial da União. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7746.htm>. Acesso em: 19 de agosto de 2014. 40 REIS, Luciano Elias. I Seminário Ítalo-Brasileiro: Inovações regulatórias em direitos fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade. Inovações legislativas nas contratações administrativas para a incrementação da responsabilidade socioambiental por intermédio do fomento da pesquisa científica e tecnológica. p.116-117. 85 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4 LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS Após verificar as diversas referências ao desenvolvimento durante todo o corpo do texto constitucional, surge a ideia da Administração Pública promover o desenvolvimento por meio das licitações sustentáveis. Há na doutrina, muitas referências sobre o conceito de licitações sustentáveis. Para Rachel Biderman, as licitações sustentáveis podem ser conhecidas como “compras públicas sustentáveis”, “ecoaquisição”, “compras verdes”, “compra ambientalmente amigável” e “licitação positiva”.41 A licitação sustentável é uma solução para integrar considerações ambientais e sociais em todos os estágios do processo da compra e contratação dos agentes públicos (de governo) com o objetivo de reduzir impactos à saúde humana, ao meio ambiente e aos direitos humanos. A licitação sustentável permite o atendimento das necessidades específicas dos consumidores finais por meio da compra do produto que oferece o maior número de benefícios para o ambiente e a sociedade. 42 Para Eduardo Bim, a licitação sustentável é: Influenciada por parâmetros de consumo menos agressivos ao meio ambiente. É a licitação que integra critérios ambientais de acordo com o estado da técnica, ou seja, com o melhor para o meio ambiente de acordo com a atual ciência num preço razoável (BIM, 2013, p. 186). Na visão de Marçal Justen Filho, pelo fato do desenvolvimento sustentável significar o crescimento econômico norteado pela preservação do meio ambiente “a licitação deve ser estruturada de modo promover o crescimento econômico nacional em termos compatíveis com a proteção ao meio ambiente” (JUSTEN FILHO, 2012b, p. 443). 41 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicas sustent%C3%A1veis.pdf>. p. 22. 42 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicas sustent%C3%A1veis.pdf>. p. 22. poder de compra Disponível em: poder de compra Disponível em: 86 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A definição de licitação sustentável, para Juarez Freitas é a seguinte: (...) são os procedimentos administrativos por meio dos quais um órgão ou entidade da Administração Pública convoca interessados – no seio do certame isonômico, probo e objetivo – com a finalidade de selecionar a proposta mais vantajosa, isto é, a mais sustentável, quando almeja efetuar pacto relativo a obras e serviços, compras, alienações, locações, arrendamentos, concessões e permissões, exigindo, fase de habilitação, as provas indispensáveis para assegurar o cumprimento das obrigações avençadas (FREITAS, 2011, p. 257). O Ministério do Planejamento tem a seguinte definição para as licitações públicas sustentáveis: É a criação de uma política de contratações públicas que leve em consideração critérios de sustentabilidade, ou seja, critérios fundamentados no desenvolvimento econômico e social e na conservação do meio ambiente através da utilização do poder de compra do Estado como instrumento de implementação de políticas públicas, visando, dar exemplo aos consumidores, induzir o comportamento de outros consumidores, reduzir a geração de resíduos, fortalecer o mercado de bens e serviços ambientais, maior ecoeficiência no processo produtivo, além de apoiar a inovação tecnológica.43 As licitações sustentáveis podem impulsionar a geração de emprego e renda para a população de um município, sendo assim um fator de desenvolvimento local. Rachel Biderman explica essa prática em algumas cidades do sul do Brasil, onde, por exemplo: Prefeituras adquirem merenda escolar orgânica, de pequenos produtores familiares da cidade, gerando emprego e renda para a população rural e alimentação saudável para os estudantes do sistema público de ensino. 44 Uma mudança em direção à produção e ao consumo sustentável é outro objetivo importante das aquisições sustentáveis. (...) Se a maioria dos compradores públicos optar por produtos mais sustentáveis, uma demanda maior estimulará uma oferta maior, que conduzirá por sua vez a um preço mais baixo. Aquisições públicas podem ajudar a criar um grande mercado para negócios sustentáveis, aumentando as margens de lucro dos 43 MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Contratações públicas sustentáveis. 2011. Disponível em: <http://www.abntonline. c o m . b r / Ro t u l o / Da d o s / I m a g e s / f i l e / Co n t r a ta%C3%A7%C3%B5es%20 P%C3%BAblicas%20Sustent%C3%A1veis. pdf>. Acesso em: 04. nov. 2014. p. 2. 44 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 56. 87 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE produtores por meio de economias de escala e reduzindo seus riscos. Além disso, as autoridades públicas, atores poderosos do mercado, podem incentivar a inovação e, consequentemente, estimular a competição da indústria, garantindo aos produtores recompensas pelo melhor desempenho ambiental de seus produtos, por meio da demanda do mercado ou de incentivos concretos. 45 O Poder Público na sua função de consumidor deve promover o desenvolvimento nacional sustentável optando por adquirir bens ou serviços corretos do ponto de vista ambiental. Quanto maior a procura nesse aspecto, maiores serão as ofertas e, consequentemente, a população irá se adaptar com essas novas práticas. Segundo o Governo Brasileiro, por meio do site do Ministério do Meio Ambiente, trata-se do tema da seguinte forma: As compras e licitações sustentáveis possuem um papel estratégico para os órgãos públicos e, quando adequadamente realizadas promovem a sustentabilidade nas atividades públicas. Para tanto, é fundamental que os compradores públicos saibam delimitar corretamente as necessidades da sua instituição e conheçam a legislação aplicável e características dos bens e serviços que poderão ser adquiridos. O governo brasileiro despende anualmente mais de 600 bilhões de reais com a aquisição de bens e contratações de serviços (15% do PIB). Nesse sentido, direcionar-se o poder de compra do setor publico para a aquisição de produtos e serviços com critérios de sustentabilidade implica na geração de benefícios socioambientais e na redução de impactos ambientais, ao mesmo tempo que induz e promove o mercado de bens e serviços sustentáveis.46 Com a prática de medidas que visem à aquisição de bens ou serviços com critérios de sustentabilidade, direcionando os 15% do PIB para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, o País iria crescer em termos de negócios com qualidade, eficiência e um meio ambiente preservado. Tudo isso surtiria efeitos na qualidade de vida das pessoas. 45 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 24. 46 BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Licitação sustentável. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixos-tematicos/item/526&gt>. Acesso em: 30 mar. 2015. 88 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4.1 LEGALIDADE DA ADOÇÃO DE CRITÉRIOS SOCIOAMBIENTAIS NOS PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS Muitas dúvidas surgem em relação à adoção de critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios. Seria essa adoção legal, não ferindo outros princípios assegurados pela Lei de Licitações? A permissão para inserir o desenvolvimento sustentável pelo viés ambiental está prevista no artigo 225 da Constituição Federal. Outra previsão encontra-se no artigo 170, do mesmo diploma legal, que elenca os princípios da ordem econômica, sendo um deles o disposto no inciso VI: “Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.47 Deste modo, a atividade econômica deve ser voltada à preservação do meio ambiente e à diminuição dos danos a ele causados, ficando o Estado como o responsável pelas políticas públicas para assegurar o desenvolvimento econômico sustentável com a prática consciente das atividades e a preservação ambiental. A noção de responsabilidade socioambiental se encontra decantada na Lei das leis e aponta para um dever jurídico genérico, acometido a todos indistintamente, no sentido de harmonização das expectativas de crescimento, especialmente econômico, com os impactos de tanto, no meio social e ambiental. Logo, de forma a garantir o desenvolvimento nacional anunciado como objetivo fundamental da República. 48 Sendo a Constituição Federal a Lei das Leis e assim hierárquica e superior às outras normas, todas as leis por ela recepcionadas devem ser interpretadas de acordo com os seus princípios. Portanto, a observância de garantir o desenvolvimento nacional sustentável não irá de encontro com o ordenamento jurídico atual. 47 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. 48 FERREIRA, Daniel. I Seminário Ítalo-Brasileiro inovações regulatórias em direitos fundamentais, desenvolvimento e sustentabilidade. Inovação para a incrementação da responsabilidade socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos.p. 44. 89 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O Tribunal de Contas da União vem ajudando no desenvolvimento e aplicação das Licitações Sustentáveis, por meio de seus julgados. São alguns acórdãos pertinentes ao tema: O TCU deu ciência à (omissis), acerca das seguintes situações: a) não adoção integral das normas de sustentabilidade ambiental nas aquisições de bens e serviços, o que afronta o art. 5º da IN/SLTI-MP nº 01/2010; b) não separação dos resíduos recicláveis descartados dando o destino adequado, o que afronta o preconizado no Decreto nº 5.940/2006. (Tribunal de Contas da União, itens 1.8.1 e 1.8.3, TC-042.106/2012-5, Acórdão nº 7.416/2013-2ª Câmara). O TCU deu ciência à (omissis) a respeito das falhas/impropriedades a seguir transcritas: a) ausência de aplicação de penalidades a empresas que não mantiveram os lances apresentados no âmbito de processos licitatórios na modalidade pregão, na forma eletrônica, em desacordo com o art. 7° da Lei n° 10.520/2002; b) realização de licitação sem observância dos critérios de sustentabilidade ambiental na contratação de obras e serviços de engenharia, bem como na aquisição de soluções de tecnologia da informação, em desacordo com a Instrução Normativa da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação - SLTI/MPOG 01/2010 e art. 3º da Lei nº 8.666/1993. (Tribunal de Contas da União, itens 1.7.3 e 1.7.4, TC022.374/2013-2, Acórdão nº 2.290/2014-2ª Câmara). Recomendação ao (omissis) para que inclua critérios de sustentabilidade ambiental em suas licitações que levem em consideração os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias primas, nos termos da Lei nº 12.187/2009 e da Instrução Normativa/SLTIMP nº 1, de 19.01.2010. Cita-se, como referência, o "Guia de Contratações Sustentáveis da Justiça do Trabalho", do Conselho Superior da Justiça do Trabalho-2014. (Tribunal de Contas da União, item 1.7.1.4, TC029.319/2013-7, Acórdão nº 6.708/2014-1ª Câmara). Oportuno observar que o Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, tem a atribuição de controlar as despesas dos contratos e demais instrumentos regidos pela Lei de Licitações, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, conforme previsto no artigo 113 da referida Lei. 4.2 EM QUAIS MOMENTOS OS CRITÉRIOS SUSTENTÁVEIS DEVEM SER UTILIZADOS Outras dúvidas surgem em relação ao momento adequado para aplicar os critérios de sustentabilidade no procedimento licitatório, o qual é composto por fases, e cabe aqui demonstrar em quais delas poderá ser delimitado esse critério. 90 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Conforme exposto no artigo Licitações públicas sustentáveis, publicado na revista de Direito Administrativo, de autoria de Flávio Amaral Garcia e Leonardo Coelho Ribeiro, a sustentabilidade pode ser delimitada em quatro momentos do procedimento licitatório: definição do objeto; fase de habilitação; julgamento das propostas; obrigações do contratado (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 245). Na fase da definição do objeto o administrador público delimita e especifica o serviço, a compra ou a obra que pretende contratar. Desde que tecnicamente fundamentado, é possível a inserção de critérios sustentáveis na escolha do objeto (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 245). Contudo, é necessária cautela na sua definição e fundamentação a fim de evitar violação ao princípio da isonomia. Conforme leciona Marçal Justen Filho, somente há violação a referido princípio quando o ato convocatório: a) estabelece discriminação desvinculada do objeto da licitação; b) prevê exigência desnecessária e que não envolve vantagem para a Administração; c) impõe requisitos desproporcionais com necessidades da futura contratação; d) adota discriminação ofensiva de valores constitucionais ou legais (JUSTEN FILHO, 2010, p. 71). Em seguida, quanto à fase de habilitação, as suas exigências estão previstas na própria Lei de Licitações, em seu artigo 27 e seguintes: Art.27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: I - habilitação jurídica; II - qualificação técnica; III - qualificação econômico-financeira; IV – regularidade fiscal e trabalhista; V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.49 O rol é taxativo, portanto, limita o poder de escolha do administrador e assim dificultando para a inserção de exigências sustentáveis. Em tese, somente dois dispositivos comportariam essas exigências. Seriam eles os artigos 28, inciso V e artigo 30, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993: 49 BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. 91 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O art. 28, V, da Lei no 8.666/1993 exige na habilitação jurídica ato de registro de autorização para funcionamento expedido pelo órgão competente quando a atividade assim o exigir. Pode-se imaginar, por exemplo, que uma determinada empresa para exercer uma atividade empresarial precise de uma licença específica de um órgão ambiental. O art. 30, inciso IV, da Lei no 8.666/1993 prevê a possibilidade, na qualificação técnica, de exigir a prova de atendimento de requisitos previstos em leis especiais. Percebeu o legislador, corretamente, que seria impossível prever exigências de cada segmento econômico em um único diploma legal. Assim, é por meio desse dispositivo que se admite que o edital inclua exigências técnicas oriundas de outras normas, desde que, por óbvio, sejam indispensáveis para demonstrar a capacidade do licitante (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 248). Afora esses dois dispositivos legais, Flávio Amaral Garcia e Leonardo Coelho Ribeiro não vislumbraram outros espaços para exigências autônomas de requisitos sustentáveis na fase de habilitação (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 249). Posteriormente, na fase de julgamento das propostas, passa-se a análise das propostas e ofertas para então determinar o vencedor. O critério de julgamento previsto no edital deverá ser observado e entre os tipos de licitação previstos no artigo 45 da Lei nº 8.666/1993 estão: menor preço, melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta. Entende-se que é possível admitir a estipulação de requisitos sustentáveis no julgamento das propostas somente nas licitações de melhor técnica ou técnica e preço, enquanto fator diferenciado de pontuação técnica (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 249). A possibilidade de inserir esses requisitos para o julgamento das propostas, com a finalidade de pontuação diferenciada, deve estar expressamente prevista no edital e de forma objetiva, a fim de evitar qualquer direcionamento e possibilitar a ampla competição.50 Por fim, outra possibilidade de promover o desenvolvimento sustentável é por meio das obrigações que deverão ser assumidas pelo futuro contratado. “É possível, assim, que entre as obrigações do contratado estejam exigências em atenção à 50 Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle. BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. 92 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE sustentabilidade ambiental da execução do objeto contratado” (GARCIA; RIBEIRO, 2012, p. 250). O artigo 10 da Lei nº 12.462 de 2011, que introduziu o Regime Diferenciado de Contratações, previu expressamente que: Na contratação das obras e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser estabelecida remuneração variável, vinculada ao desempenho da contratada, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazo de entrega definidos no instrumento convocatório e no contrato.51 Portanto, possibilitou uma remuneração variável do contratado vinculado a critérios de sustentabilidade ambiental, criando um incentivo econômico para o contratado que utilizar desses padrões. 5 CONFLITO ENTRE AS FINALIDADES DA LICITAÇÃO? As finalidades da licitação devem ser promovidas concomitantemente, porém, é comum o pensamento de que ao observar e levar em consideração critérios para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, as finalidades da isonomia e da proposta mais vantajosa seriam prejudicadas e até inaplicadas. A seguir será demonstrado se isso realmente ocorre ou se todas as finalidades podem conviver umas com as outras para promover uma licitação integralmente eficaz. 5.1 SUSTENTABILIDADE E ISONOMIA O artigo 3ª, caput, da Lei nº 8.666/1993 prevê a isonomia como finalidade licitatória, e o parágrafo 1º, inciso I, do mesmo diploma legal veda a inclusão de cláusulas ou condições que restrinjam ou frustrem o caráter competitivo do certame. 51 BRASIL. Lei nº 12.462 de 04 de agosto de 2011. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12462.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015. 93 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Para Marçal Justen Filho (2012a, p. 58), existe diferenciação entre os interessados para contratar com a Administração Pública, pois no caso concreto, se não existisse essa diferenciação ela teria que contratar todos os interessados, ou não contratar nenhum. Então é necessário fazer uma escolha com quem quer contratar, deixando bem observado todas as regras e especificando o porque disso. Essa conduta é válida desde que necessária e fundamentada pelo administrador público. Em caso de dúvida acerca de eventual ferimento do princípio da igualdade, em primeiro lugar há de se verificar se há uma correlação lógica entre a implantação de uma política de consumo sustentável pela Administração Pública e a justificativa (transformar a licitação em atividade de desenvolvimento econômico sustentável, com nítido caráter regulatório). Havendo tal compatibilização, é de se afastar a tese de violação ao princípio da igualdade (BARCESSAT, 2011, p. 74). Pelo acima exposto, fica afastada a hipótese de violação ao princípio da isonomia, pois a promoção do desenvolvimento nacional sustentável é obrigatória, visto que está elencada como um dos objetivos fundamentais da República. Além disso, todas as discriminações legais têm fundamentos na promoção do desenvolvimento nacional sustentável. 5.2 SUSTENTABILIDADE E VANTAJOSIDADE Uma dúvida muito frequente em relação às licitações e contratações que envolvem as aquisições de bens ou serviços produzidos de forma ambientalmente sustentáveis é em relação ao seu custo, já que muitas vezes é considerado mais elevado. Para Rachel Biderman, em primeira análise, os custos do produto sustentável são mais caros, porém é necessário levar em conta o seu custo real, que não é simplesmente o preço de compra pago pelo produto, mas sim os custos durante todo o seu ciclo de vida (os de compra, operação, manutenção e disposição do produto). “Quando examinamos o caso da licitação sustentável, assim que os custos 94 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ‘ocultos’ do ciclo de vida são levados em conta, as vantagens econômicas da compra de produtos sustentáveis ficam óbvias”.52 Por exemplo, o preço das lâmpadas fluorescentes compactas é mais elevado do que o das incandescentes convencionais, mas elas duram 10 vezes mais e consomem somente 1/4 da eletricidade que as incandescentes. Por isso, oferecem economia em contas públicas durante sua vida. Na crise energética no Brasil, em 2001, conhecida popularmente como “apagão”, houve grande migração em edifícios públicos e privados, bem como nas residências, para o uso de lâmpadas mais eficientes sob o ponto de vista energético, além de instalação de sistemas mais econômicos. Além de ganhos econômicos, significa ganhos ambientais.53 Percebe-se então, que quando se fala em vantajosidade não deve ter como único aspecto o viés financeiro, mas também a qualidade oferecida pela escolha do produto sustentável. Isso quer dizer que, apesar do custo inicial do produto sustentável ser superior ao do tradicional, a vantajosidade será muito maior se levado em consideração o ciclo de vida e a qualidade do meio ambiente. Assim sendo, não há conflito entre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável com a vantajosidade. Isso é promover o desenvolvimento nacional sustentável, satisfazendo as necessidades atuais, mas sem comprometer a qualidade de vida (em todos os seus aspectos) da presente e futuras gerações. 6 CONCLUSÃO Diante do exposto, conclui-se que o desenvolvimento sustentável que o Estado deve promover precisa levar em consideração todas as suas dimensões, sendo elas econômica, social, ambiental, ética e jurídico-política. O conceito comum 52 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 42. 53 BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent%C3%A1veis.pdf>. p. 43 poder de compra Disponível em: poder de compra Disponível em: 95 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de desenvolvimento sustentável é o apresentado no Relatório Brundtland, sendo aquele que atende as necessidades do presente mas sem comprometer as gerações futuras de atenderem suas próprias necessidades. O direito ao desenvolvimento está presente no ordenamento jurídico, referenciado no prêmbulo da Constituição Federal e, em seguida, em seu artigo 3º inciso II, compondo um dos objetivos da República Federativa do Brasil, sendo reconhecido como princípio constitucional fundamental e impositivo. O desenvolvimento nacional sustentável é considerado um direito fundamental, enquadrando-se na terceira dimensão dos direitos fundamentais, que diz respeito aos direitos de solidariedade. Por força disso, se a Administração Pública deixar de adotar medidas que visem ao fomento do desenvolvimento nacional sustentável, estará violando direito fundamental, portanto, os interessados podem cobrar perante o Poder Público a satisfação desse direito. Uma forma do Estado promover o desenvolvimento nacional sustentável é por meio das licitações, portanto, a Medida Provisória nº 495/2010, converteu-se na Lei nº 12.349/2010, apresentando a ideia de que o desenvolvimento nacional sustentável é um meio de fomento público através das contratações públicas. Com isso o artigo 3º da Lei nº 8.666/1993 instituiu a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade licitatória, ao lado da seleção da proposta mais vantajosa e da isonomia entre os participantes. As licitações sustentáveis permitem a compra de produtos que oferecem o maior número de benefícios para o ambiente e a sociedade, com parâmetros de consumo menos agressivos ao meio ambiente. É uma política de contratações públicas levando em consideração os critérios de sustentabilidade, promovendo o desenvolvimento através do poder de compra do Estado. A adoção de critérios socioambientais nos procedimentos licitatórios é legal, tendo respaldo nos artigos 225 e 170, inciso VI da Constituição Federal, e, pelo fato de ser hierárquica e superior às outras normas, toda legislação infraconstitucional deve ser interpretada de acordo com os seus princípios. Dessa maneira, a observância de garantir o desenvolvimento nacional sustentável vai ao encontro com o ordenamento jurídico atual. 96 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Esses critérios podem ser utilizados em quatro momentos do procedimento licitatório, a saber: na fase da definição do objeto, em que o administrador público delimita e especifica a compra, o serviço ou a obra que pretende contratar; Na fase de habilitação que, em tese, somente os dispostos nos artigos 28, inciso V e 30, inciso IV da Lei nº 8.666/1993 comportariam as exigências socioambientais; Na fase do julgamento das propostas, onde serão analisadas as propostas e as ofertas para então determinar o vencedor; E nas obrigações do contratado, sendo possível que entre essas obrigações estejam previstas exigências em atenção à sustentabilidade ambiental. As finalidades licitatórias devem ser promovidas conjuntamente. Observou-se, portanto, que promover o desenvolvimento nacional sustentável não viola o princípio da isonomia entre os participantes pelo fato de que sempre vai haver alguma diferenciação entre os interessados em contratar com a Administração Pública, pois no caso concreto, se não existisse essa diferenciação, ela teria que contratar todos os interessados, ou não contratar nenhum. Sendo assim, deve-se deixar bem claro todas as regras e especificar o porque da escolha com quem deseja contratar. Em relação à vantajosidade, percebeu-se que também não é violada pela promoção do desenvolvimento nacional sustentável, pois é necessário levar em consideração o custo real dos produtos sustentáveis, que não é o preço pago no momento da compra desses produtos, mas sim os custos durante todo o seu ciclo de vida (compra, operação, manutenção e disposição do produto), comprovando-se, deste modo, serem muito mais vantajosos do que os produtos tradicionais. Ademais, quando se fala em vantajosidade, não se deve ter como único aspecto o viés financeiro, mas também a qualidade oferecida pelos produtos sustentáveis. Por fim, conclui-se que a necessidade de políticas públicas visando promover o desenvolvimento nacional sustentável é essencial atualmente. O Estado tem o dever de cumprir com a nova função social da licitação para, por intermédio dela, melhorar a qualidade de vida das pessoas no âmbito econômico, social e ambiental, e deste modo garantir que as futuras gerações tenham o direito às mesmas garantias conquistadas no presente. Os cidadãos também devem fazer a sua parte na promoção do desenvolvimento nacional sustentável, reavaliando as suas condutas do dia-a-dia e 97 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE fiscalizando as práticas do Poder Público. Promover o desenvolvimento nacional sustentável, mais do que um direito, é um dever de todos. REFERÊNCIAS BARCESSAT, Lena. Papel do Estado brasileiro na ordem econômica e na defesa do meio ambiente: necessidade de opção por contratações públicas sustentáveis. In: BARKI, Teresa Villac Pinheiro. SANTOS, Murillo Giordan (Coord). Licitações e contratações públicas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-decompras-publicas-sustent%C3%A1veis.pdf>. BIM, Eduardo Fortunato. Considerações sobre a juridicidade e os limites da licitação sustentável. In: BARKI, Teresa Villac Pinheiro; SANTOS, Murillo Giordan (Coord.). Licitações e contratações públicas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. BRASIL. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. BRASIL. Lei nº 12.462 de 04 de agosto de 2011. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12462.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015. BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Licitação sustentável. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixostematicos/item/526&gt>. Acesso em: 30 mar. 2015. COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-Futuro-Comum-EmPortugues>. Acesso em: 20 de ago. de 2014. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro de 3 a 14 de Junho de 1992. Declaração da ECO-92 sobre ambiente e desenvolvimento. 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Belo Horizonte: Fórum, 2010. 100 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE LEI 11.441 DE 04 DE JANEIRO DE 2007: FORMA DE DESAFOGAR O PODER JUDICIÁRIO ATRAVÉS DO SERVIÇO NOTARIAL LAW 11.441 OF 04 JANUARY 2007: UNBURDEN WAY OF JUDICIARY THROUGH THE NOTARIAL SERVICE Catiane Deola Jacoboski Adriana Martins Silva54 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo encontrar uma maneira de desafogar o Poder Judiciário da quantidade de processos, de aproveitar a estrutura e competência dos Tabelionatos de Notas, através da Lei 11.441/07, que proporciona as partes se fazer valer dos princípios constitucionais da eficiência, efetividade, celeridade. Sendo o objetivo a pesquisa, mostrar o que vem a ser um Tabelionato de Notas e como ele funciona, procurando fazer com que as pessoas percebam a importância econômica e social que ronda o serviço extrajudicial, como ele pode ajudar a desafogar o Poder Judiciário, prestando um serviço ágil, eficaz, menos custoso, capaz de solucionar o problema econômico das partes e também auxiliar na resolução do dilema da quantidade de processos aguardando uma solução pelas mãos do Poder Judiciário. Deste modo usa-se como exemplo os benefícios da Lei 11.441/2007, que autoriza as partes realizarem o divórcio por escritura pública através dos serviços notarias. Palavras-chave: serviço notarial, tabelionatos de notas, Poder Judiciário, tabelião e princípios. ABSTRACT This study aims to find a way to relieve the judiciary of the number of processes to take advantage of the structure and competence of the notary public notes, by Law 11.441/07, which provides the parties to enforce the constitutional principles of efficiency, effectiveness, speed. As the objective is research showing what happens to be a Notes Notary and how it works, trying to make people realize the economic and social importance that surrounds the extra-judicial service, as it can help relieve the judiciary, paying an agile, efficient service, less costly, able to solve the economic problem of the parties and also help resolve the dilemma of the number of processes waiting for a solution at the hands of the judiciary. This way is used as example the benefits of Law 11,441/2007, which authorizes the parties to carry out the divorce deed through notarial services. . 54 Mestre em Direito Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada nas áreas cível e empresarial. Atualmente é professora de Direito Civil, Família e Empresarial no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Professora na graduação de direito de Família e Sucessões e pósgraduação. Orientadora do Grupo de Pesquisa Direito da Personalidade no âmbito Global no Centro Universitário UNINTER. 101 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Key Words: notary services, notary notes, the judiciary, notary and principles. 1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo mostrar alguns esclarecimentos sobre a área notarial, mais especificamente sobre o Tabelionato de Notas. Pretende-se demonstrar como essa singular atividade pode auxiliar o Poder Judiciário a livrar-se de alguns processos, diminuindo assim a quantidade de ações que se forma na porta do Judiciário. Sabe-se que a falta de informação, o desconhecimento do que realmente vem a ser o serviço prestado pelo notário, faz com que a população não saiba como utilizar este tipo de serviço que, em muito, pode ajudar na vida das pessoas, nas suas relações e negócios jurídicos. Pode-se dizer ainda que não só a população tem esse desconhecimento, mas como muitos operadores do Direito também. Embora os serviços notariais sejam exercidos em caráter privado, eles provêm de delegação do Poder Público, e é indiscutível a sua presença no dia-a-dia do cidadão. Pois, desde o nascimento até a morte, se faz necessário o trabalho dos profissionais de notas e registros. Este artigo vem demonstrar os principais aspectos da função notarial, com destaque especial aos Tabelionatos de Notas, os conceitos e princípios, sua importância, efetividade e de que forma podem ser úteis à sociedade e ao Poder Judiciário. O tema proposto neste trabalho será desenvolvido em três capítulos. Para uma melhor compreensão do tema em estudo, optou-se pela apresentação de um breve histórico sobre o Direito de família e o casamento, a seguir as formas de dissolução do vínculo conjugal, e por último as origens do sistema de cartórios no mundo, sintetizando a forma empregada pelos povos antigos, na utilização de técnicas disponíveis na época para obter segurança nas relações jurídicas, e também os princípios que orientam o serviço notarial, conceitos, sua natureza jurídica, fé pública e segurança jurídica proporcionada pelos serviços praticados pelos notários. Busca-se enfatizar o caráter social da atividade, o papel da função notarial 102 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE como agente da paz social, como ela pode ser utilizada na busca da harmonia social, na justiça preventiva, evitando litígios e auxiliando a desafogar o Poder Judiciário. O objetivo principal da pesquisa é mostrar como os Tabelionatos de Notas, através do serviço extrajudicial, podem auxiliar na diminuição da quantidade de demandas judiciais, observando dos princípios constitucionais da eficiência, eficácia, celeridade, para que o usuário esteja satisfeito com o serviço prestado, dando a certeza de que teve acesso à Justiça, mesmo que não efetivamente pelas mãos do Poder Judiciário, usando como exemplo os benefícios da Lei 11.441/07, que proporciona as partes o direito de realizarem o divórcio extrajudicial, de forma mais rápida e eficaz. 2 DISSOLUÇÃO DO VINCULO CONJUGAL Anteriormente o casamento era uma instituição insolúvel para a legislação brasileira, pois somente era possível a dissolução do vínculo conjugal, nos casos previstos em lei. Com o passar do tempo esse instituto foi evoluindo. O Código Civil de 1916, somente admitia o desquite, ou seja, permitia a dissolução da sociedade conjugal, mas não o casamento, mesmo que os casais demonstrassem o interesse de deixar de serem unidos, ainda mantinham o vínculo matrimonial, os casais continuavam ligados ou comprometidos moralmente, e aqueles que constituíam outra família eram descriminados pela sociedade da época e pela igreja. A sentença do desquite apenas autorizava a separação dos cônjuges, pondo termo ao regime de bens. No entanto, permaneceria o vínculo matrimonial. A enumeração taxativa das causas de desquite foi repetida: adultério, tentativa de morte, sevícia ou injuria grave e abandono voluntário do lar conjugal (art. 317). Foi mantido o desquite por mutuo consentimento (art. 318). A legislação civil inseriu a palavra desquite para identificar e diferenciar da simples separação de corpos.55 Portanto a sentença que destituía o casamento, não punha termo ao vínculo conjugal. 55 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 09. 103 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Com o passar do tempo, surge a separação judicial, a qual a lei admitia o termino da sociedade conjugal, pela separação de mútuo consentimento, ou pela separação litigiosa, desde que transcorrido o prazo de um ano da data da realização do casamento. A separação consensual é negócio jurídico bilateral, que tem como fim precípuo legalizar a convivência dos cônjuges que viverem separados, estabelecidas e reguladas as consequências da dissolução da sociedade conjugal, tanto na ordem pessoal como na patrimonial. É fonte de direitos e obrigações unitariamente entrosados numa situação jurídica indivisível e inalterável, no conteúdo, pela vontade das partes. 56 Qualquer um dos cônjuges poderia requerer a separação, desde que fosse comprovada a separação de fato a mais de um ano, alegando que não havia mais interesse na vida em comum. A Lei 6.515/77, instituída como Lei do Divórcio, vem para por fim ao casamento, ao vínculo matrimonial, o qual ofereceu a possibilidade de separação do casal que não tinham mais interesse de permanecerem casados. Pois o divórcio dissolve o vínculo matrimonial, e a separação não tinha o mesmo poder, pois somente rompia a sociedade conjugal. Anteriormente era obrigatório fazer primeiro a separação judicial, após decorrido o prazo de um ano, poderia converter em divórcio, e também a possibilidade de requerer o divórcio direto se fosse comprovada a separação de fato dos cônjuges a mais de dois anos. O divórcio tem fundamento constitucional que o assegura, facultando duas modalidades, cada uma a partir de uma causa objetiva: a) o divórcio direto, para o qual a causa é a separação de fato dos cônjuges há mais de dois anos; b) o divórcio por conversão, cuja causa é exclusivamente o transcurso do prazo de um ano do transito em julgado da sentença da separação judicial ou da decisão judicial da separação de corpos.57 Ainda nos dias de hoje, existem algumas pessoas que se encontram no estado civil de separados judicialmente, que não converteram a separação em divórcio. Segundo Maria Berenice Dias, existe uma vantagem na separação judicial: 56 57 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 216. LOBO, Paulo. Direito civil – famílias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 144. 104 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A única "vantagem" da separação judicial é a possibilidade de o casal reverter à separação. No caso, de reconciliação, pode, a qualquer tempo, ser restabelecida a sociedade conjugal "por ato regular do juiz", resguardados os acentuais direitos de terceiros (1.577 e § único). O pedido deve ser feito nos autos da separação (LD 46), norma que continua em vigor por ser de conteúdo processual. Já os divorciados, havendo arrependimento, precisam casar novamente. Ou seja, separação, ao contrário do divórcio, dispõe do que se poderia chamar de "cláusula de arrependimento". Esse único benefício mostra-se deveras insignificante, até porque raros são os pedidos de reversão da separação de que se tem notícia. Há a necessidade de contratar advogado e, além das delongas para o desarquivamento do processo, indispensável é a intervenção judicial. Tudo isso demanda tempo e dinheiro. Mais prático e mais barato - além de mais romântico - é celebrar um novo casamento, que até gratuito é (CF 226 §1º).58 O divórcio pode ser requerido por ambos os cônjuges de forma consensual, ou por somente um deles de forma litigiosa, nada impedindo que no decorrer do processo se torne consensual. 3 O DIVORCIO ATRAVÉS DA LEI 11.441/2007 A Lei 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que entrou em vigor no dia 05.01.2007, estabelece que o divórcio e a separação consensual, podem ser requeridos por via administrativa, em Tabelionato de Notas, através de escritura pública de divórcio. Mas para isso é preciso preencher alguns requisitos, estarem de pleno acordo, assistidas por um advogado ou defensor público, e que da união o casal não tenha filhos menores de idade ou incapazes, estando tudo de acordo é preciso comparecer a um tabelionato para assinarem a escritura pública de divórcio. Desta forma, existe o princípio da menor intervenção estatal na vida privada do cidadão, pois fica desnecessária a posição do Estado, ou seja, do Poder Judiciário, o procedimento se torna mais célere e eficaz, de maneira que desafoga o judiciário, não havendo a necessidade de homologação, sendo a escritura pública, documento hábil para as devidas averbações. 58 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. ver., atual. São Paulo: RT, 2011. p. 289. 105 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O princípio da menor intervenção estatal na esfera da vida privada e intimidade dos cidadãos ganhou novas regras com a lei nº 11.441/2007, que veio facilitar e simplificar a dissolução do casamento, do inventario e partilha de bens, possibilitando que sejam feitos através de escritura pública se forem consensuais e não tiveram filhos menores. Esta lei deu nova redação aos artigos 982, 983, 1.031, 1.124-A do código de processo civil, instalando assim uma nova maneira de se dissolver o casamento.59 A real intenção da norma é tornar mais ágeis e céleres a separação e o divórcio quando esses forem consensuais, permitindo assim, que o Poder Judiciário tenha tempo para se dedicar às decisões de questões mais complexas, assim no entendimento de Christiano Cassettari: Dessa forma, abre-se uma possibilidade de duplo favorecimento para ambos os lados: o jurisdicionado ganha uma nova forma de realizar separação, divórcio e inventário muito mais ágil, e o Judiciário ganha mais tempo para se dedicar às questões complexas, com a redução da tramitação desses processos.60 A Emenda Constitucional nº 66 de 13 de julho de 2010, sugerida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, com o principal objetivo de regulamentar constitucionalmente os dispostos no Código Civil inserido através da Lei 11.441/2007 que possibilita o divórcio, inventário e partilha pela via administrativa. Pois deu nova redação ao § 6º do artigo 226 da Constituição Federal, que supriu o prazo da prévia separação judicial por mais de um ano, ou a separação de fato por mais de dois anos. O divórcio pode ser requerido a qualquer tempo após a realização do casamento, podendo ser de forma consensual ou litigiosa, de cunho personalíssimo, sendo as partes capazes, e é obrigatório as partes estarem assistidas por advogados ou defensores públicos. Com a Emenda Constitucional nº 66/2010, os artigos da referida lei foram parcialmente revogados, pois passaram a contrair a lei maior. Portanto, o artigo 1.124 A do código de processo civil, cuja nova redação havia sido dada pelo artigo 3° da lei n° 11.441/07, que deve ser lida e entendida de acordo com as novas disposições constitucionais, ou seja, que o instituto da 59 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 42. CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública, 7. ed. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015. p. 23. 60 106 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE separação judicial e administrativa não tem mais lugar em nosso ordenamento jurídico, já que a nova redação do parágrafo 6° do artigo 226 da constituição acabou com a prévia separação ao divórcio, a conversão da separação judicial (e obviamente a administrativa) e com todo e qualquer prazo como requisito para se requerer e ser concedido o divórcio. 61 A principal finalidade da Ementa Constitucional 66/10, esta em retirar a tutela do Estado sobre a decisão da vontade das partes, uma vez que a escritura pública de divórcio não precisa ser homologada pelo Juiz, o Tabelião tem fé pública para realização do ato e dos documentos por ele emitidos no seu Serviço Notarial, como será exposto adiante. 4 O SERVIÇO NOTARIAL A função notarial surgiu da necessidade de que as pessoas tinham de firmar acordos de vontade, ou seja, a vontade jurídica, em um primeiro momento da evolução humana, era, portanto, representada por símbolos e ações simbólicas. Depois disso, a palavra tomou-se meio fundamental para a realização dos negócios. Conforme Hercules Alexandre da Costa Benício 62, nesse período, tendo em vista o pequeno número de relações negociais e sua simplicidade, a boa-fé e o respeito ao testemunho dos particulares, a existência dos pactos e a satisfação das exigências jurídicas eram presenciadas por assembleias populares, a fim de assegurar o que se havia convencionado. A palavra notário vem do Hebraico, notários ou notarin, posteriormente pela linguagem egípcia começou a chamar de sofer e scriba. Aristóteles chamava os servidores públicos que conforme sua atividade lavrava atos e contratos particulares eram chamados em latim de notarri. Os italianos escreviam seus atos em tabuletas de madeira emplastradas de cera, assim era chamado de tabelliones.63 Julia Claudia Rodrigues da Cunha Mota, relata que no Código Visigótico, que proferia as escrituras chamava-se de conditor, não sendo necessariamente 61 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. p. 42. BENICIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do estado decorrente de atos notariais e de registro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 41. 63 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de 62 acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 45. 107 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE oficial público, mas eram pessoas que naquela época sabiam escrever. João Mendes de Almeida Junior complementa. "[...] de modo que os povos que usavam a expressão ato autêntico empregaram o nome de notarius para determinar o oficial público que lavrava contratos e testamentos e deram aos seus instrumentos o mesmo caráter, a mesma força e os mesmos efeitos de uma sentença transitada em julgado".64 A importância de designar um notário e registrador é fundamental "O Direito existe não apenas para servir à justiça, mas também para eliminar a insegurança das relações jurídicas. De nada adianta uma decisão justa, se ela não for segura e eficaz". Pode-se dizer que a função notarial e registral surgiu para prevenir tanto a segurança injusta quanto a insegurança justa. A segurança injusta pode ser verificada quando uma sentença equivocada, injusta, é proferida e à parte interessada não é dado o direito de recorrer. Decisões assim são muito comuns em sistemas ditatoriais. Tem-se uma segurança, pois não há risco de alteração da decisão, mas completamente injusta. 65 Até a metade do século XVIII, a função dos notários era confundida com a dos juízes, eis que até aquele tempo era necessária a intervenção judicial para dar caráter público ao ato notarial, pois havia a necessidade de homologação dos documentos por autoridade superior. E, como eram muitos os atos a serem chancelados pelos juízes, eles passaram a delegar as funções notariais a escrivães e chanceleres, que foram, com o tempo, tomando-se peritos na atividade que desempenhavam, possibilitando constituir uma classe separada, autônoma e independente, a classe dos oficiais públicos. Com a instituição de um curso especial, na Universidade de Bolonha, os autores reconheceram, na atividade notarial, o ponto central do ofício de notas do tipo latino, a partir dai, a atividade melhorou cada vez mais, sendo a Escola de Bolonha extremamente importante como marco para a história notarial. 64 ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 41. 65 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 46. 108 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Hoje o serviço notarial no Brasil é distinto como era na antiguidade, porém tem raízes e ideologias semelhantes. A história se faz necessária para entender sua importância e sua evolução. Júlia Claudia Rodrigues da Cunha Mota, busca fatos antiguíssimos para demonstrar como os ancestrais usavam o serviço notarial. A Babilônia possuía cadastros e arquivos com finalidade administrativa, que eram consultados em caso de conflitos de terras. Por volta de 1750 a.C., aproximadamente, a notoriedade dominial se manifestava através do uso de "pedras de limites" (koudourrous), demarcando o território e dando publicidade a propriedade. Na época dos hebreus, a organização social era simples, mas quando as transações foram se complicando, elas passaram a se feitas às portas da cidade, sem intervenção alguma, mas diante dos habitantes locais que serviam de testemunhas. 66 Antigamente, nos anos 600 a.C., competia aos notários, denominados escribas, a função de receber os contratos de vontade das partes e selar todos os atos por eles realizados, que deviam ser munidos do selo público. Atualmente, não é diferente, ainda utiliza-se o selo como uma garantia a ideia de que o serviço foi conferido e registrado, tendo como um dos objetivos evitar falsificação de documentos. O Governo do Estado do Paraná, com base na Lei Federal nº 10.169/2000 em seu artigo 8º, regulamentou a Lei nº 13.228/2001, criando um Fundo de Apoio ao Registro Civil de Pessoas Naturais - FUNARPEN, determinando a obrigatoriedade de aplicação do selo de autenticidade em todos os atos praticados pelos Tabeliães de Notas, de Protesto, Registradores de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas, Registro Civil de Pessoas Naturais, Registradores de Imóveis e Distribuidores, para compensar os registradores civis das pessoas naturais pelos atos gratuitos por eles praticados.67 A escrita é a maneira de expressar a aquisição e venda da propriedade, contratos e outros documentos afins, era feita de várias formas, conforme a necessidade e o recurso que tinham na época. 66 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 47. 67 MARTINELI, Mário. Aplicação dos selos de autenticidade pelos cartórios o que é o funarpen. Disponível em: <http://www.funarpen.com.br/ofundo> Acesso em: 04 maio 2015. 109 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Os medos, os assírios e os persas tinham escrita compostas por figuras, em forma de ferro de lança ou de prego, originariamente impressos em tabuletas de argila, espécie de terracota, ou gravados em pedra, diversamente combinados, daí o nome de escrita cuneiforme.Os assírios não possuíam tinta nem pincel, não tinham papyrus, como os egípcios, nem peles preparadas, como os habitantes de Pérgamo, os gregos e os romanos, mas, quando os assírios e os medos foram subjugados, as leis persas passaram a prevalecer.Os persas foram os primeiros a estabelecer o cadastro então a propriedade dos imóveis não podia ser transmitida sem ato escrito.No Egito, não faltavam materiais, como pedras, madeira, pergaminho, o que explica o desenvolvimento da arte de escrever. A transmissão de propriedade no Egito opera-se em três atos, porém, desses três, o segundo caiu em desuso, estando apenas o primeiro, como ato de aquisição do domínio, e o terceiro, como ato de posse, ou seja, a venda e a tradição. Posteriormente ao ato por dinheiro ou ato de aquisição, passou-se a fazer a cifra ou quantia do preço. 68 Cada povo estabelece suas normas ou regras conforme suas culturas, necessidades e características específicas, se for buscar como surgiu em cada região podemos ver semelhanças e distinções. "Existem tantos notariados quantos os direitos ou ordenamento jurídico e os tipos de sociedade, isto porque, sendo o notariado uma instituição criada pela sociedade, atuando na própria sociedade e em seu benefício, ele assume as características do meio onde surgiu".69 4.1. O NOTARIADO NO BRASIL Na época do Brasil Colônia, os tabeliães eram nomeação pelo Rei, esses cargos eram vitalícios, e possuíam venalidade, ou seja, podiam ser obtidos por compra e venda ou sucessão, não necessitando de preparo e conhecimento específico. Muitos cargos da burocracia profissional podiam ser comprados ou recebidos como recompensa oferecida pela Coroa, sendo fornecidos ainda à viúvas ou órfãs como dote. "A frase 'algum cargo da justiça ou do tesouro' era a resposta usual da coroa por qualquer requerente que apresentasse uma folha de serviço cheia de méritos ou explorações militares como razão para receber a recompensa".70 68 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 48. 69 RODRIGUES, Pedro Nunes. Direito notarial e direito registral. Coimbra: Livraria Almedina, 2005. p. 23. 70 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 69. 110 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Conforme ensinamentos de Ovídio Baptista da Silva, extrai-se que, no Brasil, a partir de um determinado momento de sua história, o notariado perdeu a independência que marcou seu nascimento para tomar-se um serviço subordinado ao Poder Judiciário, na condição de uma serventia judicial. Tal não ocorreu com o sistema notarial dos países de língua espanhola, que seguiram o modelo do notariado adotado na Espanha.71 Com a Constituição Federal de 1967, estabeleceu substitutos dos tabeliães a garantia do cargo "aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco anos de exercícios, nessa condição e na mesma serventia", até 31/12/1983.72 Com a Constituição de 1988 artigo 236, e complementado pela Lei 8.935/1994, foi alterado o regime da função notarial e registral no Brasil, passando a regulamentar o ingresso aos cargos só através de concurso público. Conforme constata João Mendes de Almeida Junior, em sua obra "Órgãos da Fé Pública", os notários e/ou registradores estão presentes em todo o mundo e nas diversas épocas. Dentre alguns países, o saudoso autor cita a Rússia, Suíça, Dinamarca, Noruega, Grécia, Turquia, Suécia, Uruguai, Chile, Argentina, Estados Unidos, Colômbia, Cuba e Inglaterra, demonstrando a importância do notário, entre altos e baixos, mas sobretudo extinguindo de vez o conceito deturpado de que os cartórios são uma invenção da burocracia brasileira.73 Em 18 de novembro de 1994, passou a viger a Lei Federal n° 8.935, que regulamentou a atividade notarial, conforme anunciado pelo art. 236, da Constituição Federal. Art. 236. Os serviços notariais e os de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. 71 SILVA, Ovídio Baptista. O notariado brasileiro perante a Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 81. 72 MOTA, op. cit., p. 70. 73 MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas formas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 62. 111 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE § 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2°. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3°. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. A profissão notarial é dizer o direito, fazer com que as partes leigas ou não, na área do direito procurem um profissional denominado tabelião, para que possam expressar suas vontades de acordo com a lei, alguém imparcial, que tenha fé pública, para que aquele ato de vontade decidido pelas partes, seja harmoniosa e celebrada com êxito. Não basta o tabelião ser a "voz do direito", é imprescindível ser ético na realização de todos os seus atos, moral em suas atitudes e levando em consideração os princípios notariais, para que possa ser visto perante a sociedade como um profissional ético, capacitado, imparcial e de plena confiança. Embora a determinação notarial do direito se conclua por meio de um ato, convém que sua correspondente disposição para atuar não seja árdua nem, instável (facile mobile), senão que, o mais possível, pronta, constante e facilitada, resultando de uma persistente inclinação moral - a de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), tal se define a virtude da justiça - e do hábito intelectivo próprio para o conhecimento do suum da justiça: que é o que se designa, propriamente, com o termo "prudência. 74 O ato notarial deve ser reconhecido perante a sociedade como prática eficaz, autêntica, podendo prevenir litígios, agir antes que aconteça. "A decisão do juiz é sobre fatos passados para reger no presente. A autenticação do tabelião é de fatos presentes para reger no futuro".75 O notário não é apenas um profissional do direito, mas um jurista convergido na titularidade da fé pública, um profissional garantidor do direito, com pessoalidade, vocação, eficácia cívico e retribuição "Profissão é a atividade pessoal que se 74 75 DIP, Ricardo Henry Marques. Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. p. 40. QUARTIER. Revista de direito notarial. Trim. v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.62 112 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE exercita habitualmente, por vocação e com espírito de serviço, em ordem ao bem comum e como meio de prover as necessidades da vida".76 5 PARA QUE SERVE O SERVIÇO NOTARIAL E QUAIS SUAS ATRIBUIÇÕES Na acepção de Walter Ceneviva, o serviço notarial constitui-se em atividade prestada por notários ou tabeliães, pessoalmente ou por seus prepostos, sob a responsabilidade dos primeiros, em locais denominados serventias, voltada ao atendimento do povo em geral. Referida atividade é, pois, exercida por profissional do Direito considerado agente público, podendo também exercê-la as autoridades consulares brasileiras, na forma da legislação especial.77 A lei autoriza ao agente a redigir, formalizar e autenticar, com fé pública, instrumentos que consolidam atos jurídicos extrajudiciais. Os serviços notariais devem ser prestados de forma técnica e organizada. Eles garantem a publicidade dos atos praticados nas serventias, a autenticidade no sentido de que possuem presunção relativa de veracidade, dão segurança jurídica e plena eficácia às relações negociais neles especificadas, podendo inclusive servir como prova em juízo. Portanto, constitui-se em serviço com muitos benefícios a oferecer aos solicitantes. Neste mesmo entendimento complementa Walter Ceneviva. O serviço notarial se caracteriza em seus aspectos principais, como o trabalho de compatibilizar com a lei a declaração desejada pelas partes nos negócios jurídicos de seu interesse. Compatibilização participante e não meramente passiva, pois a declaração transposta para o documento público se destina a relatar limitações de direito, aceitas pelos participantes do ato. 78 Dessas afirmações pode-se compreender que o serviço notarial, não obstante sua vinculação a fórmulas, é caracterizado em seu aspecto formal pelo fato de prover legalidade à vontade manifestada pelas partes, e possibilita que esta, conforme expressa, produza efeitos jurídicos. Importa acrescentar que o serviço notarial deve estar imbuído de legalidade, 76 DIP, Ricardo Henry Marques. Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. p. 40. CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 22. 78 Idem, p. 22. 77 113 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE uma vez que somente serve para fins lícitos. A legalidade não está expressa no art. 1 ° da Lei n° 8.935/94, mas pode ser visualizada de forma implícita entre as características dos serviços notariais. Até porque a atividade notarial constitui-se em prestação de serviço e sendo assim, devem ser respeitados os princípios constitucionais. Logo, é possível perceber que os fins do serviço notarial se misturam, ou seja, a publicidade visa atribuir segurança às relações jurídicas, permitindo que qualquer interessado possa ter acesso ao acervo das serventias notariais e de registro. A autenticidade é qualidade de ato confeccionado por autoridade, criando presunção juristantum de veracidade quanto a ele. A segurança transmite certeza quanto ao ato e sua eficácia, afastando os riscos, e a eficácia significa que o ato praticado produzirá os efeitos dele decorrentes, não necessitando de confirmação por qualquer outra instituição. Para compreender melhor essa interpretação, observa-se o pensamento de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza: Vê-se que a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia são fins que se entrelaçam e se completam, são interdependentes. A publicidade dos atos é relevante porque a eles se atribui autenticidade; a segurança é dependente e fim da publicidade e da eficácia; a eficácia, por seu turno, só se atinge em razão da autenticidade e da publicidade. Várias outras relações podem ser feitas entre os fins dos serviços notariais e registrais, importando assinalar que, em síntese, o que se almeja é a segurança jurídica.79 O tabelião é um prestador de serviços à comunidade na condição de delegado do Poder Público, competindo a ele lavrar os instrumentos apropriados para a realização do ato de vontade das partes, intervir nos atos e negócios jurídicos, permitir sua redação ou redigir os instrumentos, lavrar escrituras e procurações públicas, testamentos, instrumentos de protesto e demais atos inerentes à função notarial. O notário atua também como conselheiro, confidente e assessor jurídico das partes e deve manter sigilo sobre as informações que lhe são trazidas. Deve, em 79 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Os serviços notariais e registrais no brasil. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/9629/os-servicos-notariais-e-registrais-no-brasil>. Acesso em 10.05.2015. 114 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE conformidade com a Lei, passar para as notas aquilo que lhe foi declarado e adaptar a vontade das partes às normas de Direito, pois é fundamental que o tabelião tenha conhecimentos diversos no que se relaciona à tarefa de bem orientar e aconselhar as partes; é também imprescindível, praticamente na sua totalidade, conhecimentos específicos nas diversas áreas do direito. Para Walter Ceneviva:80 "O notário é a ponte entre a lei e a declaração, a qual, sob o preceito de que os pactos são obrigatórios, cria a normatividade própria do contrato por instrumento público, determinando os fins visados pelos contratantes". Os princípios fundamentais e as diretrizes básicas para o notariado, são regulamentados na Lei Federal n° 8.935/94, que define a função do notário. É também esta Lei que traz para o direito notarial brasileiro importantes inovações e coloca um ponto final na discussão existente sobre ser o notário ou não funcionário público. Sendo agente público a quem o Estado encarrega de exercer uma função pública, na condição de particular, que executa serviço público em nome próprio, por sua conta e risco, sendo assim, denominado como um profissional do direito. O serviço notarial é, portanto, um serviço público, prestado em caráter privado, sendo que cabe ao titular a administração e o gerenciamento da serventia, incluindo a contratação de seus servidores, serviços prestados e realizados na serventia. A delegação não pode ser subdelegada, é personalíssima. No entanto, é permitido ao notário delegar às suas prepostas atividades determinadas, sob sua supervisão e responsabilidade. Os notários e registradores submetem-se não só ao sistema jurídico normatizado próprio como também ao regramento imposto pela administração pública", o poder delegante. São profissionais que exercem suas atividades em recinto particular e mesmo não recebendo dos cofres públicos, o numerário por eles recebidos têm a natureza de receita pública, deve ser criado e majorado por lei. Os notários e registradores não são funcionários públicos, por defenderem que a intenção contida na Constituição de 1988 foi de privatizar a prestação dos serviços notariais, e estabelece que esses são desenvolvidos em caráter privado. 80 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 22. 115 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Com a expressão caráter privado, a Magna Carta conduziu os notários e registradores do direito público para o direito privado, deixando assim de fazerem parte da estrutura do Estado, passando a ser colaboradores do Poder Público, trabalham em local particular e assumem a contratação de seus funcionários sob o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas. O artigo 3° da Lei n° 8.935/94 reforça tal posicionamento, quando diz que os notários e registradores são "profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro". E o artigo 50, da mesma lei, fortalece o entendimento acima ao determinar que os nomeados a partir de sua vigência, passam a se sujeitar ao Regime Geral da Previdência Social, que é o regime próprio da iniciativa privada, diferente daquele aplicado aos funcionários públicos. Neste sentido, também se encontra o posicionamento de Romeu Felipe Bacellar Filho81, afirmando ele que é nítida a diferença entre os serventuários da justiça e os agentes delegados - como é o caso dos notários e registradores. Para o professor Bacellar, os primeiros possuem vínculo direto e imediato com o Poder Judiciário, que é responsável pelos atos de provimentos originários e derivados; já os segundos possuem suas atividades reguladas por lei especial, cabendo ao Poder Judiciário tão somente a fiscalização de seus atos, conforme o § 1º do artigo, 236 da Constituição Federal, qual seja: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. (...) Existem, por certo, no lado oposto ao da posição até agora exposta, doutrinadores e juristas que entendem serem os titulares de serventias extrajudiciais funcionários públicos. Com esse pensamento, Luis Roberto Barroso, ao comentar o artigo 236 da 81 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum. 2009. p. 146. 116 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Constituição Federal, afirma:82 "esse dispositivo não afeta, antes confirma, a natureza pública do serviço. Assim titulares e auxiliares de tabelionatos e oficiais de registros são funcionários públicos, inclusive para fins do artigo 327, do Código Penal". Essa posição, contudo, encontra-se minimizada, de acordo como dispositivo do art. 175 caput da Constituição Federal é claro ao afirmar que o Estado é o titular da prestação de serviços públicos. E o art. 236, da Magna Carta, por sua vez, dispõe que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Além disso, apesar de os titulares das serventias extrajudiciais serem considerados "servidores públicos em sentido amplo", como exercem suas atividades em caráter privado, por delegação do Poder Público, não são titulares de cargos efetivos, como requer o inciso Il, do § 1º do art. 40, da Constituição Federal, que trata da aposentadoria compulsória. Reforçando o referido entendimento, cita-se o posicionamento do professor Romeu Felipe Bacellar Filho: A bem de ver, os notários e registradores jamais deveriam ser considerados auxiliares da justiça. A autuação destes agentes delegados, destinada "a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos", precede à atividade judicial, não sendo auxiliar desta. Os atos praticados por esta categoria de agentes delegados consagram a realização espontânea do direito, ou seja, não cuidam eles de decidir litigiosidades ou controvérsias. Desta forma não podem ser arrolados dentre os serventuários da justiça do foro extrajudicial, eis que esta nominação não mais lhes cabe, notadamente a partir da Constituição Federal de 1988. Não são servidores públicos de qualquer espécie. Desde o regime anterior, a doutrina nitidamente já distinguia os notários e registradores dos servidores públicos, persistindo em tal entendimento.83 Pode-se concluir, portanto, quanto à natureza jurídica da atividade notarial, que se trata de serviço público, prestado de forma privada, por particular, mediante delegação do Poder Público. Vencida essa primeira parte sobre o conceito, função notarial e natureza 82 BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 366. 83 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 146. 117 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE jurídica, passa-se a especificar cada atividade que faz parte do serviço extrajudicial e suas competências. Dessa forma, cabe esclarecer que "serviço extrajudicial" é uma nomenclatura genérica utilizada para abranger os serviços prestados pelos tabeliães de notas, tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos, tabeliães de protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis, oficiais de registro de pessoas naturais e de interdições e tutelas, oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas e oficiais de registro de distribuição, na forma que estabelece o artigo 5° da Lei n° 8.935/94. Tabelião de notas é o profissional aprovado em concurso público, titular de serventia notarial, qual seja, Tabelionato de Notas, na qual são realizados os serviços mais conhecidos da sociedade no que diz respeito ao serviço extrajudicial, tais como: procurações públicas, escrituras públicas, atas notariais, reconhecimentos de firma, autenticações, entre outros." Portanto a atividade extrajudicial e tão ampla e muito importante a cada uma das suas atribuições. Neste estudo, decidiu-se por focar nos Tabelionatos de Notas, tendo em vista o objeto deste trabalho, qual seja a importância desta atividade extrajudicial de notas e suas possibilidades de auxílio à diminuição de demandas a cargo do Poder Judiciário. Trata-se de uma atividade de muita valia nos dias de hoje, pois vem sendo essencial à Justiça. Mas ainda há muita falta de informação sobre a atividade desempenhada pelos tabelionatos de notas. 5.1 SEGURANÇA JURIDICA E A FÉ PÚBLICA DOS ATOS NOTARIAIS A segurança jurídica é vital às relações negociais e ao ordenamento jurídico. Conforme Ricardo Dip84, "os homens precisam saber em que se fiar, em que se ater, quais as regras do jogo, as regras da vida jurídica em concreto". A atividade notarial e registral constitui relevantes instrumentos jurídicos preventivos, têm por finalidade conferir, objetivamente, segurança jurídica e, 84 DIP, Ricardo. Sobre a crise contemporânea da segurança jurídica. Registro de imóveis (vários estudos). Porto Alegre, 2005. p. 96. 118 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE subjetivamente, a certeza que lhe corresponda, por meio de formas, prazos e procedimentos. Segundo Miriam Saccol Comassetto: A função notarial se constitui em atividade jurídica desenvolvida pelo notário ou tabelião, com o intuito de auxiliar os particulares, de forma imparcial, na regulamentação de seus direitos subjetivos na busca de uma solução adequada juridicamente e com o fim de conferir a esses atos segurança jurídica.85 A certeza jurídica dos atos efetuados em serventias notariais traz como consequência direta a prevenção de eventuais conflitos, que poderiam surgir em tomo da relação jurídica perfectibilizada em cartório. O notário é profissional de direito que se cerca de todos os cuidados possíveis para que na execução do ato solicitado pelas partes não ocorram falhas, e ele possa assim proporcionar segurança jurídica. Desempenha, portanto, esse profissional do direito, papel de relevância na sociedade, eis que pelas mãos do Estado, através da atividade jurisdicional e o instituto jurídico da coisa julgada, é possível a obtenção da certeza jurídica a posteriori, uma vez que o Judiciário busca resolver o conflito já instaurado. Entretanto, no que tange à atividade notarial, pode-se dizer que há a fixação do direito a priori, a certeza jurídica é atingida sem a necessidade de surgimento de um litígio. Portanto, como dito anteriormente, a ação dos notários e registradores precede à atividade judicial, e para realizar sua tarefa, o tabelião utiliza-se de instrumentos públicos, dotados de fé pública, o usuário do serviço notarial por muitas vezes reclama que se trata de um serviço burocrático, marcado pela exigência de papéis, assinaturas e carimbos, deve-se lembrar que se trata de uma visão errônea. Basta fazer uma reflexão da dita "burocracia" do serviço notarial, pois deve ser vista com os olhos voltados à segurança jurídica, através da exigência dos papéis, certidões, assinaturas e carimbos é que o profissional da área notarial pode atestar e conferir autenticidade aos atos por ele praticados, sem medo de estar fazendo algo errado. 85 CAMASSETTO, Miriam Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto Alegre: Norton, 2002. p. 61. 119 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Trata-se, pois de uma atividade com tarefas detalhadas, organizadas, bem distribuídas, realizadas de acordo com o disposto na legislação, de forma a possibilitar que os atos jurídicos produzidos nas serventias possam garantir autenticidade, segurança e eficácia jurídica.86 Dessa forma, a segurança jurídica preventiva oferecida pelo notário aos documentos elaborados em sua serventia, de forma cuidadosa e célere, não pode ser considerada sinônimo de burocratização em sentido pejorativo, mas procedimento essencial que oferece segurança jurídica à sociedade. Na função notarial, o notário ainda exerce também o poder de polícia jurídica, o qual está relacionado com o princípio da legalidade, que deve levar em consideração quando da prática de sua atividade. Esse poder de polícia refere-se ao fato de que o notário preside os atos jurídicos daqueles que requerem seus serviços, porém é fundamental a sua fiscalização de tais atos. A fé pública notarial tem como depositário dominante o notário, ela é conferida pela lei para atribuir valor jurídico a todo documento notarial e seu conteúdo, e que somente pode ser contestada em juízo mediante provas convincentes de falsidade. A fé pública notarial atesta a verdade das relações subjetivas, dá segurança e certeza jurídica, pois mostra se a exata realidade dos fatos, tornando-os verdadeiros. A existência da fé pública é essencial para a sociedade que clama por segurança e estabilidade nas relações jurídicas estabelecidas entre os indivíduos do meio social. Como se depreende, temos que atribuir à atividade notarial pelo seu agente autêntico jurista-documentador, como sendo um serviço fundamental à administração da justiça, em virtude da fé pública que envolve seu labor, tanto em relação à eficácia probatória, como à força executiva, alcançando sua plenitude via sentença judicial se instruído algum processo com atos por ele praticado.87 A segurança e certeza jurídica são consequências da fé pública, implicam 86 CAMASSETTO, Miriam Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto Alegre: Norton, 2002. p. 97. 87 REZENDE, Afonso Celso Furtado; CHAVES, Carlos Fernando Brasil. Tabelionato de notas e o notário perfeito. 5. ed. Campinas, São Paulo: Millennium, 2010. p. 87. 120 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE severo regime de responsabilidades civil, administrativa e penal, no caso de ocorrerem desvios, deslizes ou incorreções no serviço notarial. E a responsabilidade civil dos notários e registradores, segundo Hércules Alexandre da Costa Benício 88, “é subjetiva, mas direta do agente delegado, não cabendo responsabilidade civil objetiva do Estado pela natureza jurídica dos notários e registradores”. Dessa forma, cabe esclarecer que o fato desses profissionais possuírem fé pública, não quer dizer que são considerados funcionários públicos. Todos os atos praticados pelos tabeliães são dotados de fé pública, desde a autenticação de fotocópias, até escrituras, certidões, atas notariais, protestos, registros, averbações, enfim, todo serviço do cartório certificado pelo tabelião, é dotado de fé pública, pois é ela que afirma a certeza e a verdade dos assentamentos que o notário pratica, afirma a eficácia do negócio jurídico ajustado com base no declarado ou praticado pelo registrador e pelo tabelião. É na figura do notário, pois, que a fé pública adquire maior amplitude, pois a ele cabe a expressão da verdade. A população crê que ele seja profissional correto, íntegro em tudo o que dita ou escreve, salvo incontestável prova em contrário. 6 CONCLUSÃO O objetivo geral deste estudo foi desenvolver uma análise da atividade notarial, pôde-se concluir que desde o início da civilização os povos já utilizavam dos meios disponíveis na época da atividade notarial e registral. Ao tratar da efetividade da função notarial, verificou-se que a atividade desempenhada pelo tabelião, dentro de sua competência, observados os preceitos legais e princípios do direito notarial, é capaz de proporcionar segurança jurídica para as partes, pois trata-se de uma atividade organizada, detalhada, que deve cumprir certas formalidades, sendo realizada conforme o disposto na legislação, tudo de forma a possibilitar que os atos jurídicos produzidos nas serventias possam garantir autenticidade, segurança e eficácia jurídica. Sendo, portanto a atividade notarial bem menos burocrática e morosa do 88 BENICIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 304-305. 121 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE que a própria Justiça, porque as atividades realizadas nos serviços extrajudiciais são mais facilmente resolvidas e não vão bater nas portas do Judiciário. Concluiu-se também, que a fé pública do tabelião é essencial para garantir a certeza jurídica aos atos notariais, corresponde à certeza da realidade, confere confiabilidade ao ato praticado, afirma a eficácia do negócio jurídico ajustado com base no declarado ou praticado pelo notário. Muitas têm sido as tentativas de desafogar o Poder Judiciário e é fato que muitas foram colocadas em prática, como a Lei 11.441/07 que autoriza as partes a realizarem o divórcio extrajudicial, não precisando da intervenção estatal, sendo assim de forma mais rápida. A intenção deste estudo foi mostrar que o serviço extrajudicial existe e pode ser aproveitado nesse sentido, para desafogar o Poder Judiciário, que vem apresentando bons resultados quando o assunto é afastar do Poder Judiciário demandas que dele não precisam para serem resolvidas, como é o caso dos inventários, partilhas, separações e divórcios efetuados em Tabelionatos de Notas. Demonstra-se, portanto, que os serviços extrajudiciais podem sim funcionar como medidas alternativas de solução de conflitos, principalmente os Tabelionatos de Notas. Por fim, entendeu-se que o serviço notarial faz parte do ordenamento jurídico vigente, desempenhando importante papel junto à sociedade, no sentido de prevenir litígios. Além disso, ele desempenha uma função importantíssima, uma vez que a ele incumbe transmitir às partes a confiança no seu trabalho, na sua fé pública, e só assim resolver a situação que lhe é apresentada proporcionando segurança e eficácia jurídica a ela. REFERÊNCIAS ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexões sobre direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum. 2009. BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo: Saraiva, 1998. 122 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE BENICIO, Hércules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do estado decorrente de atos notariais e de registro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. BRASIL. Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. CAMASSETTO, Miriam Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto Alegre: Norton, 2002. CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública, 7. ed. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015. CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2007. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. ver. atual. São Paulo: RT, 2011. DIP, Ricardo. Sobre a crise contemporânea da segurança jurídica. Registro de imóveis (vários estudos). Porto Alegre. 2005. DIP, Ricardo Henry Marques. Prudência notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012. LÔBO, Paulo. Direito civil - famílias, 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. MARTINELI, Mário. Aplicação dos selos de autenticidade pelos cartórios o que é o funarpen. Disponível em: <http://www.funarpen.com.br/ofundo> Acesso em: 04 maio 2015. MOTA, Júlia Claudia Rodrigues da Cunha. As serventias extrajudiciais e as novas de acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2010. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio. 3. ed. Rio de Janeiro: GZED, 2011. QUARTIER. Revista de Direito Notarial. Trim. v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2009. REZENDE, Afonso Celso Furtado; CHAVES, Carlos Fernando Brasil. Tabelionato de notas e o notário perfeito. 5. ed. Campinas, São Paulo: Millennium, 2010. RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. RODRIGUES, Pedro Nunes. Direito notarial e direito registral. Coimbra: Livraria Almedina, 2005. 123 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE SILVA, Ovídio Baptista. O notariado brasileiro perante a Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Os serviços notariais e registrais no Brasil. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/9629/os-servicos-notariais-eregistrais-no-brasil>. Acesso em 10.05.2015. 124 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO PARA A EFETIVIDADE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL THE ENVIRONMENTAL EDUCATION AS A TOOL FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT EFFECTIVENESS Christiany Domingues da Rocha89 Regina Maria Bueno Bacellar90 SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Importância da proteção do meio ambiente 2.1 Meio ambiente como direito fundamental 2.2 Sociedade de risco 3 Educação ambiental 3.1 Ética ambiental 3.2 Princípio da participação 3.3 Educação ambiental fundamentada na ética ambiental 4 Conscientização ambiental como meio para a sustentabilidade 4.1 O desenvolvimento sustentável 4.2 Sociedade sustentável 4.3 Erradicação da pobreza à luz da educação 5 Considerações finais. Referências RESUMO O presente texto objetiva demonstrar a importância dos recursos naturais para a existência dos seres humanos, visto que diz respeito à garantia da vida humana em que todos dependem do meio ambiente para sobreviver. A relação entre o homem e o meio ambiente é remota, passou por várias mudanças no decorrer dos tempos. A preocupação com a proteção ambiental só foi percebida com a escassez dos recursos naturais e o agravamento da qualidade ambiental. Com isso, houve uma valorização da natureza, e foi constatado a ligação da proteção do meio ambiente com um interesse intergeracional. A partir disso, muitos têm buscado um novo modelo de desenvolvimento que prime um ponto de equilíbrio entre o crescimento econômico tão almejado pela sociedade atual e a preservação do meio ambiente. Pretende-se destacar que a partir da busca por este equilíbrio que surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, que visa a satisfação das necessidades atuais sem comprometer as necessidades das futuras gerações. Para tratar da questão, frisa-se o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental do homem na Constituição da República de 1988 como pressuposto à sadia qualidade de vida. As dificuldades para a implementação desse novo modelo são várias, portanto, alterações no comportamento da sociedade Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Advogada Consultora, possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambiental. Atualmente leciona no curso de graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação realizados pelas seguintes Instituições de Ensino: UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Possui experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direito de Energia/Regulatório. Membro das Comissões da Mulher Advogada e do Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Paraná. Membro da CAMFIEP - Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná. 89 90 125 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE devem ser levadas em consideração, assim como a devida conscientização às questões ambientais. Não há como se alcançar o efetivo desenvolvimento sustentável sem promover a educação ambiental em todos os níveis. Palavras-chave: meio ambiente, educação ambiental, desenvolvimento sustentável ABSTRACT This article aims to demonstrate the importance of natural resources for the existence of human beings, as regards the security of human life and everyone depends on the environment to survive. The relationship between man and the environment is remote, has undergone several changes over the time. Concern for environmental protection has only been realized with the scarcity of natural resources and the deterioration of environmental quality. This let us to an appreciation of nature, and it was found to protect the environment lead to an intergenerational interesting. From this, many people have sought a new development model that prime a balance between economic growing as target by the current society and the preservation of the environment. It is intended to highlight that from the search for this balance that emerged the principle of sustainable development, which aims to satisfy current needs without compromising the needs of future generations. To show the issue, claims the ecologically balanced environment as a fundamental human right in the Constitution of 1988 as a prerequisite to a healthy quality of life. The difficulties in the implementation of this new model are numerous, so many changes in the behavior of society must be taken into account, as well as proper awareness to environmental issues. There is no way to achieve effective sustainable development without promoting environmental education at all other levels. Keywords: environment, environmental education, sustainable development 1 INTRODUÇÃO O meio ambiente é um tema de grande renome ultimamente, visto que é dever de todos proteger os interesses ambientais. O que poucas pessoas se atentam é que é direito fundamental de todos o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. No entanto, nota-se que muitas vezes esse direito fundamental é esquecido para que seja alcançado o desenvolvimento econômico. Apesar de ser considerado como instrumento para a melhoria na qualidade de vida da sociedade, a busca incessante pelo lucro ocasiona em uma intensa degradação ambiental. Ocorre que os fundamentos econômicos estão intrinsecamente ligados a uma política de proteção ambiental e, tendo a natureza como fonte essencial para o 126 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE sistema de produção, poucos são os que se dão conta da escassez dos recursos naturais, que são esgotáveis, enquanto as necessidades humanas são infinitas. Desse modo, para que as futuras gerações não sejam prejudicadas por essa degradação ambiental devido ao anseio da atual geração pela busca do crescimento econômico, será necessária uma mudança de postura da sociedade, devendo promover um novo modelo de desenvolvimento. Com o objetivo de estabelecer um ponto de equilíbrio entre a extração de recursos e a garantia do meio ambiente equilibrado foi que surgiu o princípio do desenvolvimento sustentável, que visa a valorização da preservação do sistema ecológico, sem deixar de lado a tutela do desenvolvimento econômico, de forma que evite a devastação da natureza pelos seres humanos. Para tanto, ressalta-se a necessidade da relação harmônica entre o ser humano e a natureza, levando em consideração que esta é condição de sua existência futura. Ainda, cabe salientar a relevância da busca pelo desenvolvimento sustentável como um novo modelo de desenvolvimento, de forma que satisfaça as necessidades atuais sem impedir a satisfação das gerações futuras. Portanto, o presente trabalho possui o escopo de esclarecer a importância da educação ambiental na busca pelo desenvolvimento sustentável, conciliando os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao desenvolvimento com o crescimento econômico, como instrumentos de proteção ambiental e pressupostos para a sadia qualidade de vida humana. Todavia, para que tal modelo seja implantado, mudanças devem ocorrer no estilo de vida dos indivíduos, devendo estimular a educação ambiental, transformando valores de forma que gere a cultura do respeito à natureza. 2 IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE Desde os primeiros contatos do homem com a natureza já se notou que esta lhe daria os meios para sua sobrevivência. Ocorre que a preocupação com a proteção do meio ambiente pelo homem só teve início à medida em que se constatou que os recursos naturais eram limitados e com a deterioração da qualidade ambiental. 127 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Com isso, observou-se uma inquestionável relação de interdependência entre o homem e a natureza, visto que não existe maneira de separá-los, pois o homem depende da natureza para a sua existência. Assim, não resta dúvida que a relação entre o homem e a natureza deve ser levada em conta no que diz respeito ao meio ambiente, já que qualquer desgaste poderá afetar toda a coletividade, devido a esta interdependência. O homem pertence a um meio complexo e interdependente, não possui controle da natureza, mas precisam estar em harmonia para sobreviver. Os recursos naturais são finitos e seu desperdício pode levar à sua destruição. Visto isso, para a coexistência com o meio ambiente, é necessário que todos os cidadãos tenham consciência do estrago que têm causado, em nome da produtividade e do progresso (AGUIAR, 1994, p. 20/21). Com base nisso, há necessidade de se ultrapassar a ideia antropocêntrica, de que o homem é o centro do universo, posto que não é apenas a atual geração que está em questão. Pelo contrário, a preservação do meio ambiente está ligada a um interesse intergeracional, o qual dispõe a necessidade de um desenvolvimento sustentável com a proteção dos recursos naturais para as gerações futuras. Conforme Morato Leite, “este novo paradigma da proteção ambiental, com vistas às gerações futuras, pressiona um condicionamento humano, político e coletivo mais consciencioso com relação às necessidades ambientais” (MORATO LEITE, 2000, p. 78). É nessa perspectiva que surgiu o chamado antropocentrismo alargado, adotado pelo direito brasileiro no que concerne à proteção do meio ambiente. Consiste em uma interação solidária entre o homem e a natureza, como garantia do futuro de ambos, devendo priorizar a defesa do meio ambiente pela sua capacidade funcional, já que a Constituição Federal estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225). Portanto, o meio ambiente deve ser preservado levando em consideração a utilidade que possui frente ao homem, estando, assim, associado ao interesse intergeracional, bem como pela importância da proteção do próprio sistema ecológico, posto que a proteção do meio ambiente global consiste em uma 128 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE preocupação a tudo aquilo que rege a vida, abriga e a permite, colocando todos os seres no mesmo grau de importância, permitindo uma perspectiva atual e vasta. Todos os seres que compõem o meio ambiente, independentemente de sua utilização para a sociedade, deviam ser resguardados. Para que isso fosse possível, tornou-se fundamental uma cooperação entre os Estados para a formulação de normas internacionais, de modo que se pudesse restabelecer o equilíbrio ambiental lesado pelas atividades produtivas em todo o globo. 2.1 MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL O que se busca, sobretudo, é a inclusão da proteção ambiental no plano mais elevado do caderno de direitos reconhecido aos cidadãos (CANOTILHO; LEITE; Orgs, 2011, p. 118), tendo em vista que diz respeito à garantia da vida, não devendo nenhum agente tratar o meio ambiente com desprezo, seja público ou privado, mas considerar acima de qualquer outro direito. Na Constituição Federal de 1988, o tratamento ao meio ambiente não se concentrou em apenas um dispositivo, evidenciou sua importância em diversos dispositivos constitucionais, mormente no Título “Da Ordem Social”, o qual foi inserido ao lado de outros direitos fundamentais, como saúde, educação, seguridade social, entre outros, não restando dúvidas quanto à fundamentalidade deste direito. Isto se justifica, já num primeiro momento, ao se analisar a estrutura normativa do caput do artigo 225 da Constituição Federal, quando faz menção ao fato de que “todos têm direito”: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Ademais, tal direito acarreta o aparecimento de outros direitos, como a sadia qualidade de vida. Qualidade de vida, no que tange a preservar as condições sadias do meio ambiente e as relações que garantem o pleno desenvolvimento de todas as formas de vida. Segundo Édis Milaré, “a proteção do meio ambiente é pressuposto 129 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE para o atendimento de outro valor fundamental – o direito à vida” (MILARÉ, 2000, p. 213). Nesse sentido, não se pode restringir este benefício apenas aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, devendo ser garantido a toda e qualquer pessoa, assim como a proteção da dignidade da pessoa humana, vigorando o princípio da universalidade, indo além da cidadania brasileira. Logo, tendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito de terceira geração, o qual não se destina especificamente aos interesses de um indivíduo, mas uma preocupação de interesse geral, é fato que requer prestações positivas da sociedade e do Estado. Desse modo, se de um lado exige-se que o meio ambiente seja respeitado pelo Estado, de outro é estipulado que a Administração Pública assegure o bem jurídico ambiental. Por essa razão, a Constituição brasileira estabelece medidas a serem tomadas pelo Poder Público para garantir o direito ao meio ambiente equilibrado. Sendo assim, o art. 225 é considerado a “mãe” de todos os dispositivos ambientais da Constituição brasileira, estando diretamente ligado aos fundamentos constitucionais da proteção à vida e saúde (art. 5º), à garantia da dignidade da pessoa humana (art. 3º) e à função ecológica da propriedade (art. 186, II). Desse modo, o constituinte quis evitar todas as formas de degradação ambiental pelo Poder Público, seja direta ou indiretamente, agindo harmoniosamente para a defesa e preservação do meio ambiente. Ocorre que não é papel apenas do Estado garantir a preservação do meio ambiente, mas deve atuar juntamente com a ação dos grupos sociais para que seja realizada de forma eficaz e profilática. Assim, no que concerne à coletividade, a Constituição brasileira faz menção à sociedade civil, constituída pelas ONGs. Não obstante, a coletividade e o Poder Público devem, conjuntamente, assegurar a defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado almejado pela Constituição, de modo que não se permita o desequilíbrio ambiental. 130 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.2 SOCIEDADE DE RISCO Há muito tempo o mundo se voltou à busca incessante pelo lucro. Atualmente fala-se que passamos a viver a transição para uma sociedade de risco, em que os riscos advindos das atividades econômicas são globais, atingindo todas as classes sociais. Logo, não há o que se falar em tutela do meio ambiente sem expor o problema do risco. Com o desenvolvimento da sociedade há um aumento de riscos, já que a competitividade nos processos de industrialização cada vez mais prioriza produções em massa para suprir uma necessidade imediata da sociedade, sem levar em conta os riscos e consequências das gerações futuras. É certo que o desenvolvimento traz inúmeros benefícios à sociedade, porém, concomitantemente ocasiona riscos que trazem prejuízos à comunidade como um todo. Atualmente, “o modo de produção capitalista, ávido pelo crescimento econômico, a prática desenvolvimentista de modelo expropriatório, a estruturação do Estado e nossa organização político-social expõem o ambiente constantemente ao risco” (TESSLER, 2004, p. 145). Enquanto não se comprovar de maneira irrefutável as consequências que determinada atividade irá trazer ao meio ambiente, a produção não para. O próprio Estado, especialmente quando diz respeito às questões ambientais, procura esconder da opinião pública a existência dos riscos. No mesmo sentido, aponta Morato Leite: Como o desenvolvimento econômico ainda é foco das políticas públicas – o discurso padrão das autoridades – há uma invisibilidade dos riscos ecológicos. Referida invisibilidade decorre do fato de que o Estado utiliza meios e instrumentos para ocultar as origens e os efeitos do risco ecológico, com o intuito de minimizar suas consequências, ou melhor, objetivando transmitir para a sociedade que a crise ambiental está controlada (MORATO LEITE, 2009, p. 57). Tendo a natureza como fonte de matéria prima para a produção industrial, repara-se que são poucos aqueles que se conscientizam do fato de que os causadores do risco hoje, serão as vítimas amanhã. Acontece que a busca pela necessidade momentânea acaba por comprometer o bem-estar futuro. 131 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Como se pode observar, o crescimento econômico é muito almejado, está juridicamente tutelado, mas se torna perigoso se não for estabelecido um ponto de equilíbrio. Deve-se definir, portanto, quais atividades podem ser admitidas ou proibidas de acordo com o risco que causa, verificando o grau de tolerabilidade de se suportar o risco. Ao legislador, cabe sopesar os benefícios, concomitantemente com os perigos supervenientes de determinada atividade, devendo ser vedada ou não pela norma. Pelos motivos já expostos, nota-se que o meio ambiente é mais do que um condicionante da atividade humana, ele faz parte da vida de qualquer indivíduo. Visto isso, resta conscientizar as pessoas da importância da preservação ambiental e valorização de espaços naturais, o que só será possível a partir da educação ambiental. 3 EDUCAÇÃO AMBIENTAL 3.1 ÉTICA AMBIENTAL Tendo em vista que o Direito Ambiental engloba o comportamento humano em face da natureza e seus recursos, a necessidade de se rever os valores da sociedade conforme um novo modelo de desenvolvimento é evidente. Entretanto, tal tarefa não se obtém com facilidade. O Direito deve coexistir com a ética em todos os seus âmbitos, ainda que existam situações divergentes, como algo considerado legalmente aceitável, mas não do ponto de vista moral. No que diz respeito ao Direito, tem-se que a ética possui diretrizes compatíveis com o Direito Natural. Com isso, surge a ideia de uma nova ética, chamada ética ambiental, a qual possui como parâmetro o comportamento da espécie humana considerado como adequado e aceito socialmente, no que concerne ao próprio indivíduo e o meio ambiente. Nesse sentido, Édis Milaré expõe: Direito Natural e Ética, em suas origens, por vezes se confundem, porque ambos estão próximos da matriz originária, isto é, a natureza. Por Ética entenderemos, aqui, a ciência ou o tratado dos costumes que, pelo seu caráter eminentemente prático, pode definir-se como exercício dos bons 132 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE hábitos e comportamentos morais, quer na vida individual, quer na social. A Ética Ambiental realiza esse intento regulando as relações humanas (individuais, profissionais, sociais, institucionais e políticas) com o ecossistema do planeta Terra (MILARÉ, 2013. p. 146-147). Assim, a ideologia de ética que prevalece atualmente, que prioriza o sucesso pessoal e material, deve ser desestimulada, de modo que se possa alcançar o desenvolvimento sustentável em busca do bem-estar social das presentes e futuras gerações. No entanto, para que isso se concretize, é necessária a interação de alguns dos princípios ambientais como norteadores do desenvolvimento sustentável, para que assim, se estabeleça uma nova linha de conduta, como o princípio da participação. 3.2 PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO O princípio da participação estabelece que deve haver uma cooperação entre o Estado e a sociedade no que concerne às políticas ambientais, devendo cada cidadão participar das decisões tomadas pelo Estado, tendo em vista a proteção do meio ambiente como direito de todos. Ademais, o princípio da participação está intimamente ligado ao direito de informação. Existe a necessidade de a população ter acesso à informação e, dessa forma, se conscientizar das questões que envolvem o meio ambiente. A esse respeito, Elida Séguin orienta: A comunicação e a circulação de informações permanentes permitem que os microssistemas se entrelacem provocando a interação de pensamentos, comportamentos e ações. Os embates ambientais objetivam atribuir caráter público ao Meio Ambiente comum a indivíduos e grupos sociais, afastando a odiosa idéia de que um ambiente ecologicamente equilibrado, permitindo o desenvolvimento pleno, é privativo das elites. Para que as lutas ambientais possam acontecer e serem vitoriosas, o direito e o acesso à informação da população são imprescindíveis (SÉGUIN, 2002, p. 288). Tudo isso, encontra-se diretamente relacionado a educação ambiental, prevista na Constituição brasileira, em seu art. 225, §1º, VI, que dispõe que para a 133 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Logo, a educação ambiental fundamentada na ética ambiental é tema relevante no que tange à busca pelo desenvolvimento sustentável. 3.3 EDUCAÇÃO AMBIENTAL FUNDAMENTADA NA ÉTICA AMBIENTAL A educação ambiental é instrumento essencial na implementação de uma política ambiental nos países em desenvolvimento. Entende-se por educação o sustentáculo do Estado Democrático. É a partir da educação que se exerce cidadania e se alcança a dignidade plena. A educação, então, é um meio de preservação ambiental. Nesse viés, a educação ambiental possui a capacidade de conscientizar o ser humano do contexto em que vive, visto que a condição de sua existência integra o meio ambiente, assim, surgindo a percepção da necessidade de uma mudança de postura para que haja uma valorização de todos os ecossistemas. A educação também é considerada um instrumento de defesa da cidadania. O fácil acesso à educação é reconhecido dentro dos Direitos Humanos, e seria a forma de atingir uma possível transformação social. Ocorre que, na realidade, o descaso com a educação vem do próprio governo que, mantendo a sociedade em grau de ignorância, não permite o pleno exercício da cidadania, dando margem à corrupção. Em que pese haja previsão na Constituição Federal da República quanto a promoção da educação ambiental em todos os graus de ensino, o que se verifica é a omissão do Poder Público ao não impor tal determinação constitucional nas instituições de ensino. Por isso, a educação ambiental é importante na construção de uma cidadania participativa, a qual seja capaz de conscientizar todos os indivíduos à adequação da utilização sustentável do meio, a fim de conduzir à melhoria da qualidade de vida juntamente com o equilíbrio do meio ambiente. Pouco mais de dez anos depois da tutela constitucional, foi criada a Política Nacional de Educação Ambiental, definida na Lei nº 9.795, de 27.04.1999, a qual 134 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE veio para dar continuidade em busca da eficácia dos artigos constitucionais que abrangem a educação ambiental, porém de forma mais detalhada para que se possa conduzir tais dispositivos suficientemente. Além disso, a PNEA estabelece o conceito de educação ambiental, logo em seu art. 1º, qual seja “processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”. Nessa perspectiva, tem-se que o processo educativo, no que concerne ao meio ambiente, é uma possibilidade de solucionar os problemas que o próprio ser humano criou, repensando no seu modo de agir, buscando uma renovação de valores como forma de garantir sua vida no planeta. Ainda, como ideia principal se define a Educação Ambiental como incumbência precípua do Poder Público na promoção do exercício da cidadania (MILARÉ, 2013. p. 189). Vale ressaltar que a educação ambiental como princípio constitucional é uma exigência nacional, não englobando apenas o Poder Público, mas compreende uma solidariedade da sociedade com o Estado na proteção ambiental, já que cabe a todos o dever e o direito de zelar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e fundamental à qualidade de vida das gerações atuais e futuras. Contudo, torna-se necessário uma mudança de postura ética ambiental, devendo se voltar à consciência ecológica em todas as suas esferas, não apenas sobre determinada espécie da fauna ou da flora, de um ecossistema específico como se vê atualmente, como garantia da salvação da espécie humana nos tempos que seguem. Com a divulgação da chamada “Carta da Terra” pela UNESCO, no ano de 2000, já se demonstrava a crise ecológica que passava o homem, ilustrando a necessidade de se estabelecer uma ética ambiental como essencial à sadia qualidade de vida de todos os seres que compõem o planeta, tanto na atualidade como no futuro, como dispõe: Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo 135 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações. Portanto, a educação ambiental fundada nos conceitos éticos deve ser cada vez mais estimulada, como maneira de se alcançar o desenvolvimento sustentável, com vista à qualidade de vida de todas as gerações. Ademais, a importância de tal ensino é fundamental à participação de todos e ao efetivo exercício de cidadania, permitindo que se resolvam grande parte dos problemas ambientais no mundo. Por fim, resta evidente que a ética ambiental é de tal relevância que estabelece a própria existência da humanidade, visto que envolve o comportamento e o caráter de toda a comunidade global, forçando a repensar sua organização social. 4 CONSCIENTIZAÇÃO AMBIENTAL COMO MEIO PARA A SUSTENTABILIDADE São poucos os que se atentam de que a destruição do meio ambiente ameaça a existência dos indivíduos ao redor do mundo. Desse modo, são poucos também os que se conscientizam ao fato de que o homem pertence ao meio e não o inverso. Tal ideia compreende da impossibilidade de se alcançar a sustentabilidade de um, sem o outro dar a devida importância à natureza. No entanto, não se pode subestimar a capacidade das pessoas em superar adversidades e se organizar socialmente. Tal organização é essencial na sociedade, cabendo a todos agir de forma correta, de modo que se possa garantir a qualidade de vida das presentes e futuras gerações. 136 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4.1 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL O princípio do desenvolvimento sustentável nasceu na Conferência de Estocolmo de 1972, tendo em vista que a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano dispõe dois princípios que fazem referência à combinação do desenvolvimento com a tutela ambiental. São eles: Princípios 4 – O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio da flora e da fauna silvestres e seu habitat, que se encontram atualmente, em grave perigo, devido a uma combinação de fatores adversos. Consequentemente, ao planificar o desenvolvimento econômico deve-se atribuir importância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres. Princípio 13 – Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional dos recursos e melhorar assim as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque integrado e coordenado de planejamento de seu desenvolvimento, de modo a que fique assegurada a compatibilidade entre o desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente humano em benefício de sua população (ONU, 1972). Em 1974 a ONU criou a Nova Ordem Econômica Mundial, por meio das resoluções 3201 e 3202, as quais tratavam das disparidades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, mas também sobre o conflito entre a proteção ambiental e o direito ao desenvolvimento. As maiores discussões, naquele momento, diziam respeito ao fato de que os países em desenvolvimento não causaram os danos ambientais hoje sentidos e, por isso, não teriam a responsabilidade que os países de primeiro mundo têm, podendo, portanto, buscar livremente seu desenvolvimento. A efetiva expressão do desenvolvimento sustentável foi reconhecida em 1987, após cerca de 900 dias de pesquisas e debates da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela Organização das Nações Unidas, momento em que foi criado o Relatório Brundtland, também chamado “Nosso Futuro Comum” (Our Commom Future) (FOLADORI, 2001). Neste relatório o princípio definiu-se “como desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazer suas próprias necessidades” (ONU, 1987) (tradução nossa). 137 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Outro documento que contemplou o princípio em análise foi a Agenda 21, resultante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992. Apesar do Relatório de Brundtland ter sido o primeiro documento a mencionar o referido princípio, segundo Édis Milaré é a Agenda 21 que é considerada como “a cartilha básica de desenvolvimento sustentável” (MILARÉ, 1997, p. 54), visto que, no que concerne às políticas ambientais, foi ela que colocou o desenvolvimento sustentável no centro das atenções. O desenvolvimento sustentável surgiu justamente pelo fato do mundo ter se dado conta da escassez dos recursos naturais. Enquanto as necessidades humanas são infinitas, exigindo cada vez mais da natureza, os recursos naturais são limitados. Então, elaborou-se esse princípio para que as próximas gerações não sofram com a falta de recursos naturais devido ao anseio da presente geração pela busca do crescimento econômico. Existem duas concepções ideológicas distintas de desenvolvimento sustentável. Conforme a visão antropocêntrica, tem-se uma maior tolerância com relação a sustentabilidade, de modo que proporcione a máxima apreensão de recursos possível, dentro de seus limites de esgotamento. Já sob o aspecto ecocêntrico, poderá haver exploração de recursos somente em situações que não acarretem em modificações do meio. Visto isso, e levando em consideração que a economia precisa de recursos naturais para o seu desenvolvimento, o que se busca para permitir o crescimento econômico seria a harmonização entre extração de recursos e a garantia ao equilíbrio do meio ambiente, evitando a devastação. No entanto, o crescimento não se confunde com o desenvolvimento. A exploração dos recursos naturais daria ensejo ao crescimento imediato, ao mesmo tempo que dificulta o devido progresso e a sobrevivência das próximas gerações. Assim, para o ser humano manter uma vida com dignidade, o desenvolvimento deve estar em harmonia com as esferas social, econômica e ambiental. Desse modo, deve-se compatibilizar os valores constitucionais de desenvolvimento e preservação ambiental. O desenvolvimento econômico, previsto no artigo 3º, inciso III da Constituição Federal de 1988, como objetivo fundamental, 138 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE juntamente com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), buscando o crescimento econômico sem que haja ameaça ao meio ecológico. O desenvolvimento sustentável é uma diretriz a ser considerada na formulação de políticas públicas, sendo assim, diretamente ligada à soberania nacional, tendo em vista que todo país deve possibilitar a capacidade de tomar suas próprias decisões ao formular suas políticas ambientais. Ao se tratar do desenvolvimento sustentável como um direito de todos, devem ser implementadas ações coordenadas para que seja atingido por todos os países, a ponto de não se falar em desenvolvimento como algo independente da sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável é algo a ser buscado por todos. Também deve ser observado no âmbito judicial, analisando os riscos que ocasionará ao meio ambiente. Nessa perspectiva, Vasco Pereira ensina que esse princípio “estabelece a necessidade de ponderar tanto os benefícios de natureza econômica como os prejuízos de natureza ecológica de uma determinada medida, afastando por inconstitucionalidade a tomada de decisões insuportavelmente gravosas para o meio ambiente” (PEREIRA DA SILVA, 2002, p. 73). O reconhecimento do valor do bem jurídico ambiental deve ser considerado tanto por usuários quanto não usuários dos recursos. Deve então haver um parâmetro na determinação do limite que se pode apropriar, garantindo a sustentabilidade e estabelecendo o ponto de equilíbrio entre economia e ecologia. É necessário assimilar que a preservação ambiental está diretamente relacionada à economia. Seu objetivo não é meramente ecológico, mas deve levar em conta que os recursos são essenciais para sustentar o sistema de produção. Contudo, além de esforços institucionais, se deve primar pela conscientização ambiental, a fim de que ocorram mudanças no modo de vida dos indivíduos, aderindo uma cultura de proteção ambiental. Nesse viés, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global afirma: Consideramos que a educação ambiental para uma sustentabilidade eqüitativa é um processo de aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de vida. Tal educação afirma valores e ações que contribuem para a transformação humana e social e para a preservação ecológica. Ela estimula a formação de sociedades socialmente justas e ecologicamente equilibradas, que conservam entre si relação de interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidade individual e coletiva em nível local, nacional e planetário. 139 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Não obstante o reconhecimento da causa ecológica pela população, todo cidadão possui a responsabilidade de estar disposto a arcar com seus custos. Para isso, compete ao Estado incentivar a integração entre mercado, Estado e sociedade para a preservação de recursos naturais, cada um exercendo devidamente suas funções. Ainda, no que tange à relevância da conscientização das questões ambientais por parte da população mundial, Alessandra Galli expõe: Nesta conjuntura, a educação ambiental pode ser capaz de realizar o resgate de valores éticos precípuos que sirvam de base para a formação de pessoas mais conscientes de sua condição de parte integrante do meio, cujas atitudes se reflitam positivamente no meio ambiente, que é indivisível; pessoas que, em decorrência disso, têm direitos e responsabilidades para com a natureza e todos os seus ecossistemas, os quais lhe permitem a existência (GALLI, 2011, p. 37). Entretanto, atualmente, deve-se levar em consideração que a sociedade está voltada para a produção de bens e serviços com vistas ao mercado consumidor. Isto, como preceito de que para alcançar o desenvolvimento humano, se pressupõe que o aumento de consumo e consequente ampliação do mercado garantem uma sensação de satisfação pela população. 4.2 SOCIEDADE SUSTENTÁVEL A preocupação está em torno do consumismo. É certo que o consumo é essencial para o desenvolvimento humano. Ocorre que existe uma diferença entre o consumo e o consumismo. Enquanto o consumo é capaz de suprir as necessidades individuais de cada um, sem que se afete o bem-estar da coletividade, o consumismo transmite uma ideia de compulsividade, resultando numa ameaça para o meio ambiente a nível global. Com isso, há uma desestabilização no equilíbrio econômico e social, aumentando a desigualdade, colocando em risco a harmonia de todo o ecossistema na Terra. Por isso, a Agenda 21 destacou a necessidade de mudanças significativas nos padrões de consumo e de produção. Sobre essa problemática, Édis Milaré defende: 140 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE No que tange aos modelos de produção, o postulado básico se resume no desenvolvimento e emprego de tecnologias limpas que implicam menos consumo de matéria e energia, menor produção de resíduos com maior capacidade de seu reaproveitamento e com menor volume para sua disposição final (MILARÉ, 2013. p. 79). O próprio sistema capitalista estimula constantemente o consumo, e considera a natureza como uma fonte de energia e matéria-prima inesgotável. Posto tudo isso, resta demonstrado a necessária mudança radical nos padrões de produção sustentável e de consumo sustentável para que o desenvolvimento sustentável seja uma realidade. É proveitoso recordar que os recursos naturais, que são finitos e limitados, não são capazes de suprir todas as necessidades ilimitadas e infinitas da espécie humana. Nesse sentido, no que concerne à produção sustentável, deve-se estabelecer uma racionalização do uso de energia e matéria-prima e a preservação dos recursos dentro de seus limites naturais, levando em consideração que o ecossistema é um só e todos dependem dele como única fonte do processo produtivo. Para a devida conservação dos recursos naturais, então, respeitando-se o ecossistema em sua capacidade de se reestruturar, é essencial que haja uma alteração dos estilos de vida, bem como os padrões de civilização, voltados ao consumo consciente. Ainda, a produção deve contribuir de forma que se utilize processos que atenuem os riscos ambientais quando da redução do acúmulo de resíduos, uma produção limpa, visando também aumentar a validade dos produtos. No que tange ao consumo sustentável, mais uma vez se ressalta a importância da conscientização da sociedade como um todo, e o pleno exercício de cidadania, são fatores indispensáveis em todos os países do mundo na busca pelo desenvolvimento sustentável. Por essa razão, o consumidor deve optar por produtos e serviços que estejam em observância a qualidade ambiental e consequente integridade do sistema ecológico, de modo que se evite o desperdício e, quando possível, que se procure formas de sua reutilização. 141 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4.3 ERRADICAÇÃO DA POBREZA À LUZ DA EDUCAÇÃO Na incessante busca pelo desenvolvimento sustentável, estudos apontam que, por um lado, os países desenvolvidos, que possuem renda mais elevada, são os responsáveis por causar o desequilíbrio ambiental. Por outro lado, tem-se que a pobreza, principalmente dos países subdesenvolvidos, é uma das maiores causas da devastação ambiental. O que se nota é que nos países mais pobres a dificuldade em se adotar tecnologias limpas se torna maior pela falta de recursos econômicos, impedindo que ocorram mudanças comportamentais no que diz respeito à proteção do meio ambiente. Isto se deve, também, por não se atender, nos países subdesenvolvidos, as necessidades básicas da população. Assim, para que haja uma preocupação com as condições do meio ambiente, é necessário levar em consideração as condições econômicas e sociais de uma sociedade. Não há como se exigir de uma comunidade que priorize a conservação do meio ambiente com vistas ao bem-estar das gerações futuras quando as suas condições básicas mais urgentes não lhes for proporcionado. A relação entre a pobreza e a degradação do meio ambiente se dá por causa dos diferentes níveis de renda da população, em que a condição de pobreza interfere diretamente nas principais variáveis de sustentabilidade ambiental, limitando, assim, o crescimento econômico. Países que possuem renda mais alta, com maiores níveis de educação, no entanto, possuem padrões de consumo mais limpas no que concerne ao meio ambiente. Consequentemente, aumentam a qualidade ambiental, ocasionando a melhora da qualidade de vida. Com isso, cabe ressaltar que o desenvolvimento sustentável traz não apenas a ideia de preservação ambiental, mas também se prioriza a questão da dignidade de vida do ser humano, a qual só se torna possível a partir do combate à pobreza. Nesse viés, Clóvis Cavalcanti ensina: Para se alcançar a sustentabilidade, mais ativos físicos têm de ser repassados às futuras gerações. Para tornar esse repasse possível, as atuais desigualdades no seio das gerações têm de ser reduzidas. Enquanto a valoração, por si só, não pode solucionar os problemas da equidade 142 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE distributiva, ela poderia ao menos não contribuir para a manutenção das desigualdades. Se contribuir para elas, será mais difícil alcançar a sustentabilidade. É preciso que se desenvolvam novas técnicas no seio da economia ambiental e da ecológica para evitar que elas se tornem parte do problema da insustentabilidade. (CAVALCANTI (Orgs.), 2002, p. 91) Nesse sentido, é fundamental a criação de meios que estimulem políticas públicas de educação ambiental, de forma que não se busque apenas o crescimento econômico, mas que se sobreponha a melhoria dos indicadores sociais, distribuindo, assim, a renda com base nas necessidades fundamentais da população, para que possa gerar a cultura do respeito ao meio ambiente, sem comprometer as gerações futuras. Ao conceituar o desenvolvimento sustentável como uma nova filosofia do desenvolvimento, em outra obra, Clóvis Cavalcanti esclarece: A modernização, não acompanhada da intervenção do Estado racional e das correções partindo da sociedade civil, desestrutura a composição social, a economia territorial, e seu contexto ecológico. Por isso, necessitamos de uma perspectiva multidimensional, que envolva economia, ecologia e política ao mesmo tempo. Isso, no fundo, é o ponto de partida da teoria do desenvolvimento sustentável. Apesar da sua estrutura ainda inacabada, aponta este conceito na direção certa. Quem não quiser se perder no caminho, precisa mais do que boa vontade, ou financiamento externo: precisa de ciência (CAVALCANTI, 2003, p. 29). Portanto, como garantia da própria existência, os seres humanos devem considerar o meio ambiente além de mera fonte de recursos para a produção econômica. Deve-se primar pela valorização do meio ambiente, como forma de sobrevivência com qualidade, sem a necessidade de preocupação com sua possível escassez. Para tanto, será por meio da educação ambiental que se atingirá uma vida digna da sociedade, o respeito pela natureza, a cultura de proteção ambiental, bem como a mudança dos padrões de vida, com vistas aos valores baseados na ética ambiental, ao invés de se olhar apenas para o setor econômico. Com isso, acarretaria na participação de todos os indivíduos na sociedade, de forma organizada, com pleno exercício de cidadania, o que não ocorre atualmente. Ademais, se todas as pessoas fossem educadas, seriam capazes de auxiliar na 143 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE promoção do desenvolvimento sustentável, defendendo o patrimônio ambiental como um direito de todos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme exposto, é crescente a preocupação com o meio ambiente. O movimento em torno do desenvolvimento sustentável é bem abrangente, tendo em vista que, atualmente, aparenta ser um dos principais instrumentos para a proteção ambiental. Deixando de lado o radicalismo daqueles que propõem o esquecimento do crescimento econômico, deve ser estabelecido um equilíbrio que possa reconhecer a realidade econômica, ambiental e social do ser humano, essenciais à relação entre produção econômica e a conservação dos recursos naturais, bem como à dignidade da pessoa humana. Com isso, torna fundamental uma cooperação entre os Estados, de acordo com a previsão constitucional, para o progresso da humanidade91, transformando princípios em ações concretas. A mudança de postura da sociedade deve ser global, já que a degradação ambiental vai além das fronteiras. Para tanto, se deve promover a ética juntamente com o Direito, de modo que todos possam rever seus valores, baseando-se no respeito a natureza e levando em consideração que todos fazem parte do meio ambiente, dele interdependem e sofrem em decorrência da utilização inadequada dos recursos naturais. No entanto, cada Estado deveria criar legislações adequadas de acordo com a sua população, visto que se trata de questão de soberania nacional, devendo normatizar a bioética para que possa ser difundida. Outra questão importante diz respeito a educação ambiental fundamentada na ética ambiental. Para que se alcance o desenvolvimento sustentável, é preciso conscientizar os indivíduos da relevância do meio ambiente, a fim de garantir o equilíbrio ambiental e maior qualidade de vida. Ocorre que isso só é possível por meio da educação ambiental. 91 Cf. artigo 4º, IX, da Constituição da República. 144 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Portanto, tal processo educativo trata de uma possibilidade de solucionar as preocupações atuais, devendo ser constantemente estimulado como forma de assegurar a existência humana no planeta, promovendo o desenvolvimento sustentável. Ademais, uma questão relevante ao desenvolvimento sustentável é a tutela da dignidade da pessoa humana, que só é possível a partir da erradicação da pobreza. Ao se pensar na ideia de desenvolvimento, tem-se diversas variáveis que influenciam na qualidade de vida da sociedade. Em vista disto, é fundamental a formação de políticas que não eliminem o crescimento econômico, mas que priorize a melhoria dos indicadores sociais necessários à população, gerando, assim, a cultura de respeitar a natureza, satisfazendo a geração presente, sem comprometer as futuras. O Brasil, felizmente, já possui em seu ordenamento alguns instrumentos de incentivo ao desenvolvimento sustentável. Todavia, há muito a ser feito. Para a efetividade das leis, bem como a melhoria da qualidade de vida, é preciso o fortalecimento da sociedade, de tal maneira que, por meio da educação ambiental, ocorra uma mudança no caráter da comunidade, gerando uma sociedade sustentável sem comprometer as perspectivas das futuras gerações. REFERÊNCIAS AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Direito ao meio ambiente e participação popular. Brasília: Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal/ Ibama, 1994. BRASIL. Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 27 abr. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso em: 31 mar. 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Disponivel em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/tratado.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2015. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Carta da Terra. Disponível em: <www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/carta_terra.doc>. Acesso em: 31 mar. 2015. 145 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato; (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. CAVALCANTI, Clóvis. Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez, 2003. CAVALCANTI, Clóvis; (Orgs.). Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. 4. ed. São Paulo: Cortez: Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2002. FOLADORI, Guilhermo. Limites do Desenvolvimento Sustentável. Tradução de Marise Manuel. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001. GALLI, Alessandra. Educação ambiental como instrumento desenvolvimento sustentável. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008. para o LEITE, José Rubens Morato. Estado de Direito Ambiental: uma análise da recente jurisprudência do STJ sob o enfoque da hermenêutica jurídica. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 14, v. 56, p. 55-92, out-dez/2009. MILARÉ, Edis. Agenda 21: A Cartilha do Desenvolvimento Sustentável. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 2, v. 5, p. 53-55, jan-mar/1997. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ONU. Declaração da Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente Humano. Estocolmo, 1972. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-deestocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html>. Acesso em: 10 mar. 2015. ONU. Nosso Futuro Comum: Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Oslo, 1987. Disponível em: <http://www.un-documents.net/ocf02.htm>. Acesso em: 10 mar. 2015: “Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” PEREIRA DA SILVA, Vasco. Verde Cor de Direito. Coimbra: Editora Livraria Almedina, 2002. SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. TESSLER, Luciane Gonçalves. Tutelas jurisdicionais do meio ambiente: tutela inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento na forma específica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil; 9). 146 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO THE SECURITY DISCOURSE IN DEMOCRATIC STATE OF RIGHT Cleiton Henning da Fonseca92 Roosevelt Arraes93 SUMÁRIO Resumo 1. Introdução 2. Evolução e Conceito do Estado Democrático de Direito 3. Discurso da Segurança 4. Reflexos do Discurso da Segurança no Estado Democrático de Direito 5. Considerações Finais Referências. RESUMO A presente pesquisa tem por objetivo demonstrar a relação do discurso da segurança no Estado Democrático de Direito, procurando delimitar o atual paradigma estatal, pois é atribuído a ele uma diversidade de sentidos, assim estando em uma zona de incerteza. Delimitando o conteúdo do Estado Democrático de Direito, procurou-se compreender os fundamentos e os reflexos do discurso da segurança, esse discurso legitima ações que podem ser enxergadas em dois planos: o primeiro é o declarado onde se legitimam ações contrarias ao Estado Democrático de Direito, um exemplo é o Direito Penal do Inimigo, o segundo é velado onde utiliza-se da retórica baseada na segurança para legitimar ações de Estado de Exceção em plena vigência do Estado Democrático de Direito, em tempos de normalidade, utilizando de poderes especiais para agir, sem o respeito a certos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição. Sem limites claros e analise sobre os fundamentos e objetivos da relação deste discurso da segurança no Estado Democrático de Direito há a chance de ocorrer desrespeito e por consequência, desnaturalização e negação de paradigma do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito, Discurso da Segurança, Direitos Fundamentais, Direito Penal do Inimigo, Estado de Exceção. 92 Acadêmico de Direito no Centro Universitário Curitiba e integrante do grupo de pesquisa Justiça Política no Estado Democrático de Direito. 93 Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004), mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional, eleitoral, penal e administrativo). 147 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT This research aims to demonstrate the security speech link on the democratic rule of law and seeks to define the current state paradigm, it is assigned to it a variety of meanings, being in an area of uncertainty. Delimiting the content of the democratic rule of law, we tried to understand the fundamentals and the security discourse reflexes, this discourse legitimizes actions that can be sights on two levels: the first is declared where legitimate actions contrary to the democratic rule of law an example is the Criminal Law of the Enemy, the second is hidden where it is used based on the security rhetoric to legitimize State of Exception of shares in full force the democratic rule of law, in times of normality, using special powers to act without respect to certain rights and guarantees provided for in the Constitution. Without clear boundaries and analysis on the fundamentals and this discourse of security objectives in respect of democratic rule of law there is the chance of disrespect and therefore denaturalization and denial of democratic rule of law paradigm. Keywords: democratic rule of law, discourse of security, Fundamental Rights, Criminal Law of the Enemy, State of Exception. 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como objeto a análise o discurso da segurança dentro Estado Democrático de Direito, bem como entender a sua repercussão na ordem jurídica. O método escolhido para conhecer e analisar o tema foi o dedutivo, pois se constrói uma premissa maior com o Estado Democrático de Direito, enquanto o discurso da segurança ocupa lugar como premissa menor, de qual se faz um exame lógico para extrair uma conclusão, entendendo assim seu papel e suas consequências. O Estado Democrático de Direito analisado nesta pesquisa, exige uma democracia substancial em conjunto com princípios do tradicional Estado de Direito. Em outras palavras é um modelo estatal onde o poder é exercido pelo povo de forma direta ou por seus representantes, limitado ao respeito e à consideração aos direitos fundamentais, observando ainda limites como a separação das funções do poder e a primazia da lei sobre os atos discricionários. Uma vez delimitada a premissa maior, cabe definir o conteúdo do discurso político da segurança. Este tipo de discurso aparece em nosso dia-a-dia de maneira quase natural. É improvável passar um dia sem que ao menos alguém invoque o discurso para pedir providências ao Estado. Como consequência as tais providências acabam tornando-se medidas que em alguns casos extrapolam os limites e violam direitos e garantias fundamentais. 148 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A segurança é um dever do Estado, porém para conseguir satisfazer os anseios da coletividade, utiliza-se de ferramentas e meios inadequados. Dentro de uma lógica de um Estado Democrático de Direito, muitas das ações que são legitimadas pelo discurso da segurança são contrárias e, portanto, incompatíveis, com a instituição definida na primeira parte do trabalho. A segurança, como foi referido acima, é um dever a ser cumprido pelo Estado, porém não é seu fim último, como era em modelos estatais anteriores, como na teoria de Estado de Hobbes, no Estado Absolutista, sendo assim injustificáveis a aplicação de justificativas de caráter mais violento, pois encontramo-nos em um estado de normalidade jurídica e não em um Estado de Exceção. Conforme se evidenciará a seguir, o discurso da segurança pode ser encontrado em dois planos: o primeiro é quando o discurso é aplicado no plano normativo ou declarado, como por exemplo o Direito Penal do Inimigo que se baseia em uma busca por segurança cognitiva e elenca uma dualidade entre cidadão e inimigo. O segundo é um plano de fato ou velado quando o discurso é utilizado para legitimar ações de exceções em contexto de normalidade jurídica, como por exemplo o Estado de Exceção de Agamben. Delimitando os fundamentos e as ações que se balizam no discurso da segurança, é necessário realizar um exame de compatibilidade com o Estado Democrático de Direito obtendo-se assim uma conclusão. A par o discurso é que se investigara se é possível a coexistência dos discursos e ações analisadas na premissa menor dentro do atual paradigma de Estado partilhados pelos países ocidentais. 2 EVOLUÇÃO E CONCEITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O Estado de Direito é o antecessor do Estado Democrático de Direito, sendo um conceito necessário para o desenvolvimento da pesquisa, identificando características básicas desse instituto, para que sirva de alicerce para seu sucessor. Porém, essa visão não é uníssona, para diversos autores se mantem o termo Estado de Direito com conteúdo diverso de sua noção clássica e com conteúdo do Estado Democrático de Direito, realizado essa ressalva passamos a sua evolução. 149 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O Estado de Direito é um dos conceitos mais controversos da Teoria do Estado, da política e especialmente no direito constitucional. Trata-se de um instituto recente na história do ocidente, tanto que o termo surge apenas no século XIX. Suas origens em culturas políticas-jurídicas diferentes gera uma dificuldade em torno de um conceito analítico preciso. Com isso em vista, Danilo Zolo lembra a lição de Carl Schmitt: “o termo ‘Estado de Direito’ pode significar coisas tão diversas como termo ‘direito’ e também coisas tão diversas como são numerosas modalidades organizativas implícitas no termo ‘estado’” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 7) A advertência de Carl Schmitt, demonstra um caráter altamente volátil, sobre as premissas utilizadas durante a pesquisa, para que se delimite um conceito abalizado sobre Estado de Direito. Para compreender a natureza do Estado de Direito, necessitamos levar em conta suas origens com o Rechtssaat alemão, a Rule of Law inglês e o L’État legal francês em suas linhas gerais. A expressão Rechtssat surgiu no século XIX, isto é, o Estado de direito é caracterizado pelo “compromisso entre a doutrina liberal, sustentada pela burguesia iluminada, e a ideologia autoritária das forças conservadoras” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 11) Os traços essenciais desse modelo, o caracterizam como um Estado liberal de direito. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho: “o Estado de direito é um Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança públicas.” (CANOTILHO, 2011, p. 97, grifo do autor) Ele continua apontando os traços jurídicos considerados essências desse modelo estatal: “o Estado de Direito é um Estado liberal de Direito. Contra a ideia de um Estado de Polícia que tudo regula e assume como tarefa própria a prossecução da ‘felicidade dos súbditos’” (CANOTILHO, 2011, p. 97, grifo do autor) A limitação dos poderes do Estado pelo Direito, estende-se ao próprio soberano, ele é alcançado pelo império da lei, ou seja, ele perde essa condição e passa a figurar como servidor público. 150 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE As atividades do Estado seguem dois princípios basilares que limitam seus atos, o primeiro é o princípio da legalidade administrativa, onde os poderes públicos são obrigados a atuar nos termos da lei e o princípio da proibição do excesso. O sistema inglês, o Rule of law, tem aspectos marcantes, dentre eles a igualdade jurídica, independentemente de suas condições materiais. Essa igualdade, segundo Danilo Zolo, se estende até mesmo ao poder soberano. Nesse sentido: “a igualdade jurídica dos sujeitos se opõe, portanto, não a atribuição de privilégios pessoais, mas também ao exercício arbitrário ou excessivamente discricional do Poder Executivo. ” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 15) A ideia deste modelo fica clara nas palavras de Wiliam Edward Hearn citado por Zolo: “o vento e a chuva podem entrar na cabana do pobre, o rei não. Todo cidadão inglês, não importa se funcionário público ou nobre, está submetido, de igual modo à lei e aos juízes ordinários” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 14) Além da igualdade, a partir da Carta Magna de 1215, existe a obrigatoriedade da observância do devido processo legal previamente regulado, onde os costumes e leis tem proeminência ao uso discricionário do poder. Canotilho, adverte sobre a dificuldade de se falar desse modelo, entretanto assinala quatro dimensões básicas: Em primeiro lugar, na sequência da Magna Charta de 1215, a obrigatoriedade da observância de um processo justo legalmente regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua liberdade e propriedade. Em segundo lugar, Rule of Law significa a proeminência das leis e costumes do “país” perante a discricionariedade do poder real. Em terceiro lugar, Rule of Law aponta para a sujeição de todos os atos do executivo à soberania do parlamento. Por fim, Rule of Law, terá o sentido de igualdade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos a fim de estes aí defenderem os seus direitos segundo os princípios de direito comum dos ingleses (Common Law) e perante qualquer entidade (indivíduos ou poderes públicos). (CANOTILHO, 2011, p. 93-94, grifo do autor) O Rule of Law é um marco, pois ele é um sistema que comunga de ideias essenciais ao Estado de Direito, mesmo não tendo a lei como fonte primordial do Direito como no sistema baseado no direito romano. O modelo de Estado de direito francês, se assentou na ideia de L’ Etat legal, e pode ser descrito como uma ordem jurídica hierarquizada. Essa foi a formulação 151 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE inicial do conceito do Estado de Direito, um Estado constitucional que acabou por se transformar em um Estado legal ou de legalidade. André Ramos Tavares delineia essa concepção de Estado Legalista: A estrutura do Estado, seu reconhecimento, legitimidade, funcionamento e objetivos construíram-se, nesse momento, em torno da ideia da supremacia da lei formal escrita. O Estado alicerçado na exaltação da lei, com todos os consectários acima apontados, deve ser reconhecido, pois, como um Estado “legalista” ou “legatário”. (TAVARES, 2014, p. 45) Nesse modelo estatal existe a primazia da lei, sustentado por um duplo ponto de vista da perspectiva política: a) os cidadãos têm o direito que a lei será editada somente por órgão de representação legislativa, e este é vinculado à vontade geral; b) a lei é fonte hierárquica superior, pelo fato de ser a manifestação da vontade geral, assim os atos da administração devem obedecer um juízo de conformidade, ou seja princípio da legalidade administrativa. Após essas breves considerações sobre a origem do Estado de direito, podemos extrair algumas linhas comuns desse paradigma. Uma das linhas principais desse instituto é a limitação do poder, ou seja, o objetivo de conter seus abusos. Estabelece-se assim um Estado organizado e limitado pela ordem jurídica, para favorecer os princípios liberais emergentes, e criando o princípio da legalidade (formal). Diante as considerações, podemos descrever o Estado de direito como um modelo de organização, no qual o meio político se submete as regras instituídas pelo Direito (princípios e regras), para diluir o poder afim de coibir arbítrios, seja pela separação dos poderes, seja pela legalidade. Danilo Zolo define: Em termos analíticos, pode-se afirmar que o Estado de direito é uma figura jurídico-institucional que resulta de um processo evolutivo secular que leva à afirmação, no interior das estruturas do Estado moderno europeu, de dois princípios fundamentais: o da “difusão do poder” e o da “diferenciação do poder”. (COSTA; ZOLO, 2006, p. 31) A definição de Zolo é um pouco abstrata, porém conseguimos encontrar nesse conceito dois elementos chaves: o primeiro à limitação no poder discricionário, em face do império da lei; o segundo as funções do Estado são 152 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE divididas (separação de poderes). Essas duas características comuns, estão presentes no conceito de Jorge Miranda: É o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (seja a mera legalidade formal, seja – mais tarde – a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de ação dos governantes. (MIRANDA, 2002, p. 71) Porém, no atual desenvolvimento do pensamento jurídico, com o movimento de efetivação dos direitos fundamentais e valores democráticos, o instituto se vê em crise, sendo aprimorado na versão do Estado democrático de direito (ou Estado democrático constitucional). O Estado democrático de direito é uma evolução substancial, uma vez que une a democracia com o Estado de direito, de maneira que nem sempre condizem com os ideais liberais do clássico Estado de Direito, Portanto, é necessário a lição de José Joaquim Gomes Canotilho: O Estado Constitucional, para ser um estado com as qualidades identificadas, pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de direito democrático. Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático. Estas duas qualidades surgem muitas vezes separadas. Fala-se em Estado de direito, omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático silenciando a dimensão de Estado de direito. Esta dissociação corresponde, por vezes, à realidade das coisas: existem formas de domínio político onde este domínio não está domesticado em termos de Estado de direito e existem Estados de direito sem qualquer legitimação em termos democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito. (CANOTILHO, 2011, p. 93, grifo do autor) A democracia segundo José Afonso da Silva é “realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana.” (SILVA, 1988, p.7) Para Norberto Bobbio o conceito de democracia é “conjunto de regras (primarias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.” (BOBBIO, 2000, p. 30) 153 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O conceito de democracia de Norberto Bobbio e de vários outros autores que adotam uma teoria procedimental é sintetizado por Luigi Ferrajoli na seguinte passagem: A democracia vem frequentemente concebida, de acordo com o significado etimológico ou por intermédio como o poder do povo de assumir, diretamente ou por intermédio de representantes, as decisões públicas. Esta noção de democracia pode ser chamada formal ou procedimental, pois identifica a democracia unicamente como fundamento nas formas ou nos procedimentos idôneos a legitimar as decisões como expressão, direta ou indireta, da vontade popular: porque a identifica, em outras palavras, com fundamento no quem (o povo ou seus representantes) e no como (o sufrágio universal e a regra da maioria) das decisões, independente de seus conteúdos, isto é, daquilo que venha a ser decidido. (FERRAJOLI, 2014, p. 17, grifo do autor) Embora os conceitos apresentados de democracia tenham um caráter diferente, um se refere à substancia e outro traz uma concepção procedimental, conforme será comentado adiante, a partir da visão de democracia substancial de Ferrajoli. Bobbio afirma que o “fim que nos move quando queremos um regime organizado democraticamente é, numa única palavra, a igualdade” (BOBBIO, 2013, p. 38) Sobre a igualdade, fim último para um povo almejar e buscar uma democracia, devemos lembrar a lição de Luigi Ferrajoli, que em nosso atual paradigma constitucional, exige uma igualdade substancial: [...] principio de estricta legalidad (o de legalidad substancial). O sea, con el sometimiento también de la ley a vínculos ya no sólo formales sino substanciales impuestos por los principios y los derechos fundamentales contenidos en las constituciones. (FERRAJOLI, 2009, p. 53) O Estado de Direito, atualmente é considerado como meio de proteção de direitos subjetivos, uma vez considerando o séc. XX, marcado por duas guerras mundiais e vários movimentos de afirmação de direitos, afim de evitar novas atrocidades. Norberto Bobbio afirma essa nova visão do Estado de Direito: “chamamos de ‘Estados de Direito’ os Estados onde funciona regularmente um sistema de 154 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE garantias dos direitos do homem: no mundo existem, Estados de Direito e Estados não de direito” (BOBBIO, 2004, p. 40) Em aspectos políticos, assistimos à queda dos regimes socialistas, embora alguns ainda resistam e também enxergamos várias crises em estados democráticos. Danilo Zolo assinala: “após o eclipse do ‘socialismo real’ e a crise dos institutos representativos, a noção de Estados de Direito retorna ao Ocidente em estreita ligação com a doutrina dos direitos subjetivos (ou “direitos fundamentais”)” (COSTA; ZOLO, 2006, p. 4) O Estado de direito hoje não se limita as características básicas de dispersão e divisão de poder. Ele adquire um caráter estreitamente ligado aos direitos fundamentais, que na visão de Luigi Ferrajoli é de garantir os direitos dos mais débeis e fracos, amplamente difundido em sua teoria garantista. Para ele os diretos subjetivos, tanto os de ordem liberal ou social, são garantias dos cidadãos perante o poder estatal, respeitando os interesses dos mais fracos como os dos mais fortes, garantindo a tutela dos grupos de minorias marginalizadas e discrepantes, respeitando as maiorias integradas. O pensamento desse autor chega ao ponto de atribuir novo significado a democracia, numa distinção baseada em substancia e forma: Llamaré democracia substancial o social al (estado de derecho) dotado de garantías efectivas, tanto liberales como sociales, y democracia formal o política al (estado político representativo), es decir, basado en el principio de mayoría como fuente de legalidad. (FERRAJOLI, 2006, p. 864, grifo do autor) A democracia procedimental ganhou novo folego como teoria para contrapor o ativismo judicial norte americano, essa teoria busca limitar o exercício de revisão constitucional, com fundamento que as decisões de natureza política, estavam sendo decidas pelo judiciário. Segundo essa teoria, tem que se criar ferramentas e aperfeiçoar as instituições democráticas, dando privilégio a direitos políticos, pois o poder judiciário não detém legitimidade, considerada por eles como forma de proteção a democracia. 155 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Estefânia Maria de Queiroz Barboza e Katya Kozicki conceituam: “a chamada “democracia procedimental” se funda na defesa do procedimento democrático, na medida em que privilegia os direitos que garantem participação política e processos deliberativos justos, independente do resultado a ser alcançado.” (BARBOZA; KOZICKI, 2006) A democracia procedimental, baseia na premissa que com um procedimento adequado, fundamentado na justiça política, servira de alicerce para a melhoria do status vigente. A democracia substancial é pautada por conjunto de princípios que norteiam desde a elaboração até a aplicação do direito posto, com vistas de efetivar princípios consagrados nos textos constitucionais (direitos e garantias fundamentais), conforme o conceito de democracia de José Afonso da Silva e Luigi Ferrajoli. Luigi Ferrajoli assinala o nexo causal que demonstra a existência de uma “democracia constitucional” ou substancial: De fato, por força da mutação de paradigma gerada pelo constitucionalismo rígido na estrutura das democracias, inclusive o poder legislativo e o poder de governar são juridicamente limitados e vinculados com relação não somente às formas, mas também à substancia do seu exercício. Estes limites e vínculos são impostos a tais poderes pelos direitos constitucionalmente estabelecidos, os quais identificam aquela que podemos chamar de esfera do indecidível: a esfera daquilo que não é decidivel, ou que não pode ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos de liberdade, os quais têm o poder de tornar inválidas as decisões com eles contrastantes, e a esfera daquilo que não pode não ser decidido, ou que deve ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos sociais, os quais impõem como devidas as decisões destinadas a satisfazêlos. Consequentemente, como estes limites e vínculos de conteúdo contradizem a noção puramente política da democracia, fundada nas regras somente formais que consentem a virtual onipotência das maiorias, devemos admitir que as democracias constitucionais hodiernas não são, segundo tal noção, democracias. (FERRAJOLI, 2014, p. 18-19, grifo do autor) A democracia procedimental, é visível principalmente nos Estados Unidos da América, enquanto a substancial pode ser encontrada em nosso país, em que a Constituição impõe ao nosso Estado a criação de garantias para tornar efetivo os direitos fundamentais. 156 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Baseado na evolução dos direitos humanos, ou sua vertente constitucional positivada, ou seja, nos direitos fundamentais que se fixaram dentro do Estado de Direito, tornando parte indissolúvel do mesmo. Anteriormente, este modelo jurídico-institucional era visto a partir de uma legalidade formal, que tem por objetivo limitar a atuação estatal, devido em muito as origens liberais. É necessário hoje, a existência de uma legalidade substancial, nela os direitos fundamentais impõe um dever de respeito e consideração do Estado, que deve trabalhar de forma a dar efetividade aos direitos presentes em cartas constitucionais. Os direitos fundamentais são imprescindíveis para essa formulação de Estado Democrático de Direito, por isto foi proposto usar o conceito teórico e formal do Luigi Ferrajoli: Son <<derechos fundamentales>> todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a <<todos>> los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar; entendiendo por <<derecho subjetivo>> cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por <<status>> la condición de un sujeto, prevista asimismo por una norma jurídica positiva, con presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas. (FERRAJOLI, 2009, p. 19, grifo do autor) Danilo Zolo sintetiza a prevalência desses direitos fundamentais afim de se criar um Estado Democrático de Direito real e não apenas uma noção vazia, embora não atinja todos os direitos tutelados pela nossa ordem constitucional ou tratados internacionais que abordem direitos humanos: Essa noção retorna como uma teoria político-jurídica que põe em primeiro plano a tutela dos ‘direitos do homem’, aqueles direitos que uma longa série de constituições nacionais e de convenções internacionais definiu no decorrer dos séculos XIX e XX, em particular o direito à vida e à segurança pessoal, à liberdade, à propriedade privada, à autonomia de negociação, aos direitos políticos. (COSTA; ZOLO, 2006, p. 5, grifo nosso) Concluindo, a noção mais adequada do Estado democrático de direito possui estreita ligação com os direitos fundamentais, entendidos não somente os de primeira geração, mas também das gerações subsequentes, que devem ser 157 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE compreendidos também a luz dos direitos humanos, pois mesmo com fontes diferentes, partilham de uma finalidade comum. A noção apresentada ao longo desse trecho, procura desenvolver o Estado Democrático de Direito, dentro de um prisma de democracia substancial desenvolvida por Luigi Ferrajoli. Pois, se olharmos a uma concepção formal como apresentada por Paulo Hamilton Siqueira Júnior: “no Estado Democrático de Direito o povo participa dos negócios do Estado. ‘O mero Estado de Direito decerto controla o poder, e com isso protege os direitos individuais, mas não garante a participação dos destinatários no seu exercício.’” (SIQUEIRA JUNIOR, 2006, p. 165) Diferente dessa acepção formal, Eugênio Pacelli de Oliveira, delimita uma noção garantista de: “Estado Democrático de Direito orientada pela necessidade de reconhecimento e afirmação da prevalência dos direitos fundamentais, não só como meta de política social, mas como critério de interpretação do Direito.” (OLIVEIRA, 2014, p. 32) Portanto, o Estado Democrático de Direito é aquele que além de promover a dispersão do poder (separações de funções e princípio da legalidade), afim de evitar abuso dos ocupantes de cargos do poder, deve basear-se na soberania do povo e da efetividade aos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição, uma vez que tais postulados são a tradução do exercício real da soberania popular, exercido pelo poder constituinte. 3 DISCURSO DA SEGURANÇA O discurso da segurança é recorrente no cotidiano de qualquer cidadão, os meios de comunicação fartamente difundem notícias sobre o aumento de violência, sobre grupos terroristas. A importância dele para a presente pesquisa é que esse discurso é utilizado para legitimar ações políticas que em determinados casos podem violar direitos fundamentais. 158 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A segurança é um dever do Estado, decorrente do direito fundamental a segurança, entretanto os meios para se garantir a segurança devem ser pautados dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito. Agamben assinala o uso da segurança: A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo...), mas nunca seu propósito: governar as populações. (AGAMBEN, 2014) Embora Agamben demonstre uma visão pessimista seu discurso não é uma voz isolada, André Luís Callegari e Fernanda Arruda Dutra em pesquisa sob Direito Penal do Inimigo, descreve a associação do uso político da segurança como forma de legitimar ações do poder: É de conhecimento de todos que durante muitos anos, especialmente nos Estados autoritários, em nome da segurança nacional, a promoção do uso da violência além dos limites impostos pelo Estado de Direito foi utilizada. Novamente, hoje, alguns Estados têm adotado estratégias repressivas e punitivistas, justificando o (ab)uso da violência em nome da segurança nacional como forma de contenção do fenômeno criminal. A pressão social provocada pela insegurança que ronda a sociedade tem servido como justificativa para gerar a legitimação necessária para que o Estado aumente sua “potestade”, ampliando seu espectro de controle penal (através da criação de novos tipos penais e aumento de pena – no caso do direito penal material) na luta contra a criminalidade suprimindo direitos e garantias ao ponto de admitir-se a perda do status de pessoa, como defende Jakobs. (CALLEGARI; DUTRA, 2007, p. 431-432) Desta forma cabe a presente pesquisa delimitar minimamente os eventos onde o discurso da segurança é manifestado, para posteriormente discutir quais reflexos existem na aceitação de medidas baseadas em tal premissa. Para essa pesquisa trataremos o discurso da segurança no plano abstrato, como aquele discurso de segurança que legitima a positivação de medidas de segurança através de lei, como ocorre no Direito Penal do Inimigo, em um segundo plano velado, trataremos o discurso da segurança como ações sob aparência de legalidade que agem como se estive-se dentro de um Estado de Exceção em período de normalidade. 159 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Portanto iniciaremos comentando o Direito Penal do Inimigo, onde o discurso da segurança é positivado. O Direito Penal é área onde o poder encontra-se de forma mais visível, portanto mais sucessível a abusos. O discurso de um Direito Penal do Inimigo considera determinada categoria ou sujeito como ser danoso/perigoso à sociedade devendo-se aplicar normas diferentes para esses seres humanos. Segundo professor Eugenio Raúl Zaffaroni: Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, tornase incompatível com a teoria política do Estado de Direito. Com isso, introduz-se uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais internacionais do Estado de Direito, ou seja, com a teoria política deste último. (ZAFFARONI, 2013, p.11, grifo nosso) Baseando-se na premissa de Zaffaroni é possível constatar que a lógica de inimigos da sociedade é incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, esta lógica é compatível com um modelo de Estado absoluto, portanto incompatível em sua essência. Francisco Muñoz Conde expressa o postulado de Günter Jakobs: A necessidade de reconhecer e admitir que nas sociedades atuais junto a um Direito Penal dirigido à única tarefa de restabelecer através da sanção punitiva a vigência da norma violada pelo delinquente e a confiança dos cidadãos no Direito (segurança normativa), inspirando em conceitos mais ou menos flexíveis ou funcionais, porém respeitosos e adequados ao sistema de garantias e limites do poder punitivo no Estado de Direito, havia outro Direito Penal, um Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) , pelo qual o Estado diante de determinado sujeitos, que de forma grave e reiterada se comportam contrariamente às normas básicas que regem a sociedade e constituem uma ameaça para a mesma, tem que reagir de forma muito mais contundente para restabelecer a confiança no direito e no próprio sistema, não de imediato pela segurança e confiança normativa e sim pela “segurança cognitiva”. (CONDE, 2012, p. 25) Conde assinala a mudança de paradigma do Direito Penal do Inimigo que diferentemente do Direito Penal Clássico busca uma segurança normativa esse modelo busca uma segurança cognitiva, porém como consequência dessa busca de 160 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE eficácia penal, criação de um binômio cidadão-inimigo, ensejando tratamento diferenciado acaba por violar direitos fundamentais do sujeito. Dentro de um Estado Democrático de Direito a eleição de determinadas pessoas ou grupos como inimigos, deixando de aplicar as garantias fundamentais descritas nas cartas constitucionais, culmina na formação de um ser paradoxal pois ele não é um cidadão, cabendo em ultima ratio o status de coisa. Isso faz lembrar do emblemático habeas corpus de Sobral Pinto que invocou a lei de proteção de animais, pois o tratamento na época era tão desumano que nem mesmo um animal deveria sofrer o que os pacientes sofriam. Após essas breves considerações passamos a análise do Estado de Exceção de Agamben, aquele Estado de Exceção velado. O Estado de exceção é um instituto recente e pouco estudado, para explicar o mesmo existem duas correntes que explicam esse instituto de crise: uma considera que esse instituto é político, enquanto a segunda corrente enxerga como entidade jurídica. A princípio o Estado de Exceção positivado em nosso direito é um tema pouco estudado, sendo assim um campo inexplorado. Agamben ao trabalhar o tema, admite a inexistência de uma teoria do Estado de Exceção no direito público. Segundo ele: Tantos juristas quanto especialistas em direito público parecem considerar o problema muito mais como uma quaestio facti do que um genuíno problema jurídico. Não só a legitimidade de tal teoria é negada pelos autores, que retomando a antiga máxima de que necessitas legem non habet, afirmam que o estado de necessidade, sobre o qual se baseia a exceção, não pode ter forma jurídica; mas a própria definição do termo tornou-se difícil por situar-se no limite entre a política e o direito. (AGAMBEN, 2004, p. 11) Porém, qual a natureza desse instituto? Agamben citando Saint-Bonnet, demonstra uma opinião generalizada, onde ele constitui um “ponto de desequilíbrio entre o direito público e fato político.” (AGAMBEN apud SAINT-BONNET , 2004, p.4) A formulação mais aceita sobre o tema é a discutível teoria do Carl Schmitt, que pode ser sintetizada, na expressão de que o soberano é aquele que tem poder de decidir sobre o Estado de Exceção, ou seja dentro do campo político, soberano é aquele que decide no período de instabilidade. 161 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Daniel Ivo Odon, assinala a visão de Carl Schimitt “o estado de exceção como meio adequado à definição jurídica de soberania.” (ODON, 2012, p. 249) O conceito de Schimitt não consegue explicar o tema em toda sua profundidade, porem nos serve como ponto de partida, mostrando que hoje em dia é necessário estabelecer limites a essa zona nebulosa entre direito e política. Segundo Agamben “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal.” (AGAMBEN, 2011, p.12) O tema do Estado de Exceção paira sobre uma zona de incerteza, entre o político ou jurídico e enquanto não houver limites razoáveis, ele pode servir a vontade dos ocupantes de cargos eletivos do Estado. Ivo Dantas, adverte: “muitas vezes, por detrás das justificativas de salvação do Estado, ocultam-se interesses absolutamente privados, que pretendem utilizar, em seu benefício, o recurso aos poderes extraordinários.” (DANTAS, 1989, p.29) Para Agamben, hoje ocorre o que Dantas advertia, o uso abusivo dos poderes extraordinários: Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo normal e permanente. (AGAMBEN, 2014) O discurso da segurança segundo Agamben surge como técnica de governo para criar um Estado de Exceção velado, mudando o paradigma do Estado Democrático de Direito para um Estado de Exceção não declarado e perpétuo. De acordo com o autor, a partir do decurso do tempo as instituições democráticas se transformaram. Na medida que em sua origem nasceu para ser excepcional, o Estado de Exceção transformou-se em regra: A partir do momento que “o estado de exceção[...]tornou-se regra” (Benjamim, 1942, p. 697), ele não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica. (AGAMBEN, 2011, p. 18) Vislumbrando essa mudança de paradigma, podemos dizer que existe dois Estados de Exceções: um Estado de Exceção declarado e fundamentado em uma 162 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE normal constitucional que autoriza medidas e poderes extraordinários durante determinado período e que suspende apenas alguns direitos fundamentais para conseguir retomar ao ambiente normal, assim retornando a um estado democrático existente, ocorrendo apenas uma suspensão do regime normal devido causas extraordinárias. O segundo é um Estado de Exceção velado, ou seja, não declarado nele a partir do discurso da segurança que serve como fundamento e paradigma, o governante age como se houve-se poderes especiais, indo para além dos limites constitucionais, ensejando em alguns casos violações de direitos fundamentais. Portanto, constado a existência de um Estado de Exceção não declarado e Direito Penal do Inimigo são manifestações de um discurso da segurança, sua relação e consequências no Estado Democrático a Direito serão analisadas a seguir. 4 REFLEXOS DO DISCURSO DA SEGURANÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Durante a pesquisa foi desenvolvido um conceito de Estado Democrático de Direito e das formas de manifestações do discurso da segurança, deste modo cabe realizar um exame de compatibilidade entre as formas de manifestações ventiladas e esse paradigma de Estado. O discurso da segurança na prática é aplicado como uma razão de Estado, porém esse modelo de Estado de segurança onde o paradigma é a busca da segurança, tem suas premissas de um modelo estatal hobbesiano, portanto um Estado absoluto. Bauman demonstra como o Estado encontrou sua razão de existência na busca pela segurança do indivíduo, pois segundo ele encontra-se em decadência devido sua vulnerabilidade, após a rápida globalização de mercados abertos: O Estado, por exemplo, tendo encontrado sua raison d'être e seu direito à obediência dos cidadãos na promessa de protegê-los das ameaças à existência, porém não mais capaz de cumpri-la (particularmente a promessa de defesa contra os perigos do segundo e terceiro tipos) - nem de reafirmála responsavelmente em vista da rápida globalização e dos mercados crescentemente extraterritoriais -, é obrigado a mudar a ênfase da "proteção contra o medo" dos perigos à segurança social para os perigos à segurança pessoal. O Estado então "rebaixa" a luta contra os medos para o domínio da 163 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE "política de vida", dirigida e administrada individualmente, ao mesmo tempo em que adquire o suprimento de armas de combate no mercado de consumo. (BAUMAN, 2006, p. 10-12) O Estado Democrático de Direito é um Estado onde busca-se através do processo político conduzir a sociedade, e para ser viável, é necessário respeitar os limites ao poder estabelecidos na noção clássica de um Estado de Direito e respeito aos direitos fundamentais. Agamben assinala o papel que a segurança vem tomando e se pergunta como a democracia encontra-se perante a tal mudança de paradigma: A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas. (AGAMBEN, 2014) Portanto, como primeiro argumento de incompatibilidade do discurso da segurança dentro do Estado Democrático de Direito é que a busca a segurança elevado ao patamar de paradigma, tem fundamentos em um modelo de Estado absoluto, como da teoria do Hobbes, desta forma não sendo compatível com o paradigma estatal vigente. O discurso da segurança manifestado no Direito Penal do Inimigo não possui compatibilidade com Estado Democrático de Direito, porque nessa formulação de Direito Penal existe uma criação de uma dualidade entre cidadão e inimigo que para esse ser considerado inimigo ocorre a “flexibilização” de direitos fundamentais, aplicação de normas diferenciadas com penas draconianas. Um dos pressupostos básicos de um Estado Democrático de Direito é a proteção dos direitos fundamentais, desta forma admitir duas espécies de pessoas, um cidadão que tem todos seus direitos garantidos e uma pessoa considerada inimigo que em muitos casos é rebaixado a situação de coisa, ou “não” pessoa em nome da proteção dos cidadãos. Será possível dentro de um Estado Democrático de Direito admitir que podemos escolher alguns sujeitos, retirar deles o status de cidadão, rebaixando sua condição de inimigo, gerando nele uma situação jurídica sombria envolto em uma zona de incerteza, pois mesmo sendo inimigo não se aplicam as normas do direito 164 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE humanitário (direito de guerra), pois não existe a ocorrência de um conflito armado e, portanto, não se aplica um direito especial como este, porém ele não é cidadão, logo não é dotado de direitos fundamentais. Assim admitir essa premissa seria negar o próprio Estado Democrático de Direito, viveríamos sob aparência de um Estado de Direito Democrático, mas estaríamos dentro de um Estado de Exceção de Agamben. O Estado de Exceção não declarado sob aparência de um Estado que se denomina Estado Democrático de Direito como Agamben assinala como a transformação do Estado de Exceção antes declarado, agora invisível. Possui diversos pontos de contato com Direito Penal do Inimigo e como ele também é incompatível com um Estado Democrático de Direito, muitas vezes é difícil separar as duas figuras. O Estado de Exceção é uma forma que deveria ser temporária em tempos de crise para que se retorne a uma ordem democrática, entretanto com o decurso do tempo ele foi se transformando para uma forma velada de Estado de Exceção. A existência de um Estado de Exceção, ou seja, com poderes excepcionais os quais invariavelmente encontram tensões com direitos fundamentais, além disto a existência Estado invisível não encontra compatibilidade perante a um dos postulados mais básicos da teoria democrática, o da publicidade dos atos do poder. O Estado de Exceção de Agamben pressupõe a existência de um poder invisível, pois a própria existência desse Estado de Exceção é invisível sendo apenas revelado quando analisado os atos emanados sob uma aparência de legitimidade. O poder invisível corrói o Estado Democrático de Direito, pois nele existe acordos secretos, atos disfarçados os quais se fossem relevados não poderiam existir. Assim, a mera existência de um Estado de Exceção não declarado viola o Estado Democrático de Direito, pois são lógicas distintas em que existem atos diferentes, o Estado de Exceção deve ser realmente a exceção e não a regra, pois ele só existe para em crise conseguir fazer retornar para a regra, permitindo a flexibilização de alguns direitos fundamentais em nome de um bem maior: o retorno ao Estado Democrático de Direito. 165 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Portanto, as ações baseadas em um discurso da segurança devem ser vistas com cautela, pois elas tendem a ultrapassar limites do Estado Democrático de Direito, a segurança pública é um dever a ser prestado pelo Estado, mas elas devem ser criadas e executadas de maneira compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O discurso da segurança está presente em nosso contexto, porém em muitos casos ele é incompatível com a lógica do Estado Democrático de Direito. O discurso da segurança tem diversas nuances, porém é mais facilmente verificável no Estado de Exceção na forma pensada por Agamben, e no Direito Penal do Inimigo. Mas, também pode ser encontrado em outras formas não tão nítidas, como o caso do projeto vigia que se tenta implantar na cidade de Curitiba, já existente em Nova York, onde não se pode traçar objetivamente sua natureza jurídica/política. Como analisado no trabalho, o discurso da segurança pode apresentar características que não pertencem ao Estado Democrático de Direito, ensejando sua incompatibilidade, pois é o núcleo do paradigma estatal atual e dos direitos fundamentais, da democracia e da limitação do poder. Eleger determinadas pessoas ou grupos e considerá-los como inimigos, que não usufruem de direitos e garantias fundamentais, justificando-se a manutenção da paz por meio de providencias sobremodo violentas, não é uma providencia própria de um Estado Democrático de Direito. Desta forma é incompatível sustentar um discurso que tem por objetivo implantar um Direito Penal que aceite um inimigo. De maneira semelhante é impossível sustentar um Estado de Exceção velado, sob uma aparência de compatibilidade com Estado Democrático de Direito, graças a um discurso de segurança que serve como razão do Estado para legitimar qualquer atitude. Embora a segurança seja um direito social, ele não pode suplantar outros direitos de igual conteúdo Constitucional. Afinal não vivemos em um Estado de Segurança, e os postulados dele não se compatibilizam com a totalidade do Estado Democrático de Direito que se preocupa 166 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE não só com a segurança dos indivíduos, mas com uma serie de direitos fundamentais a serem observados pelo próprio Estado. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: homo sacer, II. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. (Coleção Estado de Sítio). Tradução Iraci D. Poleti. AGAMBEN, Giorgio. 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Rio de Janeiro: Revan, 2013. 3° Reimpressão / Tradução de Sérgio Lamarão. 168 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE DA (IM)POSSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO MEDIANTE GARANTIA EM JUÍZO THE (IM)POSSIBILITY OF SUSPENSION OF THE CHARGEABILITY OF TAX CREDIT BY WAY OF GUARANTEE IN JUDGMENT Guilherme Reis Gonçalves94 Thiago Dalsenter95 SUMÁRIO Resumo. 1 Introdução 2 A Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 3 A Fiança Bancária e sua Proteção ao Crédito Exequendo 3.1 A Fiança Bancária Como Hipótese de Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 3.1.1 Interpretação Extensiva e Aplicação Analógica: Níveis Diferentes 3.1.2 O Projeto de Lei Complementar nº 142/2007: A Eventual Mudança De Um Paradigma 4 O Seguro Garantia e sua Receptividade pelo Poder Judiciário 4.1 A Lei nº 13.043/2014: A Vitória dos Contribuintes Frente à Novel Garantia 4.2 O Seguro Garantia Como Hipótese de Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário 5 O Novo CPC e sua Repercussão no Direito Tributário: A Fiança Bancária e o Seguro Garantia Equiparados ao Dinheiro (Impacto no Artigo 151 do CTN?) 6 Considerações Finais. Referências. RESUMO A seleção do tema objeto deste artigo tem como objetivo promover a análise dos argumentos em prol da suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de garantias previstas no ordenamento jurídico pátrio, a saber: a fiança bancária e o seguro garantia, ambas revestidas deste poder em razão do altíssimo grau de liquidez e certeza, assim como o ocorre com o depósito integral em dinheiro. Apesar do presente estudo demonstrar um bom raciocínio acerca desta possibilidade, trazendo à baila renomados doutrinadores e alguns precedentes judiciais pertinentes ao objeto em apreço – flexibilizando a aplicação do artigo 151 do Código Tributário Nacional –, ainda impera, sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a última palavra sobre a matéria, a negativa da suspensão em foco, ante a taxatividade do artigo 151 supra e do enunciado da Súmula nº 112/STJ. Todavia, ainda que se tenha consolidado este entendimento perante a Corte, destaca-se a importância do monitoramento contínuo do Poder Judiciário frente a estas garantias em virtude de Aluno de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Email: [email protected] 95 Advogado e Consultor Jurídico. Mestre em Direito do Estado (concentração em Direito Tributário) pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Professor da Graduação do curso de Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURTIBA. Email: [email protected] 94 169 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE uma eventual nova redação agraciada ao explorado artigo, bem como da auspiciosa evolução trazida pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), equiparando em dinheiro ambas as garantias. É este o escopo que nos anima. Palavras-chave: Suspensão; Crédito tributário; Artigo 151 do Código Tributário Nacional; Fiança bancária; Seguro garantia. ABSTRACT The selection of the subject of this article has as objective to promote the analysis of arguments in favor of the suspension of the chargeability of tax credit through the offer of guarantees provided for in the legal parental rights, namely: the banking guarantee and insurance guarantee, both covered this power because of the very high degree of liquidity and certainty, as well as occurs with the tank full of money. In spite of the present study demonstrate a good reasoning about this possibility, bringing renowned doctrine and some judicial precedents relevant to the object in question - by easing the application of Article 151 of the Brazilian Tax Code -, still reigns, from the perspective of the Superior Court of Justice, who has the responsibility for the final word on the matter, the negative of the suspension in focus, ante the taxatividade Article 151 above and the wording of the Summary no. 112/STJ. However, even if it has consolidated this understanding before the Cut, it highlights the importance of continuous monitoring of the Judiciary in these guarantees as a result of a possible new writing graced the exploited article, as well as the auspicious developments brought by the new Code of Civil Procedure (Law nº 13.105/2015), matching cash both guarantees. This is the scope that motivates us. Keywords: Suspension; Tax credit; Article 151 of the Brazilian Tax Code; Collateral; Guaranteed insurance. 1 INTRODUÇÃO Os que militam no contencioso tributário bem sabem o quão importante se faz suspender a exigibilidade do crédito existente, em benefício ao porte das atividades de seus clientes, posto que, enquanto dure o pleito, através do qual o contribuinte discute o alegado débito fiscal, não se revela possível a instauração do processo executivo. Ademais, a suspensão facilita a atividade das sociedades empresárias, que, quando necessário, podem obter certidão positiva de débitos com efeitos de negativa, documento este não raras vezes indispensável para viabilizar o sucesso das atividades por elas desempenhadas. Precisamente com relação àqueles que, supostamente, devem ao Fisco, tem sido comum o oferecimento de fiança bancária ou seguro garantia como forma de 170 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE antecipar os efeitos da penhora em futura execução fiscal, possibilitando que o credor esteja com seus compromissos fiscais garantidos. Sobre a suspensão examinada no presente trabalho, calorosos embates, tanto no âmbito doutrinário como no jurisprudencial, ganham enorme relevância na prática com a possibilidade do deferimento, concedido por parte do Poder Judiciário, do sobrestamento da exigibilidade do crédito discutido em decorrência do oferecimento destas garantias (carta de fiança bancária e apólice de seguro garantia judicial). Para enfrentar esse desafio, analisaremos a discussão existente no Direito pátrio acerca dos fatos suspensivos, enumerados no artigo 151 do Código Tributário Nacional, serem taxativos (numerus clausus), isto é, somente eles suspendem a exigibilidade do crédito tributário, não cabendo, portanto, nenhuma outra providência suspensiva; ou se são meramente exemplificativos, no sentido de que existem no ordenamento jurídico brasileiro outras medidas, tais como, abordadas brevemente no presente artigo, a sentença em ação de conhecimento e a consulta fiscal que, também, obstam o exercício do direito de cobrança do Fisco. Finalmente, tratar-se-á do caso específico da fiança bancária como eventual possibilidade de interferir na exigibilidade do crédito tributário, para fins da suspensão a que se refere o artigo em estudo – tendo como destaque o teor do Projeto de Lei Complementar nº 142/2007 –, bem como do seguro garantia judicial, introduzido no sistema jurídico brasileiro pela Lei nº 11.382/2006 como mais uma forma de garantia apta a ser utilizada pelo devedor no processo judicial, em que, por meio da Lei nº 13.043/2014, este ficou expressamente previsto como caução no âmbito das execuções fiscais para cobrança das dívidas ativas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. E assim faremos linhas adiante, revelando-se, ainda, oportuna e relevante exposição da evolução trazida pelo novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), destacando preceito que poderá influenciar no tema ora selecionado. 171 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 A SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO Consoante se verifica pela análise do Código Tributário Nacional (CTN), após regularmente constituída via lançamento, o crédito tributário pode vir a ter a sua exigibilidade suspensa, nos ditames do artigo 151 daquele Codex. Trata-se de causas que nada mais são que normas jurídicas às quais o sistema jurídico confere o efeito específico de inibir o prosseguimento normal de um processo de positivação tendente à extinção do crédito tributário.96 Ressalta-se que, em verdade, segundo Maria Leonor Leite Vieira (VIEIRA, 1997, p. 39), não se suspende o crédito tributário, mas tão somente e a rigor a possibilidade de ele ser exigido. No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 1999, p. 433) ressalta que, “aquilo que se opera, na verdade, é a suspensão do teor da exigibilidade do crédito, não o próprio crédito que continua existindo tal qual nascera”. Dessemelhante, Luciano Amaro (AMARO, 1999. p. 358) afirma que o que se suspende é “o dever de cumprir a obrigação tributária”. Já Hugo de Brito Machado (MACHADO, 1996, p. 123) alude que a suspensão pode ser “prévia, operando-se antes do surgimento da própria exigibilidade, caso em que mais propriamente se devia dizer impedimento, em lugar de suspensão e posterior, operando-se depois que o crédito se tornou exigível”. Diante disso, Décio Porchat (PORCHAT, 2004, p. 94) esclarece que, diante do surgimento dessas indagações (se as hipóteses arroladas no artigo 151 do Código Tributário Nacional teriam o condão de suspender o crédito tributário, a exigibilidade deste, ou a própria obrigação tributária), a resposta não pode ser posta em termos absolutos, pois tudo dependerá da acepção em empregada pelo cientista do Direito no que diz respeito às expressões: obrigação, crédito, exigibilidade, bem como do momento de incidência da regra que veicular algum dos fatos previstos nas hipóteses do artigo 151 supra. A par dessa discussão, o artigo em estudo, segundo a doutrina especializada no assunto, traz um rol taxativo de hipóteses cuja ocorrência tem como Nesse sentido, suspender a exigibilidade do crédito “significa inibir o processo de positivação do direito tendente ao ato de inscrição da dívida ativa e do conseqüente processo executivo fiscal” (SANTI, 2001, p. 180). 96 172 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE consequência a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, pelo que, não estando a situação fática ou jurídica subsumida em algum dos casos ali indicados, não há como se cogitar a aludida suspensão. Por oportuno, nos termos do artigo 97, inciso VI, do CTN, somente a lei pode estabelecer as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, de modo que não compete a ninguém mais fazê-lo, quer o Poder Executivo, quer ainda o Judiciário. Aliás, tratando-se de matéria posta sob reserva legal, não há possibilidade do Poder Judiciário reconhecer, nos casos que lhe são submetidos, o efeito da suspensão da exigibilidade do crédito tributário nas situações não contempladas no aludido rol (artigo 151 do CTN), sob pena de afronta ao princípio maior da separação entre os Poderes (artigo 2º da CF), e isso pelo simples motivo de que ao Judiciário não compete exercer a função de legislador positivo, consoante, inclusive, entendimento sedimentado no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). Inclusive, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a partir da análise do artigo 151 do CTN, entende que este não deve ser interpretado de acordo com as outras hipóteses expressamente previstas por intermédio da interpretação analógica ou extensiva, sob pena de perder a razão a enumeração ali contida e, assim, restar violado o princípio da legalidade (CARNEIRO, 2006, p. 20). Tal raciocínio advém do nosso CTN, que em seu artigo 111, inciso I, estabelece que a legislação tributária deva ser interpretada literalmente no que dispõe sobre a suspensão do crédito tributário. Vale transcrever, aqui, as lições de Hugo de Brito Machado: Interpretação literal significa interpretação segundo o significado gramatical, ou melhor, etimológico, das palavras que integram o texto. Quer o Código que se atribua prevalência ao elemento gramatical das leis pertinentes à matéria tratada no art. 111, que é matéria excepcional. Realmente, a suspensão, como a exclusão do crédito tributário, e a dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias constituem exceções. A regra é o pagamento do tributo nos prazos legalmente fixados. A suspensão do crédito, ou, mais exatamente, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, constitui exceção. Também a regra é que todos paguem tributos segundo a capacidade contributiva de cada um. A isenção geralmente constitui exceção a essa regra. Finalmente, a regra é que todos cumpram suas obrigações tributárias acessórias. A dispensa desse cumprimento é excepcional. O direito excepcional deve ser interpretado literalmente, e este 173 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE princípio de hermenêutica justifica a regra do art. 111 do CTN, impondo a interpretação literal. [...] (MACHADO, 2003, p. 114) A regra em que o autor faz menção deve ser entendida e compreendida no sentido de que as normas reguladoras do direito tributário que versem sobre as situações descritas neste artigo não comportam interpretação extensiva ou ampliativa, mas sim restritiva e até mesmo delimitativa. Não bastasse isso, a estrita legalidade nas hipóteses de suspensão do crédito tributário também está prevista no artigo 141 do CTN, o qual prevê que a exigibilidade do crédito já formalizado pelo lançamento só poderá ser suspensa nos casos previstos em lei. Aliomar Baleeiro (BALEEIRO, 1979, p. 14), ao analisar o assunto, sustenta, com fulcro nos artigos 97, inciso VI; 111, inciso I, e, principalmente, 141, todos do CTN, que a interpretação das disposições que admitem a suspensão da exigibilidade do crédito tributário é restrita. Portanto, aparentemente quis o legislador que somente nos casos ali indicados (artigo 151 do CTN) tivesse o crédito sua exigibilidade suspensa, especialmente por se tratar de estancamento da marcha procedimental de cobrança da dívida, isto é, justamente por constituir exceção à regra que prevê a exigibilidade do crédito após sua constituição, deve ser interpretada restritivamente. Por outro lado, mesmo diante desse propósito, o sistema continua preocupado em facilitar o cumprimento da obrigação sem onerar desnecessariamente o patrimônio do executado. Desta maneira, preocupou-se o legislador pátrio, ao dispor no artigo 620 do CPC que, quando por vários meios o credor puder promover a execução, esta seguirá pela forma menos gravosa ao devedor No que concerne à razão de ser do artigo 620 supra (princípio da menor onerosidade), frisa José Carlos Barbosa Moreira: Encontram-se por vezes, em leis processuais, disposições tendentes a evitar que, na atividade de execução, se cause ao devedor detrimento excessivo, ordenando, por exemplo, que entre dois ou mais possíveis meios se escolha o menos gravoso (MOREIRA, 1989, p. 221). 174 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE De modo a melhor elucidar a questão, importa observar as palavras de Hugo de Brito Machado: A aplicação das disposições em foco [no caso, a do art. 620 do CPC] não deve, em princípio, diminuir a eficácia prática na execução; a opção pelo meio menos gravoso pressupõe que os diversos meios considerados sejam igualmente eficazes (MACHADO, 2003, p. 114). Dessa forma, sem pretender desmerecer em absoluto a opinião daqueles doutrinadores que defendem o alcance originalmente atribuído ao artigo 151 do CTN (a taxatividade), Roque Antônio Carrazza (CARRAZZA, 1992) e Camila Campos Vergueiro (VERGUEIRO, 2009) alegam existir outras normas admitidas pelo ordenamento jurídico, apta a suspender a exigibilidade do crédito tributário, como é o caso, por exemplo, da sentença proferida em processo judicial. Nesta linha de raciocínio, questionam os autores sobre a incoerência que seria admitir que uma decisão liminar, norma de caráter provisório e proferida em sede cognição sumária, ter o condão de suspender a exigibilidade, apenas pela previsão no sobredito artigo 151, e uma sentença, emanada de uma cognição exauriente, ser desprovida dessa mesma aptidão, só pelo fato de não constar entre as causas elencadas no aludido dispositivo legal. Além deste posicionamento, defendem Gabriel Lacerda Troianelli (TROIANELLI, 2007), Ives Gandra da Silva Martins (MARTINS, 2014) e Kelly Magalhães Faleiro (FALEIRO, 2005) a possibilidade da consulta administrativa fiscal, enquanto não solucionada, suspender a exigibilidade do tributo no que se refere à parte abrangida pela dúvida.97 Em função desta margem exemplificativa quanto à suspensão examinada, trata-se de saber se a prestação de fiança bancária e a apólice de seguro garantia judicial, igualmente, possibilitam a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 97 Em apertada síntese, conforme os autores em uma das suas linhas de pensamento, apesar do CTN não prever a consulta como fundamento para a suspensão em foco, esta decorria diretamente do impedimento à instauração de qualquer procedimento fiscal contra o consulente, conforme dispõe o artigo 48 do Decreto nº 70.235/1972, afinal um dos efeitos da formulação da consulta eficaz é a impossibilidade do Fisco exigir tributo objeto da consulta. 175 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3 A FIANÇA BANCÁRIA E SUA PROTEÇÃO AO CRÉDITO EXEQUENDO Por derradeiro, chegando ao ponto de uma madura compreensão acerca dos fatos suspensivos, ousa-se concitar a doutrina e os tribunais às considerações das singelas, mas firmes, convicções lançadas adiante. Sabemos que a execução se faz no interesse do credor e só ao credor é autorizado declinar, caso a caso, o que melhor atenta ao seu interesse prioritário. Consequentemente, os contribuintes que devem garantir a execução com seus bens, procuram fazê-lo de forma que tal penhora não onere demasiadamente suas atividades regulares. Já a Fazenda Pública batalha para que a garantia seja dotada de maior liquidez possível, e sempre que possível em dinheiro. 98 Diagnosticado o dissenso, a fiança encontra-se disposta nos artigos 818 a 839 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), conceituada como um contrato por meio do qual “uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”. A propósito do contrato de fiança, Pontes de Miranda assim se pronuncia: Conceito. – A fiança é promessa de ato-fato jurídico ou de outro ato jurídico, porque o que se promete é o adimplemento do contrato, ou do negócio jurídico unilateral, ou de outra fonte de divida, de que se irradiou, ou se irradia, ou vai irradiar-se a dívida de outrem (MIRANDA, 1972, p. 91). Na hipótese, o que o fiador (ou seja, o banco) garante é a satisfação do crédito da Fazenda, objeto da cobrança executiva. Quanto à garantia fidejussória no processo executivo fiscal, assinala Arnaldo Marmitt: 98 Apenas a título argumentativo, afinal tal raciocínio não será objeto de exame nesta oportunidade, decisões recentes do STJ reavivaram a questão da substituição dos bens penhorados em sede de execução fiscal. O artigo 15 da Lei nº 6.830/80, que disciplina quando e como será possível a substituição da penhora no rito especial das ações executivas, dispõe que a qualquer tempo poderá ser autorizada pelo juiz a substituição dos bens, tanto por iniciativa do devedor (hipótese do inciso I) quanto por iniciativa do credor (hipótese do inciso II). Assim, em princípio, temos a expressão “a qualquer tempo” como algo ilimitado. Porém, parte da doutrina e dos tribunais pátrios entende que não é desta forma que deve ser interpretado tal permissivo. 176 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Do artigo 1.481 do Código Civil [de 1916; hoje, Código Civil de 2002, art. 818] deflui que a fiança bancária é um contrato pelo qual uma pessoa jurídica de direito privado se obriga para com o credor de outra a satisfazer uma obrigação de dar quantia certa, se o sujeito da obrigação não cumprir voluntariamente (MARMITT, 1986, p. 254). Isso significa que, toca ao banco, prestador da fiança, a satisfação do crédito exequendo. Referindo-se aos “tipos” de fiança, escreve Lauro Laertes de Oliveira: c) Bancária. Está espécie, criada pela necessidade prática e consolidada pela moderna doutrina, é semelhante à fiança comercial. Trata-se de garantia prestada por estabelecimento bancário; via de regra o afiançado é comerciante. [...] Espécie de fiança onerosa. O banco cobra uma comissão para prestar fiança. Mas seu caráter oneroso não desfigura o instituto (OLIVEIRA, 1986, p. 254). Portanto, a fiança bancária, enquanto caução ou garantia, objetiva “oferecer ao credor uma segurança de pagamento, além daquela genérica situada no patrimônio do devedor” (PEREIRA, 2003, p. 493). Ressalta-se que, no âmbito tributário federal, é a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) que protagoniza em juízo as questões afetas ao tema em apreço (artigo 131, parágrafo 1º, da CF); logo, imprescindível mencionar a Portaria PGFN nº 644, de 1º de abril de 2009, com suas alterações promovidas pela Portaria PGFN nº 1.378, de 16 de outubro de 2009, por meio das quais a PGFN admite as cartas de fiança bancária para finalidade de serem aceitas em garantia do crédito tributário exequendo e, por isso mesmo, regula os seus requisitos formais. Aliás, tem sido contumaz, inclusive sob a chancela do STJ, intérprete máximo da lei federal (artigo 105 da CF), atribuir à fiança bancária efeito igual ao depósito em dinheiro.99 99 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.109.560-RS. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, da Primeira Turma. Data da Publicação: 30/08/2010 177 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Entretanto, a despeito das considerações até aqui transcritas, poderíamos perguntar: a carta de fiança equivale ao depósito para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário? Não bastasse o entendimento majoritário sobre a taxatividade das hipóteses elencadas no rol do artigo 151 do CTN, trataremos também dos argumentos que poderiam ser invocados em prol de uma resposta afirmativa. 3.1 A FIANÇA BANCÁRIA COMO HIPÓTESE DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO Desde logo, temos a pressa em asseverar que apesar da Primeira Seção do STJ – em precedente ornado com as vestes de paradigmático para os fins do artigo 543-C do CPC – firmar posicionamento no sentido de que a fiança bancária não é equiparável ao depósito integral do débito para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário100, nada obstante, sob o regime atual, o debate sobre a suspensão em foco101. Embora o entendimento não seja mais o mesmo, há de se enunciar com destaque que este mesmo STJ, já se posicionou com vistas a flexibilizar a interpretação do artigo 151 do CTN.102 Não é diferente o que se passa com a interpretação do artigo 9º da LEF combinado com o artigo 206 do CTN103. Segundo Diogo de Araújo Lima (LIMA, 2013), tal interpretação leva ao reconhecimento de mais uma causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 100 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.156.668/DF. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, da Primeira Seção. Data da Publicação: 10/12/2010. 101 Veremos adiante que há, em trâmite perante a Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 142/2007, que autoriza o contribuinte a usar fiança bancária em cobranças fiscais visando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 102 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 730.655-RS. Relator: Ministro Francisco Falcão, da Primeira Turma. Data da Publicação: 06/03/2005. 103 “Art. 206. Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa”. 178 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Neste sentido, afirma Camila Campos Vergueiro que nas hipóteses do artigo 9º da LEF, também haveria se cogitar em sobrestamento da exigibilidade do crédito fiscal: Entendemos, ainda, que no artigo 9º da Lei Federal nº 6.830/1980 estão contidas outras hipóteses de interferência na exigibilidade da obrigação tributária, tendo em vista que a previsão do art. 206 do Código Tributário Nacional equipara à causa suspensiva do artigo 151 a hipótese em que a obrigação tributária já está garantida por meio da penhora nos autos de uma ação de cobrança, ou seja, quando já foi proposta a Execução Fiscal (VERGUEIRO, 2009, p. 165). Tais alegações poderiam, visivelmente, encontrar resistência nos ditames da Súmula nº 112 do STJ, segundo o qual “O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito se for integral e em dinheiro”. Porém, no escopo de fomentar seu posicionamento, Diogo de Araújo Lima endossa que a restrição imposta pelo retro aludido Súmula desconsidera por completo o fato extremamente pertinente de que o próprio artigo 15, inciso I, da LEF, confere à fiança bancária o mesmo status do depósito em dinheiro, para efeitos de substituição da penhora, o qual vem sendo entendido como causa hábil a ensejar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Esclarecedoras, nesse ponto, as palavras do mencionado autor: No entanto, a par de não ter caráter vinculante e não ser considerada fonte do direito, verifica-se que a aludido Súmula, ao restringir a hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário apenas aos depósitos realizados em dinheiro, acabou por malferir normas e princípios basilares do ordenamento jurídico. Isso porque, pela simples dicção do inciso II do artigo 151 do Código Tributário Nacional, observa-se não haver qualquer exigência nesse sentido, vale dizer, estabelecendo que o depósito do montante integral do crédito tributário deva ser realizado única e exclusivamente em dinheiro, o que certamente constaria da norma, caso o legislador efetivamente assim pretendesse. [...] Nesse diapasão, se a lei utilizou o termo “depósito do montante integral”, de forma inegavelmente ampla e genérica, não cabe ao intérprete reduzir a sua acepção tão-só para os casos de depósito em dinheiro, pois essa, sem sombra de dúvidas, não é a única forma de garantir o adimplemento de uma obrigação. [...] Assim, se é certo que a fiança bancária supre essa exigência de natureza assecuratória, eis que se trata de uma garantia de cunho fidejussório, que, 179 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE conforme visto, é o real sentido atribuído ao termo depósito a que alude o artigo 151, inciso II do Código Tributário Nacional, razão não há para não aceitá-la como instrumento apto a suspender a exigibilidade do crédito tributário. Pensar de modo diverso, como procedido pelo Superior Tribunal de Justiça, significa estabelecer exigência a descoberto da lei, em evidente afronta ao Princípio da Legalidade, insculpido nos artigos 5°, inciso II, e 150, inciso I, ambos da Constituição Federal e no artigo 97 do Código Tributário Nacional (LIMA, 2003). A despeito quanto à desnecessidade de efetuar o depósito em dinheiro para que o sujeito passivo disponha do sobrestamento da exigibilidade do crédito exigido, Roque Antônio Carrazza, na verdade, já havia se pronunciado. Implicante, o autor denomina a fiança bancária como uma modalidade de “depósito”. Vejamos alguns trechos de sua obra: Este rol não é taxativo. [...] Nem a Lei de Execuções Fiscais, nem o Código Tributário Nacional exigem, explicitamente, que o depósito seja realizado em dinheiro, para que se suspensa a exigibilidade do crédito tributário. [...] Assim sendo, qualquer bem apto a garantir a execução, em penhora, serve também, para caucionar o juízo, e suspender a exigibilidade do crédito tributário. [...] Melhor explicando, se, em execução fiscal, a fiança bancária e os títulos da dívida pública e de crédito são hábeis a garanti-la, porque não seriam (até porque a lei nada dispõe, a respeito) no depósito para inibir temporariamente a exigibilidade do crédito, enquanto se discute sua legitimidade? [...] Se partirmos do falso pressuposto de que o depósito a que aludem os arts. 151, II, do CTN e 38 da Lei das Execuções Fiscais, só pode ser em dinheiro, estaria, ad absurdum, mais protegido o contribuinte inadimplente, que, permanecendo omisso, só no curso da execução fiscal, dispusesse a contender contra o Poder Público, demonstrando a improcedência da pretensão fazendária. [...] Não devemos extrair dos arts. 151, II, do CTN e 38 da Lei de Execuções Fiscais, mais do que eles significam. [...] Temos, pois, que os depósitos efetuados por meio de títulos da dívida pública, os relativos à dívida agrária, a fiança bancária e assim avante, tanto quanto o depósito em dinheiro, suspendem a exigibilidade do crédito tributário (grifo nosso) (CARRAZZA, 1992, p. 54-55). A par do mencionado recurso decidido na forma do artigo 543-C do CPC, e, portanto, vocacionado para ter sua inteligência aplicada nos casos repetitivos 180 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE subsequentes (Recurso Especial nº 1.156.668/DF, Relator Ministro Luiz Fux, da Primeira Seção, Publicado em 10/12/2010), convém citar o voto condutor do Desembargador Miguel Ângelo Barros, da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relator dos autos de Apelação Cível nº 2005.001.18100 (Processo nº 0055763-13.2012.8.19.0001), de inegável pertinência na interpretação conjunta do artigo 151, inciso II, do CTN, com o artigo 15, inciso I, da LEF: O Juiz de 1º grau julgou improcedente a ação ao argumento de que não cabe nem a suspensão da exigibilidade do crédito nem a expedição de certidão positiva com efeito de negativa porque o artigo 151, II, do Código Tributário Nacional estabelece como condição sine qua non o depósito integral do crédito, o que não é satisfeito com a apresentação de carta de fiança bancária. Acontece que essa posição é excessivamente rígida e incompatível com o avanço do Direito, que não pode ser engessado por uma interpretação literal não condizente com os avanços do progresso humano! O artigo 169 do CPC, por exemplo, exige que atos e termos do processo sejam datilografados ou escritos com tinta escura e indelével mas em 1975 não existiam computadores, nem e-mail, nem internet, nem leitores óticos, nem fax, nem vídeo-conferência, nem muita coisa que surgiu depois da edição do dito Código e que os Tribunais foram adotando aos poucos, forçando o posterior reconhecimento legal desses meios, como já aconteceu com a remessa de petições e recursos por fax e e-mail, etc. Da mesma forma o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que ‘é vedado usar abreviaturas’, o que não impede que petições, despachos, sentenças e Acórdãos de todos os Tribunais usem correntemente abreviaturas como CPC, CTN, CLT, STF, STJ, etc, etc. Não se prega o descumprimento puro e simples de leis antigas (veja-se o exemplo do Código Comercial, ainda do Império), mas apenas a modernização das regras com o emprego dos meios hoje existentes e que na época da edição da Lei eram simplesmente inconcebíveis! É rigorosamente o caso da fiança bancária! Na época da edição do CTN era absolutamente inimaginável que um banco desse fiança a quem quer que seja, mas hoje, mediante o preenchimento de certas condições, isso é um ato perfeitamente normal e legítimo que os bancos praticam, logicamente mediante a devida remuneração por parte do afiançado. Note-se que o próprio Estado apelado já reconheceu essa modernização na sua legislação ordinária (tanto que admite a carta de fiança bancária como garantia de instância nos casos de recurso administrativo, como ocorreu no caso vertente). Assim, não vê a Câmara nenhum absurdo em tomar a fiança bancária como equivalente ao depósito integral a que se refere o inciso II do artigo 151 do CTN como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário enquanto se discute em Juízo a validade dele! (RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 200500118100. Relator: Desembargador Miguel Ângelo Barros. Data da Publicação: 20/09/2005) 181 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A essa luz, o que mais importa é que o STJ, atualmente, estabelece paridade entre o depósito em dinheiro e a fiança bancária, observando-se que em ambas as hipóteses, a garantia é efetuada quanto ao débito fiscal do contribuinte. Tal entendimento fornece, segundo parte da doutrina, um valioso subsídio para a tese favorável à suspensão da exigibilidade do crédito tributário em caso de fiança bancária, utilizada por uma aplicação analógica do artigo 151, II, do CTN (depósito em dinheiro), na qual trataremos em seguida. Por último, diante do descompasso interpretativo entre o Código Tributário Nacional e a Lei de Execução Fiscal e, quem sabe, de uma mudança auspiciosa nos futuros julgados de todo o país, abordaremos o Projeto de Lei Complementar nº 142, de 13 de novembro de 2007, de autoria do Deputado Federal Sr. Eduardo da Fonte, que propõe incluir a fiança bancária como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, acrescentando o inciso VII ao artigo 151 do CTN. 3.1.1 Interpretação extensiva e aplicação analógica: níveis diferentes Tendo o objetivo de percorrer o direito como um todo, cumpre-nos não só enunciar a teoria, mas encontrar sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira. Preliminarmente, tratando-se de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, a opinião doutrinária nos esclarece que não há interpretação extensiva, e sim aplicação analógica de certo preceito, à vista da norma do artigo 151, II, do CTN. Referindo-se à interpretação extensiva, Carlos Maximiliano assim se pronuncia: Admitia-se outrota duas espécies de exegese ampla, a extensiva por força de compreensão e indução, e a extensiva por analogia. Hoje o processo analógico nem se enquadra na Hermenêutica; não constitui um modo de interpretar, e sim, de aplicar o Direito (MAXIMILIANO, 1941, p. 245). Verificamos que a interpretação extensiva e a aplicação analógica são procedimentos que se desenvolvem em níveis diferentes. O recurso à analogia se situa no plano da aplicação do Direito. 182 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Sobre a diferenciação entre os citados procedimentos, frisam Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho: [...] a distinção é fácil: tratando-se de interpretação extensiva, a lei é ampliada para alcançar um caso francamente compreendido no seu espírito, se bem que não pareça compreendê-lo a fórmula imperfeita; a analogia, ao invés, chama um preceito a regular situação, que não tem disciplina própria na ordem jurídica positiva; leva a aplicar a norma, reguladora de caso semelhante, a outro, que não está compreendido na regulamentação de tal norma (SANTOS, 1947, p. 205). De maneira mais didática, entende-se por interpretação analógica o processo de averiguação do sentido da norma jurídica, valendo-se de elementos fornecidos pela própria lei, por meio de método de semelhança. De outro modo, a interpretação extensiva é o processo de extração do autêntico significado da norma, ampliando-se o alcance das palavras legais, a fim de se atender a real finalidade do texto. Sobre a suspensão de que estamos cuidando, o emprego da analogia é considerado legítimo na hipótese de prestação de fiança bancária. É que a garantia fidejussória igualmente torna viável a satisfação da Fazenda Pública. Surge, neste sentido, a rica doutrina de Nelson Monteiro Neto, verbo ad verbum: A norma do art. 151, nº II, do Código Tributário Nacional (suspensão da exigibilidade do crédito tributário em caso de fiança bancária) não abrange o acontecimento consistente na fiança bancária. Portanto, em tal hipótese, não é viável a interpretação extensiva. A fiança bancária, entretanto, é acontecimento muito semelhante ao fato contido no art. 151, nº II, do Código (depósito em dinheiro), o que dá margem à aplicação analógica do mencionado dispositivo. Nesse contexto, são importantes as opiniões doutrinárias e as construções jurisprudenciais, diante de uma lacuna do ordenamento, no sentido da aplicação analógica de determinada norma positiva. Repare-se que as pessoas conhecem razoavelmente bem, já agora, este meio, bastante eficaz, tal como o depósito em dinheiro, apropriado para garantir os créditos da Fazenda, o da prestação de fiança bancária, que, segundo a doutrina e a jurisprudência, se equipara à hipótese de que trata o art. 151, nº II, do CTN (NETO, 2011, p. 81). Transportando o entendimento de que somente a lei pode dispor sobre a suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 97, VI, do CTN) e do princípio 183 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de que se deve interpretar literalmente a legislação tributária que dispõe sobre a suspensão do crédito fiscal (artigo 111, I, do CTN), registra o ilustríssimo autor: No que tange ao art. 97, nº VI, do Código Tributário Nacional, consoante o qual somente a lei pode dispor sobre suspensão da exigibilidade do crédito tributário, deve entender-se que essa regra busca evidenciar que não pode o Executivo fixar normal a respeito de tal ponto, o que, entretanto, não constitui obstáculo ao desenvolvimento jurisprudencial do Direito, em virtude das mutações da realidade (é regra da experiência que, hoje em dia, a fiança bancária produz o mesmo resultado do depósito em dinheiro, ou seja, constitui meio igualmente eficaz, e, além disso, menos gravoso com relação ao contribuinte). Quanto à regra do art. 111, nº I, do Código Tributário Nacional, que diz respeito à interpretação literal das disposições atinentes à suspensão da exigibilidade do crédito tributário, esta claro que aqui não pretendemos afirmar que na hipótese art. 151, nº II (depósito em dinheiro), compreendese a possibilidade de fiança bancária. O que procuramos sustentar é que, apesar de não ter espaço, no caso, para a interpretação extensiva, revelase admissível, isto sim, a aplicação analógica do dispositivo há pouco aludido, de maneira que a fiança bancária, em face da analogia de situações, traz como consequência a suspensão de que se cuida (NETO, 2011, p. 82). Nestes ditames, vimos o entendimento (por parcela da doutrina e de tribunais pátrios) de que a fiança bancária, tal como o depósito em dinheiro, autoriza a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, utilizando-se, pois, o processo de aplicação analógica do artigo 151, II, do CTN. Hostil, Daniel Zanetti Marques Carneiro (CARNEIRO, 2006) não considera possível a tratada suspensão em caso de fiança bancária, por falta de norma legal expressa. Buscando pôr um basta neste argumento, é que o empresário e Deputado Federal Sr. Eduardo da Fonte, elaborou o Projeto de Lei Complementar nº 142/2007, cuja justificativa beiramos a seguir. 3.1.2 O Projeto de Lei Complementar nº 142/2007: a eventual mudança de um paradigma Tramita perante a Câmara dos Deputados, sob o regime de prioridade, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 142, de 13 de novembro de 2007, de autoria do Deputado Federal Sr. Eduardo da Fonte (PP/PE), que propõe incluir a fiança 184 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE bancária como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, acrescentando o inciso VII ao artigo 151 do CTN. Apensado ao PLP nº 75, de 31 de julho de 2003, cuja proposição está sujeita à apreciação do Plenário, o autor daquela proposta relata a postura “irracional e injusta” da autoridade fiscal quando retarda o ajuizamento da execução fiscal, obstando a regularidade do sujeito passivo perante o cadastro de contribuintes de seu Estado e, consequentemente, a obtenção de Certidão Positiva de Débitos com Efeitos de Negativa (CPD-EN), bem como da atuação do Judiciário que, na generalidade dos casos, só concede a requerida suspensão quando o sujeito passivo efetua o depósito judicial do montante integral do crédito fiscal. Seja como for, quer se considere louvável, tolerável ou reprovável o teor do PLP nº 142/2007, transcrevemos sua justificativa abaixo: Ao relacionar as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, o art. 151 do Código Tributário Nacional nelas não inclui a fiança bancária. Por esse motivo, o sujeito passivo da obrigação tributária que não concorde com a exigência fiscal, e que tenha perdido o prazo para entrar com recursos administrativos ou não tenha obtido êxito com a utilização desses recursos, passa a constar dos cadastros fiscais como inadimplente. O sujeito passivo poderá tentar obter uma liminar judicial ou tutela antecipada para suspender a exigibilidade do crédito enquanto discute sua legalidade; todavia, na generalidade dos casos, o juiz não a concede sem o depósito do montante integral do crédito. Por outro lado, a Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, que “dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública”, admite que o executado ofereça fiança bancária em garantia da execução (art. 7º, II e art. 9º, II). Portanto, ocorrendo a execução fiscal, o contribuinte pode valer-se da fiança bancária, que garante a execução, como alternativa para o depósito integral do crédito tributário reclamado pelo Fisco. Há, assim, um descompasso entre o Código Tributário Nacional e a Lei de Execução Fiscal, em prejuízo do sujeito passivo da obrigação tributária. O sujeito passivo, que não concorda com o débito que lhe está sendo exigido, e que não consiga a medida liminar na justiça, é obrigado a fazer o depósito do montante integral ou aguardar a execução fiscal para poder ofertar fiança bancária; enquanto está nessa situação o sujeito passivo não consegue obter a “certidão positiva com efeitos de certidão negativa”, o que dificulta suas atividades empresariais. Sabe-se que a Fazenda Pública retarda o início da execução fiscal, para constranger o contribuinte, que fica impossibilitado de obter a certidão negativa. O projeto de lei ora apresentado tem a finalidade de alterar essa situação irracional e injusta, admitindo que o próprio sujeito passivo possa tomar a iniciativa de oferecer a fiança bancária, independentemente de a Fazenda Pública ter iniciado a execução. A alteração do Código Tributário Nacional mediante lei complementar é pacificamente aceita pela doutrina e jurisprudência. 185 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Pelas razões expostas, a proposição ora apresentada, que aperfeiçoa a legislação tributária, merece os votos favoráveis dos membros do Congresso Nacional. Destaca-se a importância do monitoramento contínuo do comportamento do Poder Judiciário frente a esta garantia, de maneira a promover sua adequação à legislação e à jurisprudência, resguardando assim a sua efetividade. Portanto, tem-se que, com a modificação da legislação pertinente ao tema em apreço, há de se esperar uma superação da jurisprudência nacional, em virtude de uma eventual nova redação dada ao explorado artigo 151 do CTN. Diante dos fatos aqui transcritos, embora constatada a existência de posicionamento divergente, pode-se concluir que o processo da inclusão da fiança bancária como hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário terá, caso seja aprovado o PLP em epígrafe, assento infraconstitucional e constitucional, afinal seu uso tem se mostrado eficaz como forma de otimizar a arrecadação tributária quando apresentada em garantia aos executivos fiscais. 4 O SEGURO GARANTIA E SUA RECEPTIVIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO O presente capítulo pretende examinar outro tipo de garantia que vem sendo apresentada pelos contribuintes nas disputas judiciais, visando alternar as tradicionais cauções e/ou depósitos a serem efetuados em juízo. Disponibilizado pelo mercado segurador em 2003, através da Circular nº 232 da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), que regulamentou as várias modalidades de seguro garantia e dispôs sobre as condições gerais e especiais que devem constar da apólice, o chamado seguro garantia judicial é uma proteção do devedor (pessoa física ou jurídica) que tem débito reconhecido em processo tramitando no Poder Judiciário (MELO, 2011, p. 104). Distintamente do seguro tradicional, o contrato de seguro garantia envolve três partes, as quais são denominadas de tomador, seguro e segurador. Introduzido na processualística brasileira por meio da Lei nº 11.382/2006, que acrescentou o parágrafo 2º ao artigo 656 do CPC, este representa garantia análoga 186 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE à fiança bancária, a qual pode ser oferecida em substituição à penhora independentemente da concordância da Fazenda Pública.104 Ousamos esclarecer que o legislador, ao utilizar a expressão “pode” transcrita no dispositivo supra, na realidade, não deixou ao alvedrio do magistrado autorizar ou não a substituição da penhora por seguro garantia; isto porque, a possibilidade a que aduz o texto daquele artigo de lei é endereçada ao executado, e não ao juiz, que, ademais, na qualidade de agente público, não tem a possibilidade, mas, sim, o dever de praticar os atos judiciais, uma vez presentes os pressupostos legais (DA GRAÇA E COSTA, 2009). Receptiva quanto à dinamicidade dos negócios jurídicos financeiros, a PGFN, assim como ocorreu com o instituto da fiança bancária, regulamentou o oferecimento e a aceitação do seguro garantia como caução em executivos fiscais com a publicação da Portaria PGFN nº 164, de 27 de fevereiro de 2014,105 revogando a então vigente Portaria PGFN nº 1.153, de 18 de agosto de 2009, que já regulamentava sua aceitação para débitos inscritos em Dívida Ativa da União (DAU).106 Importa também pontuar que no cenário do nosso ordenamento jurídico pairava, até pouquíssimo tempo, uma flagrante insegurança jurídica quanto à modalidade do seguro garantia como forma de caução à execução fiscal, eis que os tribunais pátrios, capitaneados pelo STJ, divergiam demasiadamente ao proferir seus julgados.107 104 Cf. TRF4, AC 5017628-76.2012.404.7200, 1ª Turma, Des. Rel. Jorge Antonio Maurique, DJe 28/08/2013; TRF4 5010161-15.2012.404.000, 1ª Turma, Des. Rel. Luiz Carlos Canalli, DJe 04/10/2012; e SECO, 2014. 105 Realçamos aqui, a revogação da obrigação do acréscimo de 30% (trinta por cento) sobre o valor do débito constante do artigo 656, parágrafo 2º, do CPC e também previsto na antiga Portaria PFGN nº 1.153/2009. 106 Antes mesmo da edição da Portaria PGFN nº 164/2014, os contribuintes vinham questionando perante o Judiciário o acréscimo de 30% na apólice de seguro garantia judicial nas ações de execução fiscal. Luis Augusto da Silva Gomes já se pronunciara que tal exigência era indevida, pois o artigo 656, parágrafo 2º, do CPC, está direcionado às dívidas cíveis (e não tributárias). O autor ainda enfatiza que, na cobrança judicial de tributos federais mediante processo executivo fiscal, o referido montante já estaria incluso na inscrição do débito em dívida ativa (CDA). De acordo com o DecretoLei nº 1.025/1969, na CDA já estão inclusos tanto os valores relativos aos encargos legais da execução fiscal quanto os honorários advocatícios da União Federal (GOMES, 2013). 107 Listamos, por amostragem, decisões de Tribunais (estaduais e federais) no sentido de autorizar a apresentação de seguro garantia: TJSP, AI 030095-57.2011.8.26.0000, Rel. Des. Wanderley José Federighi, 12ª Câmara de Direito Público, DJe 28/04/2012; TJMG, AI 1.0287.04.016789-5/001, Rel. Des. Brandão Teixeira, 2ª Câmara Cível, DJe 08/11/2005; TRF2, AI 2006.02.01.007862-7, Des(a). Rel(a). Federal Tania Heine, 24ª Câmara Cível, DJe 28/08/2006; TRF4, AC 5003680- 187 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n° 1.394.408/SP ganhou notoriedade na comunidade jurídica por ter dado a entender que o STJ “decretou a morte” do seguro garantia na modalidade judicial como forma de caução nas execuções fiscais, simplesmente pela ausência de expressa e taxativa previsão na LEF.108 Por óbvio, não foi um precedente favorável aos contribuintes. Ademais, podese dizer que, nas palavras de Clarissa Cerqueira Viana Pereira (PEREIRA, 2014), “tal entendimento jurisprudencial contraria também a aceitação do próprio credor (União) representado pela PGFN que já regulamentou a possibilidade da garantia por duas vezes”. Contudo, o respeitável entendimento (notadamente excessivo ao formalismo e à letra fria da lei) restou superado conforme manifesto no tópico a seguir. 4.1 A LEI Nº 13.043/2014: A VITÓRIA DOS CONTRIBUINTES FRENTE À NOVEL GARANTIA Fruto da conversão da Medida Provisória nº 651/2014, a Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, que introduziu uma série de medidas de incentivo à economia e à indústria, incluiu uma norma que altera a LEF para permitir o uso do seguro garantia como forma de caução às execuções fiscais. Vejamos: Art. 73. A Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 7o ................................................................................................................ ............................................................................................ II - penhora, se não for paga a dívida, nem garantida a execução, por meio de depósito, fiança ou seguro garantia; ............................................................................................” (NR) “Art. 9o ................................................................................................................ ............................................................................................ II - oferecer fiança bancária ou seguro garantia; ...................................................................................................... 65.2014.404.0000, 3ª Turma, Des. Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJe 10/04/2014; TRF1, AI 0007616-41.2012.401.0000, Des. Rel. Federal Reynaldo Fonseca, 7ª Turma, e-DJF1 05/04/2013. 108 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.394.408-SP. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, da Primeira Turma. Data da Publicação: 05/11/2013. 188 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE § 2o Juntar-se-á aos autos a prova do depósito, da fiança bancária, do seguro garantia ou da penhora dos bens do executado ou de terceiros. § 3o A garantia da execução, por meio de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia, produz os mesmos efeitos da penhora. ............................................................................................” (NR) “Art. 15. ............................................................................................................. .............. .............. .............. .............. .............. .............. I - ao executado, a substituição da penhora por depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia; e ............................................................................................” (NR) “Art. 16. ...................................................................................................... ...................................................................................................... II - da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia; ............................................................................................” (NR) (grifo nosso) Observa-se a inteligência da Lei nº 13.043/2014, que em seu artigo 73 alterou diversos dispositivos da LEF, equiparando as apólices de seguro garantia às fianças bancárias no âmbito das execuções fiscais para cobrança das dívidas ativas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Nesse sentido, suas alterações são especialmente relevantes, pois: (i) Incluem o seguro garantia no rol de garantias expressamente admitidas pela LEF e, portanto, passíveis de evitar a penhora, quando tempestivamente oferecidas; (ii) Esclarecem que o seguro garantia produz os mesmos efeitos da penhora, assim como o depósito judicial e a fiança bancaria; e (iii) Permitem que o contribuinte executado substitua a penhora sofrida por seguro garantia em qualquer fase do processo, assim como ocorre hoje com o depósito judicial e a fiança bancária. A publicação da lei foi festejada não só pelo mercado de seguros, mas também pelos próprios contribuintes. O custo para a contratação do seguro garantia judicial é menor e mais vantajoso do que a contratação de carta de fiança bancária. Isso porque, entre outras vantagens, não afeta a linha de crédito bancário e também não grava o balanço patrimonial das empresas. 189 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Outro importante aspecto sobre os benefícios da utilização do seguro garantia judicial reside no fato de que na fiança bancária o banco assume sozinho o pagamento da quantia em juízo no caso de inadimplemento, enquanto no mercado securitário há mecanismos de pulverização do risco, significando, como explora Alexandre Wider (WIDER, 2014), “maior segurança da operação se equiparada à fiança bancária”. Em decorrência da situação acima exposta, temos que o oferecimento do seguro garantia judicial ostenta, sem dúvidas, o poder de garantir o débito exequendo em equiparação à fiança bancária em razão do seu altíssimo grau de liquidez e certeza. Urge ressaltar que, em decisão publicada recentemente, o STJ admitiu, pela primeira vez, o uso de seguro garantia em executivo fiscal. Como se não bastasse, ainda, reconheceu a aplicabilidade imediata da Lei nº 13.043/2014, sob a premissa de que a norma em questão teria cunho processual, sendo possível o seu emprego instantâneo nas execuções fiscais ainda em curso.109 Nessas circunstâncias, pergunta-se: o contribuinte mediante oferta de apólice de seguro garantia tem razão quanto ao pedido de querer suspender a exigibilidade do crédito exigido? 4.2 O SEGURO GARANTIA COMO HIPÓTESE DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO Se é certo que quando o CTN, em seu artigo 151, tratou de forma exaustiva (numerus clausus) a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, também é enigmático que, prestes a festejar suas “bodas de ouro”, precedentes judiciais vêm admitindo o esmiuçado sobrestamento mediante apresentação de apólice de seguro garantia judicial. Se, no primeiro momento, a massa do Poder Judiciário se mostrou resistente a atender ao pedido acima questionado, logo passou, ainda que não majoritário, a se mostrar sensível ao problema dos contribuintes sujeitos ao pagamento de tributos. 109 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.508.171-SP. Relator: Ministro Herman Benjamin, da Segunda Turma. Data da Publicação: 06/04/2015. 190 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Maria do Carmo Cardoso, recentemente cotada para assumir a vaga de ministra no STJ, é a principal personagem responsável em admitir a suspensão de que se trata.110 Nos autos de Agravo de Instrumento nº 31474-67.2013.4.01.0000/PA, decidiu-se, nessa oportunidade, que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário é admissível na hipótese de seguro garantia judicial, uma vez que este representa garantia análoga à fiança bancária, reconhecida a suficiência e idoneidade do seguro contratado. Vejamos os principais trechos da decisão em comento: Ao contrário, a controvérsia reside tão somente na possibilidade de recebimento de caução real, a qual consiste em volume de óleo diesel compatível com o valor do débito, ou de apólice de seguro-garantia, com o objetivo de assegurar a suspensão da exigibilidade do tributo em questão e de possibilitar a expedição de certidão de regularidade fiscal. Em razão da similitude com a carta de fiança bancária, tenho entendido pela possibilidade de se receber como caução apólice de seguro-garantia apresentada pela parte interessada, desde que a seguradora seja idônea e que o valor contratado seja suficiente para a cobertura do débito. Entendo que admitir em garantia o oferecimento de apólice segurogarantia é medida plenamente possível, porquanto incluída no poder geral de cautela, e por configurar meio de garantia menos gravoso enquanto em discussão o direito que se pretende ver reconhecido (aplicação analógica do art. 620 do CPC). Este preceito não trata de mera faculdade judicial, mas de disposição cogente, segundo a qual o magistrado deverá buscar, dentro das diversas possibilidades existentes, a menos onerosa para o devedor. Vale notar que a apólice de seguro-garantia assemelha-se à carta de fiança e situa-se em segundo lugar na ordem estabelecida no art. 9º da Lei 6.830/1980. Assim como a carta de fiança bancária, constitui garantia de obrigação de imediata liquidez, contratada pelo cliente da instituição financeira para com terceiros, em que a instituição financeira é a fiadora, o cliente da instituição é o afiançado e o terceiro é o favorecido ou beneficiário. A jurisprudência deste Tribunal está em sintonia com esse entendimento, especialmente quando conclui que, sendo o valor da apólice segurogarantia suficiente para garantir a execução, com prazo de três anos de vigência, podendo ser renovado com simples comunicação junto à Seguradora, possível, portanto, a sua utilização para assegurar o débito 110 Diversos outros juízos colegiados flexibilizaram o artigo 151 do CTN, com relação ao objeto em estudo – suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio de seguro garantia judicial. Confirase a narrativa dos seguintes julgados: TJSP, AI nº 2013106-10.2014.8.26.0000, Des(a). Rel(a). Maria Laura Tavares, 5ª Câmara de Direito Público, DJe 28/04/2014; TRF2, AI nº 2006.02.01.009188-7, Rel(a). Juíza Tania Heine, Terceira Turma Especializada, DJe 01/03/2007; e TRF2, AI nº 2006.02.01.005801-0, Rel(a). Juíza Tania Heine, Terceira Turma Especializada, DJe 02/03/2007. 191 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE (TRF1ª, AGA 0015774-27.2008.4.01.0000/PA, acórdão da minha relatoria, Oitava Turma, e-DJF1 de 5/12/2008 p.393). [...] Ante o exposto, com fulcro no art. 527, III, e 558, do CPC e do art. 29, XXIII, do RITRF 1ª Região, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, para determinar a suspensão da exigibilidade do débito tributário em discussão no processo do qual deriva este recurso (art. 151, II, do CTN), mediante a contratação e a apresentação, no juízo a quo, de apólice de seguro-garantia no valor do débito principal questionado, devidamente atualizado, acrescido de 30% (trinta por cento).111 (grifo nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento nº 31474-67.2013.4.01.0000/PA. Relator(a): Desembargador(a) Federal Maria do Carmo Cardoso, da Oitava Turma. Data da Publicação: 26/06/2013). Necessário frisar que, da leitura da decisão acima, a desembargadora federal enfrentou a possibilidade requerida pelo contribuinte por meio de seu poder geral de cautela (artigo 798 do CPC) e por uma interpretação analógica da disciplina do artigo 620 do CPC, que diz respeito quanto à efetivação do princípio da execução na forma menos gravosa ao executado. Em prol de uma interpretação conveniente (leia-se, benigna ao contribuinte), “Recomenda-se, quando cabível, a aplicação analógica do CTN, inclusive quanto à suspensão da exigibilidade do crédito”.112 Não foi outra em sua essência a conclusão a que chegou quanto à possibilidade do seguro garantia oferecido substituir os depósitos judiciais realizados, de modo a manter a suspensão da exigibilidade do tributo objeto de discussão judicial.113 Não bastasse, a rigor, outros argumentos são invocados em prol da concessão do pleito tal qual levado a juízo. Transcrevemos abaixo o voto do Desembargador Magalhães Coelho, publicado em recentíssimo acórdão pela 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo de Instrumento nº 2218601-51.2014.8.26.0000: 111 BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento nº 3147467.2013.4.01.0000/PA, da Oitava Turma. Agravante: Petróleo Brasileiro S/A – PETROBRAS. Agravado: Fazenda Nacional. Relator(a): Desembargador(a) Federal Maria do Carmo Cardoso. Brasília, DF. Publicado em 26 jun. 2013. Disponível em: <www.trf1.jus.br>. Acesso em: 15 jan. 2015. 112 Palavras externadas da Desembargadora Federal Nizete Lobato Carmo, da Sexta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, na decisão publicada em 19/02/2014 nos autos de Agravo de Instrumento nº 201202010155520. 113 BRASIL, Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Agravo de Instrumento nº 007644307.2012.4.01.0000/DF. Relator(a): Desembargador(a) Federal Maria do Carmo Cardoso, da Oitava Turma. Data da Publicação: 17/05/2013. 192 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Com o intuito de suspender a exigibilidade do crédito tributário, a agravante apresentou seguro garantia judicial, que não foi aceito pela agravada. Entretanto, não há motivo para a agravada se opor ao oferecimento do seguro garantia judicial, já que foi ele incluído pela Lei nº 13.043/14 no rol de garantias previstas no artigo 9º da Lei nº 6.830/80: [...] Referida Lei agora prevê expressamente o seguro garantia como garantia idônea, sendo equiparado à caução em dinheiro nos processos de execução fiscal, não havendo motivo para se manter a decisão agravada. Ademais, não deve prosperar o argumento da agravada de que o prazo de validade da garantia impediria sua aceitação, pois, além de possível a renovação da apólice, tem a Fazenda do Estado direito à substituição da garantia em qualquer fase do processo. Daí o porquê, dá-se provimento ao agravo para conceder a liminar, sustando a exigibilidade do crédito tributário. (grifo nosso) (SÃO PAULO, Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 221860151.2014.8.26.0000, Relator: Desembargador Magalhães Coelho, da Sétima Câmara de Direito Público. Data da Publicação: 05/03/2015) Portanto, antes que se diga que apenas o interesse fazendário se faz resguardado pela negativa da suspensão requerida pelo contribuinte que não opta em depositar o montante exigido, mister se fez mencionar as razões exernadas no acórdão acima, pois, este, corroborou o entender da Lei nº 13.043/2014 (abordada no tópico anterior), ostentado, aqui, sua equiparação à caução em dinheiro. Todavia, reconhecemos que, atualmente, cuida-se de um posicionamento nitidamente minoritário frente aos incontáveis julgados motivados em todo o país. Ademais, apesar de soar como um bom raciocínio os fundamentos dos precedentes acima transcritos para aqueles que não pretendem depositar valores em juízo para suspender a exigibilidade do crédito que vier a ser discutido, deve-se levar em conta que, hoje, é firme no âmbito do STJ, o entendimento no sentido de que o seguro garantia judicial não é equiparável ao depósito em dinheiro para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.114 114 Cf. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.260.192/ES. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, da Segunda Turma. Data da Publicação: 26/06/2012. 193 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 5 O NOVO CPC E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO: A FIANÇA BANCÁRIA E O SEGURO GARANTIA EQUIPARADOS AO DINHEIRO (IMPACTO NO ARTIGO 151 DO CTN?) Apesar de uma boa qualidade técnica do Código de Processo Civil ainda em vigor (Lei nº 5.869/1973), este vinha sendo submetido a constantes emendas. Tal fato acabou por gerar, nos últimos tempos, um clima social de desconfiança, com sérias repercussões sobre o sentimento de segurança jurídica em torno da prestação jurisdicional civil entre nós. “Era, de fato, aconselhável que fosse aplacado o verdadeiro furor renovativo com que se comandava a onda de reformas parciais da atual lei processual civil”, emanava em suas lições Humberto Theodoro Júnior (THEODORO JUNIOR, 2014, p. 38). Logo, venceu a ideia da adoção de uma nova codificação no País, materializada por meio da Lei nº 13.105/2015, cujas disposições ali expressas adentrarão no ordenamento jurídico pátrio em 2016 (prazo de vacatio legis). Todavia, em prol da colocação do tema deste artigo, vale, desde logo, chamar a atenção para o fato da evolução revestida pela arquitetura deste novo CPC, destacando aquela que consideramos, aqui, a mais relevante. Quase desnecessário frisar, nesse passo, que não existe em nosso conjunto de normas jurídicas um Código de Processo Tributário. O processo tributário, conjunto de atos administrativos e judiciais ordenados para dirimir controvérsias entre Fisco e Contribuintes, é conduzido por leis esparsas e subsidiariamente pelo CPC. Como resultado, várias das alterações promovidas pelo novo CPC influenciarão diretamente, não só as ações cíveis, mas também as demandas tributárias. Dentre as evoluções que estão previstas no novo CPC, merece destaque o parágrafo 2º do artigo 835.115 “§ 2o Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.” (grifo nosso) 115 194 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A inclusão de forma expressa da fiança bancária e do seguro garantia judicial equiparados ao dinheiro – justificativa elencada como um dos fundamentos favoráveis aos contribuintes que clamam a suspensão do crédito tributário – poderá vir a ser mais um argumento em favor dos contribuintes, afinal constitui verdadeiro “ponto de encontro” à realidade do artigo 151, II, do CTN (depósito em dinheiro). Fábio de Possídio Egashira garante: “dinheiro, fiança bancária e seguro garantia passam a ter o mesmo status” (MACEDO, 2015). Esclarecemos que, por se tratar de novíssima legislação e, consequentemente, pela falta de especialistas que se adentraram, ainda, nesta seara, modestamente não faltarão aqueles que irão defender que esta previsão legal do novo CPC não poderá se aplicar às execuções fiscais, tendo em vista que sua regulamentação se dá pela Lei nº 6.830/1980, bem como de que não poderá influenciar na taxatividade do artigo 151 do CTN. Referido dispositivo legal há de ser discutido com alguns temperamentos. Precisamente pelo que nos interessa no momento, a fiança bancária e o seguro garantia judicial equivalerão, após eventual execução de tal garantia, ao dinheiro e, de fato, assim será. Leonardo Sant’Anna Ribeiro ressalta que o novo Código “introduziu elemento que reforça o conceito de constrição menos onerosa ao devedor, que deve ser estendido às cobranças tributárias, devido à aplicação subsidiária do CPC aos demais casos” (MACEDO, 2015). Esta regra (artigo 835, parágrafo 2º, da Lei nº 13.105/2015), segundo o advogado, “segue uma tendência já evidenciada pelas alterações trazidas pela Lei 13.043/2014, que também colocou o depósito em dinheiro, a fiança bancária e seguro garantia no mesmo patamar, para fins de penhora”. Por fim, diante da repercussão prática da matéria que surgirá em instantes, o presente capítulo veio a ingressar no trabalho como pioneiro da exposição dos “problemas” que poderão emergir, concretamente, para o contribuinte na busca da suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento destas garantias, razão pela qual se revela oportuno e relevante sua apresentação. 195 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Longe de sermos conclusivos, a questão de fundo na controvérsia ora apresentada reside em analisar os argumentos forenses na formulação dos pedidos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário por meio do oferecimento de garantias em juízo, sobretudo sob a fiança bancária e o seguro garantia. Desse confronto de compatibilidade, extraem-se similitudes que podem ser desenvolvidas a partir dos permissivos legais aqui fixados. Nesse contexto, visando demonstrar ânimo aos interessados e colaborando para com a obtenção de uma resposta, não definitiva, mas ao menos satisfatória, identificamos críticas construtivas e consistentes o suficiente para acreditar que a discussão sobre o assunto não se encerrou. Ao menos por ora. Debater a questão é preciso. De modo evidente, as dificuldades relativas à admissibilidade da suspensão examinada por meio das garantias analisadas, referem-se à limitação ou ampliação do artigo 151 do CTN. As regras do Código Tributário Nacional pertinentes à matéria são claras no sentido de não haver espaço para outras condições que denotem a suspensão da exigibilidade, ou seja, não cabe ao aplicador da lei criar outras hipóteses de atuação do instituto da suspensão da exigibilidade do tributo, dada a sua excepcionalidade, de modo que se deve rejeitar quaisquer interpretações para se estender a incidência do instituto a situações semelhantes. No mesmo sentido defende a Fazenda Pública, ainda sob o argumento de haver uma distinção gritante entre o grau de proteção ao crédito exeqüendo garantido por dinheiro em relação à fiança bancária ou seguro garantia judicial. Entretanto, a aceitação desta idéia esta longe de ser unânime. Para certos especialistas não parece correto, sob o sistema em vigor, semelhante entendimento. Ao questionamento de qual fundamento legal ampararia o posicionamento adotado, a nota comum dessa tendência doutrinária e jurisprudencial é apontar, com perspicácia, dentre outros dispositivos que também foram merecedores de comentários mais detidos neste artigo, a regra do artigo 620 do CPC, trazido ao 196 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE universo da ação de execução fiscal por meio da autorização expressa do artigo 1º da Lei 6.830/1980. Apesar daqueles que defendem o uso do emprego de uma interpretação analógica do artigo 151, II, do CTN como subsídio favorável à suspensão do crédito tributário por meio de fiança bancária, o STJ, em precedente ornado com as vestes de paradigmático para os fins do artigo 543-C do CPC (Recurso Especial nº 1.156.668/DF), firmou posicionamento no sentido da impossibilidade de suspender a exigibilidade do tributo, pois a fiança bancária não ostenta o poder de arcar este efeito. No entanto, “há uma luz no fim do túnel”. Uma nova postura lúcida no Judiciário e no contencioso tributário poderá surgir. A quebra de um paradigma (aqui, em seu aspecto positivo ao questionamento traçado), consolidada no âmbito daquela Corte Superior, poderá ser assistida com a conversão em lei do PLP nº 142/2007, o qual, após o amadurecimento de ideias e concepções acerca do grau de certeza e liquidez ao crédito tributário garantido por fiança bancária, acrescentará no rol do artigo 151 do CTN justamente esta garantia como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Noutro giro e no escopo de fomentar o debate voltado ao mérito da aludida suspensão, o entendimento do STJ também é no sentido de ser incabível tal pretensão mediante oferecimento de seguro garantia. Destacamos no presente trabalho que o raciocínio apregoado comporta divergência em diversos tribunais de segundo grau. Porém, convenhamos, até então, ser uma corrente minoritária. Contudo, independentemente do posicionamento adotado, se a favor ou contra ao caminho da vinculação à literalidade normativa, os estudos e as experiências até aqui trocadas indicam que muito ainda pode ser feito no resguardo do interesse do devedor-contribuinte, aprofundando, assim, uma reflexão relativa entre aqueles operadores do Direito que tratam desse relevante tema na prática forense. Esperamos, assim, ter concedido uma humilde, porém, importante contribuição a fim de se melhorar o “padrão” dos debates acerca do questionamento travado. 197 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BALEEIRO, Aliomar. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário e prescrição. Revista de Direito Tributário, n. 9 e 10, jul./dez. 1979. CARNEIRO, Daniel Zanetti Marques. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário mediante oferta de carta de fiança em ação cautelar. 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Acesso em: 15 fev. 2015. 200 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DO PODER LEGISLATIVO E O PLEBISCITO COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO DEMOCRÁTICO THE CRISIS OF REPRESENTATIVENESS OF THE LEGISLATIVE POWER AN THE PLEBISCITE AS POPULAR PARTICIPATION WAY IN THE DEMOCRATIC PROCESS Gustavo Boletta Vieira116 Roosevelt Arraes117 RESUMO A partir da análise da conjuntura política-estrutural brasileira ao longo dos anos, é possível encontrar indicativos que possibilitam a afirmação da existência de uma crise de representatividade do Poder Legislativo. Os indicativos encontrados foram a debilidade partidária, a corrupção partidária e carência de credibilidade política e a falta de identificação entre representantes e representados. Esses indícios foram identificados de maneira mais nítida com as manifestações populares ocorridas em junho de 2013, na qual a população demonstrou uma enorme insatisfação com o atual modelo político, tornando-se uma voz política e solicitando por uma reforma do atual modelo políticorepresentativo em que a sociedade está inserida. A partir disso, foi reivindicado pela população uma reforma política, que aparentemente não trará nenhuma mudança estrutural considerável. Sob o contexto deste problema, o presente trabalho procurou analisar a necessidade de um maior fortalecimento da participação popular - que sempre esteve a margem da política - no processo democrático, a partir das formas de participação previstas em lei, especialmente através do plebiscito, o qual é a forma mais direta de participação popular. Palavras-chave: Crise de representatividade, manifestações populares, reforma política, participação popular, plebiscito ABSTRACT From the analysis of the political-structural Brazilian conjuncture over the years, it is possible to find indicatives that enable to affirm the existence of a representativeness crisis of the legislative power. The found indicatives were partisan weakness, partisan corruption and the lack of political credibility, and the absence of identification between representative and represented. These indications were 116 Graduando em direito no Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), especialista em Ética (2004), mestre (2006) e doutorando (2014) em Filosofia Jurídica e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é professor e pesquisador do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA e membro-pesquisador do Departamento de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Filosofia do Direito, com enfoque nas teorias modernas e contemporâneas da Justiça, e, em fundamentos do direito público (constitucional, eleitoral, penal e administrativo). 117 201 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE better identified within the popular protests that happened on July of 2013 when the population showed a huge insatisfaction with the current political model, becoming a political voice and claiming a reform of the current political-representative model, where the society is inserted. From that, a political reform was claimed by the population that apparently will not bring any considerable structural change. About the context of this problem, the following study aimed to analyze the need of strengthening the popular participation - always on sidelines from the political - in the democratic process, from the participation ways determined in law, specially through the plebiscite, which is the most direct way of popular participation. Key-words: Crisis of representation, demonstrations popular, political reform, popular participation, plebiscite 1 INTRODUÇÃO Ao longo da história política brasileira é possível averiguar alguns indicativos que permitem a afirmação de que nos últimos anos o Brasil está inserido em uma crise de representatividade do Poder Legislativo. Desse modo, ao aprofundar sobre quais seriam os indicativos referidos, constata-se a presença dos seguintes: debilidade partidária, corrupção partidária e carência de credibilidade política e a falta de identificação entre representantes e representados. A crise de representatividade surge quando a proximidade e a correspondência entre os interesses dos governantes e dos governados encontra-se demasiadamente afastada, gerando um enfraquecimento do elo de confiança entre representantes e representados, fator essencial para um modelo eficaz de representatividade. Dessa forma, é possível verificar de um modo mais nítido, quanto ao esgotamento do atual sistema político-representativo, provocado pelos efeitos da crise de representatividade, com as manifestações populares de junho de 2013, que dentre as pautas de reivindicação, solicitou uma reforma política. Essa reforma veio posteriormente ao debate no Congresso Nacional, gerando temporariamente algumas mudanças, pois ainda encontra-se em tramitação. No entanto, a reforma não está, aparentemente, sendo uma reforma transformadora, pois não há nenhuma mudança estrutural com o intuito de amenizar os efeitos da crise de representatividade. Assim, uma possível atenuação dos efeitos seria através do fortalecimento das formas de participação popular, principalmente através do plebiscito, afim de que os obstáculos legais impostos sejam rompidos, proporcionando a sua utilização de modo mais frequente. 202 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE LEGISLATIVA INSERIDA NO SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO Ao analisar o tema da crise de representatividade do Poder Legislativo brasileiro se faz necessário inicialmente verificar quais os possíveis indícios para afirmação de uma crise de representatividade e posteriormente abordar cada um deles de modo mais aprofundado, com o intuito de demonstrar uma provável saída ao problema enfrentado pelo sistema político brasileiro. Destaca-se que a presente análise será focada ao âmbito federal. O sistema representativo de democracia cria, artificialmente, uma espécie de elo de confiança entre representantes e representados, que consequentemente gera uma expectativa aos representados de que seus interesses serão devidamente correspondidos. No entanto, existem situações que provocam falhas nessa correspondência representantes provocando e uma representados, descrença essencial no elo para um de confiança sistema eficaz entre de representatividade. Dentre os indícios que permitem examinar a crise de representatividade política, destacam-se como principais: a) a debilidade partidária; b) os escândalos de corrupção e a carência de credibilidade política e; d) a falta de identificação de interesses entre representantes e representados. 2.1 DEBILIDADE PARTIDÁRIA Os partidos políticos vêm demonstrando, de longa data e não apenas no Brasil, certas debilidades. A análise da debilidade partidária leva em conta um conjunto de fatores e situações complexas. Dentre essas questões estão a burocratização partidária, a ideologia-estratégica dos partidos, o distanciamento das bases eleitorais e a forma do discurso político. Além dessas questões, outra tão importante quanto, é a transformação ou institucionalização dos partidos em partidos competitivos, sob a perspectiva de participação no mercado político. Todas essas questões estão de algum modo interligadas entre si, nas quais em algumas situações uma é efeito da outra e em outras, uma desencadeia a outra. 203 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A burocratização é um dos principais motivos da debilidade partidária, pois dela decorrem dois efeitos que formam o conjunto de situações que compõem a análise da debilidade partidária. De acordo com Claus Offe, a burocratização compreende-se no sentido do partido político montar uma estrutura, na qual o exercício da atividade burocrática é desenvolvida “[…] por uma equipe de funcionários do partido profissionalmente contratados que desenvolvem um interesse corporativo no crescimento e na estabilidade do aparato que lhes proporciona status e carreiras”118. Além disso, a burocratização dos partidos desenvolve-se da seguinte maneira: A organização burocrática do partido político moderno desempenha as tarefas de: (a) coletar recursos materiais e humanos (mensalidades dos membros, contribuições e donativos; membros, candidatos); (b) disseminar propaganda e informações sobre a posição do partido a respeito de um grande número de temas políticos diferentes; (c) explorar o mercado político, identificando novos temas e conduzindo a opinião pública; e (e) gerenciar o conflito interno (OFFE, 1984, p. 363-364). Uma das grandes consequências dessa prática adotada pelos partidos é o afastamento da base eleitoral, denominada por Claus Offe como a "desativação das bases do partido”119, pois diminui a discussão interna nos partidos, como também o debate com a própria população, uma vez que a ideia de um partido não unânime internamente prejudica a arrecadação de votos e a campanha eleitoral, dificultando a entrada do partido no mercado político ou a sua permanência em uma posição favorável. Verifica-se dessa maneira que o fenômeno da burocratização dos partidos enfraquece as discussões políticas internas e consequentemente a própria democracia, em razão da discussão política ser encobertada pela “aparente” unanimidade e consenso partidário. Quando algum membro sustenta uma posição política diferente do partido ou dos líderes do partido, como por exemplo votar em alguma pauta política de modo distinto daquilo que foi estabelecido, geralmente é reprimido ou até mesmo, como já constatado em algumas situações, expulso do partido. A imagem de um partido em conflito não é interessante, principalmente no 118 OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 364. 119 OFFE, 1984, p. 364. 204 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE período das disputas eleitorais, pois não é atraente para angariar os votos dos eleitores, fazendo com que o partido não esteja presente no mercado político competitivo. Além do fenômeno da burocratização, outro fator que contribui com a debilidade partidária é a transformação ou institucionalização do partido em partido competitivo, prática na qual o partido está em constante competitividade para alcançar e permanecer numa posição política favorável. Essa atitude faz com que o partido passe a utilizar todos os meios e formas para alcançar ou se perpetuar em um cargo governamental, nem que para isso tenha que distanciar-se de seus conteúdos políticos originais e/ou adequar-se às exigências do mercado político e da lógica do partido competitivo. As formas e meios mais comuns, além da burocratização e seus efeitos, que propiciam competitividade ao partido são as concessões e coalizões políticas e a moderação do discurso eleitoral. O afastamento dos partidos políticos dos interesses e vontades da população gera, como consequência, o enfraquecimento do sistema representativo de democracia, assim como o fortalecimento de uma espécie de oligarquia partidária, em que apenas uma pequena parcela de pessoas dita a forma de exercer a política. Portanto, quando os fenômenos que envolvem a debilidade partidária vão se fortalecendo, o regime democrático encontra-se ameaçado. Outro fator que contribui para essa instabilidade é o afastamento da população acerca do processo político, ou seja, a falta de participação da população sobre os assuntos e os debates políticos. Esse distanciamento gera uma sensação da população não fazer parte, ou de não se sentir presente nestes assuntos, acontecimento que não é desejável para uma sociedade democrática. Assim, quando a vontade popular se distancia exageradamente da vontade dos representantes, ocorre uma crise da democracia representativa. O professor Paulo Bonavides menciona, a respeito da crise do modelo representativo que, “com o Estado partidário, todo o sistema representativo tradicional entra em crise. O eleitor, o deputado, o Parlamento mesmo toma caráter distinto do que tinham durante o Estado liberal”120. Dessa maneira, a falta de comprometimento dos partidos com seus programas políticos, assim como o afastamento entre governantes e governados, 120 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 278-279. 205 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE devido também a falta de confiança, gera uma instabilidade capaz de proporcionar uma crise de representatividade. Durante décadas, a representação parecia estar fundamentada em uma forte e estável relação de confiança entre o eleitorado e os partidos políticos; a grande maioria dos eleitores se identificava com um partido e a ele se mantinha fiel. […] No passado, os partidos propunham aos eleitores um programa político que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao poder. Hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa, em vez disso, na construção de imagens vagas que projetam a personalidade dos líderes (MANIN, 1987, p. 1). Retornando à questão da competitividade dos partidos, verifica-se que as práticas realizadas para se tornar um partido competitivo são desempenhadas por aproximadamente todos os atuais partidos políticos brasileiros, independentemente serem de esquerda ou de direita, pois o objetivo principal é fazer parte e conseguir visibilidade no mercado político. No entanto, esclarece Claus Offe que esse comportamento ocasiona três efeitos, dos quais apenas os dois primeiros são importantes para a presente análise da debilidade partidária. O primeiro efeito relaciona-se com a questão ideológica do partido, cujo autor intitula como “desradicalização da ideologia do partido”121, descrevendo tal acontecimento da seguinte maneira: Para ser bem-sucedido nas eleições e na luta pelo cargo governamental, o partido tem que orientar seu programa para as conveniências do mercado político. Isto exige, primeiramente, a maximização dos votos através do apelo ao maior número possível de eleitores e, em consequência, a minimização dos elementos programáticos que podem criar antagonismos dentro do eleitorado. Em seguida, vis-à-vis os outros partidos, a habilidade de fazer coalizões e a restrição do âmbito das propostas políticas substantivas para se enquadrar às demandas que os sócios da coalizão em potencial estão dispostos a considerar ou a negociar (OFFE, 1984, p. 363). O segundo efeito consiste justamente no sentido de o partido assemelhar-se a uma organização burocrática para, dentro das conveniências do mercado político, tornar-se competitivo e “carimbar” sua presença na disputa eleitoral. Por fim, a última questão proposta como fatores da debilidade partidária envolve o discurso eleitoral, decorrente principalmente da transformação ou 121 OFFE, 1984, p. 363. 206 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE institucionalização dos partidos em partidos competitivos. Ora, é justamente para tornar-se competitivo que o partido político estende um “leque” de demandas para conseguir votos de diferentes partes da sociedade. Claus Offe denomina essa prática como “diversificação do produto”122, “no sentido de que ele [o partido] tenta apelar para uma série de demandas e preocupações diferentes”123. Assim, verificase o exaustivo esforço dos partidos políticos em angariar, através do discurso midiático das campanhas eleitorais, o maior número de votos da maior diversidade possível de eleitores. O importante é conseguir votos para eleger seus candidatos e estar constantemente presente no mercado político para alcançar o poder político. Desse modo, os partidos fazem pouco caso em estabelecer uma proximidade com os interesses e as vontades populares. O bem-estar geral vai cedendo espaço para os interesses particulares dos políticos e dos partidos e em decorrência o Estado democrático vai se enfraquecendo, assim como a população vai ficando à margem do processo político, apenas reaparecendo no período eleitoral, quando é procurada pelas campanhas dos partidos, com o intuito de destinaram-se às urnas para votação, exercendo sua cidadania e acreditando que com esta prática a democracia está sendo efetivamente realizada. Por toda análise dos fatores que envolvem a debilidade partidária, percebe-se que para o partido se tornar competitivo e conseguir alcançar um cargo governamental, é necessário atender as conveniências do mercado político, adequando-se à burocratização e atendendo ao modelo de partido competitivo. Desse modo, as consequências são os efeitos que cada prática promove, desgastando a própria referência do partido e a representatividade política, sendo os maiores prejudicados os interesses dos representados e a própria democracia. 2.2 OS ESCÂNDALOS DE CORRUPÇÃO PARTIDÁRIA E A CARÊNCIA DE CREDIBILIDADE POLÍTICA Após analisar as circunstâncias e os efeitos da debilidade partidária, resta averiguar os outros fatores que indicam e até mesmo favorecem a formação da crise 122 123 Ibid., p. 365. OFFE, 1984. 207 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de representatividade do Poder Legislativo. Um desses fatores é a corrupção partidária juntamente com as consequências que essa prática vem causando para o sistema de governo democrático, especialmente em relação à essência do modelo representativo. É difícil descrever se a corrupção partidária vem aumentando ao longo dos anos, com as eleições de novos governos, ou se há um maior espaço dentro dos meios de comunicação para divulgação dessa prática, em decorrência de uma maior sensibilização popular no sentido de abominar esse tipo de conduta por parte dos políticos eleitos. No entanto, ao observar as notícias publicadas nos meios de comunicação, percebe-se com maior frequência, notícias sobre denúncias ou escândalos de corrupção envolvendo partidos políticos ou pessoas ligadas a eles. Primeiramente, deve-se mencionar à título de esclarecer uma parte da análise, que a corrupção partidária não pode ser imputada a apenas uma pessoa ou grupo de pessoas, e muito menos que a responsabilização dessa prática seja dedicada a exclusividade de um partido. Não se deve atribuir a responsabilização da corrupção sob uma perspectiva individual, mas sob uma perspectiva conjuntural/sistêmica, a fim de evitar o desvirtuamento do problema a uma posição ideológica. Dessa maneira, procurando evitar uma análise individual, o professor Marco Aurélio Nogueira menciona que, “não há monopólio da corrupção por parte deste ou daquele grupo, partido político ou entidade; todos estão sujeitos a ela, passiva ou ativamente, e todos podem vir a praticá-la, ativa ou passivamente”124. Portanto a análise da corrupção partidária irá pautar-se sob o aspecto de um problema sistêmico, “[…] entranhada, como um componente oculto, não reconhecido, no imaginário e na cultura política da sociedade”125. A corrupção e também a corrupção partidária, não resume-se apenas ao desvio de verbas públicas, mas à qualquer forma de deterioração de um bem ou prática social. Neste sentido o filósofo Michael Sandel afirma que “corromper um bem ou uma prática social significa degradá-lo, atribuir-lhe uma valoração inferior à adequada”126. 124 NOGUEIRA, A. Marco. As Ruas e a Democracia: Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013, p. 205-206. 125 Ibid., p. 207. 126 SANDEL J. Michael. O Que o Dinheiro Não Compra: os limites morais do mercado. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 38. 208 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Por ser um tema difícil de ser mensurado, pois envolve inúmeros fatores e circunstâncias, poucas são as pesquisas de análise que demonstram quão corrupto é um país. Diante de uma pesquisa de análise, deve-se sempre observá-la sob um olhar crítico, já que seria um equívoco acreditar que o resultado de uma pesquisa de análise ofereceria todas as respostas que envolve o questionamento de um tema, justamente por tais pesquisas não levarem em consideração todos os aspectos e circunstâncias do assunto. Todavia, não significa que a pesquisa de análise não tenha alguma contribuição científica, elas auxiliam como uma referência ou um apontamento. No ano de 2014, a ONG Transparência Internacional elaborou um ranking127 dimensionando os países mais e menos corruptos. Ao todo, foram avaliados 174 países, com notas de 0 a 100. Quanto mais próximo a cem, mais limpo é o país, isto é, há menos corrupção. Quanto mais afastado de cem, mais corrupto é o país. Nessa avaliação, destaca-se em primeiro lugar a Dinamarca, com nota 92. Em último lugar está a Somália com nota 8. Dentre os melhores países classificados da América do Sul, encontram-se empatados na 21º colocação Chile e Uruguai, com notas 73. O Brasil ocupa a 69º posição, com nota 43. Desse modo, percebe-se que nenhum país é imune da corrupção, porém, como demonstram os primeiros colocados, é possível atenuar os efeitos dessa prática. Dentre os inúmeros exemplos que envolvem a corrupção partidária, tanto exemplos ocorridos no Brasil como em outros países, percebe-se que estão umbilicalmente interligados com excesso e/ou abuso de poder, pois esta prática “anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como um efeito colateral: onde há poder e poderosos há sempre a probabilidade de abuso, e no abuso está a raiz da corrupção”128. Para o professor Fernando Filgueiras “a corrupção está correlacionada ao comportamento rent-seeking, mediante o qual os agentes políticos tendem a maximizar sua renda privada”129. Desse modo, uma das principais consequências da prática da corrupção partidária é o desgaste do elo de confiança envolvendo representantes e 127 CORRUPTION PERCEPTIONS INDEX 2014: results. Transparency International. Disponível em: <https://www.transparency.org/cpi2014/results>. Acesso em 07 ago. 2015. 128 NOGUEIRA, 2013, p. 207. 129 AVRITZER, Leonardo et al. (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2012, p. 303. 209 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE representados, provocando uma falta de credibilidade nos representantes políticos. Logo, a própria concepção do partido político como intermediário entre a população e os representantes resta-se enfraquecida, contribuindo com os fatores referentes à debilidade partidária, simultaneamente com perda da credibilidade dos partidos em atender aos interesses da população. Assim, já que a forma representativa do governo democrático nas sociedades modernas é exercida por meio dos partidos políticos, observa-se o enfraquecimento dos mesmos e, consequentemente, do modelo representativo de democracia na atual forma como está estabelecido. Portanto, em outras palavras, observa-se que a debilidade partidária, principalmente por meio da burocratização e do modelo de partido competitivo, representa um dos fatores que proporciona a corrupção partidária. Esta, por sua vez, contribui para a baixa credibilidade partidária e consequentemente à essência do modelo representativo, gerando um afastamento da população do processo político e uma insatisfação com o atual modelo partidário-representativo de democracia. Dessa maneira, ressalta-se que a corrupção partidária é um problema sistêmico, que precisará de medidas também sistêmicas de solução para atenuar os efeitos que essa prática gera, principalmente à população, que sem sombras de dúvidas, é a parte mais prejudicada. Por esta razão, não se deve analisar a prática da corrupção partidária sob uma perspectiva individual, mas sob a ótica sistêmica. Medidas que não possuam esse cunho terão pouco, ou até mesmo nenhum efeito eficaz de combate e atenuação da corrupção partidária e suas consequências. 2.3 A FALTA DE IDENTIFICAÇÃO ENTRE REPRESENTANTES ELEITOS E REPRESENTADOS A falta de identificação dos representados perante os representantes, também pode ser compreendida como o enfraquecimento do elo de confiança entre os mesmos. Dessa maneira, busca-se afirmar que o conjunto desses três fatores debilidade partidária, corrupção e falta de confiança - indicam a existência de uma crise de representatividade do atual modelo democrático. Para Luis Felipe Miguel a crise de representatividade “se sustenta sobre três conjuntos de evidências relativas: (1) ao declínio do comparecimento eleitoral; (2) à 210 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ampliação da desconfiança em relação às instituições, medida por surveys; e (3) ao esvaziamento dos partidos políticos”130. Ao longo das últimas quatro eleições realizadas no Brasil, os indicativos demonstraram uma crescente taxa de abstenção eleitoral. De acordo com dados fornecidos pela Câmara dos Deputados131, nas eleições de 2002 o índice de abstenção foi de 17,74%. Nas eleições seguintes, em 2006, o índice diminuiu levemente, atingindo o percentual de 16,75%. No entanto, nas duas eleições posteriores o índice de abstenção aumentou, atingindo 18,12% nas eleições de 2010 e o recorde de abstenção no ano de 2014, chegando ao patamar de 19,39%. Para um país no qual o voto é obrigatório para a maioria das pessoas, conforme estabelecido no art. 14, parágrafo 1º, inciso I, da Constituição Federal, o elevado índice de abstenção torna-se preocupante. O baixo índice de comparecimento às urnas eletrônicas pode indicar tanto uma espécie de insatisfação, como uma forma de indiferença popular, ambos preocupantes e prejudiciais para o modelo representativo de democracia. A partir disso, surge uma onda de sentimento entre os eleitores de falta de representatividade, o que por sua vez gera uma apatia acerca do processo político, fazendo com que a cada nova eleição o índice de abstenção aumente, formando-se um ciclo vicioso. Para o professor Luis Felipe Miguel, “a baixa participação política é lida mais corretamente como expressão de uma sensação de impotência e estranhamento - ‘a política não é para gente como eu’ - do que de contentamento com a ordem estabelecida”132. Desse modo, afasta-se o argumento de que o aumento do índice de abstenção eleitoral demonstra uma satisfação com o modelo político, pois do contrário todos exerceriam o seu direito de voto para mudar a ordem estabelecida. Acerca da manifestação desse argumento, explica o referido autor que “[…] nos 1960 e 1970 foi difundida uma interpretação que via na abstenção eleitoral 130 MIGUEL, Luis F. Democracia e Representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Unesp, 2014, p. 98. 131 ÍNDICE DE ABSTENÇÕES atinge 19,4%, o maior das últimas quatro eleições gerais. Câmara Notícias, 06 out. 2014. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/475406-INDICE-DE-ABSTENCOESATINGE-19,4,-O-MAIOR-DAS-ULTIMAS-QUATRO-ELEICOES-GERAIS.html>. Acesso em 12 ago. 2015. 132 MIGUEL, 2014, p. 99. 211 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE um sintoma não de crise, mas de vitalidade da democracia representativa e de contentamento com o funcionamento das instituições”133. Essa conduta apática acerca do processo político por parte dos eleitores torna-se extremamente prejudicial diante de um dos pilares da democracia, qual seja, a participação popular, provocando um afastamento daquele que detém o poder e a soberania em um governo democrático, o povo, que permanece excluído das tomadas de decisões políticas. Portanto, verifica-se como a falta de identificação ou o enfraquecimento do elo de confiança entre representantes e representados produz significativos impactos na insatisfação e apatia popular, que tem por conseqüência o afastamento do povo do processo político. Todavia, a prática de abstenção eleitoral não é apenas identificada no modelo representativo brasileiro, mas um sintoma perceptível, de forma mais ou menos acentuada, na maioria dos países que adotam a forma de governo representativa da democracia, conforme dados do Internacional Institute for Democracy and Electoral Assistence (IDEA)134. Em relação ao aumento da desconfiança nas instituições estabelecida pelo autor, verifica-se sua elevação através das pesquisas de opinião pública. Novamente vale a pena fazer uma ressalva quanto a total credibilidade dos dados fornecidos por essas pesquisas, não podendo deixar de ser analisados criticamente, assim como não podendo ser ignorados, mas utilizados como indicativos. É possível observar que as desconfianças nas instituições políticas vêm aumentando de um modo generalizado em todos os países que adotam o modelo representativo de democracia. Pesquisas de opinião pública realizadas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa demonstram isso. A partir da análise das pesquisas elaboradas pelo National Opinion Research Center, nos Estados Unidos, e o pelo Eurobarômetro, na Europa, é possível sua verificação. De acordo com o Eurobarômetro (em pesquisa de 2011), em média 33% dos entrevistados, nos países da União Europeia, respondem que confiam nos seus parlamentares nacionais; quando a pergunta é sobre os governos nacionais, a média é de 32%. É ainda menor a confiança nas instituições europeias supranacionais; apenas 30% julgam que têm alguma influência 133 MIGUEL, 2014, p. 99. INTERNATIONAL IDEA SUPPORTING DEMOCRACY WORLDWIDE. Institute for Democracy and Electoral Assistence. Disponível em: <http://www.idea.int>. Acesso em 12 ago. 2015. 134 212 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE na condução da União Europeia. […] Nos Estados Unidos, as surveys do National Opinion Research Center mostram, de 1973 a 1993, uma queda acentuada na confiança popular no poder executivo (de 29% para 12%) e, ainda maior, no Congresso (de 24% para 7%) […] (MIGUEL, 2014, p. 100). No Brasil, os dados acerca da desconfiança nas instituições políticas são analisados pelo Índice de Confiança Social, medido anualmente pelo IBOPE135. Das instituições políticas examinadas, três são relevantes quanto a questão da crise de representatividade: (1) eleições, sistema eleitoral; (2) Congresso Nacional; e (3) partidos políticos. As eleições e o sistema eleitoral caíram, de 2009 para 2014, seis pontos. O auge foi o ano de 2010, possuindo 56% de confiança da população. No entanto, no ano de 2014, esse índice diminuiu para 43%. O Congresso Nacional, casa dos representantes no âmbito federal, permaneceu relativamente estável, tendo seu pior índice, 29%, no ano de 2013. Em 2014, o índice subiu para 35% de confiança dos cidadãos. Por último, quanto aos partidos políticos, o índice manteve-se baixo, possuindo em 2014, 30% de confiança. Com os demonstrativos desses dados, É possível detectar uma crise do sentimento de estar representado, que compromete os laços que idealmente deveriam ligar os eleitores a parlamentares, candidatos, partidos e, de forma mais genérica, aos poderes constitucionais. O fenômeno ocorre por toda a parte, a partir das últimas décadas do século XX, de maneira menos ou mais acentuada, atingindo novas e velhas democracias eleitorais (MIGUEL, 2014, p. 98). Desse modo, os dados coletados indicam uma falta de credibilidade alarmante das instituições políticas, enfraquecendo a essência de um modelo representativo de democracia, que é a proximidade dos interesses entre representados e representantes. Além disso, o modelo representativo não se demonstra efetivo quando a confiança nos representantes permanece com baixos índices de confiança. Esses dados indicam um desvirtuamento do modelo representativo, afastando-se dos interesses populares e gerando um elevado índice de insatisfação. 135 APÓS QUEDA ACENTUADA em 2013, índice de confiança social se estabiliza. IBOPE, 01 set. 2014. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Ap%C3%B3s-quedaacentuada-em-2013,Indice-de-Confianca-Social-se-estabiliza.aspx>. Acesso em 13 ago. 2015. 213 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3 AS MANIFESTAÇÕES POPULARES E A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE A dimensão da insatisfação popular diante das instituições, dos partidos políticos e também do modelo de representação, pôde ser melhor identificada nas manifestações populares de junho de 2013. Inicialmente articulada pelo Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo, as manifestações foram tomando outros rumos e proporções, atingindo inúmeras outras cidades por todo Brasil. Ao decorrer das manifestações, novas pautas começaram a ser levantadas e pessoas de diferentes grupos sociais começaram a aderir ao movimento. O que ocorreu foi uma insatisfação geral da população, nas quais as bandeiras levantadas abrangiam desde a má qualidade dos serviços públicos ofertados, como saúde e educação, em contraste aos elevados gastos públicos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, até pedidos pela reforma política e o fim da corrupção. Diante desse complexo número de reivindicações, se verificará a importância e relevância das manifestações ocorridas em junho de 2013, assim como o que ela representa diante do contexto da crise de representatividade do Poder Legislativo. Como antes mencionado, um modelo representativo eficaz exige uma correspondência mínima de interesses entre governantes e governados. Quando há uma falha significativa nessa correspondência o modelo representativo é abalado, o que provoca uma sensação de falta de representatividade. O crescimento dessa sensação provoca, ou uma insatisfação, ou uma apatia popular, ambos prejudiciais ao sistema democrático. Em relação às manifestações de junho de 2013, apesar de terem sido iniciadas pela luta de um movimento social, em sua conjuntura, a manifestação demonstrou um caráter de posição contrária ao atual sistema político representativo e sua forma de conduzir o processo político, evidenciando que os interesses entre representantes e representados não estão sendo adequadamente correspondidos. Analisando o conteúdo das manifestações, afirma a professora Raquel Rolnik que, “o velho modelo de república representativa, formulado no século 214 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE XVIII e finalmente implementado como um modelo único em praticamente todo o planeta, dá sinais claros de esgotamento”136. É difícil determinar o marco temporal que propiciou uma onda de insatisfação e apatia política que vem atingindo a população brasileira. No entanto, verifica-se que as manifestações não se dirigiram a um partido ou uma pessoa específica, mas ao atual modelo representativo como um todo. Apesar das manifestações de junho terem durado um período relativamente curto, a população conseguiu ao menos ser ouvida, tornando-se naquele momento uma voz política. Dessa maneira, quando mobilizado e organizado, o povo demonstra toda a sua força para propor suas reivindicações e mudanças estruturais137. Em um país no qual os meios de comunicação estão nas mãos de um restrito grupo econômico que detém o monopólio dos meios de comunicação, apenas atendendo aos seus interesses particulares, o meio mais efetivo da população reivindicar direitos, protestar e pedir mudanças estruturais é a partir das manifestações de rua. Graças a esse movimento, a população brasileira chamou a atenção dos políticos para que seus interesses sejam ouvidos e atendidos. Diante dessa situação, o Congresso Nacional, assim como a Presidente da República, anunciou que atuariam com o intuito de atender às pretensões levantadas nas manifestações, especialmente em relação à reforma política. Portanto, conseguiu-se com que o tema fosse aberto para discussão. Todavia, o debate concentra-se restrito às sessões do Congresso Nacional, não havendo a inserção da sociedade civil na discussão. Diante dessa situação, como poderá um debate sobre a reforma política, no qual a população não participa, mudar a estrutura do sistema político representativo para atender aos anseios populares, que exigem ser ouvidos, assim como uma maior democratização da política? Apesar disso, a organização Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, mobilizou-se 136 MARICATO, Ermínia et al. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1 ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 12. 137 Um exemplo que demonstrou a efetividade das manifestações populares de junho de 2013 foi referente à rejeição da PEC 37. Antes da população tomar as ruas, estava em tramitação no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional cujo conteúdo tinha por objetivo impedir a realização de investigações criminais pelo Ministério Público. Havia indicativos, nos bastidores do Congresso, de que a proposta seria aprovada. Com o início das manifestações, uma das bandeiras levantadas foi justamente contra a PEC 37. Pressionados pela força política das ruas, os deputados que antes aparentavam votar favoravelmente à proposta, votaram, a grande maioria, pela sua rejeição. 215 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE para a criação de um projeto de lei de iniciativa popular138 visando a alteração da lei 4.737/65 (Código Eleitoral), da lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), da lei 9.504/97 (Lei das Eleições) e da lei 9.709/98, com o intuito de promover uma reforma política e uma eleição mais limpa. Ainda que não tenha tido um desfecho, pois encontra-se em processo de votação no Congresso Nacional, a proposta de reforma política não leva em consideração inúmeros aspectos relevantes para uma verdadeira e transformadora reforma. Ao que parece, haverá algumas mudanças, mas não conforme o exigido pelas manifestações. Assim, muda-se a roupagem, mas continua o mesmo modelo político-representativo, o qual a sociedade civil encontra-se sem voz política e ao mesmo tempo afastada do processo de participação nas tomadas de decisões. Portanto, o desafio agora encontra-se em concretizar as mudanças requeridas e oferecer uma resposta ao problema exposto. 4 O DEBATE SOBRE A REFORMA POLÍTICA NO CONGRESSO NACIONAL Após as manifestações de junho de 2013, o ano de 2014 foi marcado pelas acirradas eleições tanto no âmbito federal quanto estadual. Com o fim das eleições, houveram mudanças na composição política do Congresso Nacional, em decorrência do aumento das bancadas conservadoras. Inserida nessa nova composição política, a proposta de reforma política voltou ao debate no Congresso. O debate sobre a reforma política chegou ao Congresso Nacional através de uma proposta de emenda constitucional139, organizada por um grupo de trabalho coordenado pelo ex-deputado Cândido Vaccarezza, no final do ano de 2013. Ao decorrer do ano de 2014, a proposta da reforma política passou pelo longo procedimento de tramitação na Câmara dos Deputados, incluindo a passagem por comissões, audiências e votações. No entanto, tal proposta não chegou a ser 138 PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR: reforma política democrática e eleições limpas. Reforma Política e Eleições Limpas Coalizão Democrática, Brasília, 16 out. 2013. Disponível em: <http://mcce.org.br/site/pdf/PL%20%20Coalizao%20Democratica%20pela%20Reforma%20Politica%2 0e%20Eleicoes%20Limpas_registro%20cartorio.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2015. 139 PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO. Grupo de Trabalho Destinado a Estudar e Elaborar Propostas Referentes à Reforma Política e à Consulta Popular Sobre o Tema. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1176709&filename=PEC+ 352/2013>. Acesso em 24 ago. 2015. 216 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE concluída e votada nas duas casas que compõe o Congresso Nacional, sendo arquivada no início do ano de 2015, em decorrência do final da antiga legislatura. Com as mudanças na composição política do Congresso Nacional no ano de 2015, incluindo a alteração do presidente da Câmara dos Deputados, a proposta de emenda constitucional sobre a reforma política voltou a ser pauta da agenda do Congresso Nacional com o pedido de desarquivamento da proposta, assim como a criação de um comissão especial para analisar o tema. Os mesmos assuntos que constituíram a proposta iniciada em 2013 voltaram ao debate no começo do ano de 2015. Conforme o estabelecido no art. 60, parágrafo 2º, da Constituição Federal, toda proposta de emenda constitucional exige votação em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional, com aprovação de três quintos de seus membros. De acordo com as votações, as mudanças mais relevantes para o presente tema estão ocorrendo acerca do financiamento das campanhas políticas, da fidelidade partidária e dos projetos de iniciativa popular. Ressalta-se que as mencionadas mudanças são apenas narrativas do processo de tramitação, em razão da proposta da reforma política ainda não ter sido concluída no Congresso Nacional. Em relação à fidelidade partidária, a Constituição Federal não estabelece nenhuma regra acerca do assunto. No entanto, com a proposta da reforma política, foi aprovado na Câmara dos Deputados, que os candidatos eleitos que, sem uma justa causa, desligarem-se do partido pelo qual foram eleitos, perderão seus mandatos políticos. Com essa mudança, a reforma neste ponto apresenta-se interessante, em razão de aparentar uma tentativa de fortalecimento dos partidos políticos, assim como a identificação e o comprometimento dos candidatos eleitos com o programa político do partido. Visto dessa forma, a alteração referente à fidelidade partidária mostra-se positiva quanto à atenuação dos efeitos da debilidade partidária. Quanto às mudanças sobre os projetos de iniciativa popular, percebe-se que conforme o atualmente estabelecido, existe uma grande dificuldade na apresentação desses projetos diante do Congresso Nacional, em razão da exigência de 1% de assinaturas do eleitorado nacional, obtidas em pelo menos cinco estados, tendo um mínimo de 0,3% dos eleitores em cada um deles. Foi proposto e aprovado até o 217 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE momento, uma maior facilidade para apresentação de projetos de iniciativa popular, com a diminuição dos atuais percentuais. Assim, de acordo com a proposta, será exigido apenas quinhentas mil assinaturas, em pelo menos cinco estados, com um mínimo de 0,1% dos eleitores. Desse modo, também apresenta-se como uma mudança positiva ao facilitar a participação popular dentro do processo político, a partir de projetos de lei de iniciativa popular, permitindo que a sociedade civil tenha mais de voz política e participação. Apesar de algumas mudanças apresentarem-se positivas, outras, no entanto, caminham em sentido contrário. Em relação ao financiamento das campanhas políticas, a Câmara dos Deputados regrediu, e muito, ao aprovar o financiamento privado de campanhas. De acordo com a proposta, pessoas jurídicas poderão fazer doações apenas à partidos políticos, já pessoas físicas poderão doar tanto para partidos quanto para candidatos. O tema acerca do financiamento privado gerou grande polêmica, tanto entre os membros do Congresso Nacional como entre outras esferas da sociedade civil. Inúmeras entidades, incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), manifestaram-se contrários ao financiamento privado. Em razão disso, essas entidades elaboraram uma cartilha a respeito do tema da reforma política e eleições limpas140. Ao fazer uma análise de dados e a relação que o financiamento privado possui com as campanhas eleitorais, verificou-se uma enorme influência tanto em relação a prioridade de interesses das empresas que investem em campanhas, quanto no resultado do processo eleitoral. Por essas razões, o debate acerca do financiamento privado gerou tanta polêmica. Todavia, verifica-se que constitucionalizar o tema é extremamente prejudicial ao modelo democrático, principalmente por estimular os fatores que envolvem a debilidade partidária, como a corrupção partidária, a burocratização dos partidos e o afastamento de suas bases eleitorais. O grave problema do financiamento privado de campanhas é que apesar da conotação usada ser “doação”, trata-se na verdade de investimento. Nenhuma empresa privada, com possíveis exceções, faz doações. A destinação do dinheiro 140 CARTILHA DO PROJETO. Reforma Política e Eleições Limpas Coalizão Democrática. Disponível em: <http://www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/>. Acesso em: 28 ago. 2015. 218 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE para uma campanha é um investimento para quando o candidato for eleito poder retribuir aquele dinheiro inicialmente investido. Todavia, essas “doações” não ocorrem de modo transparente, mas de maneira a ocultar o nome das empresas investidoras. Prova de que se trata de um investimento ao invés de “doação”, é verificada quando se constata as inúmeras vantagens das quais essas empresas possuem, seja através de contratos com empresas públicas, seja através de facilidade de financiamento junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O Instituto Kelloggs, ligado à Universidade do Texas, realizou uma pesquisa no Brasil onde revelou-se que, para cada real doado, as empresas recebem um retorno da ordem de R$ 8,50 em contratos públicos. Isso corresponde a um retorno de 850% do investimento e significa que o dinheiro privado que entra na campanha é recompensado com lucros vultuosos provenientes de recursos públicos (REIS, 2013, p. 161). Portanto, não se trata de uma coincidência, mas de uma negociação por troca de favores, que em outras palavras significa corrupção partidária. Desse modo, o financiamento privado de campanhas torna-se nocivo ao desenvolvimento sadio da democracia. A palavra democracia possui o condão de “governo do povo” e sob a perspectiva de um modelo representativo, os interesses do povo é que devem ser atendidos pelas políticas dos representantes. No entanto, o financiamento privado inverte essa lógica ao priorizar e beneficiar os interesses de alguns particulares. São por essas razões que afirmou-se anteriormente que ao constitucionalizar o financiamento privado das campanhas o Congresso Nacional estará retrocedendo pois, essa atividade torna o certame eleitoral profundamente injusto, permitindo que os partidos que recebem maiores “doações”, possam aproveitar de vantagens superiores ao disputar o voto dos eleitores. Desse modo, a democracia vai cedendo espaço à influência do poder econômico no destino das eleições. Esclarece o professor Daniel Sarmento sobre a questão do poder econômico nas campanhas eleitorais que “nesse modelo, o que garante a vitória de 219 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE um candidato não é tanto a popularidade ou qualidade de suas propostas, mas a quantidade de recursos que consegue angariar”141. Além disso, essa atividade provoca o afastamento dos partidos das suas bases eleitorais, assim como da população em geral, em razão das doações proporcionarem elevadas quantias financeiras para as campanhas eleitorais angariarem votos. Sendo assim, serão atendidos prioritariamente os interesses daqueles que contribuem com as campanhas em uma relação de negociação e troca de favores e posteriormente, se houver vontade política, serão atendidos os interesses da população em geral. Assim, reafirmando a questão do financiamento privado contribuir com a corrupção partidária e proporcionar o afastamento popular dos assuntos políticos, na qual tais acontecimentos são alguns dos fatores que proporcionam a crise de representatividade, continua o mesmo autor, Tal cenário contribui, ainda, para a crise de representação e para o afastamento do povo da política. Afinal, se os políticos reúnem os recursos necessários para se eleger apenas juntos a empresas, sem precisão de cidadãos, o esquema de arrecadação de fundos diminui a capilaridade do sistema representativo e cidadãos comuns ficam com a impressão de que a política simplesmente não é para eles (OSORIO; SARMENTO, 2011, p. 11). Portanto, a proposta de emenda constitucional sobre a reforma política deixa de levar em consideração outros temas importantes para uma verdadeira reforma. É preciso debater sobre mecanismos que melhorem a eficácia do modelo representativo e atribuam maior participação popular no processo democrático, principalmente através das medidas de democracia direta previstas no art. 14 da Constituição Federal e regulamentadas pela lei 9.709/98, sem esquecer que a sociedade civil deve ser incluída na elaboração da proposta, assim como na participação da discussão. 141 OSORIO, Aline; SARMENTO, Daniel. Uma Mistura Tóxica: política, dinheiro e o financiamento das eleições. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/1/art20140130-01.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2015. 220 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 5 AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu ordenamento a possibilidade da democracia ser exercida tanto sob o modelo representativo quanto participativo, revelando-se uma constituição que aborda elementos das duas principais formas de exercer a democracia. Assim estipula o art. 1º, parágrafo único: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”142. A Constituição expressamente prevê o exercício da forma participativa de democracia, fundada no princípio fundamental da soberania popular estabelecido no artigo acima mencionado. Pelo exposto, a participação popular poderá ser exercida através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. A iniciativa popular, dentre todas as formas de participação da população, é a que ocorre com mais frequência no Brasil. A iniciativa popular caracteriza-se pela possibilidade da sociedade civil elaborar um projeto de lei, desde que preenchidos determinados requisitos, e encaminhar ao Poder Legislativo, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, para sua apreciação. Esta forma de participação popular está prevista no art. 61, parágrafo 2º da Constituição Federal. O art. 61 da Constituição estabelece a execução da iniciativa popular no âmbito federal, no entanto, há também a previsão para sua ocorrência no âmbito estadual, conforme o disposto no art. 27, parágrafo 4º, e no âmbito municipal, presente no art. 29, inciso XIII, ambos da Constituição. Além do disposto na Carta Magna, a lei 9.709/98 regulamenta a execução das formas de participação popular. Em relação à iniciativa popular, estabelece a lei, no art. 13 e parágrafos e no art. 14, que os projetos de lei de iniciativa popular devem restringir-se em apenas um assunto e não poderão ser rejeitados por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados as devidas correções. Observa-se que há uma pequena regulamentação acerca da participação popular através da iniciativa popular. Dessa forma, a ausência de uma maior regulamentação gera algumas lacunas em relação aos projetos de lei de iniciativa popular, especialmente quanto ao tempo de sua 142 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 30 ago. 2015. 221 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE tramitação no Congresso Nacional. Ressalta-se que essas lacunas enquadram-se em todas as formas de participação popular e não apenas à iniciativa popular. Devido a estas lacunas, alguns projetos de iniciativa popular chegam a levar quase dez anos de tramitação no Congresso Nacional, fator que desmotiva e leva à descrença nessa alternativa. Desde a Constituição de 1988, apenas quatro projetos de iniciativa popular foram apreciados e aprovados pelo Congresso, tornando-se lei. São eles: a) lei 8.930/94, que altera a redação dada à lei de crimes hediondos; b) lei 9.840/99, que altera o Código Eleitoral no combate à corrupção eleitoral e na ampliação de condições à Justiça Eleitoral para coibir a compra de votos; c) lei 11.124/05, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Moradia; e d) lei complementar 135/2010, que dispõe sobre a inelegibilidade de mandatos políticos. Pelos exemplos mencionados, verificam-se poucos casos de projetos de lei de iniciativa popular ao longo dos quase trinta anos da democracia brasileira, demonstrando as dificuldades presentes nessa forma de participação popular. Visto as atuais dificuldades para propositura de projetos de lei de iniciativa popular, somada às lacunas que ainda existem sobre os procedimentos dos projetos, espera-se que com a alteração dos percentuais atualmente exigidos pela proposta de reforma política os projetos de iniciativa popular possam ser mais utilizados e aproveitados, ampliando a participação popular no processo democrático a partir deste instrumento. Todavia, ainda falta a elaboração de um regulamento que preencha as lacunas presentes nos projetos legislativos de iniciativa popular, assunto sobre o qual ainda há pouca discussão. Outra forma de participação popular é o referendo, também regulamentado pela lei 9.709/98. A palavra referendo, decorre do latim cuja origem etimológica é “submissão da lei, proposta ou em vigor, ao voto direto do povo; direito do povo votar diretamente esta lei”143. O referendo possui uma peculiaridade em relação às outras formas de participação popular. Ele é utilizado quando o Congresso Nacional já decidiu a matéria acerca de um ato legislativo ou administrativo e convoca a população para ratificá-lo ou rejeitá-lo, conforme sua previsão no art. 2º, parágrafo 2º, da lei 9.709/98. Esta forma de participação popular também possui lacunas legislativas devido ao texto que o regulamenta ser demasiadamente subjetivo. Ao 143 AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006, p. 99. 222 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE descrever “matérias de acentuada relevância”, o texto legal torna-se extremamente subjetivo, pois quais matérias seriam relevantes? E quais não seriam? Por essa razão, verifica-se a necessidade de uma melhor regulamentação referente ao disposto sobre a convocação do referendo como forma de participação popular. O referendo pode ser convocado, tanto pela união, quanto pelos estados, municípios e distrito federal, conforme determina o art. 6º da lei 9.709/98, desde que respeitados a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do respectivo ente federado. Promulgado o ato legislativo ou administrativo, a convocação do referendo ocorrerá no prazo de trinta dias, contados da data da promulgação, de acordo com o art. 11 da referida lei. A convocação de consulta popular, seja o referendo, seja o plebiscito, ocorre mediante decreto legislativo, cuja competência no âmbito da federação é exclusiva do Congresso Nacional, conforme o disposto no art. 49, inciso XV, da Constituição, assim estabelecido: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV autorizar referendo e convocar plebiscito”144. Dessa forma, não é possível a convocação de consultas populares através da própria manifestação do povo, mas apenas pelo Congresso Nacional. Verificado a falta de correspondência entre os interesses dos representantes e dos representados, observa-se que pouquíssimas vezes foi autorizado o referendo no Brasil, tornando as consultas populares pouco efetivas, já que determinada prática não é do interesse dos representantes ou daquele seleto grupo que financiam suas campanhas. Por essas razões, tem-se apenas um único registro na história política do Brasil da autorização ou convocação do referendo ocorrida no ano de 2005 acerca da proibição ou não da comercialização das armas de fogo e munições. 5.1 O PLEBISCITO Analisada a iniciativa popular e o referendo como formas de participação popular, resta observar a última e mais direta forma de participação, o plebiscito. A palavra plebiscito possui sua origem etimológica decorrente do latim, plebiscitum, 144 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 30 ago. 2015. 223 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE cujo primórdio encontra-se na civilização romana. Nesta época, o plebiscito era uma forma de participação popular, cuja votação era proferida por uma assembleia do povo, sendo composta por plebeus. Dessa maneira, a primeira parte da palavra, plebis, significa povo, enquanto a segunda parte, scitum, possui a conotação de decreto. Assim, plebiscito significa decretos da plebe. A regulamentação do plebiscito, assim como as outras formas de consultas populares, está estabelecida na lei 9.709/98. No entanto, é necessário primeiramente, distinguir o conceito e a utilização de instrumentos que as vezes são confundidos, quais sejam, o plebiscito e o referendo. De acordo com o art. 2º, parágrafo 1º, da lei 9.709/98, “O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido”145. A principal diferença entre plebiscito e referendo está relacionada quanto ao momento da convocação em relação ao ato legislativo ou administrativo submetido à consulta. Assim, plebiscito e referendo podem ser convocados para matérias de mesmo conteúdo. O que a lei diferencia entre os dois instrumentos está relacionado apenas ao momento da convocação de cada um. A regulamentação do plebiscito no ordenamento jurídico brasileiro encontrase presente na Constituição Federal de 1988 e na lei 9.709/98. De acordo com a Constituição, o plebiscito será convocado quando houver incorporação, subdivisão ou desmembramento de estado, conforme art. 18, parágrafo 3º, ou ainda quando houver criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios, previsto no art. 18, parágrafo 4º. Essas alterações só poderão ocorrer através da aprovação popular das pessoas atingidas pelas mudanças geográficas e de aprovação mediante lei complementar do Congresso Nacional, no caso de mudanças geográficas envolvendo estados. Em relação aos municípios, além da aquiescência popular, é necessário a aprovação de lei estadual na Assembleia Legislativa para realização da mudança territorial. Neste mesmo sentido é a redação do art. 5º da lei 9.709/98. Desse modo, quando convocados, tanto o plebiscito quanto o referendo serão aprovados ou rejeitados por maioria simples, conforme resultado homologado junto ao Tribunal Superior Eleitoral, como dispõe o art. 10 da referida lei. Portanto, o 145 BRASIL. Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 nov. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 01 set. 2015. 224 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE plebiscito pode ser convocado nos casos de alteração territorial previstos na Constituição e nos casos de relevância nacional, estipulado na lei 9.709/98. Comparado ao referendo, afirma-se que o plebiscito é a forma mais direta de participação popular pelo fato de sua convocação ser feita antes da aprovação do ato legislativo ou administrativo no Congresso Nacional. Dessa maneira, a população não é convidada para ratificar ou rejeitar uma proposta já confirmada, mas para ela própria manifestar-se acerca da sua escolha. Todavia, a regulamentação acerca das consultas populares ainda é extremamente vaga, utilizando-se como exemplo as lacunas anteriormente apresentadas. Além disso, existem alguns fatores que dificultam a incidência das participações populares, e por esta razão, faz surgir os seguintes questionamentos: a) as decisões populares possuem caráter vinculante ou consultivo perante o Congresso Nacional?; b) quais matérias possuem acentuada relevância e como elas são determinadas para convocar a população?; e por fim, c) a exclusividade do Congresso Nacional para convocação de plebiscitos e referendos apresenta-se como um obstáculo às formas de participação popular no processo democrático? Em relação ao primeiro questionamento, Maria Benevides defende o caráter vinculante do referendo. Ao referir-se sobre o plebiscito, por se tratar de uma decisão futura, a autora não menciona que este instrumento deva ter sempre caráter vinculante. Quanto aos dois últimos questionamentos, verifica-se que nem a Constituição, nem a lei que regulamenta a execução das formas de participação popular, definem ou indicam critérios para determinar qual matéria possui ou não acentuada relevância. Com a omissão do texto legal, cabe ao Congresso Nacional determinar a relevância do assunto para convocação popular. A partir disso, constata-se como é pouco democratizado a determinação de assuntos para convocação da participação popular. Em um contexto de crise de representatividade intensifica-se ainda mais o problema, pois além do sentimento de falta de representatividade, a sociedade civil não possui instrumentos para, a partir da sua própria manifestação de vontade, convocar referendos ou plebiscitos. Diante dos problemas referentes às omissões do texto legal, foram apresentados projetos de lei ao Congresso Nacional com o objetivo de alterar algumas disposições da lei 9.709/98 e dessa maneira, tornar as formas de 225 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE participação popular mais efetivas. Dentre as tentativas de alterações, destaca-se o projeto de lei 4.718/2004146, o qual apresenta significativas alterações na lei 9.709/98, com o intuito de melhor disciplinar as formas de participação popular, afim de que sejam utilizadas com maior frequência. O projeto prevê a possibilidade de convocar consultas populares tanto por meio do Congresso Nacional, quanto por meio de iniciativa popular, desde que atingidos 1% do eleitorado. Dessa forma, caso seja aprovado, a convocação das consultas populares não será apenas exclusividade do Congresso, mas a população, ao manifestar-se, também poderá convocar consultas populares. Além disso, outra questão importante que o projeto de lei aborda é a identificação de matérias que podem ser consultadas mediante participação popular. Visto as regulamentações, os critérios de convocação, os procedimentos e os projetos de mudança da atual legislação referentes as formas de participação popular, verifica-se ao longo da história política do Brasil, que poucos foram os casos de convocação popular através de plebiscitos. O primeiro plebiscito convocado foi no ano de 1963, o qual coube a população brasileira optar entre o presidencialismo e o parlamentarismo como sistemas de governo, na qual a ampla maioria da população escolheu pelo retorno do sistema presidencialista. Passados trinta anos após a convocação do primeiro plebiscito da história política do Brasil, em 1993, foi convocado o segundo e último plebiscito. O plebiscito convocado em 1993, estabelecido no art. 2º das disposições transitórias da Constituição, possui a seguinte redação: “No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País”147. Após a convocação, a população brasileira escolheu pela república como forma de governo e pelo presidencialismo como sistema de governo. 146 PROJETO DE LEI 4.718/2004. Regulamenta o art. 14 da Constituição Federal, em matéria de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=260412&filename=PL+471 8/2004>. Acesso em: 02 set. 2015. 147 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 07 set. 2015. 226 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Desse modo, percebe-se como foram escassos os casos de convocação de consultas populares ao longo do período democrático brasileiro, principalmente pelo entrave colocado para sua realização. […] a exclusividade da convocação de consultas nas mãos dos poderes constituído; o rígido controle de constitucionalidade; a supremacia do Legislativo, através do poder incontrastável de maioria parlamentar; a inflexibilidade na definição de prazos e de elevado número de assinaturas para o encaminhamento de propostas de referendo ou de iniciativa popular (BENEVIDES, 1991, p. 157). Portanto, ao retomar a história das convocações populares ocorridas no Brasil, verifica-se quão inexpressivo foi e ainda é a participação popular no processo democrático, principalmente se comparado com outras sociedades democráticas, como Estados Unidos e Suíça. Assim, percebe-se as limitações impostas a esta forma de exercer a democracia, na qual a população brasileira ficou afastada, permanecendo à margem no exercício da democracia, demonstrando a falta de participação popular no processo democrático. 5.2 O PLEBISCITO E SEUS CRÍTICOS Após analisar a forma mais direta de participação popular, deve-se mencionar as críticas atribuídas quanto à utilização do plebiscito como forma de consulta popular. Dessa forma, se faz necessário verificar o desvirtuamento dos instrumentos de participação popular, principalmente em relação ao plebiscito, averiguando casos ocorridos em outras sociedades e suas mazelas ao sistema democrático. Todavia, antes desta análise, cabe ressaltar que o presente trabalho não tem a intenção de argumentar que a forma participativa de democracia é melhor que a forma representativa, ou que apenas a democracia participativa deva ser utilizada como único modelo de democracia, excluindo-se a forma representativa. Mas, apenas que a forma participativa deva ser melhor regulamentada e utilizada com maior frequência, afim de que haja menos obstáculos às consultas populares, com o intuito de uma maior participação popular no processo democrático, atendendo melhor aos interesses populares e amenizando os efeitos da crise de 227 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE representatividade. Ressaltado esse ponto, resta analisar as críticas feitas ao plebiscito quando usado de uma forma descaracterizada de sua natureza, com o intuito de promover ou legitimar ditaduras pessoais. Entre as sociedades que passaram por este fenômeno, a francesa é o exemplo mais significativo. Ao assumir como chefe de Estado, Napoleão I utilizava-se do plebiscito como forma de consulta popular, alegando agir em nome da vontade do povo, para, ao invés do declarado, legitimar suas vontades pessoais e sua permanência no poder. Dessa forma, “o plebiscito era como um banho purificador que legitimava todas as ilegalidades”148. Napoleão I, explorava a soberania popular como um meio de realizar os seus interesses, aparentando um aspecto de legalidade de seus atos. Enquanto conseguia beneficiar-se da soberania popular, Napoleão I acreditava ser o representante da coletividade. Neste caso, um governo monárquico disfarçava-se como democrático mediante a utilização dos instrumentos de consulta popular. É possível estas verificações nos períodos pré-napoleônico e napoleônico, a partir dos assuntos que foram convocados e posteriormente aprovados. Os referendos da época pré-napoleônica e napoleônica são chamados de “plebiscitos” e foram realizados com altíssima taxa de apoio ao regime e à pessoa do seu chefe: a aprovação da Constituição do ano VIII; a adoção do consulado vitalício em 1802; a aprovação da hereditariedade imperial em 1804; a aprovação do Ato Adicional à Constituição do Império em 1815; a aprovação da proclamação de Luís Napoleão, em 1851; o restabelecimento da dignidade imperial, em 1852; o apoio ao regime em maio de 1870 (sete vezes mais votos ‘sim’); e o apoio ao Governo da Defesa Nacional, em Paris, novembro de 1870 (BENEVIDES, 1991, p. 59). Dessa forma, observa-se que os assuntos aprovados pela consulta popular beneficiavam mais aos interesses pessoais do chefe de Estado que ao atendimento da vontade do povo, o que demonstra a utilização desvirtuada do plebiscito como forma de legitimar e aparentar certa legalidade aos atos praticados pelo monarca. Além dessa prática utilizada por Napoleão I, também se beneficiaram das distorções das consultas populares Napoleão III e posteriormente o presidente francês De Gaulle, nos anos de 1962 e 1969. Em relação a este último, as explorações das consultas populares como forma de legitimar interesses individuais 148 MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Brasília: Ed. da UnB, 1982, p. 125. 228 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE do chefe de Estado ocasionaram a própria renúncia do presidente, quando convocou a população para decidir sobre a criação de regiões e renovação do Senado. Por estes fatos históricos mencionados que a sociedade francesa tornou-se o principal exemplo de sociedade em que um Chefe de Estado conseguiu deturpar a natureza das consultas populares com o objetivo de atender aos seus próprios interesses, razão pela qual a população francesa mostrou-se temerária em relação a estas consultas. É por isso que, para os franceses, o termo plebiscito tem conotação pejorativa. Suas ressalvas decorrem da experiência histórica dos plebiscitos napoleônicos de 1799 a 1870 (segundo um dos críticos, com tais plebiscitos, os franceses terminavam sempre por ratificar todas as leis que favoreciam a entrada do golpe de Estado nas instituições!), assim como os ‘referendo plebiscitários’ convocados por De Gaulle, sobretudo em 1962 e 1969. Percebe-se, portanto, que o que está em causa, no exemplo francês, não é o mecanismo de consulta popular em si, mas a sua regulamentação e utilização (BENEVIDES, 1991, p. 38). Além do exemplo da sociedade francesa, encontra-se a ocorrência da distorção das consultas populares também na Alemanha, durante o período da ditadura nazista, quando Adolf Hitler convocou um plebiscito, no ano de 1938, acerca da anexação da Áustria. Assim, essa conduta “[…] levou os constituintes, depois da Segunda Guerra Mundial, a tomarem muitas precauções para evitar o uso do plebiscito que poderia favorecer ditaduras; é por isso que o referendo não aparece na Carta alemã de 1949”149. No caso da América do Sul, durante a ditadura militar do Chile, Pinochet, no ano de 1978, utilizou-se do plebiscito para garantir-se no poder e dessa forma manter em suas mãos o controle estatal. Dessa forma, percebe-se que as consultas populares, principalmente por meio do plebiscito, provocam mazelas ao sistema democrático quando utilizadas para legitimar interesses pessoais do Chefe de Estado. Assim, quando associadas ao poder pessoal, as consultas populares transformam-se em meios de garantia e legitimação do poder. Por isso, não é o simples fato de haver a possibilidade de consultas populares que, por esta razão, causam-lhes desprestígio, mas quando usadas de forma inconveniente aos princípios e pilares democráticos. É por esta 149 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991, p. 41. 229 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE razão que se deve ter certas precauções quanto à convocação das consultas populares para garantir a “efetiva democratização do processo”150. Como relata Benevides no sentido de ser essencial que “o desenrolar do processo de consultas populares deve estar claramente dissociado de um ‘voto de confiança’ na pessoa do governante”151. As consultas populares, quando distorcidas de suas características democráticas, acabam elevando ao poder ditadores, que as utilizam com o intuito de legitimar suas tiranias ou sua permanência no poder, conforme os casos expostos. No entanto, quando mantido a essência desses instrumentos, percebe-se suas vantagens em relação à efetivação do sistema democrático nas sociedades modernas. Diante do exposto, verifica-se a necessidade de ampliação das consultas populares, como forma de participação do povo no processo democrático e com o intuito de complementar a democracia representativa, especialmente em relação aos efeitos provocados pela crise de representatividade. Além dos instrumentos mais conhecidos e regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro de consultas populares, existem outras formas estudadas de participação, mas as quais não foram objetos do presente trabalho152. Quanto às consultas populares regulamentadas pelos institutos legais, para serem democraticamente efetivas, devem preferencialmente estar ligadas com programas ou projetos políticos-social, de forma que seja imune as distorções das consultas como instrumentos de garantia de interesses pessoais e manutenção no poder do Chefe de Estado. 150 Ibid., p. 63. BENEVIDES, 1991. 152 As principais formas de participação popular, diferentes daquelas estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro - plebiscito, referendo e iniciativa popular - são a cyberdemocracia, estudada principalmente pelos filósofos Norberto Bobbio e Pierre Levy, e a revogação de mandato, também conhecida como recall, prevista em alguns estados dos Estados Unidos e em alguns países da América do Sul. Em relação a primeira forma de participação popular, já existem alguns projetos de leis na Câmara dos Deputados com o intuito de regulamentar o assunto, como por exemplo o Projeto de Lei 4.219/2008 que dispõe sobre o cadastro de eleitores para apresentação, via internet, de projeto de lei de iniciativa popular, alterando a lei 9.709/98, disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=414203>. Acesso em: 11 set. 2015. O Projeto de Lei 4.764/2009 que regulamenta a iniciativa popular por meio da rede mundial de computadores, disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=424836>. Acesso em: 11 set. 2015. E o Projeto de Lei 4.805/2009 que acrescenta o art. 13-A e altera o art. 14 da lei 9.709/98, para permitir subscrição de projetos de lei de iniciativa popular por meio de assinaturas eletrônicas, disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=425809>. Acesso em: 11 set. 2015. 151 230 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Observou-se que o modelo político-representativo brasileiro apresenta indicativos da existência de uma crise de representatividade do Poder Legislativo, assim como outras sociedades que adotam o mesmo modelo. Dessa forma, destacaram-se como indícios a debilidade partidária, a qual é composta: pela burocratização dos partidos; pela ideologia-estratégica dos partidos; pelo distanciamento das bases eleitorais; pela forma do discurso político apresentado; e sob a lógica do mercado político, a transformação ou institucionalização em partidos competitivos. Além destes indícios, há também a questão referente à corrupção partidária e a falta de identificação entre representantes e representados, as quais compõem o conjunto de fatores que geram a crise de representatividade. A apresentação de dados e índices de pesquisas de satisfação popular corroboram para a comprovação da referida crise. Especificando o caso brasileiro, constata-se que a atenuação destes efeitos provocados pela crise de representatividade exige uma ampla e sistêmica reforma política. Assim, na proposta de emenda constitucional para aprovação da reforma política, ainda em tramitação no Congresso Nacional, verifica-se a falta dessas duas exigências, na qual apenas muda-se a roupagem, mas o corpo continua com os mesmos defeitos do sistema. Dessa forma, haverá, como vem demonstrando a tramitação da proposta, mudanças, mas não conforme o exigido nas manifestações populares de junho de 2013. Diante do exposto, entende-se que uma reforma política que atenda aos interesses populares como uma forma de diminuir os efeitos da crise, principalmente em relação ao sentimento de falta de representatividade, ocorreria através da regulamentação das formas de participação popular, especialmente o plebiscito, o qual é o instrumento mais direto de participação previsto na Constituição Federal de 1988, afim de romper os obstáculos legais impostos e tornar mais frequente e efetiva a participação popular no processo democrático, fazendo com que a população sinta-se presente no debate político e não a sua margem. 231 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE REFERÊNCIAS APÓS QUEDA ACENTUADA em 2013, índice de confiança social se estabiliza. IBOPE, 01 set. 2014. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/ptbr/noticias/Paginas/Ap%C3%B3s-queda-acentuada-em-2013,Indice-de-ConfiancaSocial-se-estabiliza.aspx>. Acesso em 13 ago. 2015. 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Acrescenta o art. 13-A e altera o art. 14 da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, para permitir subscrição de projetos de lei de iniciativa popular por meio de assinaturas eletrônicas. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWebficha/detramitacao?idProposicao=42580 9>. Acesso em: 11 set. 2015. 233 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR: reforma política democrática e eleições limpas. Reforma Política e Eleições Limpas Coalizão Democrática. Brasília, 16 out. 2013. Disponível em: <http://mcce.org.br/site/pdf/PL%20%20Coalizao%20Democratica%20pela%20Refor ma%20Politica%20e%20Eleicoes%20Limpas_registro%20cartorio.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2015. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO. Grupo de Trabalho Destinado a Estudar e Elaborar Propostas Referentes à Reforma Política e à Consulta Popular Sobre o Tema. 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Abstract. 1 Introdução 2 Família Monoparental: Conceito, Panorâma Histórico e Proteção Normativa 2.1 Surgimento da Família Monoparental 2.2 A Proteção Normativa da Família Monoparental 3 Adoção: Conceito e Aspectos Normativos 3.1 Aspectos Normativos 3.2 A Adoção Brasileira a Luz da Nova Lei da Adoção 3.3 O Solteiro Frente aos Legitimados a Adoção 4 Análise dos Parâmetros Normativos da Ampliação da Paridade Jurídica e Social da Adoção do Solteiro 4.1 A Constituição Federal de 1924 á 1988 4.2 O Código Civil de 1916 a 2002 4.3 A Análise Normativa do Estatuto da Criança e do Adolescente 5 Considerações Finais. Referências. RESUMO O presente trabalho visa à análise dos parâmetros sobre a ausência de dispositivos normativos constitutivos, nos diplomas legais, que legitimem a adoção por pessoas solteiras. A adoção, como uns dos institutos que compõe o Direito de Família, visa garantir, diante do princípio do melhor interesse da criança, e como medida excepcional, a proteção às crianças e adolescentes aptas a serem adotadas e a adoção destas pelos legitimados. Determina a presente pesquisa, que mesmo com a paridade da adoção atribuída aos solteiros, estabelecida pelo artigo 42, do Estatuto da Criança e do Adolescente, inexistem regras especificas que salvaguardem os interesses particulares destes legitimados, já que estes irão constituir a entidade familiar monoparental por adoção, entidade esta que aumenta expressivamente diante da sociedade contemporânea. Fundamenta a respectiva análise, na necessidade de leis específicas que determinem sua estruturação, a fim de proporcionar segurança jurídica, para que não haja necessidade de se recorrer a leis gerais para embasar as teses de adoção por pessoas solteiras, diante dos princípios constitucionais estabelecidos em nossa Constituição Federal de 1988, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente, que proporcionem direitos e garantias que viabilize todo o processo. Palavras-chave: família, adoção, monoparental, paridade, legitimidade 153 Aluna do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). [email protected] 154 Advogada. Mestre em Direito. Professora de Graduação do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). [email protected] 235 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT The purpose of this essay is addressed to analyze the parameters in regard to the absence of constitutive regulatory provisions, as per the legislation, which furnish entitlement to single parent adoption. Adoption, per se, as one of the basis which comprises the Family Law, is appointed to ensure, pursuant the principle of the best interests of the child, and as an exceptional measure, to source the protection of child and adolescent able to enter into adoption and such adoption by their entitled. This research determines, albeit the parity of single parenthood adoption, as set forth per article 42, from the Statute of Child and Adolescent, it lacks proper specific rules to furnish protection upon the individual interests arising from these entitled single parents, since they will be establishing the family unit parenthood by the event of adoption, unit of which is being broadly enhanced through contemporary society. The fundament of such analysis, upon the necessity of specific legislation to define its structure, in light of provision of legal assurance, in spite not to resort only to general legislation to estate the single parent adoption thesis, as per the general principles as set forth in our Federal Constitution as of 1988, Civil Code and the Statute of Child and Adolescent, to furnish the rights and guarantees to enable the process. Keywords: Family, adoption, single parent, parity, entitlement 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa estabelecer uma análise da importância da ampliação da paridade jurídica e social na adoção por pessoas solteiras, frente aos demais legitimados à adoção, já estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Para atingir o objetivo desta análise, faz-se necessário a construção de um arcabouço de dispositivos normativos pertencentes ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), ao Código Civil (de 1916 e 2002) e a Constituição Federal (1924 á 1988), a fim de romper os conceitos tradicionais de família e garantir a tutela diante da existência de novas entidades familiares que se estruturam em direitos deveres, principalmente no que concerne aos solteiros, diante de critérios legais de adoção na concepção da família monoparental por adoção. Além disso, perante a constatação de ausência de norma específica de proteção à família monoparental, que não apenas o artigo 226, §4º, da Constituição Federal de 1988 e, consequentemente de estruturação substancial normativa objetiva quanto à adoção por solteiros, que permita maior segurança jurídica e garantia do Estado, há necessidade de estabelecer parâmetros de ampliação normativa que não apenas o artigo 42, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 236 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Pleitear a ampliação da paridade jurídica na adoção por pessoas solteiras, traz consigo a quebra das restrições existentes, transcendendo os conceitos tradicionais de família que acabam por travar a função jurisdicional, dificultando a garantia de novas necessidades normativas que surgem em nosso ordenamento. O trabalho destaca que ao tratarmos da adoção, principalmente na formação de famílias monoparentais por adoção, em que os solteiros estão se tornando os protagonistas desta entidade familiar, há necessidade de uma análise precisa, da atuação do Estado, em detrimento de um aumento desta formação familiar, garantias de sucesso, proteção estatal e a ampliação da paridade jurídica em relação aos demais legitimados a adotar. Por fim, a família monoparental, juntamente com o instituto da adoção, se torna o objeto da discussão, sendo em torno destes é que se estabelecerão as correlações de análise da segurança jurídica dos institutos, diante da adoção realizada por pessoas solteiras, assim como a ausência de regulamentação própria e de dispositivos normativos constitutivos que regrem ou assegurem garantias jurídicas eficazes, que evidenciem a ampliação da paridade com os demais legitimados a adoção. 2 A FAMÍLIA MONOPARENTAL: CONCEITO, PANORÂMA HISTÓRICO E PROTEÇÃO NORMATIVA De acordo com o a Constituição Federal de 1988, em se artigo 226, § 4º, define-se Família Monoparental como sendo aquela constituída por qualquer um dos pais e seus descendentes. Protegidas pelo Estado, porém sem instituto normativos próprios que regulem direitos e deveres relativos a esta entidade familiar. 2.1 SURGIMENTO DA FAMÍLIA MONOPARENTAL A família monoparental se caracteriza por ser uma entidade familiar composta por um dos pais e seus filhos. A referida expressão começou a ser utilizada na França, na década de 70 (SANTOS, 2008, p. 27). A Constituição Federal de 1988 define tal entidade em seu artigo 226 § 4º, constituindo sua proteção normativa. 237 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A origem da expressão famílias monoparentais, advém dos países AngloSaxões e trazido por sociólogas feministas contrarias ao governo francês que contestavam a forma de tratamento à maternidade extraconjugal, o resultado da extinção do casamento proveniente de problemas psicossociais e recorrentes de famílias de risco. A finalidade era expor a importância da mulher como chefe de família, atribuindo a elas e a esses lares a condição de entidades familiares, determinando uma nova perspectiva familiar diante da família tradicional (VITALE, 2002, p. 47). O termo família monoparental foi introduzido pela socióloga francesa Nadine Lefaucher, sendo uma das primeiras pesquisadoras a se preocupar com as questões das mães solteiras e a introduzir o respectivo termo nos estudos das Ciências Sociais e na estatística da França nos anos 80 (VITALE, 2002, p. 47). O crescimento da família monoparental originou-se também, da Grande Depressão de 1929 e das duas Grandes Guerras Mundiais, a Primeira e a Segunda Guerra entre 1939 e 1945, que ocasionaram grande desemprego entre as mulheres que se voltaram ás responsabilidades familiar (MADALENO, 2013, p. 33 e 34.). No Brasil Carmen Barroso, Diretora Regional da Federação Internacional de Planejamento Familiar e, Cristina Bruschini, Socióloga e Pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, publicaram em 1981 um texto chamado “Sofridas e Mal Pagas”, em que retratavam a difícil condição de vida das mulheres na situação de chefes de famílias. A antropóloga Social Claudia Fonseca, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, constatou que as famílias que são lideradas por mulheres devem ser analisadas em contexto de rede familiar e devem ser protegidas de explanações que venham a denegrir esta formação familiar (VITALE, 2002, p. 48). O crescimento das famílias monoparentais pode ser atribuído à liberdade nas relações afetivas, à autonomia feminina nas questões de independência financeira, na escolha e manutenção de relacionamentos, na garantia do divórcio diante do término das relações conjugais e o abandono afetivo por parte do genitor. 238 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.2 A PROTEÇÃO NORMATIVA DA FAMÍLIA MONOPARENTAL A Família Monoparental, base do referido estudo, define-se como entidade familiar composta por qualquer um dos pais e seus filhos, sendo que tal definição consta no artigo 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988. O Código Civil de 2002 não traz requisitos normativos de proteção para esta entidade familiar, não fazendo referência a monoparentalidade, mas sim, constitui dispositivos referentes às famílias informais (Art. 1.723 do CC de 2002), ou seja, provenientes das uniões estáveis e um rol de proteção normativa as famílias matrimoniais (Arts. 1.511 a 1688 do CC de 2002). Ausentes dispositivos de regulamentação específica referente à entidade familiar no Código Civil, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha determinado a respectiva proteção normativa, não houve a devida regulamentação infraconstitucional referente a direitos e obrigações estabelecidos pelos vínculos monoparentais, haja vista, os efeitos jurídicos relativos a situações como a viuvez, separação, a não convivência com os genitores, assim como, os resultantes do poder familiar e do vinculo de filiação (MADALENO, 2013,p.10). Inclui-se ao rol de possibilidades de monoparentalidade, a adoção (solteiros, viúvos, divorciados) e a inseminação artificial. Inexistindo vínculo conjugal, a família monoparental só pode conceber interesses relativos à filiação e poder de família, sendo vedado qualquer tipo de discriminação que desfavoreça esta entidade familiar (COELHO, 2012, p. 302). A família monoparental não possui disciplina jurídica própria, determinantes de direitos e deveres específicos, cabendo a esta os dispositivos que regulam o Direito de Família, questões como filiação e poder de família, como já elucidado. A referida entidade familiar se desconstitui em virtude da maioridade e com a emancipação do filho, prevalecendo apenas nas questões de parentesco e relativas ao direito de alimentos. Aplica-se a esta entidade familiar à questão da impenhorabilidade dos bens de família – §1º da Lei 8009/90 - em casos de constituir único bem para moradia (LOBO, 2011, p. 89). Mesmo com a utilização de dispositivos que regulam o Direito de Família, a família monoparental, admite o reconhecimento da necessidade de uma tutela 239 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE jurídica especifica a sua condição de monoparentalidade, diante na importância desta entidade, que passou de uma situação de reprovação social para a proteção constitucional (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 577). Diante das questões sociais que levam ao surgimento das famílias monoparentais e da necessidade da prestação de tutela do Estado, Cristiano Chaves de Farias argumenta sobre a importância do tema: Desfechando o tema, vale lembrar outro fator de destaque nas relações monoparentais. É que as famílias monoparentais apresentam estrutura endógena mais frágil, em face dos encargos mais pesados que são impostos aos ascendentes que, cuidara sozinho, do seu descendente. É de se observar que a monoparentalidade decorre da dissolução de uma relação afetiva ou da formação de um núcleo familiar sem a presença constante de um dos genitores, como na hipótese da mãe solteira. Com isso, há uma tendência natural à diminuição da renda econômica ou a permanência do baixo nível de renda, levando ao reconhecimento de certa fragilidade no seio destas famílias. Exatamente por isso, no que atine à implementação de politicas públicas (como a concessão de benefícios previdenciários, reconhecimento de proteção ao bem de família, deferimento de vantagens para aquisição de casa própria...), entendemos necessário que seja dispensada proteção especial e diferenciada as famílias monoparentais, garantindo a própria igualdade substancial (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 106). A monoparentalidade apresenta uma relação bem especifica em nosso ordenamento. Pode se apresentar de forma transitória, ou seja, com a possibilidade de se converter em outras entidades familiares constituindo vínculos matrimoniais ou união estáveis, assim como se constituir, em definitivo, diante de sua condição única. Devido a sua singularidade como entidade familiar e, diante do solteiro como protagonista da pretensão à adoção, a fim de constituir a família monoparental por adoção, torna-se necessária maior efetividade da tutela jurisdicional. 3 ADOÇÃO: CONCEITO E ASPECTOS NORMATIVOS O conceito de adoção, estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069 de 13 de julho de 1990, é regido pelo artigo 39, § § 1º e 2º, determinando que a adoção de crianças e de adolescentes será regida pelos dispositivos contidos na referida lei. É considerada uma medida excepcional e irrevogável, devendo ser impetrada apenas nos casos em que se esgotaram todas 240 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE as tentativas de manutenção da criança e do adolescente em sua família natural ou extensa, sendo proibida a adoção por meio de procuração (BARROS, 2010, p. 66). O conceito de adoção, segundo a doutrina, apresenta definições muito semelhantes: A adoção constitui um parentesco eletivo, por decorrer exclusivamente de um ato de vontade. Trata-se de modalidade de filiação construída no amor, na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, gerando vínculo de parentesco por opção. A adoção consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se não em fator biológico, mas em fator sociológico (DIAS, 2013, p. 481). Finalmente, podemos conceituar a adoção como um ato jurídico em sentido estrito, de natureza complexa, excepcional, irrevogável e personalíssimo, que firma a relação paterno ou materno-filial com o adotando, em perspectiva constitucional isonômica em face da filiação biológica (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 747). Contemporaneamente, a adoção está assentada na ideia de oportunizar a uma pessoa humana a inserção em núcleo familiar, com a sua integração efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo as suas necessidades de desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma psíquico, educacional e efetivo (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 1027). A adoção é um ato jurídico, regido por lei própria, tendo os demais dispositivos legais como aporte legal para assegurar sua eficácia normativa. Tratase de uma livre iniciativa de vontade da parte interessada em integrar, no núcleo familiar, individuo alheio considerado como filho, decorrente do desenvolvimento da afetividade entre as partes, criando laços de parentesco, independente de vínculo consanguíneo. 3.1 ASPECTOS NORMATIVOS A adoção, um dos institutos mais importantes que compõe o Direito de Família, possui uma robusta proteção normativa aos seus sujeitos de direito, as crianças e adolescentes, perante o Princípio da Proteção Integral. A adoção configurava em conceder filhos adotivos com a finalidade de realizar o desejo dos conviventes em matrimônios ou uniões estáveis. Com o advento da doutrina do melhor interesse da criança e do adolescente, inverte-se esta prioridade, prevalecendo o interesse da criança e do adolescente sobre o interesse do adotante, proporcionando uma integração familiar mais efetiva visando 241 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE à felicidade e o bem estar do adotado (buscam-se pais para os filhos e não filhos para os pais) (MADALENO, 2013, p. 624). A supremacia dos interesses das crianças e dos adolescentes fundamenta-se na Declaração dos Direitos das Crianças de 1924, Declaração de Genebra, atribuindo à humanidade a responsabilidade de fornecer todos os meios necessários para o melhor desenvolvimento delas, assim como, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, que ratificou os meios que deveriam ser assegurados por lei, através de uma proteção especial, assegurando o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, realizada de maneira saudável, com liberdade e dignidade. A mesma ideia norteou a conferência realizada em Haia em 1961 (MADALENO, 2013, p. 624). A criança e o adolescente devem ter seus direitos elevados à primeira categoria de prioridades, assim como suas garantias fundamentais respeitadas, para que possam exercê-las sem restrição (MADALENO, 2013, p. 624). Tais direitos fundamentais estão elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069 de 13 de julho de 1990 – a partir do artigo 3º do referido diploma: Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BARROS, 2010, p. 21). A Consolidação de dispositivos legais favoráveis às crianças e aos adolescentes foi determinada pela Constituição Federal de 1988, entre eles, temos a regulamentação de tratamento dos filhos adotivos, que passam a ter os mesmos direitos que os biológicos, vedada discriminação à filiação, determinada pelo § 6º do art. 227 da referida Constituição (MADALENO, 2013, p. 624). O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/1990 – traz um sistema jurídico de regulamentação da adoção, complementada pelo Código Civil de 2002, reformulando regras já existentes no próprio código, como alteração da idade mínima do adotante, de 21 para 18 anos. Essa alteração foi atribuída pelo art. 4º da Lei nº 12.010/09, A Nova Lei de Adoção, que traz a redução da capacidade civil, 242 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE alterando a redação dos artigos 1.618 e 1619 e revogando os artigos 1.620 a 1.629 do Código Civil (MADALENO, 2013, p. 624. e 625). As Constituições Federais de 1924 á 1969 não fazem referência ao instituto da adoção, não estabelecendo proteção integral as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Apenas com o advento da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, § § 5º e 6º, estabelece que a adoção deverá ser assistida pelo Poder Público, principalmente no que concerne a adoção realizada por estrangeiros, assim como que os filhos havidos pela adoção, deverão ter os mesmos direitos que os biológicos, sendo vedadas qualquer discriminação relacionada a filiação. O Código Civil de 1916 regulamentava a adoção baseada em princípios romanos, concedendo filhos a casais que não podia tê-los de forma natural, além de esta ser concedida apenas a casais com idade acima de 50 anos e sem filhos legítimos. Diante da Lei nº 3. 133/57, a idade mínima de 50 anos passa para 30 anos, com ou sem filhos, melhorando as condições da adoção. O Código Civil de 1916 estabelecia a adoção calcada em princípios romanos, concedendo filhos a casais que não podia tê-lo naturalmente, podendo adotar apenas pessoas maiores de 50 anos e sem filhos legítimos. A Lei nº 1.133/57 altera a idade mínima de 50 para 30 anos, com ou sem filhos, facilitando a adoção. O artigo 377, do Código Civil de 1916, não equiparava filhos legítimos e os adotivos diante do direito sucessório, não garantia os direitos à sucessão hereditária, assim como o artigo 378, não estabelecia à integração total do adotado a família substituta. Somente com o advento do artigo 6º da Lei 4.655/65 regularizou o artigo 378 do Código Civil de 1916, cessando o vínculo de parentesco com a família natural, através da legitimação adotiva (DIAS, 2013, p. 480). O Código de Menores, estabelecido pela Lei nº. 6.697, de 10 de outubro de 1979, revoga a legitimação adotiva em substituição à adoção plena, em que o referido instituto, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 380) “possibilitava que o adotado ingressasse na família do adotante como se fosse filho de sangue, modificando-se o seu assento de nascimento para esse fim, de modo a apagar o anterior parentesco com a família natural”. Com a instituição do Código Civil de 2002, ocorre uma incongruência normativa, pois, enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente regulava 243 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE exclusivamente a adoção de crianças e adolescentes, o Código Civil dispunha de dispositivos relativos á mesma matéria da adoção de menores de idade. Tal conflito foi reparado, com a promulgação da Nova Lei de Adoção – Lei nº 12.010/09, § 2º que atribuiu ao ECA exclusividade normativa relativa a adoção de crianças e adolescentes, mas indica a aplicação dos dispositivos do Código Civil de 2002 em adoções de maiores de 18 anos, disposto do artigo 1.619 (DIAS, 2013. p. 481). 3.2 A ADOÇÃO BRASILEIRA A LUZ DA NOVA LEI DA ADOÇÃO O instituto da adoção se consolidou, por meio de seus institutos normativos, ratificando as garantias fundamentais inerentes ao adotante e ao adotado. Deixa de ser caracterizada como um negócio jurídico, passando a determinar a inclusão efetiva do adotado na nova família. A adoção, no Brasil, no final do século XX, se consolida através das convenções internacionais, diante a Convenção sobre Direitos da Criança/1990; Convenção Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matéria de Adoção Internacional/1984; Convenção de Proteção das Crianças; Cooperação em Matéria de Adoção Internacional/1983 (LOBO, 2011, p. 274). A lei nº 12.010 de 03 de agosto de 2009, conhecida como “A Nova Lei de Adoção”, dispõe que todo o sistema de adoção brasileiro será regido exclusivamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em que a adoção será considerada medida excepcional, preservando ao máximo a criança em sua família natural ou extensa. (LOBO, 2011, p. 274). Diante da prerrogativa da importância de um ambiente familiar saudável, construído pelo afeto e pelo amor, Paulo Lobo faz uma critica a está lei: É uma lei restritiva e limitante da adoção, ao contrário do que apregoaram as razões legislativas. O § 1º do art. 39 do ECA, com a redação introduzida pela lei, é explícito: “a adoção é medida excepcional”, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os esforços para manutenção da criança na “família natural ou extensa”. Este conceito alargado de família extensa abrange os parentes próximos. Se nenhum deles manifestar interesse em cuidar da criança, então se recorrerá à adoção. Condicionar a adoção ao interesse prévio de parentes pode impedir ou limitar a criança de inserir-se em ambiente familiar completo, pois, em vez de contar com pai e (ou) mãe adotivos, acolhido pelo desejo e pelo amor, será apenas um parente acolhido por outro, sem constituir relação filial. (LOBO, 2011, p. 274) 244 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A Lei nº 12.010/2009 alterou dispositivos constitutivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e revogou 10 artigos do Código Civil de 2002 referentes à adoção, do artigo 1.620 a 1.629. Concedeu nova redação aos artigos 1.618, 1.619 e 1.734 do referido dispositivo. Inseriu dois parágrafos na Lei nº 8.560/92, que estabelece a investigação de paternidade de filhos havidos fora do casamento (GONÇALVES, 2012, p. 382). A Lei Nacional de Adoção surge com o principio de gerir com mais eficiência e rapidez os processos de adoção, desta forma, constitui um Cadastro Nacional de Adoção (resolução do Conselho Nacional de Justiça), para facilitar o encontro de pessoas habilitadas para as crianças e adolescentes já destituídos do pátrio poder e em condições de serem adotadas. Altera a redação do artigo 19 § § 1º e 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, (GONÇALVES, 2012, p. 382) estabelecendo a adoção como medida excepcional; que crianças e adolescentes que se encontrem em programas de acolhimento familiar ou institucional, terão que ser reavaliados a cada seis meses por equipe multidisciplinar, sendo que, sua permanência nestes programas não deve ultrapassar o máximo de dois anos, exceto comprovado necessidade do menor (BARROS, 2010, p. 38). A Nova lei de adoção estabelece em seu artigo 42, caput, a idade mínima de 18 anos para que uma pessoa possa adotar independente do estado civil, sendo que tal ato depende de maturidade intelectual do gesto de adotar (MADALENO, 2013, p. 638). Verifica-se ausente, na referida lei, a adoção de crianças e adolescentes por pessoas do mesmo sexo, adoção homoparental (GONÇALVES, 2012, p. 382 e 383). Em relação a esta discussão, dispõe o paragrafo 2º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente que, para que ocorra a adoção conjunta, “é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família (Redação dada pela Lei n° 12.010, de 2009)” (BARROS, 2010, p. 38 e 66). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 § 3º, reconhece a união estável apenas entre homem e mulher. Os dispositivos mencionados acabam sendo substituídos por posicionamentos jurisprudenciais devido ao aumento das adoções por casais homoafetivos (GONÇALVES, 2012, p. 383). 245 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A Nova Lei de Adoção estabelece os prazos aos processos encaminhados ao judiciário, relativos à perda do poder familiar, sendo de 120 dias para decretar a perda do poder familiar e, em caso de recurso no processo de adoção, de 60 dias; determina o acesso do adotado ao seu processo de adoção e conhecer sua origem biológica, estendendo o mesmo direito aos seus descendentes (GONÇALVES, 2012, p. 383). A Lei Nacional de Adoção determina em seu artigo 25 § único, o conceito de família extensa ou ampliada, ou seja, composta por “parentes próximos, com os quais as crianças e adolescentes constituem vínculos de afinidade e afetividade” (BARROS, 2010, p. 46). Sendo a adoção uma medida excepcional, para que ela possa ocorrer, devem ser esgotadas todas as possibilidades de inserção da criança em sua família de biológica ou extensa (GONÇALVES, 2012, p. 383). Mesmo com a mudança da lei definindo a adoção como medida excepcional, não houve redução de interessados em adquirir filhos por intermédio deste instituto. O artigo 197-A da Lei 12.010/09 e seus incisos, trazem os requisitos para a habilitação para a doção, composta por petição inicial e a juntada da documentação. O artigo 46 da presente lei não dispensa o estágio de convivência, contudo, se o adotante possuir a guarda legal ou tutela, este estágio pode ser dispensado, conforme disposto no artigo 46 § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (GONÇALVES, 2012, p. 384). A Lei nº 12.010/2009, em seu artigo 47, juntamente ao artigo 1.619 do Código Civil, dispõe que a adoção de crianças e adolescentes precede decisão judicial. No caso de maiores de 18 anos terá o processo judicial encarregado pela Vara da Família, se menores de competência da Vara da Infância e da Juventude. (GONÇALVES, 2012, p. 383). A Competência Jurisdicional não foi alterada pela Nova Lei de Adoção. O juiz da vara da infância é o responsável exclusivo em conceder a adoção relativa às crianças e aos adolescentes. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.618, alterado pela referida lei, enfatiza que a adoção de crianças e adolescentes será deferida conforme a lei n º 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. A mesma alteração ocorreu com o artigo 1.619 do Código Civil de 2002, definindo a atuação do Poder Público, principalmente na adoção de maiores de 18 anos, em que sua 246 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE assistência deverá ocorrer de forma mais efetiva, aplicando as regras da Lei nº 8.069/90 caso necessário (GONÇALVES, 2012, p. 384 e 385). A Nova Lei de Adoção revogou os artigos que estavam em conflito com as normas do Código Civil de 2002. Por tanto, ainda encontram-se vigente os seguintes artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 39, que proíbe a adoção por meio de procuração; artigo 46, que estipula o estágio obrigatório de convivência; o artigo 48, que determina a adoção como um ato irrevogável; artigo 42 § 1º, proibindo a adoção aos ascendentes e irmãos do adotando; o artigo 47 e seus parágrafos, que determinam os critérios de expedição de mandado e registro de nascimento do adotado; artigos 31, 51 e 52, que estabelecem todos os critérios para a adoção internacional; artigo 50, § 1º, que determina a manutenção do cadastro do adotado e adotante junto à vara da infância e juventude e sua atualização, além da manifestação anual para a manutenção deste na fila de adoção (GONÇALVES, 2012, p. 386). 3.3 O SOLTEIRO FRENTE AOS LEGITIMADOS A ADOÇÃO O Princípio da Prevalência da Família, estabelecido pela Emenda Constitucional nº 65 de 13 de julho de 2010, altera significativamente o artigo 277 da Constituição Federal de 1988, com a finalidade de atender ao melhor interesse da criança e do adolescente. Assegura aos menores, prioritariamente, que estes devam crescer em sua família natural. Instaura-se politicas públicas restaurativas, no sentido de estruturar as familias e desistitucionalizar as crianças, quando possível e, inserindo-as em suas famílias de origem, incluindo a família extensa, com a qual possuía vínculos de afinidade e de afetividade. Esta mudança no instituto torna a adoção como medida excepcional, ou seja, ultima alternativa para o menor, depois de esgotadas todas as oportunidades de inserção da criança e do adolescente, em sua família natural e ou extensa (MADALENO, 2013, p. 630). A adoção realizada por pessoas solteiras tem como parâmetro normativo o artigo 42, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a idade mínima de 18 anos para a adoção, independente do estado civil. Os demais artigos 247 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE do referido estatuto, que estabelece os atos processuais, a princípio, são iguais a todos legitimados, excetuado as peculiaridades de cada legitimado. O solteiro, por sua condição única, diante do instituto do Direito de Família, se estabelece como entidade familiar, denominada família eudemonista, protegido constitucionalmente pelo artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que em seu § 8º, define: “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram”, estabelecendo uma relação mais igualitária, dos solteiros em relação às demais entidades familiares, principalmente a matrimonial. A família monoparental por adoção, deriva da família eudemonista, que busca a felicidade, a satisfação pessoal. Maria Berenice Dias classifica esta entidade familiar afirmando que O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8.º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram (DIAS, 2015, p. 144). O Código Civil, não traz uma definição expressa sobre a família eudemonista, apenas relata a impenhorabilidade do bem de família determinada pelo artigo 1º, § único, da Lei 8.009/90, que protege o bem único do solteiro que, no caso de execução de dívidas, este imóvel não responde para pagamento, por constituir única residência dele. Diante do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Federal de 1988, inexistes dispositivos específicos que determinem a adoção pelo solteiro e a formação da família monoparental, apenas normas gerais que geram uma paridade latu sensu. A paridade jurídica foi estabelecida, possibilitando a adoção de todos os legitimados, mas a sua ampliação se faz necessária, devido às novas entidades familiares em formação e que não possuem legitimidade normativa constitutiva. Os casais estabelecem a adoção conjunta, determinada pelo artigo 42, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, imperativo que sejam casados ou que 248 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE convivam em regime de união estável (226, § 3º da CF, reconhecida como entidade familiar) e que comprovem estabilidade familiar. A adoção homoparental, a adoção por homossexuais, seja de forma individual, ou como um casal estabelecendo uma entidade familiar, constituída sob a ótica da duração, publicidade e com a intenção de constituir família, configura característica de união estável e, como tal, a possibilidade de adoção. Cada indivíduo desenvolve sua personalidade de forma única, o que importa é o vinculo que estabelece entre as partes. Vínculos de afeto que constituem uma família, que unem os indivíduos desta (GONÇALVES, 2012, p. 388). Em um posicionamento crítico, Rolf Madaleno, argumenta: (...). As uniões homoafetivas são uma realidade social e cuja existência jurídica já vinha sendo admitida pela jurisprudência e doutrina, em suas expressões máximas perante o STJ e o STF, e sua regulamentação em países tão próximos ou mais distantes, terminam mostrando quão preconceituoso se mostra etiquetar como fator de risco uma família composta por um casal homossexual (MADALENO, 2013, p. 666 e 667). O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 42, § 5º, alterado pela Lei nº 12.010/2009, A Nova lei de Adoção, determina que em se tratando dos divorciados, judicialmente separados e ex-companheiros, a lei assegura a guarda compartilhada, artigo 1.584 do Código Civil de 2002, diante da demonstração do vinculo afetivo entre adotante e adotado. Não há enfraquecimento do pátrio, mas sim, efetiva-se a manutenção deste por ambos, e estabelece o exercício de suas responsabilidades, direitos e deveres para com o filho (MADALENO, 2013, p. 391). O artigo 42, § 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece que os divorciados, os judicialmente separados e os ex - companheiros têm legitimidade para adotarem conjuntamente, desde que organizem o regime de visitas, e somente em casos em que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do casamento, comprovada os vínculos de afinidade e afetividade entre adotante e adotado, que possam determinar a concessão do instituto (GONÇALVE, 2012, p. 392 e 393). A adoção de maiores, com o advento da Lei 12. 010/2009 torna-se restrita ao Código Civil. Sendo imperativo a anuência do Poder Público, deve ser constituída 249 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE por via judicial, e na ausência normativa competente, aplica-se as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme estabelecido pelo artigo 1.619 do Código Civil. Constitui direito personalíssimo, por tanto, obrigatório à manifestação de vontade do adotado e do adotante. Não há necessidade do estágio de convivência ( DIAS, 2013, p.490). A Adoção Pós Mortem, definida no artigo 42, § 5º, da Lei Nacional de Adoção, determina o deferimento da adoção, desde que, mediante a incontestável manifestação de vontade por parte do adotante, que no decorrer do processo, vier este a falecer antes da sentença. O juiz defere o pedido de adoção, com todos os seus efeitos, em face da não conclusão do processo pela morte do adotante (GONÇALVES, 2012, p. 395). Em situações, hoje muito comuns, diante da instituição do divórcio e da possiblidade da constituição da união estável, o cônjuge ou companheiro, traz para a relação familiar, filhos provenientes de outras uniões. O artigo 41, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, define a chamada Adoção Unilateral, em que o cônjuge adotante não perde o poder familiar, exercendo-o em concordância com o artigo 1.631 do Código Civil de 2002. Tal dispositivo estabelece que, na constância do casamento ou união estável, o poder familiar compete igualmente aos cônjuges, porém, na falta ou impedimento de um deles, o outro terá exclusividade do exercício (GONÇALVES, 2012. p. 395 e 396). A adoção à brasileira não possui regulamentação diante do instituto da adoção nos dispositivos legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Civil de 2002 e Constituição Federal. Esta pratica foi estabelecida diante da maternidade e paternidade socioafetiva, em que, pessoas registram, no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, filho de outrem como próprio. Tal prática se constitui crime de falsidade ideológica, ilícito penal disposto no artigo 299, do Código Penal brasileiro, em conjunto com o artigo 242 do Código Penal, relativo aos crimes contra o estado de filiação, e referente a este artigo, o ilícito estabelecido seria dar parto alheio como próprio. Todavia, diante de uma doutrina que preza o princípio da afetividade, remove uma visão pejorativa do ato, mas não exclui a responsabilização da conduta criminosa, impondo as sanções cabíveis (MADALENO, 2013, p. 661). 250 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A jurisprudência hoje possui o entendimento que se o ato praticado for constituído em comum acordo entre as partes, ou seja, com o consentimento da mãe biológica, e com a intenção de fornecer um lar à criança, o juiz não aplicará a pena, assim como o não cancelamento do registro de nascimento (GONÇALVES, 2012, p. 380–382). A Adoção Intuitu personae é definida como aquela em que os pais biológicos, entregam à adoção, filho próprio a pessoa certa e determinada, presentes os pressupostos constitutivos da adoção. Ocorre neste caso, com os adotantes, criando vinculo entre de amizade entre as partes. Os pais biológicos escolhem a família que vão entregar seu filho para ser adotado, participam efetivamente do processo. Os adotantes, normalmente, não são vinculados ao Cadastro Nacional de Adoção, nem aos cadastros das Comarcas das Varas da Infância e Juventude, cujo Estatuto da Criança e do Adolescente normatiza em seus artigos 50 e 50 § 5º (MADALENO, 2013, p. 648). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 277, § 5º, estabelece a possibilidade da adoção internacional diante de critérios e condições que assegurem a efetividade do instituto e da proteção aos sujeitos de direitos. A adoção internacional será instituída por suportes legais, cuja efetivação dependerá do Poder Publico, conforme dispositivo constitucional estabelecido pelo artigo 227, § 5º, da Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 – por meio de seus artigos 46, §3º, 50 §§ 6º e 10º, 51 e 52, relata a adoção internacional, cujos procedimentos para sua efetivação, estão dispostos nos artigos 165 a 170, do referido estatuto, mediante a alteração deste dispositivo pela lei nº 12.010/2009 (MADALENO, 2013, p. 653). O artigo 46, § 3º, da Lei 12.010/2009, disciplina sobre o estágio de convivência nos casos de adoção internacional. Unificou-se o estágio de convivência para o mínimo de 30 dias, tanto para as crianças quanto para os adolescentes (GONÇALVES, 2012, p. 400). A Constituição Federal de 1988, não prevê em seus artigos, ou seja, não estabelece garantias constitucionais, a adoção de nascituros, assim como, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e o Código Civil brasileiro de 2002 vedam qualquer tipo de proteção legal em seus artigos. Embora, conste no Código Civil de 251 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 1916, em seu artigo 372 a devida previsão legal, porém foi excluída após a alteração do Código Civil em 2002. O artigo 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente não considera a adoção do nascituro por considerar a importância do estágio de convivência entre o adotante e adotado, a fim de estabelecer o vinculo entre as partes (MADALENO, 2013, p. 657). 4 ANÁLISE DOS PARÂMETROS NORMATIVOS DA AMPLIAÇÃO DA PARIDADE JURÍDICA E SOCIAL DA ADOÇÃO DO SOLTEIRO Ausentes dispositivos de regulamentação específica, para a entidade familiar monoparental no Código Civil, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha determinado a respectiva proteção normativa, não houve a devida regulamentação infraconstitucional referente a direitos e obrigações estabelecidos pelos vínculos monoparentais, haja vista, os efeitos jurídicos relativos situações como a viuvez, separação, a não convivência com os genitores, assim como, os resultantes do poder familiar e do vinculo de filiação ( MADALENO, 2013, p.10). Mesmo com a utilização de dispositivos que regulam o direito de família, a família monoparental, admite o reconhecimento da necessidade de uma tutela jurídica especifica a sua condição de monoparentalidade, diante na importância desta entidade, que passou de uma situação de reprovação social para a proteção constitucional ( GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 577). A monoparentalidade apresenta uma relação bem especifica em nosso ordenamento. Pode se apresentar de forma transitória, ou seja, com a possibilidade de derivar em outras entidades familiares constituindo vínculos matrimoniais ou união estável, assim como se constituir em definitivo diante de sua condição, sendo esta, um crescente em nossa sociedade, determinada pela busca individual de ascensão econômica, desenvolvimento profissional, permitindo a existência de um período maior de espera para a constituição familiar. Assim, ao ser constituída, a família monoparental será composta de um dos pais e filhos. Não se descarta ser esta uma tendência da sociedade contemporânea, por tanto, torna-se necessária maior efetividade da tutela jurisdicional. 252 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A partir do momento e que se atinja os objetivos pessoais e haja a estabilidade profissional, econômica e pessoal, em nada obsta a opção de expandir a família. Como na maioria das vezes, o individuo solteiro, normalmente as mulheres, demoram a obter a ascensão pessoal e financeira, a maternidade fica em segundo plano, sendo que muitas vezes, a idade torna-se um obstáculo para a filiação biológica. Opta neste caso, sendo este um crescente em nossa sociedade contemporânea, na adoção por pessoas solteiras. A adoção é a via fática de constituição familiar por parte dos solteiros, da formação da família monoparental por adoção. A família monoparental, recebe proteção constitucional, como demostrado em parágrafos anteriores, conforme artigo 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988, mas o mesmo não ocorre em relação à adoção por solteiros, haja vista que esta possibilidade ganha à mesma normatização em aspecto geral, não constituindo em dispositivos próprios. Haja vista que, disposta em artigos específicos de lei, seja Constitucionais ou Civis, determina a garantia jurisdicional adequada, para pleitear direitos e garantias sem a utilização de analogias ou princípios inerentes a todos os indivíduos pertencentes ao Estado Democrático de Direito. Diante da fragilidade do referido instituto, os solteiros participam, á principio, em igualdade com os demais legitimados, no pleito da adoção. Contudo, diante dos dispositivos legais, percebe-se a carência de regulamentação que determine sua imposição frente aos órgãos jurisdicionais, como formador de uma entidade forte e concisa, capaz de exercer os deveres estabelecidos pelo artigo 227, caput, da Constituição Federal de 1988. Pela inexistência de um dos genitores, a visão de deficiência estrutural, econômica e social empregada pela sociedade em geral, faz com que a adoção por pessoas solteiras exija provas contundentes de sua efetiva condição, não corroborando com a realidade desses indivíduos, que se estabilizaram diante dessas questões, e decidiram de forma autônoma, a ampliação da família já constituída. Mesmo estabelecendo uma visão ampla do Estado, que visa proteger a família e não a forma em que esta foi constituída, ampliar a paridade jurídica do solteiro frente aos demais legitimados a adoção se torna fundamental, a fim de constituir normas específicas de garantias, assim como, as determinadas em 253 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE diversos dispositivos normativos, relativa à adoção conjunta, seja ela por casais vivendo em união estável ou casados civilmente. Tais entidades expandem seus direitos e garantias em torno do Código Civil de 2002 e Constituição Federal de 1988. Fundamentando a importância de legitimação através de dispositivos normativos, Maria Berenice Dias estabelece que: Além de dificuldades sociais, problemas ele outra ordem surge em decorrência ela falta de uma terminologia adequada para as novas estruturas de convívio elencadas em sede constitucional como entidades familiares. A partir do momento em que um relacionamento passa a gerar sequelas patrimoniais, com reflexos sobre terceiros, imperiosa a sua perfeita identificação, até para emprestar segurança às relações jurídicas (DIAS, 2013, p. 116). A menção a importância dos dispositivos normativos, são elencados pela referida autora: Os solteiros, separados, divorciados ou viúvos são pessoas que vivem sós, são donas exclusivas do seu patrimônio e dele podem dispor livremente. Quem mantém convivência duradoura, pública e contínua com ou trem constitui uma família e precisa se identificar e ser identificado como integrante de uma nova verdade social e jurídica. Porém, em face da ausência de um nome que identifique o novo estado civil, continuam os integrantes dessas novas famílias se qualificando como solteiros, divorciados ou viúvos. Adquirem bens e os alienam de forma singular, ainda que mantenham uniões estáveis. Como não há obrigação legal de revelarem o vínculo de convivência, há uma grave ameaça à ordem econômica, pondo em perigo a higidez da transação levada a efeito, com a possibilidade de severos prejuízos ou a terceiros ou ao companheiro. Imprescindível, portanto, encontrar nomes para essas novas famílias que não nascem, como o casamento, de um ato que as formalize. São relacionamentos que surgem do afeto, impondo que se procure novas palavras que assinalem a origem e a natureza desses vínculos carentes de denominação (DIAS, 2013, p. 116 e 117). A adoção estabelece o dever do adotante de sustentar, guardar e educar os filhos advindos deste instituto, sendo irrelevante se casado, companheiro, separado, divorciado, solteiro ou viúvo. O aumento de solteiros que buscam a maternidade/paternidade sem cônjuge, torna-se determinante à formação familiar 254 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE mais democrática, pois a união conjugal não se estabelece como condicionante para a maternidade/paternidade, ampliado à diversidade familiar. 4.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1924 Á 1988 As Constituições Federais de 1924 a 1969 em nada relatam sobre as diversidades das entidades familiares, muito menos proteção ao instituto da adoção. Nesses períodos, o casamento era indissolúvel e matrimonial (religioso e civil), não havia a possibilidade do divórcio, inexistindo proteção às entidades familiares informais, ou seja, as que não fossem constituídas pelo matrimônio. Com o advento da Constituição de 1988, atribui-se a proteção normativa as famílias matrimonias (artigo 226, CF/1988) e monoparental (artigo 226, §4º, CF/1988), natural (artigo 226, § 5º, CF/1988), substituta (artigo 227, § 5º, CF/1988) e a informal, hoje constituída como união estável (artigo 266, § 3ºCF/1988). As demais entidades familiares como Eudemonista, Homoafetiva, Paralela ou Simultânea, Poliafetiva, Parental ou Anaparental, Composta, Pluriparental ou Mosaico, Extensa ou Ampliada, buscam seus direitos e garantias através dos Princípios Constitucionais. No que Concerne à adoção, a Constituição Federal de 1988, Constituição Cidadã, estabelece proteção constitucional aos casais, sejam eles matrimonialmente constituídos ou em união estável. Estes legitimados são à base da família tradicional, determinando a normatização plena a estes legitimados (artigo 226, §§, da CF/1988); a adoção unilateral é determinada como sendo a formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Tal definição também é utilizada para definir a família monoparental, entidade familiar com proteção constitucional (artigo 226, § 4º da CF/1988). Protege constitucionalmente, mediante a aplicação de seus dispositivos normativos, a adoção por estrangeiros, cabendo ao Poder Público fiscalizar os procedimentos relativos aos procedimentos relativos efetivação de todo o processo (artigo 227, § 5º, CF/1988). A mesma situação se evidencia ao estabelecermos a proteção aos legitimados perante a Constituição Federal de 1988, inexistindo normas relativas aos solteiros, homoafetivos, divorciados, aos maiores, póstuma, á brasileira (ilegal 255 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE perante o Código Penal), intuito personae, internacional e do nascituro (não é legalizada no Brasil). 4.2 O CÓDIGO CIVIL DE 1916 A 2002 O Código Civil de 1916, assim como o de 2002, determina em seus dispositivos proteção as famílias eudemonista, informal, matrimonial, monoparental, natural e extensa, recomposta ou mosaico e substituta. O Código Civil de 1916, dispõe dispositivos normativos referenciais as familias eudemonista (artigo 362, CC/1916), informal (artigo 363, I, CC/1916), matrimonial (artigo 233, CC/1916), monoparental (artigo 315 a 318 do CC/1916 - Revogados pela Lei n.º 6.515, de 26.12.1977), recomposta/mosaico (artigo 393, CC/1916), natural ou extensa (artigo 330 e 334 do CC/1916), recomposta ou mosaico (artigo 393 e 329 CC/1916) e a família substituta (artigo 384, IV, CC/1916). Sendo omisso, em relação as entidades anaparental, homoafetiva, poliafetiva, paralela/simultânea. O Código Civil de 2002 concentra em seus dispositivos, regulamentação para as entidades familiares, em que pese, as famílias anaparental (artigo 1.633 CC/2002), eudemonista (artigo 1.614 CC/2002), informal (artigo 1723 CC/2002), matrimonial (artigo 1.511 CC/2002), monoparental (artigo 1.412 CC/2002 § 2º), natural ou extensa (artigo 1.553 CC/2002), paralela (artigo 1.727 CC/2002), recomposta (artigo 1.636 CC/2002) e Substituta (artigo 1.634 CC/2002). O referido Código, não legitima em seus dispositivos as famílias homoafetiva e poliafetiva. A família monoparental, não possui um artigo definido no Código Civil de 2002, utilizando por analogia o artigo 1.412, § 2º, do Uso, que determina: “As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico”. Em relação à adoção, o Código Civil de 1916 estabelece normas referentes aos solteiros, em que, apenas os maiores de 30 anos estariam legitimados a adotar (artigo 376 do CC/1916), assim como determina a adoção de nascituro, desde que comprove autorização do seu representante legal (artigo 372 do CC/1916); a adoção conjunta, por casais, pode ser concedida desde que decorrido o prazo de cinco anos da referida união (artigo 368, § único, do CC/1916). As demais modalidades de 256 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE adoção não constam no respectivo código: á brasileira, de maiores, divorciados, homoparental, internacional, intuito personae, póstuma e unilateral. O Código Civil de 2002 determina a não determina a modalidade de adoção homoparental, á brasileira, intuito personae, internacional e nascituro. Cabe, portanto, analise referente aos demais legitimados. Assim podemos constatar que os solteiros, como um caso atípico, não estabelecendo artigo especifico, constando apenas a possibilidade de adoção aos maiores de 18 anos (artigo 1.618 do CC/2002); aos casais, estes definem o código como um todo, já que constituem a base da família tradicional (artigo 1.618 do CC/2002); A adoção pode ser concedida aos divorciados e aos juridicamente separados, desde que estabeleçam o regime de visita e, desde que o processo de adoção tenha se iniciado na constância do casamento (artigo 1.622 do CC/2002); a adoção de maiores é de responsabilidade do Código Civil, e sendo assim, com atuação efetiva do Poder Público (artigo 1.623 do CC/2002); a adoção póstuma também é concedida desde que o adotante tenha falecido no curso do processo (artigo 1.628 do CC/2002); A adoção unilateral ocorre quando um dos cônjuges adota o filho do outro, mantendo os vínculos de filiação (artigo 1.626 do CC/2002); os estrangeiros podem adotar obedecendo aos casos disposto em lei (artigo 1.629 do CC/2002). A adoção por pessoas solteiras, não dispõe de dispositivos normativos específicos seja na lei de adoção 8.069/90, no Código Civil de 2002, muito menos na Constituição Federal de 1988. 4.3 A ANÁLISE NORMATIVA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta distorções, no sentido de atribuir legitimidade à adoção apenas as famílias matrimoniais e informais, compostas pelas uniões estáveis. Em ambas os adotantes devem comprovar estabilidade familiar. A família natural (Art. 25 do ECA) ou extensa, o referido estatuto estabelece expressamente, que a família natural é composta por pelos pais ou um deles e seus filhos, sendo a extensa, constituída por parentes próximos, com os quais a criança conviva e que estabeleça vínculos de afinidade e de afetividade. 257 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Assim como a substituta, atribui-se a esta um caráter excepcional, apenas na impossibilidade de convívio da criança com a família natural. Em nada se refere o respectivo estatuto as entidades familiares anaparental, eudemonista, homoafetiva, paralela/ simultânea, poliafetiva ou recomposta. Em relação à família monoparental, o respectivo estatuto não estabelece um artigo específico, apenas determina a possibilidade de adoção por maiores de 18 anos independentes do estado civil, assim como a definição de família natural, determinada pelo artigo 25, da lei 8.069/90. Contudo, ao identificarmos a questão de nossa pesquisa, relacionada à família monoparental, podemos notar que esta, é apenas citada no Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 25, estabelecendo relação com o artigo 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988. Mesmo recebendo proteção constitucional, perece de direitos e garantias contidas em dispositivos do Código Civil de 2002. O solteiro como legitimados a adoção, é apenas citado pelo respectivo Estatuto da Criança e do Adolescente, não estabelecendo regras ou normas especificas, atribuindo a ele o regime geral de adoção, conforme o artigo 42, do referido estatuto. O Estatuto da Criança e do Adolescente atribui prevalência normativa, em seu artigo 2º, § único, em que se aplica em caráter excepcional o referido estatuto nos casos de pessoas maiores de 18 anos, já que sua regulamentação é estabelecida pelo Código Civil de 2002. Admite o respectivo estatuto, o estabelecimento de normas referentes às adoções por casais civilmente casados, determinando a existência de estabilidade familiar, incluindo o em regime de união estável (artigo 42, § 2º, ECA); os estrangeiros, determinando o estágio de convivência a ser cumprido em território nacional durante o período de 30 dias (artigo 46, § 3º, ECA); internacional, estabelecendo que a referida adoção só será efetuada, mediante consulta ao cadastros de adoções e inexistindo pretendentes com residência em território nacional (artigo 50, § 10, ECA); póstuma, a adoção será concedida, mesmo após o falecimento do adotante durante o processo de adoção, antes de deferida a sentença (artigo 42, § 6º, ECA); e unilateral, em que havendo a adoção por um dos cônjuges, o adotado estabelecerá vinculo de filiação com o adotante e como os parentes dele (artigo 41, §1º). Em nada se refere á adoção 258 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Homoparental (ADPF 132 e ADI 4.277 do STF, pelo voto da Ministra Nancy Andrighi, reconhece a família homoafetiva); à Brasileira, Intuitu Personae e do Nascituro. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A adoção possui um caráter jurídico formal, detentor de normas taxativas que permitem a proteção dos sujeitos de direito, constituído pelo Princípio da Proteção Integral, a fim de garantir a integridade psicossocial dos entes protegidos pelo referido instituto. Caracteriza-se como a única forma que possibilita a gestão masculina e feminina pela afetividade, no caso dos solteiros. Os filhos nascem do coração, do desejo de serem pais e mães, da vontade de constituir uma família, a família monoparental por adoção. A ampliação da paridade jurídica relativa à adoção se faz necessária, em virtude da ausência de dispositivos normativos específicos que regulamentem o referido instituto em face adoção pelos solteiros, pois não possuem proteção normativa em sua maioria, diante do Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Civil de 2002 e Constituição Federal de 1988. Diante da Sociedade Contemporânea, a concepção desta ampliação da paridade jurídica torna-se necessária, em virtude da existência de diversas entidades familiares que coexistem e, por tanto, necessitam de dispositivos legais que regulamente direitos e garantias destas. Utiliza-se, neste caso, normas gerais de adoção que se estabelecem ao longo dos referidos diplomas legais, mas nada que especifique o tipo de adoção em tela. Esta ampliação pode ser pleiteada, no sentido de garantir uma atenção maior aos solteiros, diante de suas necessidades ímpares, que os diferem dos demais legitimados, já que não compõe uma união conjugal matrimonial ou união estável, determinando-se como uma entidade familiar monoparental. No que se refere ao processo de adoção, cabe a Vara da Infância, ao Ministério Público e ao Juiz da respectiva vara, em relação ao processo de adoção, avaliar diante na nova composição familiar, não apenas os quesitos gerais de direito 259 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ao pleito, mas também a toda questão relevante à nova formação familiar e suas peculiaridades, de forma a salvaguardar direitos e garantias inerentes ao instituto. A sociedade, por sua vez, deve se desprender de ditames de intolerância, compreendendo de fato que, este tipo de formação familiar irá compor de forma definitiva a atual sociedade. Assim como esta, as demais entidades familiares possuem o mesmo direito de aceitação e respeito social. O entendimento perante a escolha individual das pessoas que compõe o Estado Democrático de Direito, deve ser considerado e respeitado pela sociedade, inexistindo qualquer tipo de discriminação a estes e a seus descendentes. A análise dos parâmetros jurídicos e sociais referentes à adoção por pessoas solteiras atingiu seu êxito na referida pesquisa, sendo demostrado ao longo do trabalho todas as questões jurisdicionais e os ditames sociais referentes ao objeto de estudo. A literatura jurídica aplicada à pesquisa fundamentou a importância de se estabelecer a ampliação da paridade jurídica dos solteiros frente aos demais legitimados à adoção, assim como, demostrou a necessidade de atribuição de normas específicas a estes, por ausência destas diante do Código Civil de 2002, Estatuto da Criança e do Adolescente e Constituição Federal de 1988. A determinação e aplicação de normas referente a cada legitimado foi determinante para compreensão do objetivo da pesquisa, no caso, a adoção por pessoas solteiras, possibilitando uma visão ampla, assim como, uma robusta discussão, a fim de determinar a necessidade de dispositivos que garantam a proteção normativa tanto aos legitimados, quando das crianças e adolescentes aptos á adoção. Os solteiros, por sua vez, apresentam certa paridade jurídica, já que o artigo 42 explicita a possibilidade de adoção por indivíduos maiores de 18 anos independentes do estado civil. Contudo, não há uma divulgação expressiva da adoção por solteiros, como na questão do homoafetivo e até mesmo da matrimonial. Mesmo que possua paridade, sua situação social ainda encontra diversos questionamentos, no sentido da não aceitação da monoparentalidade por adoção, afinal, uma pessoa solteira, saudável e apta a gestar, opte por não ter filhos biológicos, mas adotivos, gera insatisfação familiar e social. 260 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Alguns questionamentos são pertinentes em relação à família monoparental por adoção: Como saber da existência quantitativa de famílias monoparentais por adoção senão por dados fornecidos pela Vara da Infância e Juventude; Como definir as prioridades relativas a esta entidade se não há declarações efetivas de suas necessidades enquanto entidade familiar; suas dificuldades e do que precisam para que obtenham êxito diante do instituto da adoção; o que pensam sobre sua conduta perante a sociedade e em contra partida, da resposta social sobre a escolha que fizeram de serem pais ou mães solteiros por opção; do que almejam enquanto entidades familiares, para seus filhos afetivos, diante de uma sociedade que não compreende as escolhas individuais ou coletivas e a proteção jurisdicional do Estado frente a sua escolha de formação familiar. Portanto, o que realmente falta para que haja uma maior expressividade desta entidade familiar é a publicidade. Não só uma publicidade na mídia, mas uma publicidade jurídica, apresentada nos cursos de adoção fornecidos pelas Varas da Infância e da Juventude, pelas ONGs, uma publicidade que demostre a real importância da adoção pelo solteiro, da família monoparental por adoção, que demonstre a sua importância como entidade familiar constituinte da sociedade contemporânea. A Constituição Federal de 1988, garante ao indivíduo liberdade, estabelecida em seu preâmbulo, reunindo em seu arcabouço jurídico o exercício dos direitos sociais e individuais, os princípios garantidores como o Princípio da Liberdade, da Igualdade, estabelecendo o cumprimento do direito a segurança, ao bem-estar e a justiça, sendo estes valores supremos de uma sociedade pluralista, ausentes de preconceitos, harmoniosa socialmente e comprometida com a manutenção da ordem social. (Brasil, Constituição Federal, 5 de outubro de 1988). O artigo 5º, caput, da referida Constituição, e seus incisos subsequentes, reitera as garantias constitucionais, assim como os Direitos Fundamentais dos cidadãos. A adoção monoparental pelo solteiro apresenta-se como uma adoção sui generis (“único em seu gênero”), pode apresentar dificuldades no sentido dos adotantes ficarem sem o apoio jurisdiciona, ou seja, da proteção normativa específica perante o Poder Público, em que o sucesso pleno, depende do arcabouço jurídico dedicado pelas Varas da Infância e Juventude e por parte das ONGs, estas 261 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE por sua vez, precisam se capacitar cada vez mais, para receber novas formas de entidades familiares, e entenderem em definitivo, que a família tradicional terá que dividir seu espaço, diante de uma sociedade plural. Atribuiu-se, ao longo do discurso científico, a importância normativa da adoção por pessoas solteiras, visto que, são responsáveis pela formação da família monoparental por adoção que, deverá receber proteção jurisdicional efetiva, diante de suas caraterísticas individuais, determinando que não haja necessidade de se recorrer às leis gerais para fundamentar a adoção do referido instituto. REFERÊNCIAS BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.8.069/1990. integralmente reformulada. Atualizada até novembro de 2010. 4. ed. Bahia: Jus Podivn, 2010. BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BRASIL, Código Civil de 2002. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:<http://www. planalto.gov.br/ccivil/_03/leis/2002/I10406.htm>.Acesso em: 23 maio 2015. BRASIL, Código Civil: quadro comparativo 1916/2002. 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Rev., atual. ampl. de acordo com a Lei 12. 344/2010 (regime obrigatório de bens) e com a Lei 12. 398/2011 (direito de visita dos avós). 9. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Rev., ampl. e atual. 6. ed. Bahia: Jus Podivn, 2014. v. 6. FULLER, Paulo Henrique Aranda; DEZEM, Guilherme Madeira; NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente. Rev., atual. e ampl. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família: as famílias em perspectiva constitucional. Rev., atual. e ampl. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 6. GONÇALVES, Carlos Roberto; Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 6. LISBOA, Roberto Senice. Manual de Direito Civil: Direito de família e sucessões. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 5. LOBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rev., ampl. e atual. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. SANTOS, Yumi Garcia dos. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia. Mulheres Chefes de Família entre a autonomia e a dependência. Um estudo comparativo entre Brasil, França e Japão. 18 de dezembro de 2008. p. 27. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/.../8/.../TESE_YUMI_GARCIA_SANTOS.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2015. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. Scielo Estudos Avançados. CLAUDE LÉVI-STRAUSS. Claude Lévi-Strauss, uma apresentação1. Estud. av. v.23 n.67 São Paulo 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142009000300019>. Acesso em: 24 abr. 2015. TARTUCE, Flavio. Direito Civil: Direito de Família. Rev., atual. e. ampl. 9. ed. São Paulo: Método. 2014. v. 5. DA SILVA, Jose Afonso. 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Editora Cortez. 264 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE EMPRESAS PÚBLICAS ESTATAIS NO CONTEXTO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE PUBLIC ENTERPRISES STATE IN THE CONTEXT OF PUBLIC HEALTH SERVICES Julya Carneiro Lobo155 Luiz Gustavo Andrade156 RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar a importância dos serviços públicos no contexto da saúde e a importância desse direito na perspectiva constitucional e infraconstitucional. Não é possível desvincular serviço público na área da saúde com os princípios que regem esse campo, a fim de alcançar a lógica da prestação do serviço público de saúde por empresas públicas. Após a análise e a definição do conceito, para fins de objetividade, da administração direta e indireta, segue-se explorando a esfera da administração indireta, caracterizando-a até modular os aspectos da empresa pública. Como modelo de instituição para estudo, chegou-se a EBSERH, denominada de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, e citou-se a problemática que a envolve através da discussão da constitucionalidade dos incisos da lei que a criou pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/STF. Ao final, concluir-se-á que tais incisos da Lei 12.550/2011 de fato incidem em inconstitucionalidade por vícios materiais. Palavras-chave: direito à saúde, dignidade da pessoa humana, serviço público à saúde, empresas públicas em hospitais, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. ABSTRACT This study objectives to demonstrate the relevance of public services on the health sector and the importance of this right on the constitutional perspective. It is not possible to detach public services on the health sector with the principles that rule this field, disciplined by the constitutional legislation intending to reach the logic of the health public service by public companies. After analysis and concept definition of the direct and indirect administration, it continues to explore the indirect administration ambit, characterizing until modulate the public sector aspects. As model institution for studies, it got to EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Hospital Services Brazilian Company), and cited the problematic that involves through the discussion of the constitutionality of the alterations on the law that was created by the Unconstitutionality Direct Action 4895/FCJ. At the end, 155 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Advogado. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), membro da Comissão de Direito Eleitoral e da Comissão de Controle e Gestão Pública da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná (OAB-PR). 156 265 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE the conclusion will be that cited alterations of the law 12.550/2011 in fact occur in unconstitutionality by material addiction. Keywords: health rights, principle of human dignity, health public service, public companies, Hospital Services Brazilian Company. 1 INTRODUÇÃO A realização da pesquisa pertinente a esse artigo se justifica pelo fato da Lei nº 12.550, de 15 de dezembro de 2011, ser alvo de discussões quanto à sua aplicação e à sua constitucionalidade, bem como a finalidade lucrativa das empresas públicas estatais e a falta de regulamentação legal do dispositivo constitucional que versa sobre essas empresas atuantes na prestação de serviço público, exaltando-se aqui, o campo da saúde. Destaca-se essa área devido à essencialidade para manutenção da sociedade brasileira. O estudo admite a saúde como direito humano fundamental, portanto impõe ao Estado a necessidade concretizá-lo para que ele não incida em omissão constitucional, devendo ser aplicada com base na competência material dos entes da Federação estabelecida no Texto Constitucional. Como meio para alcançar estimado direito, criou-se o Sistema Único de Saúde para cumprir o preceito constitucional que Estado tem como dever, a fim de promover o bem-estar e o progresso social a toda coletividade, fornecendo os serviços necessários aos integrantes da sociedade – principalmente aos que carecem desses serviços. Com ressalva, o simples dever de prestá-lo, não significa fazê-lo de qualquer maneira. Para que o Estado o faça é necessário que esteja em concordância com a Constituição Federal e a escolha de Empresas Públicas para a realização do serviço público de saúde através da Lei nº 12.550/2011, gerou discussões no âmbito jurídico, as quais serão abordadas como objetivo central de estudo, citando o caso concreto correspondente a EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – e a ADI 4.895 do Supremo Tribunal Federal, no que se refere à (in)constitucionalidade da prestação do serviço na área da saúde por meio dessas Empresas Públicas, as quais, em tese, visam ao lucro. 266 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO Os direitos sociais tiveram a sua ascensão com a mudança da visão sociológica que trouxe a preocupação com o corpo social do indivíduo, visto que esse deveria ser preservado a fim de manter a sociedade viva. Para que isso acontecesse, seria preciso concretizar a tutela desses direitos com a dimensão dos direitos fundamentais do homem. Portanto, percebe-se nesse contexto a busca pela igualdade social, uma vez que esse rol de direitos possui traços do princípio da igualdade, que busca igualizar as situações sociais desiguais com o intuito de propiciar melhores condições de vida aos mais vulneráveis (SILVA, 2014. p. 186187.). Elevado à categoria de direitos fundamentais da pessoa humana, a saúde, bem extraordinariamente relevante à vida, abre o direito aos serviços públicos do Sistema Único de Saúde à população do país, de modo que, o constituinte é claro ao afirmar ser esse um direito de todos e um dever do Estado, e que esse deve agir com políticas sociais e econômicas a fim de reduzir o risco de doenças em seu território. O caput do artigo 196 do Texto, afirma que esse é um direito universal e igualitário reservado à pessoa natural titular dos direitos fundamentais. Universal, uma vez que basta a qualidade de ser humano para obter a titularidade desse direito (MENDES, 2014. p. 143.), e igualitário, visto que a Lei Fundamental outorga o direito a todos de usufruir de um tratamento idêntico, vedando as diferenciações arbitrárias e autorizando apenas o tratamento desigual para os desiguais, o que converge com o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando afirma que os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Lei Maior, uma vez confirmada a existência de um fim proporcional (MORAES, 2014. p. 35-36.). Essas concepções, diversificam de acordo com os Estados democráticos, de modo que cada um caracteriza ou trata os direitos fundamentais de maneira diferente (MENDES, 2014, p. 142.). Ao apresentar as noções gerais do direito à saúde, Constituição Federal objetiva-se ressaltar o valor fundamental social da saúde, atribuindo prerrogativas que envolvem o Sistema Único de Saúde com o intuito de consagrar a aplicação 267 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE desse direito intimamente ligado ao macro princípio brasileiro, o da dignidade da pessoa humana. 3 OS SERVIÇOS PÚBLICOS NA ÁREA DA SAÚDE Posto o direito à saúde como um direito fundamental social, o Estado necessita concretizá-lo para que não incida em omissão constitucional. Para que o Estado funcione é preciso a operacionalização da estrutura dos poderes que os compõem. Esses poderes – Judiciário, Executivo e Legislativo – são formados por serviços que são prestados em prol da administração estatal e a manutenção da sociedade. Denominados de serviços públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro salienta que esse conceito corresponde a “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público” (DI PIETRO, 2015. p. 141.). Cretella Jr. ressalta a relevância do serviço público na esfera do direito administrativo, uma vez que corresponde a ideia central do conjunto de atividades prestadas pela Administração. Assim, o autor afirma que trata-se de serviço público o serviço destinado ao cumprimento dos fins do Estado e procura minimizar a complexidade desse conceito considerando como “serviço público toda atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins. Por essa definição, algum serviço que, desempenhado por particular, seria de ordem privada, passa a ser público, desde que executado pelo Estado, para cumprir seus fins.” (CRETELLA JÚNIOR, 1999. p. 397-402.). 4 A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE POR MEIO DE EMPRESAS PÚBLICAS A prestação do serviço público de saúde corresponde ao dever fundamental do Estado de oferecer tais serviços. Para alcançar esse fim, os entes federados devem obedecer a legislação vigente e os princípios essenciais que regulamentam a 268 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE seara do serviço público de saúde, assim, o gerenciamento desses serviços pode ser realizado por meio da Administração pública direta ou indireta, de forma centralizada ou descentralizada, cada uma com as suas características e finalidades. Ao que se refere a utilização de empresas públicas na Administração pública indireta para a prestação do serviço público de saúde, há uma intensa discussão quanto a constitucionalidade dessa prestação, que é condicionada a uma lei complementar federal que até hoje não existe, configurando omissão legislativa. Nesse âmbito, questiona-se o intuito da empresa pública ao intermediar a prestação desse direito fundamental, dada a contradição da empresa de possuir como finalidade o lucro. Neste viés, tem-se por ponto de partida o caso da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH – criada pela autorização da Lei 12.550 de 15 de dezembro de 2011. Discute-se a inconstitucionalidade da prestação de serviço público na área da saúde por meio de empresas públicas, que acabou por acarretar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895 do Supremo Tribunal Federal, uma vez considerada a omissão legislativa que designa as áreas de atuação permitidas a essas empresas. Ao adentrar nesse âmbito, nota-se o Decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, promoveu a descentralização e a flexibilização administrativa ao separar a Administração direta da indireta. Nos termos desse Decreto-lei, a Administração direta corresponde aos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, enquanto a Administração indireta compreende as entidades dotadas de personalidade jurídica própria, como, por exemplo, Autarquias, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista e Fundações Públicas (MELLO, 2015, p. 156). No âmbito constitucional, nota-se duas maneiras de administração da máquina estatal, tendo em vista a obtenção de maior presteza, flexibilização e eficiência, desenvolvendo formas de cooperação em diversas áreas políticasadministrativas a fim de prestar o melhor serviço ao usuário. A percepção de eficiência dos serviços públicos é fundamental para a estrutura do Estado Social que busca a aplicação do princípio da Justiça Social (MENDES, 2014, p. 860-861.). 269 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A lei que regulamenta a Administração direta é a 10.683, de 28 de maio de 2003, que estabelece as diretrizes de organização e os órgãos que constitui a Presidência da República, bem como os Ministérios. Assim, compõe a Administração pública direta todos os órgãos integrantes das pessoas jurídicas políticas, que correspondem a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, todos regidos por lei que regulamenta as funções administrativas (DI PIETRO, 2015, p. 91). A execução direta do serviço público é aquela realizada pelo próprio responsável, assim, o encarregado o realiza por meio do seu próprio ato, por seus próprios órgãos ou por seus prepostos estabelecidos pela norma extraída da lei que cria determinado serviço público ou pela autorização da delegação (MEIRELLES, 2011, p. 379). As entidades da Administração pública direta são caracterizadas por órgãos criados por lei que não possuem personalidade jurídica, ou seja, são despersonalizadas, não possuem patrimônio próprio, são subordinadas a pessoa política que a criou e a relação entre ambas é influenciada pelo princípio da hierarquia. De acordo com Marçal Justen Filho, todas as funções públicas são atribuídas constitucionalmente aos entes políticos, mas o direito permite que este ente atribua parcial ou totalmente a sua competência a outra entidade, sujeito de direito, a qual foi criada por lei ou mediante autorização legal. Essas outras pessoas jurídicas correspondem a Administração indireta, portanto, não são entes políticos e nem titulares dos poderes estabelecidos pela Lei Maior, pelo contrário, são competências recebidas de modo indireto, por decisão infraconstitucional dos entes políticos para as pessoas administrativas (JUSTEN FILHO, 2013. p. 273-274). A Administração indireta é reconhecida constitucionalmente baseado nas inúmeras referências que possui na Carta Magna, inclusive no caput do artigo 37, CF/88, a título de exemplo. Desse modo, transfere-se as atribuições e funções administrativas para as pessoas jurídicas de direito público ou privado, criadas ou autorizadas por lei – se for autarquia, é necessária lei específica diretamente para a criação, se corresponder as demais entidades, basta a mera autorização para a criação em lei específica – para desempenhar as atividades de competência estatal, prestando serviços públicos ou intervindo no domínio econômico (DI PIETRO, 2015, 270 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE p. 528), assim, essas entidades são desprovidas de autonomia política e, apenas vinculadas à Administração direta. Pela execução indireta, a responsabilidade própria da prestação do serviço é transferida a terceiro, porém a possibilidade de delegação é baseada na natureza do serviço público, de modo que alguns serviços não admitem substituição do executor pelo Estado (MEIRELLES, 2011, p. 380). Justifica-se a ascendência dessas entidades devido a Reforma Administrativa – fruto da EC 19/1998 – pois elas ganharam destaque a fim de implantar a “doutrina do Estado mínimo”, uma vez que o Estado, frustrando o princípio da eficiência, demonstrou ao longo do tempo a incapacidade de realizar todas as demandas necessárias impostas pela Constituição Federal de 1988, assim, objetiva-se “retirar o setor público de todas as áreas em que sua atuação não seja imprescindível” (ALEXANDRINO, 2009, p. 129), defendendo a ideia de que o Estado sempre é menos eficiente que o particular e, por esse motivo, deve-se atuar somente onde é indispensável. Assim, ressalta-se os quatro objetivos do Estado mínimo: o social, concretizando o princípio da eficiência da esfera dos serviços sociais estatais; o econômico, uma vez que diminuir o déficit púbico significa ampliar a capacidade financeira do Estado; o político, já que amplia a participação da cidadania na gestão da coisa pública e, por fim, o gerencial, pois aumenta a eficácia e a efetividade do núcleo estratégico do Estado (ALEXANDRINO, 2009, p. 131). Diante disso, tanto a iniciativa privada quanto a pública podem prestar esses serviços, uma vez que ambos são titulares desse direito, nos termos da Lei Maior. Porém a ineficiência estatal, demonstra a necessidade de redefinir o papel do Estado a fim de viabilizar políticas públicas em áreas que o ele é ausente, para que o setor público prospere da mesma forma que o setor privado. O ministro do STF, Marco Aurélio afirma que a modelagem estabelecida pelo Texto Constitucional para a execução de serviços públicos sociais como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação do meio ambiente, não prescinde de atuação direta do Estado, vez que são inconstitucionais leis que emprestem ao Estado papel meramente indutor nessas áreas, consideradas de grande relevância pelo constituinte, pois o ministro alega que delegar essas tarefas constitui 271 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE privatização, o que vai contra aos preceitos constitucionais. Assim, a participação das instituições privadas só será admitida na forma complementar ao Sistema Único de Saúde. Diante disso, o Estado busca maneiras de sanar a sua ausência, passando a destacar o aspecto do fomento, em que a Administração pública implementa as modificações da Reforma Administrativa, de modo a direcionar ao particular as atividades de interesse público, sem emprego da coerção, visando a reverter os contornos do Estado intervencionista (REIS, 2013, p. 243). Com isso, o Estado busca induzir, mediante estímulos, incentivos para que os particulares adotem determinados comportamentos. Com a promoção do fomento na atividade administrativa e a maneira como se dá a satisfação de interesses da coletividade, se torna necessário definir os contornos exatos deste instituto a fim de que a Administração aja de maneira uniforme e o promova – sempre ligado ao interesse público primário – de modo que, o estimulo deve caminhar em direção ao bem-estar geral. Com isso, significa dizer que a “mola propulsora do fomento” é o interesse público, de modo que, se estiver no sentido contrário, configura-se a ilicitude do ato (REIS, 2013, p. 246). Neste âmbito, o fomento pode ser realizado de duas maneiras perante as instituições: incentivando as entidades privadas com fins lucrativos a praticarem atividade econômica que acabe por acarretar benefícios públicos ou incentivar entidades não lucrativas a realizarem atividades de interesse público, as quais alcancem determinados benefícios para a comunidade (REIS, 2013, p. 247). Nota-se, segundo a obra de Luciano Reis, que o “ato de fomentar atividades particulares não significa desoneração do Estado de suas missões constitucionais”, neste sentido, “não é legítima e nem legal o uso da atividade fomentadora para a transferência integral da atuação estatal preconizada pela Constituição e pela legislação infraconstitucional” (REIS, 2013, p. 251-252). De verdade, não se pode pensar em um convênio como simples instrumento jurídico para delegar serviço público a um particular, pois a análise deve ser feita em cima da finalidade do interesse público, essa é a missão finalística da atuação fomentadora. Com base nisso, os convênios deverão prestar serviços públicos de maneira complementar à 272 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE atuação estatal, de modo que não deve ser utilizado como “fuga” do Estado na realização dos deveres legalmente impostos a ele. Reis destaca o pensamento de Silvio Luis Ferreira da Rocha, o qual relata que “a atividade administrativa de fomento, enquanto subsidiária, não desonera a Administração de atuar de modo direto, na prestação de serviços, como os de saúde e os de educação” (REIS, 2013, p. 256). Assim, ressalta-se no campo da saúde os comandos constitucionais e a responsabilidade do Estado na fomentação, pois, esta pode ser fomentada e prestada pelos particulares de acordo com a legislação, porém, apenas em caráter complementar, “o que per si não afasta a responsabilidade e o dever do Estado em prestá-la nas suas características essenciais” (REIS, 2013, p. 256-257), ou seja, o fomento não é uma transferência de responsabilidade. A Administração pública pode se dar de maneira direta ou indireta. Se escolhida a indireta, o Poder Público deve calcar-se no artigo 37, inciso XIX da Lei Maior para criar a lei específica que autorize a instituição da entidade administrativa. As entidades políticas e administrativas da Administração pública indireta são pessoas jurídicas de direito público ou privado, personalizadas e encarregadas de realizar as atividades por meio dos seus agentes. Entre as entidades que integram esse conceito, destaca-se, nesse tópico, as empresariais. Segundo Hely Lopes Meirelles, as empresas públicas são pessoas jurídicas de direito privado criadas por meio de lei específica, regulamentadas pelo Poder Executivo e, que visam prestar um serviço público que possa ser explorado de modo empresarial ou exercer alguma atividade econômica de relevante interesse coletivo (MEIRELLES, 2011, p. 66-67). Com efeito, Bandeira de Mello ressalta que não é exato afirmar que as empresas públicas podem ser estabelecidas para exploração de atividade econômica levando em consideração a densidade jurídica utilizada para conceituar a expressão, assim, essa expressão no sentido correto – para o autor – possui o sentido de que a atividade desenvolvida se efetua mediante pagamento, o que corresponde a simples atividade de uma empresa (MELLO, 2015, p. 195) e, portanto, não merece uma análise mais aprofundada comparado ao presente tema. 273 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A empresa federal deve possuir autorização legal para agir como instrumento de ação do Estado, ainda que sob o regime do direito privado, possui normas específicas decorrentes da ação governamental. Deveras, essa entidade é formada pelo capital estatal, de modo que, os recursos são constituídos pelo capital de pessoas de direito público interno ou de pessoas da administração indireta, com predominância acionária estatal (MELLO, 2015, p. 191). Dito isso, percebe-se que a empresa estatal possui duas funções: a de prestar ou explorar serviços públicos, exemplificadas pela Telebrás, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Rede Ferroviária do Brasil e a Caixa Econômica do Brasil (correspondem a empresas públicas), a de explorar uma atividade econômica, como o Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES – e a Petrobras (correspondem a sociedades de economia mista, na realidade). Com isso, ocorre a descentralização dos serviços que o Estado deve prestar pela personalização da entidade prestadora. José Afonso da Silva explica que as diferenças entre os tipos de entidades correspondem às obrigações tributárias, trabalhistas e a não obtenção de privilégios fiscais para iniciativa privada, pois isso não se aplica apenas àquela que explora determinado serviço público. Para criar a empresa pública, o Estado deve autorizar a sua criação em lei específica e registrar no cartório os atos constitutivos, que corresponde ao estatuto ou contrato social. Ao criá-la, o Estado constitui uma pessoa jurídica de direito privado com praticamente todas as características indicadas para as pessoas públicas, de modo que o Poder Público a cria e a extingue por meio de lei, sem possibilidade de extinção pela própria vontade. Dessa forma, a pessoa jurídica representa um modo de intervenção do Estado na economia, como se o Estado fosse um empresário. Neste viés, ressalta-se que o Estado já possui relação com a empresa no momento da sua criação em lei, pois a relação entre ambos é definida por antecipação e caracterizada pelo controle, ora, se o Estado é considerado o proprietário da empresa pública, aquele deve exercer controle sobre esta (SILVA, 2014, p. 735). 274 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A autorização para que os entes federados criem empresas públicas está prevista no artigo 37, inciso XIX do Mandamento Constitucional, contudo, não existe no ordenamento a lei complementar que determine as áreas de atuação que as entidades administrativas podem atuar prestando serviços públicos. Como na Constituição Federal não há nenhuma previsão e o legislador infraconstitucional não se pronunciou, há uma lacuna quanto a esse assunto. Sem a regulamentação legal do dispositivo constitucional configura-se a omissão legislativa, consequentemente, não é possível que a lei brasileira saiba em qual setor a empresa pública está autorizada a atuar. No que se refere à licitação e aos princípios que a permeiam, José Afonso da Silva explana que o estatuto da empresa estatal deve observar os requisitos para tal instituto, versando sobre licitação, contratações de obras, serviços, compras e alienações, sempre calcadas nos princípios que regem a Administração pública – previstos no Texto Constitucional. Significa dizer que as empresas estatais se submetem ao regime das empresas privadas com ressalvas do regime público, pois necessitam dos aspectos fundamentais do funcionamento e exercício das atividades públicas para atuar. Neste âmbito, o Estado deve exercer controle positivo sobre a entidade, podendo atribuir prerrogativas autoritárias a ela. Apesar da previsão de que o estatuto aborde a sujeição de empresas públicas ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive no que se trata aos direitos e obrigações tributárias, a Lei Maior ressalta no artigo 173, § 2º, a expressa proibição às empresas públicas de gozarem de privilégios fiscais não estendidos ao setor privado (SILVA, 2014, p. 734). Essas empresas têm personalidade jurídica própria, possui patrimônio próprio (e totalmente público), são submissas a lei quanto os seus direitos e obrigações e possuem receita própria, portanto, capacidade de autoadministração. Os cargos ocupados por trabalhadores nas empresas públicas são denominados de empregos públicos – são empregados públicos – e, portanto, submetidos ao regime celetista (e 275 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE não estatutário), o que significa dizer que não possuem estabilidade 157, de modo que o concurso para a admissão dos empregados públicos constitui mera formalidade, cumprimento de uma regra como fundamenta a Súmula 390 do Tribunal Superior do Trabalho. O regime celetista é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou seja, a relação jurídica entre o Estado e o empregado público têm natureza contratual. Citam-se, outras características peculiares do regime celetista que abrange os empregados públicos, como o aumento salarial, o qual só poderá ocorrer por meio de negociação coletiva, o direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o aviso prévio, a multa rescisória, o décimo terceiro, as férias, o valetransporte e a aposentadoria pelo regime geral158 do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), prevista aos homens com 65 anos de idade ou 35 anos de contribuição previdenciária e as mulheres com 60 anos de idade ou 30 anos de contribuição. Na esfera processual, a empresa pública, via de regra, não paga as suas condenações judiciais por meio de precatório, assim, as pessoas jurídicas de direito privado podem ter os seus bens penhorados para a execução judicial, ou seja, não gozam do direito ao pagamento por precatório. Contudo, há uma exceção prevista na Orientação Jurisprudencial 247, II, do TST159, a qual corresponde à Empresa 157 Apesar do ingresso se dar por concurso público, os empregados públicos de regime celetista não possuem estabilidade. Súmula 390 do TST: Estabilidade. Art. 41 da CF/1988. Celetista. Administração direta, autárquica ou fundacional. Aplicabilidade. Empregado de empresa pública e sociedade de economia mista. Inaplicável. I - O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. II - Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. 158 O regime geral de Previdência Social tem suas políticas elaboradas pelo Ministério da Previdência Social e executadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social, autarquia federal a ele vinculada. Este regime possui caráter contributivo e de filiação obrigatória. Dentre os contribuintes, encontram-se os empregados públicos. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/perguntas-frequentesprevidncia-social/>. Acesso em: 02 jun. 2015. 159 247. SERVIDOR PÚBLICO. CELETISTA CONCURSADO. DESPEDIDA IMOTIVADA. EMPRESA PÚBLICA OU SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. I - A despedida de empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, mesmo admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade; II - A validade do ato de despedida do empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais. 276 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Brasileira de Correios e Telégrafos, a única empresa pública a pagar as suas condenações judiciais por meio do precatório, além de possuir condições especiais de foro, prazo e custas processuais. No âmbito da empresa pública, a regra é não possuir o benefício de prazo processual160. O objeto da empresa pública deve ser designado em lei que, se preciso, só poderá ser alterado por lei que corresponda ao objeto de mesma natureza. A finalidade principal da entidade não corresponde ao lucro e sim à consecução do interesse público, o que também será estabelecido pelo Estado, na medida da sua necessidade (DI PIETRO, 2015, p. 529-530). Nesse sentido, a divergência se dá com a redação do artigo 199 da CF/88, o qual impõe a proibição do repasse de recursos públicos a entidades que visam ao lucro e ao fato de uma empresa, em tese, visar o lucro. Dito isso, há certa contradição quanto ao fato da empresa pública prestar os serviços públicos de competência estatal, pois ao analisar a finalidade de uma empresa – qualquer que seja – o seu fim principal é justamente obter lucro. O lucro é um privilégio econômico normalmente obtido após uma exploração econômica de algo ou alguém, é uma conduta normal e lícita a qualquer empresa particular, porém, na esfera da empresa pública prestadora de serviço esse fim se torna discutível, uma vez que o Estado tem o dever constitucional de prestar o serviço sem visar o lucro e a empresa pública age em nome do Estado. Ao estabelecer essas prerrogativas, o Estado não visa a proteger a entidade criada e sim os recursos públicos que ela irá administrar, bem como a prestação do serviço. A escolha do Poder Público de criar uma entidade calcada no direito privado, dá a empresa maior liberdade para agir que o regime público da Administração pública direta, porém, considera-se o regime da empresa pública um regime híbrido, o que proporciona maior elasticidade a entidade, impondo 160 Informativo 507/STJ: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. PRAZOS PROCESSUAIS DIFERENCIADOS. EMPRESA PÚBLICA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. Não é possível a concessão às empresas públicas de prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar. As normas que criam privilégios ou prerrogativas especiais devem ser interpretadas restritivamente, não se encontrando as empresas públicas inseridas no conceito de Fazenda Pública previsto no art. 188 do CPC. Precedente citado: REsp 429.087-RS, DJe 25/10/2004. AgRg no REsp 1.266.098- RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 23/10/2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/informativo-tribunal,informativo-507-do-stj2012,40436.html>. Acesso em: 03 jun. 2015. 277 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE prerrogativas dos dois regimes, o que resulta na “derrogação parcial do direito privado por normas de direito público” (DI PIETRO, 2015, p. 531-532). Desta maneira, o serviço público em si (o qual é prestado), não acompanha esse raciocínio, pois ao ter como titular uma entidade pública, a qual possui natureza estatal, os serviços ficam sob o regime jurídico de direito público, ainda que prestado por uma empresa de direito privado, como exposto acima. Segundo Silva, “a verdade é que o regime não pode ser totalmente privado, porque, no mínimo, as relações dessas empresas com o Estado são de natureza administrativa” (SILVA, 2014, p. 734), ficando sujeitos aos princípios de direito público. Assim, Di Pietro conclui que na gestão dos serviços públicos pelo Estado, serão utilizados – no silêncio da lei – os princípios de direito público, inerentes ao regime jurídico administrativo, pois trata-se de serviço público, de modo que não há outra alternativa, dada a predominância do interesse público sobre o particular, a igualdade de tratamento dos usuários, a continuidade do serviço público, as limitações ao direito de greve e a obrigatoriedade de sua execução pelo Estado (DI PIETRO, 2015, p. 552). 5 O CASO DA EBSERH A criação da EBSERH atende um conjunto de medidas do Governo Federal com o intuito de recuperar e modernizar os hospitais universitários vinculados as universidades federais. A Lei 12.550/2011 autorizou a criação da EBSERH, empresa pública unipessoal, com personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, vinculado ao Poder Executivo através do Ministério da Educação. A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares possui vínculo com MEC, a fim de reestruturar hospitais universitários federais, através de medidas que reorganizar essas unidades no aspecto físico e tecnológico modernizando o parque tecnológico, além de revisar o financiamento da rede com o aumento progressivo do orçamento destinado aos hospitais, melhorar o processo de gestão e de recuperação do quadro de recursos humanos dessas instituições e o aprimoramento das atividades hospitalares vinculadas ao ensino, pesquisa, extensão, bem como à assistência à saúde. 278 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A título de exemplo, o Hospital de Clínicas de Curitiba, vinculado a Universidade Federal do Paraná, aderiu a EBSERH em 2014 após a aprovação do Conselho Universitário da UFPR. A aprovação foi tumultuada e justificada pela constante desativação de leitos devido à falta de funcionários somada a decisão judicial que determinou a demissão dos funcionários contratados da Fundação da UFPR – Funpar161. A gestão compartilhada do HC foi assinada pelo reitor da universidade no fim de 2014 em Brasília, o qual informou que o hospital continuará público através de serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde. A empresa deve fornecer relatórios semestrais à UFPR das suas atividades. Com isso, o MEC defende que as universidades federais que optarem por firmar contrato com a EBSERH, atuarão no sentido de modernizar a gestão desses hospitais, preservando e reforçando o papel estratégico desempenhado por essas unidades de centros de formação de profissionais na área da saúde e de prestação de assistência à saúde da população integralmente no âmbito do SUS. Contudo, a lei da EBSERH é alvo de discussão constitucional. O conflito relacionado a inconstitucionalidade da lei 12.550/2011 refere-se a possibilidade da empresa pública prestar o serviço público de saúde, vez que, de acordo com o autor da ADI em questão, isso viola dispositivos constitucionais. Para o Procurador-Geral da República as normas impugnadas na ADI 4895/STF incidem em inconstitucionalidade nos artigos 37, caput e incisos II e XIX; 39; 173, § 1º; 198 e 207, da Lei Suprema162. 161 Decisão advém da Ação Civil Pública 98908-2002-001-09-00-2, da 1ª Vara do Trabalho de Curitiba. A ação civil pública movida em face da UFPR e outros, foi motivada devido a contratação irregular de funcionários pelo HC, a qual resultou em acordo em 2004 que não foi cumprido pelas partes, como consequência, uma nova decisão propôs a regularização do quadro de funcionários em 90 dias sob pena de multa, porém, inúmeras audiências foram realizadas para alcançar um novo acordo em 2014. Na decisão do mesmo ano, o magistrado considerou que “foram esgotadas todas as tentativas de composição, exaustivamente ouvidas todas as partes envolvidas, foram encetados todos os esforços possíveis, para um desfecho que levasse em consideração a relevância social da presente ação”, portanto, ele não visualizou “que uma nova audiência de conciliação poderia acrescentar ao acordo formulado” e, observou “que a presente avença obriga tão somente as Partes envolvidas no processo e que firmam a petição de fls. 619-621”, vez que havia discordância dos terceiros interessados. Por sim, o juiz proferiu que em substituição a todas as avenças firmadas, o magistrado homologa o novo acordo entabulado entre as partes. 162 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na 279 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Destaca-se que a ação direta de inconstitucionalidade tem a finalidade de retirar do ordenamento lei ou ato normativo que esteja em choque com a ordem constitucional, contrariando-a. De acordo com Alexandre de Moraes, é uma finalidade de legislar negativa do Supremo Tribunal Federal (MORAES, 2014, p. 763), assim, não pode ultrapassar de exclusão do ordenamento jurídico os atos incompatíveis com a Lei Maior. A ADI 4895 do Supremo Tribunal Federal tem como relator o ministro Dias Toffoli e como autor, o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, o qual requer a inconstitucionalidade dos artigos 1º ao 17 da Lei 12.550/2011 que trata da gestão, administração de recursos e atribuições da EBSERH, que envolve a contratação de servidores regidos pelo regime celetista, por contrato temporário e processo seletivo simplificado. Gurgel afirma que um dos dispositivos lesionados é o artigo 37, XIX, da Lei Suprema, pois o inciso ressalta a necessidade de lei para autorizar a instituição de empresa pública, de acordo com lei complementar que permita a atuação da empresa em determinada área. O Procurador-Geral ressalta que não há lei complementar federal que defina as áreas de atuação das empresas públicas, quando dirigidas à prestação de serviços públicos, portanto, seria inconstitucional a autorização para instituição prestar tais serviços pela Lei 12.550/11, a qual se refere a EBSERH. Outro problema encontrado por Gurgel é a incompatibilidade do artigo 3, § 1º da Lei 12.550/2011 com o artigo 45 da Lei 8.080/1990, pois de acordo com o seu forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. 280 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE entendimento, o SUS é dever do Poder Público, dessa forma – como visto acima – compete a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, cada um com sua função (a descentralização é característica essencial desse sistema) completa o SUS, contrário do que foi proposto na Lei da EBSERH a qual atribui a essa empresa pública a função referente à todos os entes federados, em descompasso com o requisito do Sistema Único de Saúde, pois ressalta-se que esse é um órgão do MEC vinculado ao Poder Executivo referente apenas a União. Quanto a inconstitucionalidade da contratação de servidores públicos pelo regime da CLT, o autor explica que a ADI 4895 possui os mesmos fundamentos referente a medida cautelar da ADI 2135, a qual foi deferida pelo Supremo Tribunal Federal, portanto a Lei 12.550/2011 estaria em descompasso com o atual parâmetro constitucional. Para Gurgel, a empresa pública prestadora de serviço público deve obedecer aos parâmetros estabelecidos no artigo 37 da CF/88. Para Advocacia-Geral da União a imposição constitucional referente a necessidade da lei complementar refere-se apenas às fundações de direito privado, com base no artigo 37, da CF/88, portanto, as empresas públicas estão excluídas desse rol. Ela defende a constitucionalidade da lei, vez que a EBSERH foi instituída para regularizar os recursos humanos e as relações de trabalho nos hospitais. Dessa forma, integra o gerenciamento do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais, o qual se destina-se à reestruturação e revitalização dos hospitais universitários integrados ao SUS. A Advocacia-Geral defende que a adesão à EBSERH é facultativa e que é possível controlar a Empresa para melhor gestão. Quanto a contratação de servidores pela CLT, a defesa argumenta que o regime jurídico previsto no artigo 39 da Lei Suprema não se aplica aos empregados da empresa pública. Na decisão proferida pelo relator, a medida cautelar proposta pelo Procurador-Geral da República foi indeferida, portanto os artigos contestados seguem com sua eficácia e aguardam o julgamento de mérito da ação. Sobre isso, acentua-se a discussão quanto a inconstitucionalidade da prestação de serviços públicos de saúde por meio de empresas públicas no próximo tópico. A exigência da lei complementar citada acima é o ponto principal da discussão. Sua omissão, faz com que a lei da EBSERH não seja aceita pelo 281 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ordenamento constitucional. A Emenda Constitucional 19/1998 deu a seguinte redação ao artigo 37, o inciso XIX da Lei Maior, “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e da fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação”. Desde a entrada em vigor da EC 19/1998, há discussão quanto à expressão “neste último caso”, pois enquanto uns defendem a necessidade da lei para empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas, outros a defendem apenas para as fundações, o que gerou tal discussão. Gurgel, autor da ação, defende a primeira tese, a qual entende a necessidade da lei complementar para autorizar a atuação da empresa pública em determinadas áreas, “pela singela razão de que, conceitualmente, a autarquia é a única entidade vocacionada ao exercício de serviço público típico.”. Com efeito, a análise segue ao artigo 173, § 1º da Lei Suprema, a qual ressalta a finalidade de uma empresa pública: a de explorar a atividade econômica quando necessária e relevante. Neste sentido, a empresa só estaria autorizada a exercer o seu papel se houver relevante interesse coletivo ou advenha de um imperativo da segurança nacional. Contudo, Bandeira de Mello não acompanha esse raciocínio (MELLO, 2015, p. 195), de modo a entender que assim como as autarquias, as empresas públicas também estariam sujeitas a prestação de serviços públicos. Isso implicaria na mudança do regime jurídico dessa pessoa jurídica de direito privado, ora, basta notar que o serviço público é por si só regido pelo regime público que se percebe mais um conflito nesta vertente. Assim, enquanto uma parcela da doutrina não admite a utilização de empresas públicas para a prestação de serviço público, os que a admitem por essas entidades devem se preocupar com o regime permitido, demonstrando a complexidade na análise. De verdade, não há motivo para discutir e destacar a questão das fundações públicas, pois a essa, não há dúvidas de que necessita de lei complementar. O que ressalta-se aqui, é a necessidade de lei complementar, certamente federal, para a atuação legal das empresas públicas. Basta analisar as prerrogativas do artigo 37 da Carta Magna e as imposições sobre todos os entes federados para alcançar a lógica 282 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de que não faz sentido a legislação necessária para a administração direta e indireta ser de cunho estadual, distrital ou municipal, pois essa lei deve abranger todo o território nacional, como destacado por Gurgel na ADI 4895/STF. Constata-se no Decreto-lei 200/1967 os agentes que atuam em detrimento do poder público, adentrando especificamente ao artigo 5º, inciso II desse instrumento normativo, aonde se encontra o conceito previsto à empresa pública, especificada como: entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. Ao admitir a prestação de serviço público às empresas públicas, o instrumento normativo visa a demonstrar o caráter eventual e não frequente às empresas públicas, convergindo a necessidade de lei complementar para especificar a qualidade duradoura do objeto: prestar serviço público de forma contínua e ostensiva. Alexandre de Moraes (2001, p. 60) defende essa vertente ao afirmar que A EC no 19/98, não obstante mantenha a necessidade de prévia edição de lei, para constituição de empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias e fundações, inovou em sua regulamentação. Dessa forma, em relação as autarquias, a Constituição Federal permanece exigindo a edição de lei ordinária específica para sua criação. Em relação, porém, às empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, a EC no 19/98 não mais exige a edição de lei específica para que possam ser criadas. Essa exigência foi substituída por dois requisitos: - edição de lei ordinária específica, autorizando a instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e fundação; - edição de lei complementar que defina a área de atuação da empresa pública, sociedade de economia mista e fundação. O fundamento disso, refere-se a necessidade de lei para definir as áreas de atuação das empresas públicas na prestação de serviço público, uma vez que esse objeto não consiste na finalidade principal da criação dessas instituições, de modo que se mostra coerente uma legislação para determinar as “exceções” permitidas às empresas públicas, para que evite o choque com o ordenamento constitucional que cita e ressalta a relação da instituição da empresa pública na exploração direta de 283 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou prestação de serviços. Ora, se está fora da direção habitual seguida pelas empresas públicas, é necessário e lógico fundamentar. Nesse viés, Bandeira de Mello faz uma crítica a legislação que visa a complementar o Texto, como se isso decorresse de uma falha constitucional que não abordou toda a matéria a respeito de forma clara e eficiente, pois para o autor a imprecisão ou a fluidez das palavras constitucionais não pode supor a necessidade de lei para delimitar o campo da eficácia. Mello critica vez que isso significaria outorgar à lei, que precisa de base significativa para ser elaborada, mais força que a Constituição. Contudo, o intérprete das normas, não é o Legislativo e nem o Executivo, é o Judiciário. Este alcança a verdade jurídica atrás da norma constitucional e infraconstitucional e norteia os casos concretos. O Judiciário tem o dever de delimitar e interpretar as normas elaboradas pelo Legislativo, bem como controlar aquilo que é passível de apreciação pela Lei Suprema e o que deve ser descartado por incompatibilidade. A lei da EBSERH traz nos seus dispositivos, o imperativo de que a prestação de serviços e assistência pública à saúde devem ser inseridas integralmente e exclusivamente no âmbito do SUS (artigo 3º, § 1º), porém, a lei 8.080/1990 estabelece no artigo 45 a necessidade dos serviços de saúde dos hospitais universitários e de ensino integrar-se ao Sistema Único de Saúde, dessa maneira, soa estranho o fato desses hospitais universitários passarem a ser administrados por empresa cujo o regime jurídico é o privado. Em outros tempos, o Setor Público estimulou a iniciativa privada a abranger áreas de competência dos entes federados, porém, isso é arcaico e gera retrocesso ao sistema. O paradigma a ser seguido é a contratação de empresa regido pelo regime privado apenas em caráter transitório e complementar, diferente da contratação plena da EBSERH para desenvolver esses serviços, de modo que isso só deve ser tolerado na falta de atuação do Poder Público. O campo da saúde não é exclusivo do SUS, mas aquilo que integra o SUS é exclusivo do Setor Público, dessa forma, dos entes federados. Todos os serviços prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde terão como prestador os entes 284 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Fora disso, não há compatibilidade com o SUS. No instante que a legislação da EBSERH afirma que as suas atividades estão inseridas integral e exclusivamente no âmbito do SUS, há um choque, um confronto na natureza jurídica do regime em questão. De acordo com a jurisprudência do STF, a empresa pública que presta o serviço público de saúde está submetida ao conjunto de normas previstas no artigo 37, CF/88, incluindo-se aqui a EBSERH. Neste viés, é considerado inconstitucional o artigo 10 da lei 12.550, segundo o qual estabelece o regime pessoal permanente da EBSERH o referente a Consolidação das Leis de Trabalho. Isso, contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal que deferiu a medida cautelar a ADI 2135/STF suspendendo a eficácia da redação modificada pela EC 19/1998 no artigo 39, caput, da Lei Maior. Essa emenda constitucional autorizava a contratação de servidores pelo regime celetista, colocando fim ao regime único obrigatório, porém a medida cautelar retornou a obrigatoriedade do regime único e descartou a possibilidade de contratação pela CLT, de modo que o artigo 10 da lei da EBSERH está em descompasso com o paradigma constitucional vigente. Diante disso, ressalta-se também a irregularidade dos artigos 11 e 12 da lei 12.550/2011, pois ambos dão continuidade ao artigo 10, abordando, por exemplo, a contratação temporária de empregados pela CLT. Outrossim, ressalta-se mais uma falha no contexto da prestação de serviço público pela empresa pública, EBSERH, referente a vedação da destinação de recursos públicos às instituições sob o regime privado. O artigo 199 do Texto ressalta que o campo da saúde é livre à iniciativa privada e afirma no §2º a expressa vedação a vinculação de recursos públicos a empresas privadas com fins lucrativos. Ao discorrer sobre a assistência à saúde, José Afonso da Silva (2014, p. 788) afirma que Responsável, pois, pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, falando a Constituição, neste caso, em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir da assistência à saúde pela iniciativa privada que ela também admite, e cujas instituições poderão participar completamente do Sistema Único de Saúde, sendo vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. 285 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Ora, estranho o legislador não considerar a finalidade da empresa em visar ao lucro – como já dito nos tópicos anteriores – e a incompatibilidade do imperativo constitucional que não permite que tal instituição receba recursos públicos da saúde, uma vez que é natural a empresa buscar o lucro. Silva considera que os serviços privados são representados por profissionais liberais habilitados e pessoas jurídicas de direito privado (aqui se situa a EBSERH), assim, esses visam ao lucro por necessidade, obrigatoriedade para a subsistência e, consequentemente encaixamse na vedação do dispositivo constitucional. Com efeito, destaca-se que a prestação de serviços de assistência à saúde pelos particulares (pessoas físicas e jurídicas) devem ser regidos pelos princípios éticos e pelas normas que regem o Sistema Único de Saúde para que atuem de acordo com as condições de funcionamento (SILVA, 2014, p. 788), contudo, como demonstrado, a EBSERH não está de acordo com a legislação pátria e, consequentemente, não está de acordo com as regras que determinam o funcionamento. Dessa maneira, é possível identificar a precariedade legislativa que envolve a prestação do serviço público de saúde no contexto das empresas públicas, pois, mesmo que a saúde seja considerada um direito fundamental social, e seja essa o mínimo para uma vida digna atribuída a competência de todos os entes federados, é necessário admitir que a administração pública indireta não possui respaldo legal para impor a empresa pública os serviços estabelecidos na lei 12.550/2011, devendo a Suprema Corte desse país admitir a inconstitucionalidade da prestação de serviços na área da saúde por meio de empresas públicas no contexto explorado na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/STF.163 Ante o exposto, destaca-se que a modificação da natureza jurídica da EBSERH possibilitaria a sua atuação de modo compatível com a legislação vigente, pois diante dos fundamentos expostos, nota-se que as atribuições conferidas a essa empresa estão compatíveis com as atribuições legais impostas às autarquias. Assim, se o Estado modificar a lei 12.550/2011 para que essa empresa passe a atuar na forma de uma autarquia, ele solucionaria esse impasse e faria com que a ADI 4895/STF perdesse o seu objeto. 163 Grande parte do exposto faz referência a ADI 4895/STF, vez que as peças são objetivas e claras. 286 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais dispostos na legislação pátria exaltam a importância do direito social a saúde, o qual se tornou fundamental a fim de garantir o núcleo duro da Constituição Federal – o preceito normativo macro que rege todo o sistema jurídico – e garantir uma vida digna aos que vivem na sociedade brasileira, de modo a concretizar o acesso universal e igualitário à saúde. É necessário que políticas públicas e aperfeiçoamentos sejam feitos sucessivamente para que o Sistema Único de Saúde alcance o desejado patamar de excelência para que garanta, de modo claro, a vida digna a todos os que o procuram, porém, na realidade, o Estado precisa melhorá-lo (e muito) para que satisfaça a demanda. Para que o Estado proceda aos aprimoramentos necessários a todo o sistema, é preciso que esteja de acordo com as condições de funcionamento e com os princípios jurídicos que regem o SUS. Melhorar, mas sem atender a legislação vigente, é um ato de melhoria nulo, pois aquilo o que é ilegítimo não é válido para o Direito Brasileiro e deve ser repudiado. O Estado está autorizado a agir por meio da sua administração direta e indireta, porém, deve se atentar as causas que podem vir a bloquear a ação para que todo o procedimento realizado não seja perdido. Ao optar pela administração indireta, como disposto no artigo 37, da Lei Maior, é preciso atender a legislação que atenta aos requisitos básicos para implantar uma nova instituição. Com efeito, nota-se que a prestação de serviço público por meio de empresas públicas na legislação regente possui controvérsias que não foram sanadas para a implementação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, o que resultou em um vasto debate no campo jurídico a fim de discutir a constitucionalidade da prestação do serviço público de saúde pela EBSERH. O Estado deve se atentar às condições indispensáveis para o exercício do direito a saúde devido a sua importância (dever do Estado), pois a omissão constitucional é menor problema comparado a possibilidade de um usuário chegar à óbito – o que é completamente irreversível. Dessa maneira, deve-se o Estado notar as prerrogativas básicas para implementar a sistema de saúde forte e competente para que não chegue a esse fim. 287 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE É irregular a prestação do serviço público de saúde por empresas públicas, uma vez que não há lei complementar que a autorize. Na ausência dessa lei, não é possível identificar os campos em que as empresas públicas que compõe a administração indireta podem atuar. A lei complementar mencionada está prevista na Constituição Federal, de modo que a sua ausência não significa que as empresas públicas podem atuar em qualquer ramo do serviço público, muito pelo contrário, a falta dessa legislação cominada a implantação da EBSERH implica em inconstitucionalidade. Ante esse argumento, pode-se explorar outros que tendem confirmar a precariedade da lei que criou a EBSERH e as irregularidades em que ela incide. Deveras, a saúde não é exclusiva do SUS, mas o Sistema Único de Saúde é exclusivo do Poder Público e, este ao optar pela EBSERH e determinar que esta seria regida pelo regime privado, não se atentou ao regime público do serviço público que a empresa prestaria, constatando-se incompatibilidade. Outra incompatibilidade está na prerrogativa estabelecida na lei da EBSERH em contratar funcionário pelo regime celetista, referente a Consolidação das Leis de Trabalho. Isso já foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal na discussão que abordou a compatibilidade da EC 19/1998 com o sistema constitucional. Na ocasião o STF reconheceu o vício formal no processo legislativo que alterou a redação dos artigos que autorizada a contratação pelo regime celetista e estatutário. Em consequência disso, o Poder Público segue devendo contratar apenas pelo regime estatutário – contrário ao que está disposto da Lei 12.550/2011. Por fim, ressalta a finalidade lucrativa da empresa, o que veda imediatamente o repasse de recursos públicos a ela. Como disposto no artigo 199 do Texto Constitucional, os recursos públicos dos entes federados não podem ser destinados como auxílios ou subvenções à instituições privadas com fins lucrativos. Por essas razões, é possível afirmar que a EBSERH possui irregularidades que motivam a sua extinção, o que é provável que aconteça com o julgamento da ADI 4895 que tramita no Supremo Tribunal Federal. Surpreendentemente, o STF negou a medida cautelar pleiteada pelo Procurador-Geral da República, mas de acordo com as razões expostas, há inúmeros motivos para que o STF venha a 288 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE considerar a inconstitucionalidade dos dispositivos que sustentam a Lei 12.550/2011. Diante dessa análise, afirma-se que a melhor maneira de resolver esse impasse está na alteração da natureza jurídica da EBSERH, de modo que a lei 12.550/2011 deveria passar de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares para Autarquia Brasileira de Serviços Hospitalares. Somente nessa hipótese as prerrogativas atribuídas a EBSERH poderiam ser implantadas e executadas sem incidir em vícios legais. REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo descomplicado. 17. ed. São Paulo: Método, 2009. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999. p. 397-402. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros editores, 2011. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 37. ed. 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STATE INTERVENTION IN THE SITUATION OF DOMESTIC VIOLENCE AGAINST CHILDREN AND ADOLESCENTS Kalina Mariah Araujo de Alvarenga 164 Adriana Martins Silva 165 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 DA FAMÍLIA 3 DA PROTEÇÃO LEGAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE - DA DOUTRINA DE PROTEÇÃO INTEGRAL AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 3.1 DA VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE 4 DA ATUAÇÃO DO ESTADO 4.1 DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO E SUA APLICAÇÃO PELA REDE DE PROTEÇÃO EM CONJUNTO COM O PODER JUDICIÁRIO 4.2 PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INTERVENÇÃO ESTATAL – LIMITES E EFICIÊNCIA 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS RESUMO O presente trabalho objetiva provocar a análise crítica acerca da atuação do Estado frente à situação de violência contra a criança e o adolescente em ambiente familiar, demonstrando os principais motivos da ocorrência da violência, suas consequências e os meios que os órgãos públicos possuem para cessar a situação de risco infanto-juvenil. Pretende-se delinear, através da investigação teórica e experiência prática, qual é a limitação estatal de intervenção em ambiente privado e tecer considerações críticas acerca de tais limitações, uma vez que a interferência em ambiente familiar, considerando um modelo liberal de Estado, não é algo recorrente. Espera-se traçar um paralelo entre a origem da família e da evolução dos direitos fundamentais da criança e do adolescente com a violação de tais direitos, relacionando-a com a violência e, por fim, as formas de resolução de tais conflitos, considerando que não se trata de uma situação rara na realidade atual brasileira. Palavras chave: família, violência doméstica, violência infanto-juvenil, intervenção estatal, direitos criança e adolescente. ABSTRACT This article seeks to provoke critical analysis about the state's role in the child against violence situation and adolescents in family atmosphere, showing the main reasons for the occurrence of 164 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Advogada. Mestre em Direito Empresarial. Professora de Direito Civil, Família e Empresarial no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. 165 291 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE violence, its consequences and means that public bodies have to stop the situation of children's risk. It is intended to outline, through theoretical research and practical experience, what is the limitation of state intervention in private and criticize considerations about such limitations considering a liberal model of state. It is expected to draw a parallel between the source of the family and the evolution of children's fundamental rights and adolescents with violation of such rights, linking it to violence and, finally, ways of resolving such conflicts, considering that it is not a rare situation currently in Brazil. Keywords: family, domestic violence, children and youth violence, state intervention, child and adolescent rights. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo busca analisar a intervenção Estatal em ambiente familiar no que tange a situação de violação de direitos da criança e do adolescente através da violência doméstica, traçando um raciocínio lógico para entender a tomada de determinadas decisões, em especial, do Poder Judiciário. Para tanto, inicialmente será abordada a temática da família, considerando seu conceito, conteúdo, proteção legal e princípios que a regem para que se torne viável entender à problemática da violência doméstica. Logo após será foco da discussão a proteção legal fornecida à criança e ao adolescente atualmente no Brasil e os princípios que a complementam. Sendo trabalhada a base legal que protege a criança e o adolescente da violação de direitos se passará a analisar a violência em si e seus principais modos de ocorrência para então demonstrar suas causas. Posteriormente o foco será determinar quais são as políticas públicas mais utilizadas pelo Estado para resguardar uma criança ou adolescente de um lugar que corrobore com a violação de seus direitos básicos. Por fim, será foco do artigo analisar a atuação estatal quando da ocorrência da violência doméstica contra a criança e o adolescente, quais são seus meios, resultados e eficácia, uma vez que a violência fere a tentativa social de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme preceitua a Constituição Federal, devendo ser combatida de forma plena e eficaz pelo Estado de Direito. 292 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 DA FAMÍLIA A família é um ente formado por indivíduos ligados por laços de afetividade ou com ancestrais comuns e consiste na base da sociedade, conforme preceitua a Constituição Federal de 1988. Tânia da Silva Pereira afirma que, a família é o primeiro agente que socializa o ser humano, sendo assim, onde surge toda a interação social de uma pessoa (PEREIRA, 2003, p. 151). Os autores Stolze e Pamplona referem que é neste núcleo social que se formam as primeiras manifestações de afeto entre pessoas (GAGLIANO, 2014, p. 45), logo, é importante que situações que envolvam tais entidades sejam regulamentadas pelo Estado para os direitos fundamentais de seus membros. Assim, a forma de regulamentação se dará através do Direito de Família, cuja interpretação se dará também através dos Princípios, valores sociais fundamentais protegidos no momento de aplicação da lei ao caso concreto. Em relação aos Princípios, alguns terão maior aplicabilidade no que tange a proteção dos direitos da criança e do adolescente. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é contemplado expressamente como fundamento do Estado junto ao art. 1º da Constituição Federal de 1988 e diz respeito à garantia de todos os membros de uma família se desenvolver e viver plenamente, Rodolfo Pamplona e Pablo Stolze definem que: “Dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade” (GAGLIANO, 2014, p. 88). Já o Princípio da Função Social, anteriormente aplicado à propriedade e à empresa passa a ser aplicado também à família. Os professores, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, da Faculdade de Direito de Coimbra, demonstram, a respeito da evolução da função familiar que: (A família) Perdeu a função política que tinha no Direito Romano, quando se estruturava sobre o parentesco agnatício, assente na ideia de subordinação ou sujeição ao pater-familias de todos os seus membros. Perdeu a função econômica de unidade de produção, embora continue a ser normalmente uma unidade de consumo. As funções educativa, de assistência e de segurança, que tradicionalmente pertenciam à família, tendem hoje a ser assumidas pela própria sociedade. Por último, a família deixou de ser 293 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE fundamentalmente o suporte de um patrimônio de que se pretenda assegurar a conservação e transmissão, à morte do respectivo titular. (COELHO, 2008, p. 100) Atualmente tal princípio aplica-se reconhecendo caráter eudemonista da família, fornecendo um ambiente adequado para que todos os membros dela realizem seu projeto de vida, buscando sua felicidade e recebendo o respeito merecido. A família agora é tratada como um meio social para a busca da felicidade na relação com o outro (GAGLIANO, 2014, p. 112-113). O Princípio da Convivência Familiar é definido como aquele que estabelece que pais e filhos devam permanecer juntos, em condições normais A separação definitiva dos filhos do convívio com os pais ocorre apenas nos casos em que seja atendido o melhor interesse da criança e do adolescente (GAGLIANO, 2014, p. 116). Outro princípio bastante aplicado nas relações familiares é o Princípio da Intervenção Mínima do Estado no Direito de Família e sobre ele há de se ressaltar a presença da assistência e apoio estatal, como escreveu Rodrigo da Cunha Pereira: A intervenção do Estado deve apenas e tão somente ter o condão de tutelar a família e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo. (...) A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. (PEREIRA, 2006, p. 157) Conclui-se então que o Estado não deverá intervir de forma gratuita e agressiva nas famílias ou acabar com sua base socioafetiva, restringindo sua atuação a situações de lesão ou ameaça a interesses de qualquer membro (GAGLIANO, 2014, p. 116). Conforme Paulo Lobo, o Princípio da Afetividade determina que o Direito de Família seja fundamentado pelas relações socioafetivas e pela comunhão de vidas, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico (LOBO, 2011, p. 70). Maria Helena Diniz ainda expõe que o princípio da afetividade é o corolário do respeito ao princípio dignidade da pessoa humana, uma vez que este último acaba sendo garantido pelo primeiro, que norteia as relações familiares, destacando o caráter eudemonista da família (DINIZ, 2011, p. 38). 294 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Por fim, o Princípio da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Jovens se encontra estampado no art. 227 da Constituição Federal, no qual se consolida a Doutrina Jurídica da Proteção Integral, assegurando à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, por parte da família, da sociedade e do Estado, os direitos ali elencados, tal como à vida, saúde, alimentação, entre outros. O dispositivo também referencia a necessidade de colocá-los a salvo de qualquer forma de violência e discriminação, por exemplo. De acordo com Maria Berenice Dias, a condição peculiar de desenvolvimento da criança e do adolescente é que determina o tratamento especial destinado a eles, uma vez que estão expostos a maior vulnerabilidade e fragilidade (DIAS, 2013, p. 70). 3 DA PROTEÇÃO LEGAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE - DA DOUTRINA DE PROTEÇÃO INTEGRAL AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Cronologicamente, a primeira forma declarada de defesa aos direitos da criança e do adolescente foi realizada pela Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959 e fruto do trabalho do UNICEF, cujo conteúdo dispõe sobre os direitos básicos infanto-juvenis, considerando a imaturidade física e mental dos mesmos, fornecendo-lhes proteção e cuidados especiais. O documento refere ao princípio da igualdade entre as crianças e adolescentes, para que sejam beneficiadas de forma igual pelos direitos que elenca, sem discriminação. Ainda determina a proteção especial do seu melhor interesse, que deverá levar em consideração o afeto, a segurança, o amor e a compreensão para seu pleno desenvolvimento, bem como sua criação num ambiente saudável sem nenhum tipo de violência ou negligência. Para que tais princípios tivessem efeito jurídico nos países, no ano de 1989 foi aprovada pela Assembleia das Nações Unidas a Convenção sobre os Direitos da Criança, reconhecida como lei internacional um ano depois e criando, de forma concreta, a Doutrina da Proteção Integral. 295 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE No Brasil, adotar a Doutrina da Proteção Integral revogou a Teoria da Situação Irregular que estava vigente na época. Tal instrumento marcou a mudança de paradigma ao considerar a nova condição da infância: sujeitos de direito. Segundo Andréa Amin, a Doutrina da Proteção Integral, está fundada em três pilares, reconhecer a peculiar condição da criança e adolescente como pessoa em desenvolvimento, merecedora de proteção especial; crianças e adolescentes têm direito à convivência familiar e; as Nações que a subscreverem se obrigam a assegurar os direitos presentes na Convenção com prioridade absoluta. (MACIEL, 2010, p. 12) Assim determina-se que crianças e adolescente são sujeitos de direitos em peculiar condição de desenvolvimento que necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral, que, segundo a Constituição de 1988, lhes será fornecida através de sua família, da sociedade e do Estado. Então se entende que foi a Carta Cidadã que acolheu a Doutrina da Proteção Integral em seu corpo e garantiu à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Ao adotar a referida Doutrina, o legislador revogou implicitamente o Código de Menores vigente à época e, conforme Antonio Fernando do Amaral e Munir Cury, fez-se necessária a elaboração de um texto infraconstitucional que abrangesse o conteúdo da nova Doutrina, tutelando suas disposições. (CURY, 2002, p. 11) Assim é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), cujo conteúdo abrange normas de cunho material e processual, consideradas instrumentos necessários para consumar a norma constitucional. (MACIEL, 2010, p. 9) Como exemplo, para assegurar os direitos previstos, se estabelece, em âmbito municipal, um sistema de garantias de direitos que se responsabiliza pelo atendimento da criança e do adolescente, através dos Conselhos Tutelares e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – COMTIBA. (MACIEL, 2010, p. 9) Para uma melhor interpretação do Estatuto da Criança, alguns princípios são frequentemente utilizados para que todo o sistema se integre e expresse valores 296 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE constitucionais pertinentes ao caso concreto, de acordo com Andréa Amin. (MACIEL, 2010, p. 19) O Princípio da Proteção Integral determina que sejam assegurados e efetivados todos os direitos fundamentais adquiridos pela criança e o adolescente no momento em que eles são considerados sujeitos de direito por se encontrarem em condição peculiar de desenvolvimento. (MACHADO, 2003, p. 411) Já os Princípios do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente e da Prioridade Absoluta caminham juntos, considerando que a condição peculiar de desenvolvimento de uma criança demanda proteção especial, integral e prioritária. Seu melhor interesse deve ser resguardado com prioridade na aplicação das leis que versarem sobre este assunto. Atrelado aos anteriores, o Princípio do Respeito à Peculiar Condição de Pessoa em Desenvolvimento consiste em entender que a criança e o adolescente ainda não possuem personalidade adulta formada, motivo pelo qual deverá ser tratado como alguém em desenvolvimento. 3.1 DA VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE Em conflito com todos os princípios e formas de proteção aos direitos infantojuvenis, se encontra a violência doméstica e, entendendo que os fatos do início da vida de uma criança são determinantes para construção do seu caráter e identidade social, é um fato que deverá ser veemente combatido. Sobre violência intrafamiliar, o Ministério da Saúde dispõe que: A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 17) O grande problema da violência doméstica é seu diagnóstico, pois dificilmente chegará a conhecimento público. O Ministério da Saúde ainda reforça essa situação demonstrando que quando as agressões chegam ao conhecimento 297 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE dos serviços da saúde é porque já tomou grandes proporções, repercutindo de forma mais grave. Isso significa que as situações mais difíceis de diagnosticar são as menos graves pelo seu caráter menos agudo e mais constante. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 17) A violência pode se manifestar de quatro formas diferentes. Primeiramente, a violência física, em âmbito intrafamiliar, consiste no ato de algum membro da família de lesionar ou ferir fisicamente a criança ou o adolescente, mediante força física ou utilização de instrumentos ou armas, que resulte em danos físicos, internos ou externos. Poderá decorrer de castigos imoderados ou punições. As consequências físicas da violência física são muito sérias, uma vez que podem resultar na morte ou sequelas para o resto da vida, segundo Josiane Veronese e Marli da Costa. (VERONESE, 2006, p. 107) O segundo lugar, a violência sexual, abrange diversos atos possíveis para sua ocorrência, não estando condicionada ao uso da força ou contato físico. O seu conceito vai além e se entende como todo ato ou jogo sexual, que, em razão da imaturidade da criança e adolescente, não respeita seu direito de escolha. Entende-se que é dever do adulto saber que a criança ou adolescente ainda não tem consciência das limitações sociais acerca de certas práticas sexuais, sendo sua a responsabilidade de respeitar tais limites. ( LERNER, 2011, p. 73) Pouco se vê sobre a publicidade da violência sexual em ambiente familiar, por muitos motivos que devem ser desmistificados. Deve-se quebrar o paradigma de proteção ao abusador ao invés de proteger quem teve seus direitos violados. Dentre as consequências de um abuso sexual estão traumas físicos, distúrbios de sono e de alimentação, dificuldade de aprendizagem, sentimentos de ódio e culpa, uso de álcool e drogas; prostituição juvenil, entre outras. Já a violência psicológica, segundo Anna Christina Cardoso de Mello, da Fundação Orsa: (Violência psicológica) define-se por palavras, atitudes, comportamentos e/ou climas negativos criados por adultos em torno de criança ou adolescente, de caráter repetido, extensivo e deliberado. Seu impacto emocional ultrapassa a capacidade de integração psicológica da criança ou adolescente e resulta em sérios prejuízos ao desenvolvimento psicoafetivo, relacional e social dos mesmos. Em geral, acompanha as outras formas de violência. (MELLO, 2008, p.12) 298 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Entende-se então a sutileza da violência psicológica, fato perigoso, que deforma o caráter e a personalidade da criança ou adolescente que sofre. Não há meios para seu reparo, como há na presença de uma doença física, de forma que o estigma fica presente para o resto da vida. (VERONESE, 2006, p. 117) Por fim, a negligência se considera também um tipo de violência psicológica, conforme aborda o Conselho Federal de Medicina e está incluída em todas as outras formas de violência contra a criança e o adolescente, podendo ser considerada como uma das raízes da problemática. Para Josiane Veronese e Marli da Costa: Define-se, de modo geral a negligência sendo a omissão dos responsáveis em garantir cuidados e satisfação das necessidades da criança/adolescente sejam elas primárias (alimentação, higiene e vestuário), secundárias (escolarização e lazer) e terciárias (afeto, proteção). Cada um dos níveis de necessidades não satisfeitos determina sérias consequências no desenvolvimento da criança/adolescente, que podem ir do óbito prematuro à delinquência. Não é considerado negligência a omissão resultante de situações que fogem ao controle da família. (VERONESE, 2006, p. 119) Entende-se então por negligência a indiferença e a falta de interesse do responsável pelas necessidades de uma criança ou adolescente, cujas complicações se estendem por anos, de modo que aquela criança entenderá que não merece cuidados. Crianças e adolescentes negligenciados não possuem exemplos dentro de casa para seguir, vivendo suas próprias vidas, mesmo que ainda não tenham discernimento para tanto. Atualmente, a realidade brasileira conta com duas principais causas de violência doméstica, a primeira delas consiste na dependência química/ alcoólica e a segunda no poder disciplinar da família. O uso abusivo de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública e geralmente está ligado a um ambiente familiar mal estruturado com a presença de diversos tipos de violência. Portanto, considerando que a criança e o adolescente se encontram em condição de desenvolvimento e, considerando ainda que depositam toda sua confiança em seus familiares, a violação de seus direitos torna-se mais fácil. 299 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O que se vê na prática dos Conselhos Tutelares e Varas da Infância e Juventude é o padrão de carência de recursos financeiros e culturais nas famílias que possuem dependentes químicos em seu núcleo. A violência infanto-juvenil mais praticada, nestes casos, é a negligência, fato que afeta todo o desenvolvimento da criança e ainda pode levá-la a repetir no futuro o que recebeu na juventude. O segundo maior motivo da violência intrafamiliar é o poder disciplinar que a família exerce sobre a criança ou adolescente. A punição através de castigo físico existe há muitos séculos, correspondendo ao método de disciplina mais utilizado até o século XVIII. Vê-se assim que a história da criança é marcada pelo sofrimento e humilhação. Segundo Edinete Maria Rosa. Resultados afins foram encontrados também em uma pesquisa, de nossa autoria, que trabalhou com os depoimentos de mães quanto às práticas educativas utilizadas com os filhos. Os resultados revelaram que, além de elas terem uma representação de maternidade associada à tarefa de cuidado e educação dos filhos, “brigar e dar tapas”, em número significativo, era a prática educativa mais adotada. (ROSA, 2004, p. 23) Assim, evidencia-se a presença da cultura do castigo físico em crianças e adolescentes, o que motivou ao legislador brasileiro a intervir na esfera particular da família, regulamentando o direito a ser educado da criança e do adolescente através da Lei da Palmada (Lei nº 13.010/2014) que alterou o art. 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no que diz respeito ao direito da criança e do adolescente de estar a salvo de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, considerando castigo físico toda ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com uso da força física sobre a criança e o adolescente que resulte em sofrimento físico ou lesão. Observa-se assim a tentativa do Estado coibir o uso de violência física como castigo, incentivando formas saudáveis e sem violência de educação. Contudo é muito difícil ao próprio Estado perceber situações abusivas em ambiente familiar quando não há nenhuma denúncia externa. 300 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4 DA ATUAÇÃO DO ESTADO Estabelecendo como prioridade do Estado, da sociedade e da família o tratamento da criança e do adolescente, a Constituição Federal de 1988 delegou a função de mantê-los a salvo de qualquer tipo de violência bem como de fiscalizar as necessidades infanto-juvenis. Assim, se constitui dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente a mínima segurança para que vivam num ambiente saudável, podendo intervindo em ambiente familiar para salvá-los de qualquer tipo de violação de direitos fundamentais, conforme trata o art. 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O referido Estatuto evidencia ainda que o Estado será responsável por elaborar políticas públicas e executar ações destinadas a coibir o uso da violência contra a criança e o adolescente e prevê quais serão as linhas que deverão conduzir as políticas de atendimento para que efetivem os direitos lá assegurados: políticas sociais básicas, programas de assistência social, serviços de atendimento as vítimas de violência, serviços de localização de pais e crianças desaparecidos, proteção aos direitos por entidades de defesa, entre outras. 4.1 DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO E SUA APLICAÇÃO PELA REDE DE PROTEÇÃO EM CONJUNTO COM O PODER JUDICIÁRIO O mesmo diploma legal dispõe, em razão da violação dos direitos reconhecidos na Lei, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado e por falta, abuso ou omissão dos genitores ou responsáveis, serão aplicadas medidas de proteção à criança e ao adolescente, se constituindo em “providências que visam salvaguardar qualquer criança ou adolescente cujos direitos tenham sido violados ou estejam ameaçados de violação” (MACIEL, 2010, p. 522). Sobre as medidas de proteção dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino 301 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - acolhimento institucional; VIII inclusão em programa de acolhimento familiar; IX - colocação em família substituta. (BRASIL, 1990) Nota-se assim a diversidade de medidas ofertadas pelo legislador para que os Conselhos Tutelares e o Poder Judiciário apliquem às famílias, para possibilitar, em primeiro plano, a tentativa de fortalecimento dos vínculos familiares e, não sendo possível, o afastamento da criança ou adolescente do lar, buscando sempre o melhor interesse da criança. Das medidas protetivas mais aplicadas cotidianamente o acolhimento institucional merece especial atenção uma vez que consiste em retirar a criança ou adolescente de sua família, levando-a a uma entidade de acolhimento, onde residirá até que sua situação jurídica seja definida. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que a tal medida tenha caráter provisório e excepcional, elencando uma série de regras para aplicação em caso de acolhimento institucional, no sentido de, primeiramente, esgotar a tentativa de reintegração familiar e, sendo elas ineficazes, o encaminhamento à família substituta. Sobre o assunto, Patrícia Silveira Tavares refere que: Uma vez demonstrada a inevitabilidade do acolhimento, é obrigação das autoridades competentes, bem como da entidade de atendimento responsável pela execução da medida, engendrar todos os esforços para a reintegração familiar da criança ou do adolescente, ou então, constatada a impossibilidade de retorno ao lar, a sua colocação em família substituta. Atento às repercussões negativas que o afastamento do convívio familiar pode acarretar no desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, o legislador estatutário previu algumas mecanismos aptos a viabilizar, com a máxima brevidade, a inserção familiar daqueles que, por algum motivo, foram inseridos em programa de acolhimento. (MACIEL, 2010, p. 532) Considerando a seriedade de afastar uma criança ou adolescente de seu lar, somente o Poder Judiciário será competente para decidir a respeito de tal ato, salvo em casos de “flagrante de vitimização”, quando o Conselho Tutelar deverá agir em defesa dos direitos da criança, submetendo sua decisão a conhecimento do Ministério Público e posteriormente levada ao juízo para homologação 302 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1). Importante ressaltar que para que a autoridade judiciária mantenha o acolhimento, sua decisão deverá ser fundada em argumentos técnicos apresentados pela equipe multidisciplinar do Juízo bem como da Rede de Proteção. Nesse sentido, a Secretaria Nacional de Assistência Social, no caderno “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes” acertadamente afirma que: Todos os esforços devem ser empreendidos no sentido de manter o convívio com a família (nuclear ou extensa, em seus diversos arranjos), a fim de garantir que o afastamento da criança ou do adolescente do contexto familiar seja uma medida excepcional, aplicada apenas nas situações de grave risco à sua integridade física e/ou psíquica. Como este afastamento traz profundas implicações, tanto para a criança e o adolescente, quanto para a família, deve-se recorrer a esta medida apenas quando representar o melhor interesse da criança ou do adolescente e o menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento. (...)Dessa forma, antes de se considerar a hipótese do afastamento, é necessário assegurar à família o acesso à rede de serviços públicos que possam potencializar as condições de oferecer à criança ou ao adolescente um ambiente seguro de convivência. Destaca-se que, em conformidade com o Art. 23 do ECA, a falta de recursos materiais por si só não constitui motivo suficiente para afastar a criança ou o adolescente do convívio familiar, encaminhá-los para serviços de acolhimento ou, ainda, para inviabilizar sua reintegração. (CONANDA, 2009, p.23) Logo, considerando determinação legislativa, deverão ser engendrados esforços para buscar o fortalecimento dos vínculos familiares e posterior reintegração familiar. Nos casos em que tal fortalecimento não seja possível, é possível aplicar a última medida protetiva prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente: a colocação em família substituta, conforme prevê o art. 101, IX, nas modalidades de guarda, tutela ou adoção. Da mesma forma que o acolhimento institucional, a colocação em família substituta compete à autoridade judiciária e não pode ser efetivada sem o devido contraditório em ação específica (MACIEL, 2010, p. 535). Da mesma forma, a decisão de afastar definitivamente a criança do lar e entregá-la a uma terceira pessoa deverá ser fundamentada em relatórios interdisciplinares, comprovando o melhor interesse da criança ou adolescente no caso em tela. Contam assim, o Conselho Tutelar e o Poder Judiciário, com diversas medidas para salvar a criança ou adolescente de qualquer tipo de violência, 303 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE devendo a autoridade responsável analisar cada caso, adequando a necessidade da criança ao suporte que o Estado poderá lhe oferecer, através também da rede de proteção. Segundo Murillo José Digiácomo: A "rede de proteção à criança e ao adolescente" que todo município tem o dever de instituir e manter, nada mais é do que a articulação de ações, programas e serviços, bem como a integração operacional entre os mais diversos órgãos públicos encarregados de sua execução (assim como daqueles responsáveis pela aplicação das medidas respectivas, como é o caso do próprio Conselho Tutelar), nos moldes do previsto no art. 86, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1) Trata-se então da articulação municipal para ações em prol de crianças e adolescentes, através de órgãos como as Secretarias Municipais de Saúde e Educação, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que deverão possuir um setor especial para atendimento das crianças e adolescentes em situação de risco e suas famílias. Estes órgãos devem ter um cadastro das famílias que já atenderam para que seja possível a comunicação entre eles quando necessário para resolver alguma situação de risco. (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1) É o Conselho Tutelar, membro da rede de proteção, que de forma mais direta com a violência contra a criança e o adolescente, atendendo-os realizando os encaminhamentos aos pais ou responsável após a ocorrência do fato, promovendo a execução de suas decisões em via administrativa. Conforme o Dr. Murillo Digiácomo, diante de uma situação de violência contra a criança ou adolescente, o Conselho Tutelar deverá aplicar medidas de proteção que possibilitem manter a criança a salvo da situação que ensejou o risco, bem como comunicar ao Ministério Público o quanto antes acerca da ocorrência do fato. (DIGIÁCOMO, 2012, p. 1) Num segundo momento, o Ministério Público analisará o acontecimento e decidirá se há a necessidade de ingressar com uma ação judicial de Medida de Proteção à Criança e ao Adolescente, para que o Poder Judiciário acompanhe melhor a família, ou deixará o acompanhamento a cargo do próprio Conselho Tutelar. 304 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Optando por ajuizar uma ação, o parquet irá defender os direitos da criança ou adolescente vítima de violência, figurando no polo ativo da demanda e os pais ou responsáveis, autores da agressão irão figurar no polo passivo. A ação de Medida de Proteção, nos casos de violência doméstica em que geralmente ocorre o acolhimento institucional, tem o escopo de efetuar todas as tentativas possíveis de reintegração familiar, incluindo a família em programas de assistência e acompanhamento que lhe forneçam meios de melhorar o relacionamento com a criança ou adolescente, como atendimentos psicológicos. Nestes casos, o juiz deverá sempre agir embasado em relatórios técnicos da equipe multidisciplinar do Juízo que haverá de considerar os aspectos psicológicos tanto da criança ou adolescente, quanto de sua família em relação à situação que ensejou a medida judicial, para que as decisões tomadas não prejudiquem injustificadamente a nenhum dos envolvidos, buscando sempre pelo melhor interesse da criança. No momento em que as medidas de proteção restarem esgotadas na referida ação, sem que haja nenhuma alteração no contexto familiar, poderá o Ministério Público ingressar com a ação de Destituição do Poder Familiar, visando a decretação da perda do poder familiar dos genitores para que a criança ou adolescente, anteriormente sujeito ao risco, seja encaminhado a uma família substituta, preferencialmente na modalidade de adoção, fazendo com que cesse definitivamente a situação de violência em que se encontrava. Para que a decisão de extinção do poder seja válida, o julgador deverá agir de acordo com os princípios de proteção à criança e ao adolescente já expostos neste trabalho e, ainda, com base em relatórios da equipe multidisciplinar do Juízo e da rede de proteção, uma vez que a medida de destituição do poder familiar cumulada com a adoção da criança tem caráter irrevogável. 305 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4.2 PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INTERVENÇÃO ESTATAL – LIMITES E EFICIÊNCIA Por fim, importante traçar um panorama geral acerca do poder familiar e suas causas de extinção para relacioná-lo com a intervenção do Estado em ambiente familiar privado, abordando seus limites e sua eficiência. O poder familiar sujeita os filhos ao poder dos pais enquanto menores de idade, conforme art. 1630 e seguintes do Código Civil. Com relação aos genitores, o poder familiar consiste em educar seus filhos, exercer a guarda sob eles, concederlhes autorização para casar, viajar ao exterior, mudar de residência, nomear-lhes tutor via testamento, representar ou assisti-los nos atos da vida civil, reclamá-los de quem os detenha ilegalmente e exigir-lhes obediência, respeito e serviços próprios de sua idade e condição. A respeito das situações de exclusão do poder familiar, o Código Civil de 2002 elenca no corpo do art. 1637 suas hipóteses, sendo elas: o castigo imoderado ao filho, deixar a criança ou adolescente em situação de abandono, a prática de atos contra a moral e os bons costumes e, por fim, a incidência reiterada nos abusos de autoridade. Essas situações expressam gravidade por si só, uma vez que põe em perigo a segurança do filho, bem como sua dignidade. Afirma Paulo Lobo: a decretação da perda do poder familiar deve vir de encontro ao melhor interesse da criança, caso contrário não deverá ocorrer. (LOBO, 2011. p. 308) Importante ressaltar que a falta de recursos financeiros, exclusivamente, não constitui razões suficientes para a perda do poder familiar, conforme art. 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda que ações violentas apareçam relacionadas com a pobreza, existem em todas as classes sociais, devendo ser tratadas da mesma maneira, em virtude da necessidade de proteger a criança e o adolescente com prioridade. Conclui-se então que o Estado só deverá agir de forma mais drástica e agressiva, destituindo os genitores do poder familiar, quando a situação que envolve pais e filhos se tornar insustentável, e não por mera arbitrariedade do julgador. Estando diante de tentativas frustradas de reestruturação familiar através das 306 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE medidas de proteção disponíveis, caberá ao Judiciário agir na busca de promover o melhor interesse da criança e do adolescente. Nesse sentido, a questão acerca dos limites da intervenção estatal em ambiente familiar é trazida à luz uma vez que a destituição do poder familiar é um ato invasivo na vida de uma família. Logo, é no momento da intervenção que as discussões sobre os direitos fundamentais se iniciam e tomam importância. Segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, reconhecer se é permitida ou não uma intervenção em determinada área de proteção de um direito fundamental depende de um exame profundo: em primeiro lugar, examinam-se as normas que garantem tal direito; após, analisa-se a situação real e os interesses envolvidos; por fim, as condições de atuação das autoridades estatais. (DIMOULIS, 2012, p. 144) No caso da violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, as normas garantidoras dos direitos fundamentais infanto-juvenis se encontram na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda que garantam a convivência familiar, garantem também o direito à vida, que consiste em premissa para todos os outros. Desta maneira, deverá o julgador sopesar os direitos fundamentais para definir qual será o mais importante no caso concreto. Em segundo lugar, a análise da situação real por si só já levará ao juiz a decidir qual direito fundamental deverá ser protegido, uma vez que geralmente nos casos de violência doméstica infanto-juvenil as consequências são descaradas. E, por último, em decorrência das análises anteriores, haverá de encontrar uma solução viável ao caso concreto, fazendo com que a situação de violência cesse permanentemente, mesmo que para isso outro direito fundamental seja violado. Tais premissas não toleram decisões não fundamentadas, considerando a importância de resguardar direitos fundamentais. Nesse sentido ainda adicionam Dimitri Dimouli e Leonardo Martins: “Isso indica que é proibido proibir o exercício do direito fundamental além do necessário, conforme ensina a doutrina dos limites dos limites elaborada no direito constitucional alemão”. (DIMOULIS, 2012, p. 159.) Para ilustrar o que já foi referido, apresenta-se uma jurisprudência catarinense que manteve, em segunda instância, a destituição do poder familiar decretada em primeiro grau tendo em vista a situação de violência sexual a que a criança era submetida, por parte dos argumentos a seguir exibidos. 307 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em determinadas situações o retorno da criança ou do adolescente à casa do agressor mostra-se inviável, em razão do risco de recidiva, havendo a necessidade de sua colocação em família substituta. Nesse caso, a ação de destituição do poder familiar apresenta-se como alternativa válida para a garantia da convivência familiar da criança institucionalizada. A imprescindibilidade dessa medida decorre do fato de a outra alternativa colocação em abrigo até que complete a maioridade - não se mostrar adequada em razão das consequências advindas da institucionalização prolongada, como perda da individualidade, carência de estímulo para seu desenvolvimento, ausência de vínculos afetivos duradouros, falta das figuras paternas e maternas na formação psicológica, etc. O poder familiar tem natureza nitidamente protetora, visando assegurar o pleno e normal desenvolvimento do filho menor. Aos pais cabe observar os princípios de uma paternidade responsável, garantindo o efetivo desenvolvimento de sua prole. Essa paternidade responsável implica no cumprimento das obrigações estabelecidas no artigo 229 da Constituição Federal: assistindo, criando e educando os filhos Caso não cumpram com tal papel, sofrerão as medidas legais, como a perda ou suspensão do poder familiar, pois é garantido à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar em ambiente adequado, não podendo ficar institucionalizados em entidades de abrigo, senão pelo período estritamente necessário. Uma criança vítima de violência sexual por parte dos pais, via de regra, não deve retornar ao seu convívio. A destituição do poder familiar é medida que se impõe. (TJSC, Apelação Cível nº 2007.041969-5. Relator: Henry Petry Junior, 26 de fevereiro de 2008) Com base na jurisprudência apresentada, percebe-se a preocupação do relator com o futuro da criança, ao encontrar alternativa ao acolhimento institucional, que permitiria o contato com a família, porém traria severas consequências ao longo do tempo para a própria personalidade da criança. Da mesma forma, demonstrou com clareza sua opinião a respeito do que deve acontecer com crianças vítimas de violência sexual. Porém não são todos os casos de violência que têm o condão de separar uma criança ou adolescente de seus pais, prova disso são as medidas protetivas elencadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que visam exatamente à reintegração familiar. Nesse sentido, para elucidar o entendimento, apresenta-se a ementa da decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que manteve parcialmente a decisão de primeira instância que julgou improcedente o pedido de destituição do poder familiar, determinando que a criança ficasse sob a guarda da avó paterna, recebendo visitas da mãe em horários estipulados. APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE PARA A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR, MAS ALTERANDO A GUARDA DA CRIANÇA E ESTIPULANDO 308 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A VISITAÇÃO DOS GENITORES. INCONFORMIDADE DA MÃE QUANTO À VISITAÇÃO. Embora o comportamento negligente da genitora não tenha se mostrado suficiente para a destituição do poder familiar, para assegurar a segurança e o bem-estar do infante, cumpre a restrição da forma de visitação dos genitores. Contudo, para proteção dos direitos da criança e da mãe, estipula-se que sejam reavaliadas as condições familiares, a cada seis meses, como critério para estabelecer a possibilidade de ampliação das visitas.(TJRS, Apelação Cível nº 70044074615, Relator: Alzir Felippe Schmitz, 03 de novembro de 2011) Da leitura do caso supracitado entende-se que as medidas aplicadas pelo Poder Judiciário foram eficazes, uma vez que a reintegração familiar foi possibilitada, ainda que não com os genitores. Importante ressaltar que não é sempre que a família consegue desempenhar efetivamente seu papel no cuidado com os filhos, muitas vezes pelo envolvimento com drogas, pela carência financeira ou por não ter acesso aos serviços básicos a uma vida digna, como saúde e educação. Nesse sentido, conforme Claudia Helena Julião e Fernanda Aguiar Pizeta, para que haja decisões no sentido de reintegração familiar e improcedência do pedido de destituição do poder familiar faz-se necessária a elaboração de estratégias para o atendimento das famílias que necessitem da proteção do Estado, garantindo, em primeiro lugar, a tentativa de fazer com a criança e o adolescente permaneçam em suas famílias, atendendo ao princípio da convivência familiar. Muitas vezes, porém, considerando todos os óbices possíveis no decorrer da tentativa de reaproximação familiar, não é possível manter a criança ou adolescente em suas famílias naturais, fato que invariavelmente levará ao poder público buscar a melhor alternativa para atender suas necessidades. (JULIAO, 2011, p. 19) Tal alternativa será devidamente estudada por profissionais qualificados que buscarão assegurar à criança ou adolescente em situação de risco seus direitos anteriormente violados, mediante políticas públicas de efetivação das medidas de proteção. Ainda segundo as autoras: Na realização do estudo psicossocial, os profissionais utilizam diversos instrumentais técnicos, tais como: leitura dos Autos, observação, entrevistas, sessões lúdicas, visitas domiciliares e na instituição onde a criança/adolescente encontra-se acolhido e contatos com recursos da comunidade, buscando conhecimentos das condições objetivas e subjetivas da situação. Sistematicamente, o Setor Técnica realiza reunião 309 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE interprofissional com técnicos das instituições de acolhimento, do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), bem como com os Conselheiros Tutelares, de forma a se avaliar aprofundadamente o caso. Assim, procura-se conhecer a organização/dinâmica familiar da criança/adolescente acolhido, avaliando seus recursos protetivos, as adversidades vivenciadas, os aspectos que deram origem ao acolhimento institucional, bem como se identifica a rede social existente e utilizada pela família e aquela que poderá ser acionada no intuito de fortalecer os recursos da própria família. (JULIAO, 2011, p. 22) Será o relatório psicossocial que trará as peculiaridades de cada caso concreto, demonstrando ao julgador qual será a melhor medida a ser aplicada para resguardar os direitos violados pela família da criança ou adolescente. Ademais, uma vez sendo tal relatório produzido por uma equipe com conhecimento técnico social, psicológico e jurídico, há de se entender que o grau de informações específicas é muito maior do que um testemunho em audiência, por exemplo. Ocorre que, ainda que com base nos conhecimentos técnicos traduzidos nos relatórios dos profissionais ligados ao Juízo da Infância e Juventude, chegar algumas conclusões implica em restringir determinados direitos fundamentais da criança ou adolescente ou de sua família. Nesse sentido, a assessora da 1a Vara da Infância e Juventude de Curitiba, Carolina Valiati da Rosa, assevera que em determinados casos a restrição a alguns direitos devem ocorrer para que outros direitos constitucionais mais importantes não sejam aniquilados. Para que uma decisão não seja temerária, parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade devem ser utilizados ao analisar cada caso, ponderando os direitos envolvidos na situação e levando em consideração a necessidade de promover um ambiente saudável à criança e ao adolescente para seu pleno desenvolvimento. Desta forma, justifica-se o acolhimento institucional, mesmo que seja uma medida de intervenção extrema do Estado em ambiente privado. Nas palavras de Carolina: "Só assim é possível dar eficácia plena às normas constitucionais, respeitando a dignidade da pessoa humana e realizando os objetivos que a Constituição traz em seu artigo 3º”. (ROSA, 2015, entrevista realizada em 02 set 2015). Logo, para finalizar, depreende-se da análise de toda a doutrina e jurisprudência referida neste trabalho que será eficiente uma medida que vise e 310 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE alcance o melhor interesse da criança e do adolescente expostos à situação de violência doméstica uma vez que seus direitos devem ser buscados prioritariamente, conforme preconiza a Constituição Federal, em seu art. 227. Desta forma, justificase todo o ato em defesa dos direitos fundamentais infanto-juvenis, devidamente fundamentado no princípio do melhor interesse da criança. 5 CONCLUSÃO Diante do exposto entende-se que as crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica merecem especial atenção popular e estatal, uma vez que boa parte de tais casos nunca chega a conhecimento do poder público por ocorrer em ambiente familiar. Então ao entender que é dever do Estado, da sociedade e da família zelar pela efetivação dos direitos infanto-juvenis alguns passos devem ser seguidos para que a situação de violência doméstica não mais seja escondida, mas sim revelada e combatida. Além disso, é necessário entender também que a cultura brasileira de educação é violenta, portanto constitui um paradigma que só se alterará mediante a conscientização geral da sociedade. Então primeiramente disseminar os direitos fundamentais da criança e do adolescente deverá ser prioridade, para que pais e filhos tenham consciência sobre seus próprios direitos. Também deverá ser foco de conscientização formas não violentas de educação, trabalho a ser realizado pelos três poderes para melhor eficácia. Fato é que enquanto tal consciência coletiva não estiver presente caberá ao Estado resguardar os direitos da criança e do adolescente com a prioridade que merecem. Porém, até para resguardar tais direitos é importante que os casos de violência doméstica contra a criança e o adolescente cheguem a conhecimento do poder público, pois somente ele poderá dar o tratamento correto ao caso. Nesse sentido, dada ciência às autoridades, comunica-se ao Conselho Tutelar, Ministério Público e Poder Judiciário, para que as medidas de proteção elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente sejam efetivamente aplicadas no sentido de afastar o risco a que a criança ou adolescente estava exposto. 311 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em muitos casos, as medidas de encaminhamento a programas de auxílio ou encaminhamento ao psicólogo demonstram à família que a violência não resolverá seus problemas. No entanto a maioria das famílias atendidas pela Rede de Proteção se encontra em situação de vulnerabilidade social, carência de recursos financeiros e envolvimento com uso ou tráfico de drogas, fatos que dificultam muito a compreensão dos genitores para os males de uma educação violenta. Nestes casos, geralmente a medida de proteção aplicada é o acolhimento institucional, que ao afastar a criança ou adolescente de seu lar, facilita a aplicação de outras medidas de proteção aos pais ou responsáveis que cometeram a violência. Tais encaminhamentos deverão ser respeitados pelos pais e, uma vez que não respeitem, considera-se como uma atitude negligente, fato que, ocorrendo reiteradamente, fornece argumentos necessários ao Ministério Público para propor uma medida de Destituição do Poder Familiar, afastando definitivamente a criança de seus pais biológicos e encaminhando-a à adoção. Entende-se então que a destituição do poder familiar se torna a última medida a ser utilizada pelo poder público para tentar resolver o problema da criança ou adolescente acolhido. Portanto é necessário que se faça uma análise detalhada de cada caso concreto, ponderando todas as possibilidades de reinserção familiar antes de destituir o poder familiar. Nesse sentido, a análise sobre os limites da intervenção estatal em ambiente familiar é crucial uma vez que a destituição do poder familiar de forma arbitrária poderá trazer grandes prejuízos à criança e ao adolescente bem como à sua família. Portanto, só se justificará mediante argumentos técnicos que comprovem que a situação de abandono ou violência sofrida acarreta em prejuízos graves a formação infanto-juvenil. Nestes casos, a solução mais viável é encaminhá-los a uma família substituta que os trate dignamente. Por fim, conclui-se então que os atos praticados deverão ser sempre direcionados ao melhor interesse da criança e do adolescente para que sejam protegidos da forma preconizada pela Constituição Federal de 1988, tratando a criança e o adolescente de forma amorosa e atenciosa para que, apesar de já ter sofrido muito, ainda se desenvolva com os mínimos danos possíveis. 312 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 5 de outubro de 1988. Disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>>. Acesso em: 10 set. 2015. BRASIL. Lei nº 3.071 de 01 de janeiro de 1916. Código Civil de 1916. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, RJ, 05 de janeiro de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em 10 abr. 2015. BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 002. Código Civil de 2002. 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Violência Doméstica: Quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. 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Juntamente com outros profissionais, os enfermeiros se encarregam de cuidar da vida da população. Porém, a profissão não recebe a devida atenção e mérito, tendo em vista a própria cultura da sociedade brasileira, que vê a Enfermagem como atividade submissa à Medicina, praticada por pessoas de baixa classe econômica e exercida praticamente por figuras femininas. Tais pensamentos refletem diretamente na proteção jurídica que a profissão recebe, pois, uma profissão pouco valorizada é ignorada pelos legisladores, já que não há exigência social visando a melhoria da regulamentação da atividade. Desse modo, a lei vigente - Lei nº 7.498 de 1986, regulamentada pelo Decreto nº 94.406 de 1987 -, apesar de representar à época um avanço para a Enfermagem, é abrangente e incompleta. Por isso, é preciso reformular a base legal da atividade, dando-lhe a devida cautela, sem esquecer que a figura do enfermeiro é reflexo de dois importantes direitos fundamentais previstos constitucionalmente no Brasil: direito à liberdade profissional e direito social à saúde. Palavras-chave: Enfermagem, direito à liberdade profissional, direito social à saúde, Lei nº 7.498 de 1986, Decreto nº 94.406 de 1987. 166 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Profª titular de Teoria do Direito no UNICURITIBA. Profª Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/4/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – JUS VITAE, do UNICURITIBA, desde 2001. Profº ajunta IV, aposentada, da UFPR. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 167 317 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT Nursing is an essential activity for the maintenance of public health. Other professionals, nurses are in charge of taking care of lives. However, the profession doesn’t receive attention and merit, owing to the Brazilian society’s culture, which treats nursing as a submissive activity to medicine, practiced by low socioeconomic class people and practically by female figures. Those kind of thoughts directly reflect on the legal protection in addition to the profession gets, nursing is ignored by legislators, because there is no social demands to improve the regulation of the activity. The current law - Law No. 7498 of 1986 regulated by Decree No. 94406 of 1987 – not with standing representing a breakthrough for Nursing, is generic and incomplete. It is necessary to reformulate the legal basis of the activity, giving the due caution, understanding that the nurse's figure reflects two important fundamental rights of the Constitution of Brazil: professional freedom right and social right of health. Keywords: nursing, professional freedom right, social right of health, Law nº 7.498 of 1986, Decree nº 94.406 of 1987. 1 INTRODUÇÃO A Enfermagem é uma profissão essencial para a manutenção da saúde pública do País. Pois, provavelmente, a maior parte da população já necessitou dos cuidados dos enfermeiros – no parto, na cirurgia, no exame de sangue, entre outros momentos -, entretanto, raramente as pessoas reparam na essencialidade da Enfermagem, uma profissão presente em tantos ambientes, porém pouco notada ou apreciada como merece. Por isso, torna-se instigante a pesquisa, no âmbito jurídico, das garantias, direitos e deveres pertinentes aos profissionais da Enfermagem. Primordialmente, serão abordados os conceitos, as características e a natureza da profissão. Posteriormente, haverá a análise da atividade no âmbito jurídico – mostrando os direitos fundamentais relacionados à prática da Enfermagem: direito à liberdade profissional e direito social à saúde. Entretanto, apesar de a atividade representar o reflexo de ambos os direitos; caberá analisar também as singularidades da atividade. Serão identificados seus fundamentos constitucionais; a Lei reguladora desta relevante profissão, sua estrutura e outros desafios que cercam seu exercício no Brasil. 318 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2 A ENFERMAGEM A atividade da enfermagem representa a efetivação dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente no Brasil - principalmente quando se fala dos direitos à liberdade profissional e à saúde. Pois, a Enfermagem é uma possibilidade de escolha profissional pela qual muitas pessoas se interessam. A sua prática é regulamentada e possui métodos próprios, sem esquecer que a atividade é assegurada e protegida pelo Poder Público. Seu exercício é garantia de proteção e assistência à saúde da população. Todo o sistema de saúde pública depende de enfermeiros para funcionar. É inegável sua contribuição para a preservação e manutenção da saúde para toda a sociedade. Além do mais, é uma profissão da qual é raro ver algum indivíduo que não precisou de seus cuidados ou que negue sua essencialidade para a recuperação da saúde no País. E, apesar de encontrar significado para o profissional enfermeiro como apenas uma pessoa que cuida de enfermos (BUENO, 1996, p. 241), a atividade vai além: envolve manutenção, promoção, recuperação e cuidados com a saúde (ATKINSON; MURRAY, 1989, p. 11). Essas características não exigem apenas técnica do profissional, exigem, também, conhecimento adquirido através da prática da atividade e da força emocional - muito maior do que tantas outras profissões requerem. Porém, a Enfermagem sofre inúmeros desafios para o seu exercício, como a carência de ampla regulamentação e fiscalização. Desse modo, primeiramente, será feita a análise sobre o conceito, as características e a natureza da profissão, para depois abordar sua proteção legal. 2.1 CONCEITOS(S) A prática da Enfermagem consiste na ciência humana, que trabalha com pessoas e experimentos, exigindo domínio da prática, do conhecimento e das fundamentações, aplicados tanto às pessoas saudáveis quanto nas doentes. Requer 319 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE do profissional capacidade técnica, criatividade, ponderação, raciocínio e permanente atualização da área científica (KICH, 2003, p. 9). A Enfermagem se destaca pela prestação de assistência para pessoas incapacitadas de cuidarem de suas saúdes (ATKINSON, 1989, p. 11). Pode-se dizer que a assistência de enfermagem compreende o cuidado com a saúde física, emocional, cultural, social e espiritual de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Isso porque não se deve enxergar a saúde apenas como bem físico. Segundo o fundamento da saúde holística, são cuidados com a mente e a sociabilidade dos indivíduos, também. Por isso, é possível afirmar que a pessoa saudável não se baseia somente naquela livre de doenças, porque depende do equilíbrio entre o corpo e a mente da pessoa, igualmente (ATKINSON, 1989, p. 11). Além disso, presencia-se a Enfermagem em inúmeros ambientes do cotidiano: hospitais, postos de saúde, escolas, domicílios, faculdades. São vários os lugares que necessitam da ajuda desse profissional, tendo em vista suas inúmeras funções e capacidades em ajudar os outros. Consequentemente, é visível o auxílio que a Enfermagem traz para a proteção à saúde. Pois, para ser um bom profissional dessa área, três critérios são exigidos: domínio cognitivo (conhecer o saber), domínio psicomotor (conhecer o fazer) e domínio afetivo (conhecer o ser) (PORTO et al., 2014, p. 203). Todos estão presentes no profissional enfermeiro, que exerce sua atividade cientificamente, tecnicamente e artesanalmente, a fim de proteger a saúde e cuidar dos doentes. Isso quer dizer que a Enfermagem se enquadra no conceito de profissão (diferentemente de ocupação). Apesar da dúvida respaldada no pensamento ultrapassado de que a atividade do enfermeiro consiste no trabalho doméstico, feminino e submisso à Medicina, a identificação da Enfermagem como ciência confirmou sua característica profissional, que cresce a cada dia mais – segundo Mcewen (2009, p. 28). Dessarte, com as práticas da ciência da saúde, o enfermeiro beneficia o indivíduo para a restauração da saúde física e mental. E sua missão consiste em praticar o conhecimento e a ciência da atividade para favorecer a saúde e/ou curar enfermos, venerando a vida e a dignidade humana (KICH, 2003, p. 10). 320 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.2 CARACTERÍSTICAS Desse modo, a atividade se divide, basicamente, em quatro aspectos: manutenção da saúde, promoção da saúde, recuperação da saúde e cuidados com o moribundo (ATKINSON, 1989, p. 11). A manutenção da saúde implica na prioridade de conservar a vitalidade em detrimento de cuidar das possíveis doenças existentes. Como, por exemplo, as palestras realizadas por enfermeiras nas escolas, onde ensinam para as crianças os cuidados devidos com a higiene básica, evitando possíveis contaminações e infecções. Já a promoção da saúde consiste na melhoria da qualidade de vida do indivíduo (mesmo perante a ausência de sintomas de doenças, pois se deseja aperfeiçoar a saúde). Isso poderia ocorrer quando um profissional da enfermagem indica ao paciente exercício físico, como esporte, para melhorar o condicionamento. A recuperação da saúde está comprometida com a atividade da maioria dos enfermeiros, a de cuidar dos doentes – é o compromisso em ajudar a recuperar a saúde dos pacientes. E a assistência ao moribundo (aquela pessoa que está prestes a falecer) se respalda na realização de cuidados aos pacientes, já que a cura é quase impossível. Seria, portanto, a ajuda para garantir condições mínimas de qualidade de vida à pessoa que está iminente a morte. Aliás, percebe-se que a atividade da Enfermagem consiste muito além de apenas cuidados, firma na compaixão dos profissionais às pessoas atendidas, de acordo com Porto (2014, p. 204). Seria, portanto, o domínio afetivo, uma das qualidades mais engrandecedoras da profissão; pois visa priorizar o doente, e não a doença. O fato é que se não houver a empatia emocional, o serviço prestado ficará comprometido. O que faz da qualidade do enfermeiro em cuidar de pessoas incapacitadas reside justamente no sentimento de solidariedade, compaixão, paciência, piedade, entre outras características. Isto posto, há quem defenda que a arte da Enfermagem se equilibra em três pilares: sensibilidade, criatividade e habilidade (WESTPHALEN, 2001, p. 7). 321 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A sensibilidade se resume na compaixão já dita anteriormente. É uma característica do profissional enfermeiro em se sensibilizar com a situação do próximo, saber externar os seus próprios sentimentos para melhor entender os sentimentos alheios. Assim, através dela surge a capacidade de compreender e respeitar a dor e a doença das outras pessoas. Já a criatividade, ou imaginação, se junta à habilidade para, com base na sensibilidade, criar e figurar métodos profissionais com capacidade e responsabilidade para melhor atender os pacientes (WESTPHALEN, 2001, p. 7). E, ainda, a arte possibilita a sistematização e instrumentalização do conhecimento para se tornar a ciência que é hoje em dia (WESTPHALEN, 2001, p. 8). Em vista disso, separam-se, apenas para conceituação, os critérios para a prática da ciência da enfermagem dos critérios para a prática da arte da enfermagem. Os primeiros consistem no conhecimento profundo da profissão; compreensão da origem da atividade e como se iniciou; identificar os inúmeros modelos de prática da enfermagem e saber utilizar o que foi escolhido no seu ambiente de trabalho; atentar às particularidades teóricas, práticas e ético-morais do serviço; saber ligar premências com as suas finalidades de assistência; agir, falar e pensar coerentemente com a profissão; realizar avaliações sobre o seu próprio desempenho; saber equilibrar os sentimentos, as certezas e incertezas na prática da atividade; harmonizar a ciência, a consciência e know-how no trabalho (WESTPHALEN, 2001, p. 8). Por outro lado, os critérios para a prática da enfermagem consistem em temporalidade; saber a arte; manusear os materiais com cuidado e sensibilidade; ser paciente; saber lidar com vitórias, derrotas, falhas e frustrações. 2.3 NATUREZA Quanto à natureza, pode-se dizer que a Enfermagem é vista de vários modos, podendo interpretá-la como atividade fundamentalmente religiosa, ou artística, ou 322 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE científica, ou associá-la diretamente a uma profissão ou trabalho (MIRANDA, 2007, p. 147). Religiosa, ligada à filantropia (amor ao próximo), porque, de acordo com o a história da Enfermagem no Brasil, seu início teve cunho religioso 168. E, após o acúmulo de noções, práticas e conhecimentos, tornou-se ciência. Em seguida, com a legalização do estatuto e a regulamentação da atividade, entrou para o rol de possíveis profissões (MIRANDA, 2007, p. 148). Considera-se, também, a Enfermagem como trabalho, devido à amplitude de seus exercícios sociais voltados para a saúde, extrapolando a técnica e a profissão (MIRANDA, 2007, p. 148). Porque a atividade está inserida tanto no âmbito científico quanto no social, direcionando-a para a saúde da sociedade, como uma tarefa em constante mutação. Contudo, acredita-se que a atividade do enfermeiro representa a soma de ciência e arte. A primeira porque exige noções teóricas e cotidianas para exercer a profissão. Já a segunda é a exteriorização da personalidade sensível, hábil e criativa do profissional (CARRARO, 2001, p. 28). Em síntese, a Enfermagem exige do praticante qualidades que extrapolam a área da ciência; visto que, na medida em que o enfermeiro lida com vidas e sentimentos, adiciona-se à atividade o caráter artístico. Aliás, insta salientar que se antes a atividade era praticamente doméstica, sem regulamentação e sem domínio científico, e hoje ela é vista como arte e como ciência, é devido à influência da enfermeira Florence Nightingle – grande nome na área da Enfermagem. Florence participou da luta da classe para mostrar as peculiaridades da profissão e sua importância para com a sociedade. No período pré-nightingaleana, a Enfermagem era praticada sem referencial e sem amparo legal. Após a Enfermeira atuar na atividade, passou-se a ser modelo de assistência, merecedora de desenvolvimento e implementação. 168 A vinda dos colonizadores europeus no Brasil trouxe doenças até então desconhecidas no território (por exemplo: febre amarela, varíola, lepra, malária, tuberculose, entre outras), aumentando a prática do curandeirismo, já que havia carência de profissionais da área. Após a colonização, a primeira maneira de cuidado aos doentes foi atuada pelos padres jesuítas, vindos das missões para cristianizar a população. Era realizada em enfermarias localizadas nos conventos e escolas religiosas. Mais tarde, em 1543, criaram-se as Santas Casas de Misericórdia, que atendiam doentes carentes e soldados; e, após, fundaram-se os hospitais militares. 323 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE As teorias criadas e aperfeiçoadas por Florence Nightingale sobre métodos aplicáveis na profissão, ou sobre as relações dos profissionais com os pacientes, ou sobre análises da saúde, entre tantos outros assuntos, são, até hoje, executadas (WESTPHALEN, 2001, p. 29). Um dos seus livros mais famosos foi o Notes on Nursing (1859), no qual ela sugere para outras mulheres da época que também praticavam a mesma atividade, como elas deveriam lidar com a saúde e as doenças alheias. Além do mais, seu objetivo não era conceituar ou criar um manual sobre a profissão, mas apenas ajudar os outros através das suas opiniões 3 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DA ENFERMAGEM NO BRASIL Primeiramente, a atividade da Enfermagem representa a concretização dos direitos fundamentais à liberdade profissional e à saúde, previstos constitucionalmente. Através dela, muitas pessoas se profissionalizam como enfermeiros e ajudam na manutenção da saúde no Brasil. É, dessa maneira, a exteriorização da prática como garantia de direitos e deveres legais. A liberdade de ação profissional, chamada, mormente, de liberdade de trabalho, elencada no artigo 5º, inciso XIII, da Constituição da República, abarca a livre escolha de trabalho que o indivíduo deseja exercer. Ou seja, é livre o exercício de qualquer profissão que se adeque às preferências e possibilidades do indivíduo (PINHO, 2009, p. 97). Desse modo, o Poder Público não pode interferir nas escolhas profissionais dos cidadãos. Trata-se da liberdade de eleger um trabalho, ofício ou profissão (SILVA, 2013, p. 259). É um direito individual, tendo em vista que não se fala sobre direito a ter um emprego ou direito ao trabalho, propriamente dito. Além disso, a Constituição da República permite a exigência de qualificações, condições ou requisitos profissionais para alguns trabalhos, ofícios ou profissões. Essas exigências devem decorrer de lei. Por isso, a norma constitucional que 324 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE dispõe sobre a liberdade de profissão possui eficácia contida – já que possibilita lei infraconstitucional estabelecer limites à sua concepção (LENZA, 2011, p. 892). Um exemplo é o caso dos enfermeiros, que necessitam da apresentação do diploma do curso técnico ou da graduação junto ao Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), a fim de exercer a profissão – segundo a Resolução COFEN 0445/2013. Quer dizer, pressupõe preparo científico e técnico autorizado, consoante normas do MEC, preenchidas outras formalidades específicas da área. Após análise sobre o direito à liberdade profissional, como garantia de escolha de profissão ao indivíduo que escolhe seguir a carreira de enfermeiro, resta abordar sobre o papel essencial da atividade na promoção da saúde no País. O direito de proteção à saúde está previsto no artigo 196 da Constituição Federal. Caracteriza-o como “direito de todos”, “dever do Estado”, promovido através de “políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”, conduzido pelo princípio do “acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. Em todos os casos supracitados se incluem os profissionais de saúde, quer individualmente, como titulares do direito de acesso à saúde; quer como protagonistas, agindo em prol da promoção da saúde como agentes do Estado, representando-o. Porém, no País, o enfermeiro se depara com várias dificuldades, tais como: a carência na qualidade da educação, pois se formam cada vez mais profissionais incapacitados, que precisam de assistência e treinamento qualificado para atuar na área de saúde; e a necessidade crescente de aperfeiçoamento das técnicas e materiais utilizados pelos enfermeiros, a fim de alcançar o avanço tecnológico, trazendo benefícios para a coletividade. Dessa forma, pode agregar a essas dificuldades a carência de devida regulamentação, visto que, para as profissões poderem se desenvolver, é preciso de base jurídica fortalecendo-a. E, apesar de a Enfermagem possuir regulamento próprio, como se verá, ainda não é completo para cobrir toda a amplitude da atividade. 325 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.1 RECORTE CONSTITUCIONAL De acordo com o artigo 22, inciso XVI, da Constituição da República Federativa do Brasil, pertence à União legislar sobre a “[...] organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões". Além do mais, segundo o artigo 5º, inciso XIII, da Carta Magna, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Logo, percebe-se a preocupação do legislador em garantir a liberdade profissional aos cidadãos, e, ao mesmo tempo, ampará-los, através de limites impostos por lei. Inclusive, o artigo 47 da Lei das Contravenções Penais dispõe que “[...] exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício” se institui uma contravenção penal, com pena de prisão simples ou multa. Então, para a Enfermagem, seu exercício está assegurado constitucional e se restringe às qualificações e restrições impostas por lei. E a lei que a regulamenta é a Lei nº 7.498 de 1986. Existe também a Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973, que dispõe sobre a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem. No seu artigo 15, inciso VII, determina que a capacidade legal só será conferida ao enfermeiro após seu registro no Conselho Regional de Enfermagem - quer dizer, pretende-se demonstrar o reflexo da qualificação exigida pela Constituição. Outra norma congregada à Enfermagem é o artigo 196 da Carta Magna, ao dispor sobre a responsabilidade do Estado em promover políticas sociais a fim de promover, proteger e recuperar a saúde. Pois, inclui-se o fomento estatal à profissionalização da área da saúde, incentivando o exercício do enfermeiro, uma das figuras principais para a promoção da saúde pública. Cita-se, inclusive, o artigo 200, inciso III, da Constituição de 1988, que dispõe sobre a competência do SUS em “[...] ordenar a formação de recursos humanos na 326 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE área de saúde”; quer dizer, objetiva-se uma formação profissional adequada para figurar o sistema, de acordo com a realidade social. 3.2 A LEI 7.498/86 E SEUS ANTECEDENTES Precipuamente à abordagem sobre a Lei vigente que regula o exercício da Enfermagem, é importante analisar os textos legais anteriores, a fim de melhor compreender o desenvolvimento da atividade no âmbito jurídico. 3.2.1 LEI Nº 775 DE 06 DE AGOSTO DE 1949 A atividade da Enfermagem, antes da Lei vigente, era regulamentada pela Lei nº 775, de 06 de agosto de 1949. Apesar de o texto abordar sobre o ensino da Enfermagem, foi usado para a prática da profissão também, incluindo a figura do auxiliar de enfermagem na atividade. Era uma nova categoria, reflexo da hierarquização da profissão, focada para o sistema curativo e se afastando da saúde pública. A Lei não previa a figura do técnico de Enfermagem; além do mais, determinava a duração dos cursos de enfermeiro e auxiliar de enfermeiro (de trinta e seis meses e de dezoito meses, respectivamente) e estipulava os requisitos mínimos para matrícula nos cursos. Aliás, como já dito, a Lei visava regulamentar o ensino, tendo em vista a grande preocupação com a área da Enfermagem, tanto que os artigos 10 a 24 dispuseram sobre os pressupostos para o funcionamento e reconhecimento dos cursos, juntamente com a formação dos profissionais. Por exemplo, a autorização prévia do Governo Federal para a abertura dos cursos, a fiscalização do ensino pelo Ministério de Educação e Saúde e a obrigatoriedade de existir uma escola de Enfermagem em cada Centro Universitário ou Faculdade de Medicina. 327 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.2.2 LEI Nº 2.604 DE 17 DE SETEMBRO DE 1955 Outra regulamentação foi a Lei nº 2.604, de 17 de setembro de 1955. Segundo Santos (2002, p. 260), criticava-se, na época de sua vigência, a falta de especificidade; pois considerava enfermeiros, obstetrizes e enfermeiras obstétricas igualmente como enfermeiros, sem distinção (SANTOS, 2002, p. 261). O artigo 2º da referida Lei determinava sobre as qualidades exigidas à prática da Enfermagem, dividindo-a em seis categorias: enfermeiro, obstetriz, auxiliar de enfermagem, parteira, enfermeiro prático (ou prático de enfermagem) e parteira prática. Percebe-se que a Lei não singularizava a atividade, estabelecendo um conceito amplo de exercícios dentro da Enfermagem. Os artigos 3º ao 6º dispuseram sobre as atribuições de cada categoria. Porém, ressalta-se que a Lei não especificava detalhadamente as funções do auxiliar e prático de enfermagem, nem da parteira, pois suas atividades englobavam tudo o que caberia à Enfermagem, excluindo as privativas do enfermeiro e da obstétrica. Entretanto, o grande problema residia na ausência de determinação sobre quais atribuições caberiam às atividades da Enfermagem. Assim, as categorias não possuíam grandes distinções em relação à função. Já os artigos 7º, 8º e 9º regulavam a necessidade de registro junto ao Departamento Nacional de Saúde ou na repartição sanitária correspondente a cada território para poder exercer a Enfermagem (nessa época ainda não existia a figura do Conselho Federal de Enfermagem). Outro óbice presente na Lei era a vinculação da Enfermagem com a Medicina, como o previsto no artigo 11, que determinava ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina realizar conferência sobre os profissionais de Enfermagem nos locais relacionados à saúde. Ou seja, havia a carência de singularidade da prática da Enfermagem, sendo vista como submissa à Medicina. Em suma, a Lei nº 2.604/55 pouco trouxe à Enfermagem quanto aos dispositivos necessários para a regulamentação da prática, já que era generalizada ausente de critérios especificadores dos profissionais da área. 328 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.3 LEI Nº 7.498 DE 1986: ESTRUTURA E IMPORTÂNCIA Ademais, a Lei nº 7.498 de 1986 inovou os textos normativos anteriores ao especificar as categorias da Enfermagem e ao determinar os trabalhos privativos dos enfermeiros, como se abordará a seguir. A Lei “dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem”. No seu artigo 1º, determina a liberdade em exercitar a Enfermagem no Brasil. Percebe-se a efetivação do direito fundamental à liberdade de profissão, mencionado anteriormente, garantindo ao indivíduo a livre escolha profissional. Em seguida, o artigo 2º, da Lei 7.498/86, dispõe que a Enfermagem deve ser exercida por profissionais legalmente habilitados e inscritos no Conselho Regional de Enfermagem. Isto posto, a fiscalização da atividade cabe aos Conselhos Regionais de Enfermagem, regulamentados pela Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973. Entende-se, dessa maneira, como requisito do exercício regular dos profissionais, a inscrição junto ao órgão fiscalizador, senão o indivíduo não pode atuar na área. Outra competência dos Conselhos é o julgamento dos profissionais que cometeram condutas irregulares, por meio das comissões de Ética e Disciplina (regidos pelo Código de Ética), compostas por pessoas da mesma área (KICH, 2003, p. 17). As possíveis penalidades estão previstas no artigo 118 da Resolução COFEN nº 311 de 2007: advertência verbal, multa, censura, suspensão do exercício profissional e cassação do direito ao exercício profissional. Já os artigos 3º e 4º dispõem sobre a assistência da Enfermagem nos serviços de saúde, havendo preocupação com a programação da atividade. Os artigos 6º, 7º, 8º e 9º definem as diferenças entre o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e parteira, lembrando que as quatro figuras devem trabalhar em conjunto, constituindo uma equipe (AVELLO, 2003, p. 61). Logo, cada uma das categorias efetua ações individuais, mas cooperadoras entre si (SANTOS, 2002, p. 249). Para a qualidade de enfermeiro, requer diploma conferido por instituição de ensino; para o técnico, diploma ou certificado de Técnico de Enfermagem; e para o 329 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE auxiliar, certificado de Auxiliar de Enfermagem. Todos devem apresentar os requisitos exigidos pela legislação ou pelo órgão competente. Insta ressaltar que a figura do prático de Enfermagem (ou enfermeiro prático), surgida na Lei nº 2.604/55 não se extinguiu, apenas foi introduzida na categoria de técnico de Enfermagem, através do inciso IV, do artigo 7º, da Lei 7.498/86. Os técnicos e os auxiliares colaboram com os serviços dos enfermeiros que devem supervisioná-los (artigo 15). Cabem a eles (técnicos e auxiliares) as funções estipuladas nos artigos 12 e 13, como: cuidados singulares para a cura de doenças (como massagens ou ajudar os pacientes a caminharem); aplicação de medicamentos; cuidados pessoais (como higiene do paciente); averiguar os cuidados ao redor do paciente; cuidados com a alimentação do doente; responsabilização com os materiais e equipamentos manuseados aos pacientes; transporte de mensagens e materiais dentro do ambiente hospitalar; entre outras (AVELLO, 2003, p. 64). Segundo o artigo 11, inciso I, da Lei supracitada, define como funções privativas do profissional enfermeiro: direção dos órgãos de Enfermagem, em instituições públicas e privadas; organização dos serviços de Enfermagem em equipes de trabalho nas organizações prestadoras desses serviços; planejamento, coordenação, organização da execução dos serviços de assistência de Enfermagem; consultoria, auditoria e emissão de pareceres sobre matéria de Enfermagem; consulta de enfermagem; prescrição da assistência de Enfermagem devida; e cuidados diretos de Enfermagem a pacientes graves com risco de vida (UTI, CTI); atividades que demandam maior conhecimento científico e técnico. Já no inciso II, do artigo 11, estipulam-se critérios para a atuação do enfermeiro na assistência à saúde como integrante de uma equipe. No artigo 20 há a determinação de observação da referida Lei por todos os entes federativos que necessitarem contratar serviços dos profissionais de Enfermagem. E o artigo 23 prevê a figura do atendente de Enfermagem, incorporado pelo indivíduo executor de tarefas da área, que não possui formação específica, mas é autorizado pelo Conselho Federal de Enfermagem a exercer atividades elementares. 330 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.4 DECRETO Nº 94.406 DE 8 DE JUNHO DE 1987 Ademais, a Lei nº 7.498/86 foi regulamentada pelo Decreto nº 94.406, de 1987. Segundo o art. 25 da referida Lei, cabe ao Poder Executivo a tarefa de regulamentação. Logo no artigo 1º do Decreto, é estipulado que o exercício da Enfermagem é exclusivo para enfermeiros, técnicos de Enfermagem, auxiliares de Enfermagem e parteiros, que devem estar devidamente inscritos no Conselho Regional de Enfermagem da respectiva região. Os demais artigos seguem o mesmo texto já mencionado da Lei nº 7.498/86. 3.5 CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM Após a abordagem sobre a prática da Enfermagem no Direito brasileiro, insta mencionar o papel dos conselhos fiscalizadores como garantia constitucional da profissão. Primordialmente, antes da Constituição de 1988, a natureza dos conselhos era autárquica com base corporativa. Porém, depois da promulgação da Constituição hoje vigente e após a criação da Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, tornaram-se pessoas jurídicas de direito privado, com poder outorgado pela administração pública (FREITAS, 2001, p. 38) - de acordo com o artigo 58 da referida Lei. Entretanto, o dispositivo citado foi considerado materialmente inconstitucional, voltando, assim, para a natureza autárquica anteriormente conferida (FREITAS, 2001, p. 63); porém, os conselhos são considerados autarquias atípicas (PINHEIRO, 2008, p. 34). Aliás, pode-se afirmar que os conselhos de fiscalização profissional desempenham atividade de polícia administrativa por delegação estatal, pois, compete à União “[...] organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”, de acordo com o artigo 21, inciso XXIV, da Carta Magna. Isto posto, resta descrever as funções dos conselhos. Primeiramente, deve-se 331 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE lembrar do direito de liberdade profissional (analisado anteriormente), disposto no artigo 5º, inciso XIII, da Constituição de 1988, que trata do pleno poder dos indivíduos em escolher qualquer profissão ou trabalho, condicionando-os às qualificações profissionais impostas por lei. A ideia do legislador ao submeter o direito a restrições foi garantir profissionais aptos para o atendimento da população (FREITAS, 2001, p. 195). Principalmente quando envolve saúde e vida das pessoas, como no caso da Enfermagem. Desse modo, a qualificação exigida constitucionalmente é a imposição de registro em órgão corporativo, encarregando a este, através de lei regulamentadora, estipular critérios essenciais para as pessoas que desejam praticar determinada profissão. Portanto, uma das funções do conselho é exercer o poder de polícia conferido pela Carta Magna, a fim de evitar o exercício infesto profissional e garantir a ética perante a sociedade (FREITAS, 2001, p. 197). Outra função é suprimir lacunas e obscuridades legais. Muitas vezes a legislação sobre atividade profissional não é elaborada por capacitados da área objeto do texto. Assim, critérios e explicações são ausentes, cabendo ao conselho eliminar tais carências legislativas. Mais uma atribuição é avaliar comportamentos éticos dos profissionais inscritos no órgão (FREITAS, 2001, p. 206), por via dos processos éticos (administrativos), a fim de controlar e até punir condutas. Diante disso, o Conselho Federal de Enfermagem é encarregado de fiscalizar os profissionais de Enfermagem, através da requisição de inscrição no órgão, com posterior fornecimento de carteira que habilita o indivíduo a atuar na área, considerando-o apto a praticar atividade em saúde. Tendo em vista a incumbência do profissional enfermeiro na promoção da saúde no Brasil (previamente abordada), o papel do COFEN (Conselho Federal de Enfermagem) é indispensável para a concretização do fornecimento de trabalho adequado e ético para toda população; e ressalta-se que sua criação é prevista pela já citada Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973. Isso porque garante a qualidade profissional no exercício da Enfermagem, buscando fiscalizar o cumprimento das normas referentes ao exercício da atividade, 332 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE respeitando os princípios constitucionalmente previstos, com o intuito de fornecer à sociedade um profissional enfermeiro capacitado para cuidar da saúde do País. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, apesar da relevância da atuação dos profissionais em saúde no Brasil e no mundo, parece que os legisladores ainda não se deram conta da necessidade de se rever a legislação vigente. O grande problema atual é acompanhar juridicamente a alta demanda de mudanças que a atividade exige perante as bases legais existentes, a fim de aprimorar as regras que regularizam a formação do profissional enfermeiro – de acordo com Santos (2002, p. 253). Isso será possível quando a Enfermagem alcançar o merecido destaque no cenário político e pedagógico no País. É perceptível a carência de base jurídica mais adequada para a atividade, visto que a Lei em vigor é lacunosa, não aborda todos os critérios, características, formalidades e necessidades do enfermeiro e outras categorias da área. Portanto, o profissional da Enfermagem é desprovido de total segurança sobre a profissão no ramo jurídico, já que é raro se deparar com um indivíduo graduado em Direito e Enfermagem, capaz de lutar pelas mudanças no âmbito jurídico sobre a atividade do enfermeiro, adequando-as às reais necessidades da área. Enfim, primeiramente, é preciso revolucionar a área da Enfermagem, qualificando-a como profissão essencial à manutenção da saúde no Brasil. Pois, o que se percebe é a desvalorização da atividade, vista como submissa às outras, como a Medicina, por exemplo. Pois, na área da saúde, muito se aprecia a figura do médico, que oferece diagnósticos e prescreve medicamentos, todavia, há desvalorização do papel do enfermeiro, o encarregado de cuidar diretamente do doente, a quem cabe colocar em prática as prescrições médicas, além de implementar a cautela física ao paciente. Quer dizer, não há hierarquia entre as atividades, e sim complementariedade. Não é possível medir a essencialidade de cada uma, visto que ambas são dependentes entre si. Desse modo, é injustificada a desvalorização dos profissionais da Enfermagem nos ambientes relacionados à saúde. 333 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE É preciso promover a conscientização da população a fim de mudar o pensamento comum sobre a profissão, tendo em vista que quase todos os indivíduos passaram por cuidados dos enfermeiros durante a vida, porém, não percebem que suas saúdes dependiam desses profissionais ou foram cuidadas por eles. Além do mais, há o preconceito referente ao gênero na Enfermagem, porque a maioria dos profissionais são mulheres. É raro se deparar com a figura masculina na área. Isso porque, como foi abordado anteriormente, a atividade tem raízes históricas na pessoa feminina, dona de casa, a que cuidava de sua família. Entretanto, tal imagem deve ser diversificada, de modo que ambos os gêneros atuem na Enfermagem, já que a profissão pode ser exercida tanto pelo homem quanto pela mulher. Por conseguinte, ainda há muitos desafios para a atividade no cenário atual, mas caso a Enfermagem seja reformulada no âmbito jurídico, com certeza, muitos dos desafios poderão ser solucionados. Ao ampliar, deste modo, o leque de possibilidades do profissional de Enfermagem, dando-lhe o merecido reconhecimento de seu papel e importância na promoção da vida e da saúde dos cidadãos brasileiros, as autoridades estarão oferecendo qualidade maior ao Sistema Único de Saúde (SUS) e angariando mais respeito no cenário internacional junto à OMS e à comunidade das nações. REFERÊNCIAS AVELLO, Isabel M. Sancho; GRAU, Carme Ferré. Enfermagem: fundamentos do processo de cuidar. São Paulo: DCL, 2003. ATKINSON, Leslie; MURRAY, Mary Ellen. Fundamentos de Enfermagem: introdução ao processo de enfermagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. BRASIL. Decreto nº 94.406, de 08 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/19801989/D94406.htm>. BRASIL. Lei nº 775, de 06 de agosto de 1949. 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São Paulo: Malheiros, 2013. 335 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 336 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS À LUZ DAS ADINS 4645 E 4655 CONSTITUTIONAL ANALYSIS OF HIRING OF DIFFERENTIAL SCHEME PUBLIC IN THE LIGHT OF DIRECT ACTIONS UNCONSTITUTIONALITY OF 4645 AND 4655 Lucas Paulino da Silva169 Ana Luiza Chalusnhak170 SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Análise Constitucional do Regime Diferenciado de Contratações Públicas. 2.1 Da Inconstitucionalidade Formal. 2.2 Da Inconstitucionalidade Material 2.2.1 Da Afastabilidade da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos 2.2.2 Da delegação ao executivo e da ampla discricionariedade dada ao agente público 2.2.3 Da Contratação Integrada e da ausência de Projeto Básico 2.2.4 Da Remuneração Variável 2.2.5 Da Pré-Qualificação 2.2.6 O Princípio da Publicidade e a Questão do Orçamento Estimado 2.2.7 Repercussão dos Efeitos da Decisão 3 Conclusão. Referências RESUMO O presente trabalho visa fazer uma análise dos aspectos (in)constitucionais do regime diferenciado de contratações públicas, instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011. Essa lei instituiu uma espécie excepcional de licitações, na qual a sua incidência está voltada para certames que envolvam infraestrutura da Copa das Confederações de Futebol 2013, Copa do Mundo de Futebol 2014, Jogos Olímpicos e paraolímpicos de 2016. Para que seja feita essa análise, será necessário demonstrar como funciona o controle de constitucionalidade através de ação direta de inconstitucionalidade no Brasil, as principais inovações e princípios norteadores do RDC, e as principais argüições e defesa relatadas nas Adins 4645 e 4655, ajuizadas no Supremo Tribunal Federal. Será verificado, ainda, que há posições divergentes da doutrina, onde parte da doutrina mais conservadora crê que esse dispositivo contém diversos vícios, principalmente de natureza material, conquanto parte de uma doutrina “mais liberal” acredita que o RDC possa ser eficaz ao ordenamento pátrio, devido a alguns dispositivos flexíveis que podem ser capazes de dar mais eficiência e celeridade às licitações públicas. Acadêmico de Direito do Unicuritiba – Jus Vitae. [email protected] Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2004). Professora de Direito Administrativo no Centro Universitário Curitiba e orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso – Jus Vitae. [email protected] 169 170 337 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Palavras-Chave: Regime Diferenciado de Contratações Públicas, Adin 4645, Adin 4655. ABSCTRACT This study aims to analyze the aspects the constitutional differentiated regime of public contracts, introduced by Law No. 12.462, of 04 August 2011. It established an exceptional kind of bidding, in which the incidence is facing contests involving infrastructure Cup of Soccer Confederations 2013 Soccer World Cup 2014 Olympic and Paralympic 2016. In order to make such an analysis, it will be necessary to demonstrate how the constitutional control through direct action of unconstitutionality in Brazil the main innovations and guiding principles of the DRC, and the main Pleas and defense Adiņš reported in 4645 and 4655, filed in the Supreme Court. It will be checked also that there are differing positions of the doctrine, where part of the more conservative doctrine believes that this device contains various addictions, particularly of a material nature, while part of a "more liberal" doctrine believes that the DRC can be effective in parental order due to some flexible devices that can be able to give greater efficiency and speed to public bids. Keywords: differentiated regime of public contracts, Adin 4645, Adin 4655 1 INTRODUÇÃO A Realização de tradicionais eventos esportivos mundiais no Brasil, quais sejam, a Copa das Confederações de Futebol de 2013, a Copa do mundo de Futebol de 2014, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, fez com que os poderes públicos tomassem medidas políticas visando à realização de obras de infraestrutura com mais celeridade e eficiência do que o procedimento comum. Nesse sentido, foi sancionada a Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, que regulamenta o chamado Regime Diferenciado de Contratações Públicas, trazendo novidades no âmbito das licitações e contratos administrativos no Brasil. Para Andrade e Veloso (2013, p. 36), o regime diferenciado direciona-se especialmente à viabilização de eventos cuja complexidade e grandeza se contrapõem ao exíguo tempo de que se dispõe para a sua preparação. A entrada em vigor dessa lei ocasionou discussões doutrinarias no âmbito jurídico nacional. No judiciário, há atualmente duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal. A ADIN 4645, 338 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE proposta pelos partidos políticos PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), DEM (Democratas) e PPS (Partido Popular socialista), em 21 de agosto de 2011, e a ADIN 4655, proposta pelo Procurador Geral da República, em 7 de setembro de 2011. Até a presente data, nenhuma delas foi apreciada, nem em sede cautelar. O presente artigo tem o intuito de investigar as supostas inconstitucionalidades levantadas nas Ações em trâmite no STF, demonstrando aspectos negativos e positivos, críticas, e posicionamentos doutrinários. 2 ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS A (in)constitucionalidade formal e material do RDC são apontadas em duas ações de inconstitucionalidade em trâmite perante o STF: A ADIN 4645, proposta pelos partidos políticos PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), DEM (Democratas) e PPS (Partido Popular socialista), em 21 de agosto de 2011; e a ADIN 4655, proposta pelo Procurador Geral da República, em 7 de setembro de 2011. Dessa forma, busca-se analisar os principais dispositivos dessas ações, verificando as inconstitucionalidades argüidas da Lei 12.426/2011. 2.1 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE FORMAL A Inconstitucionalidade Formal diz respeito à falta de observância ao devido Processo Legislativo. Os autores alegam, dentre outros dispositivos, que há a presença da inconstitucionalidade formal da Lei 12.462/11, por não haver [i] pressupostos constitucionais de urgência e relevância, necessários à edição de Medidas Provisórias, já que a Lei nº 12.462/11 é resultado da conversão da Medida Provisória 527/2011, e [ii] pelo fato do Projeto de Lei de conversão violar o devido Processo Legislativo, no que diz respeito ao abuso ao poder de emendar. Nesse sentido, extrai-se trecho da exordial proposta pelos partidos políticos: 339 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE De fato, negar de forma peremptória à Corte Constitucional a possibilidade de examinar o atendimento dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência seria o mesmo que despir completamente de normatividade a disposição do art.62, privar-lhe de qualquer possibilidade de eficácia jurídica.[...] Cumpre asseverar que a tramitação da Medida Provisória n. 527 e do respectivo Projeto de Lei de Conversão no Congresso Nacional não observou o devido processo legislativo constitucional, tendo em vista a admissão de emendas absolutamente impertinentes ao texto da Medida Provisória n. 527/2011[...] (grifos nossos). Na mesma linha, manifestou-se o Procurador-Geral da República: [...] Como a Lei nº 12.462/11, quanto aos dispositivos impugnados, é fruto de emenda parlamentar que introduz elementos substancialmente novos e sem qualquer pertinência temática com aqueles tratados na medida provisória apresentada pela Presidente da República, sua inconstitucionalidade formal deve ser reconhecida (grifos nossos). Para que o Presidente da República possa fazer a edição de uma medida provisória171, é necessário que haja a presença dos pressupostos de relevância e urgência, conforme sintetiza Clève (2000, p. 41): [...] no direito brasileiro, o Presidente da República somente poderá editar medidas provisórias quando presentes os pressupostos elencados no art. 62 da Constituição Federal: relevância e urgência. Sem a satisfação dos referidos pressupostos não poderá o Presidente exercer a função legislativa autorizada pelo Constituinte. Normalmente, tais pressupostos precedem de um juízo político, feito pelo presidente da república, e ao Poder Legislativo, cabe confirmar ou não o juízo político do Executivo, segundo exposto nas ações. Há o trecho do voto do Ministro Moreira Alves, proferido nos autos da ADI 162 – 1 – DF, quando a apreciação de pedido de liminar, que assim se pronunciou: Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”. 340 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Ora, esta Corte, por seu Plenário, ao julgar Recurso Extraordinário n° 62.739, em que declarou a inconstitucional, em face da Constituição de 1967, o Decreto-Lei 322, de 7.4.67, por entender que ele regulava matéria estranha ao conceito de segurança nacional, se manifestou no sentido de que ‘a apreciação dos casos de ‘urgências’ ou de ‘interesse público relevante’, a que se refere o artigo 58 da Constituição de 1967, assume caráter político, e está entregue ao discricionarismo dos juízos de oportunidades e de valor do Presidente da República, ressalvada apreciação contrária e também discricionária do Congresso’ (RTJ-44 / 54). Posteriormente, esse entendimento foi seguido no RE 74.096 (RTJ 62 / 819) e no RE 75.935 (R.D.A. 125 / 89). Como já explanado, a Lei 12.462/2011 é derivada da Medida provisória 527/2011. Em relação a conversão de uma Medida provisória em Lei, há limites ao poder de emendar, na qual deve haver pertinência temática entre o conteúdo originário da MP e as emendas realizadas, segundo entendimento Mendes (2009, p. 8): A medida provisória pode ser emendada no Congresso[...]. As emendas apresentadas devem, porém, guardar pertinência temática com o objeto da medida provisória, sob pena de indeferimento. Havendo alteração no Senado, o projeto deve retornar à Câmara para confirmação ou rejeição das mudanças efetuadas na Casa de Revisão. Antes das deliberações de cada Casa do Congresso Nacional, o § 5º do art. 62 da Constituição cobra que seja apreciado o atendimento dos pressupostos constitucionais, aí incluídas a urgência e relevância e as limitações materiais ao uso da medida provisória. Rezende (2011, p. 8) segue a linha da parte autora, acreditando haver a presença de vício formal, em relação às Emendas que a Medida Provisória n. 527 de 2011 sofreu, qual seja, a inserção do Regime Diferenciado: A MPV nº 527, de 2010, tratava de matéria distinta dos arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 2011, que versam sobre o novo regime de licitações e contratos. O relator da matéria na Câmara dos Deputados sustentou a relação de pertinência entre o RDC e as disposições constantes do texto original da MPV [...]. 341 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Seguindo, ainda, a linha de Renato Rezende, as Emendas que a Medida Provisória nº 527/2011 sofreu fere o disposto na Lei complementar nº 95172, de 1998, já que houve confusão de matérias na mesma lei: [...]o raciocínio desenvolvido pelo relator da MPV na Câmara dos Deputados confunde causa ou razão comum com afinidade, pertinência ou conexão de matérias. Pode-se sustentar que, tanto as alterações na estrutura administrativa do Governo Federal quanto aquelas nas regras de licitações e contratos apresentam, entre suas justificativas, a necessidade de preparação do País para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Isso não significa, contudo, que haja identidade, similitude ou afinidade entre os objetos ou matérias. Nesse sentido, a alegação da inconstitucionalidade formal é de que houve abuso ao poder de emendar, já que não há co-relação do conteúdo inicial da Medida Provisória e as emendas inseridas na Lei do RDC. O entendimento da jurisprudência do Supremo corre nesse sentido, conforme decisão proferida na ADI 3288, Rel. Min. Ayres Britto, DJ de 20 de fevereiro de 2011: [...] 3. O Poder Legislativo detém a competência de emendar TODO E QUALQUER PROJETO DE LEI, ainda que fruto da iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (art. 48 da CF). Tal competência do Poder Legislativo conhece, porém, duas limitações: A) A IMPOSSIBILIDADE DE O PARLAMENTO VEICULAR MATÉRIA ESTRANHA À VERSADA NO PROJETO DE LEI (REQUISITO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA); b) a impossibilidade de as emendas parlamentares aos projetos de lei de iniciativa do Executivo, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 166, implicarem aumento de despesa pública (inciso I do art. 63 da CF). A Parte Ré, através da Advocacia-Geral da União, alegou não haver nenhuma inconstitucionalidade formal na norma impugnada, com argumentos semelhantes, em ambas as ações. Dessa forma, extraí-se trecho da contestação feita pela AGU na ADIN 4645: 172 BRASIL. Lei Complementar nº 95, de 26 de Fevereiro de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona. 342 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE [...] a aferição dos requisitos de urgência e relevância das medidas provisórias pelo Poder judiciário, em sede de controle abstrato, não tem sido admitida pela jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal. A censura judicial somente é possível, e ainda assim em caráter excepcional, quando se verifica, mediante análise objetiva, que a Presidência da República incorreu em abuso manifesto.[...] De logo, cumpre ressaltar que tal alegação não merece, sequer, ser conhecida, pois a ausência de pertinência temática suposta pelos requerentes, ainda que houvesse ocorrido, não configuraria ofensa direta a qualquer das normas constantes do Texto Constitucional (grifos do autor). Argumenta-se, ainda, que mesmo que o entendimento não seja pacificado, o STF só admite a análise dos pressupostos de urgência e relevância em casos excepcionais, conforme jurisprudência abaixo: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA 2.226 DE 04.09.2011. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. RECURSO DE REVISTA. REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE. TRANSCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA NA ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 1º; 5º, CAPUT E II; 22, I; 24, XI; 37; 62, CAPUT E §1º, I, B; 111, §3º E 246. LEI 9.469/97. ACORDO OU TRANSAÇÃO EM PROCESSOS JUDICIAIS EM QUE PRESENTE A FAZENDA PÚBLICA.PREVISÃO DE PAGAMENTO DE HONORÁRIOS, POR CADA UMA DAS PARTES, AOS SEUS RESPECTIVOS ADVOGADOS. AINDA QUE TENHAM SIDO OBJETO DE CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. RECONHECIMENTO, PELA MAIORIA DO PLENÁRIO, DA APARENTE VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA PROTEÇÃO À COISA JULGADA. 1. A medida provisória impugnada foi editada antes da publicação da Emenda Constitucional 32, de 11.09.2001, circunstância que afasta a vedação prevista no art. 62, § 1º, 1, b, da Constituição, conforme ressalva expressa contida no art. 2º da própria EC 32/2011. 2. Esta Suprema Corte somente admite o exame jurisdicional do mérito dos requisitos de relevância e urgência na edição de medida provisória em casos excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos seja evidente. [...]. (ADI nº 2527 MC, Relatora: Ministra Ellen Gracie, Órgão julgador: Tribunal Pleno, julgamento em 16/08/2007, Publicação em 27/11/2007; (grifos do autor). A AGU alega que não há nenhum abuso ao poder de emendar, já que esse abuso deve ser precedido de um aumento de despesas, conforme argumentos extraídos da contestação da ADIN 4645: Registre-se que o poder de emendar consiste em prerrogativa inerente ao exercício da atividade parlamentar. Diante disso, a intervenção do Poder Legislativo em projetos de lei é autorizada mesmo nas hipóteses de 343 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE iniciativa reservada e de conversão de medidas provisórias, sendo que, nesses casos, as únicas restrições impostas aos parlamentares são aquelas fixadas em numerus clausus pela Constituição Federal. Ou seja, nos projetos de lei cuja iniciativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, as únicas limitações ao direito de apresentar emendas consistem na observância da pertinência temática, sobre a qual se discorreu anteriormente, bem como na ausência de aumento de despesas. Nesse sentido, verifica-se que nas duas ADIN propostas os autores alegam a presença de vício formal da Lei nº 12.462/2011, pedindo para que o dispositivo seja integralmente declarado inconstitucional. Contrariamente, segundo a AGU, contesta por supostamente não haver nenhuma inconstitucionalidade formal que possa contaminar o dispositivo impugnado. 2.2 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL Dentre os principais argumentos e supostas inconstitucionalidades apontadas nas Ações Diretas de inconstitucionalidade em questão, estão diversos vícios materiais. Nesse sentido, há um desacordo entre o que consta na Lei do RDC e na Constituição Federal. Passaremos a expor as principais alegações e apontamentos expostos nas ações. 2.2.1 Da Afastabilidade da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos Um dos argumentos pela suposta inconstitucionalidade do RDC seria o afastamento da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, quando o agente público julgar necessário. Segundo a ADIN 4645, a Lei Geral de Licitações só pode ser afastada em hipóteses excepcionais, previstas constitucionalmente, pois não cabe a uma Lei nova afastar a norma geral. Sobre o tema, extraí-se trecho dos argumentos dos autores da ação: [...]as regras licitatórias existem para assegurar a isonomia e a moralidade nas contratações públicas[...] Quaisquer exceções e mitigações à obrigatoriedade constitucional só podem ser admitidas quando encontre justificação no próprio texto constitucional[...] Por esta razão, nenhuma lei poderia excluir a obrigatoriedade de licitação, por exemplo, incluindo um inciso no art. 24 da lei 8.666/93 para determinar que todas as 344 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE obras a serem realizadas pelo Governo Federal para construção de prédios em alvenaria não seriam licitadas. (grifos nossos) Para melhor compreensão, cumpre ser destacado o conceito de norma geral, consoante lição de Mello (2013, p. 18-19): Cumpre reconhecer como incluído no campo das normas gerais a fixação, pela União, de padrões mínimos de defesa do interesse público concernente àquelas matérias em que tais padrões deveriam estar assegurados em todo o País, sob pena de ditos interesses ficarem à míngua de proteção. É que este malefício evidentemente poderia ocorrer, seja por inércia de certos Estados, seja em determinados casos mais específicos, por carecerem alguns deles de preparo ou informação técnica suficientes para o reconhecimento e definição dos ditos padrões mínimos indispensáveis ao resguardo do interesse público quando envolvida matéria técnica. [...] Por sem dúvida, se adotada intelecção que limitasse a competência da União à simples enunciação de princípios, os riscos para a salvaguarda de interesses capitais seriam evidentíssimos, prescindindo mesmo de qualquer esforço demonstrativo. Sendo normas gerais aquelas que fixam padrões mínimos de defesa do interesse público, padronizando determinado conteúdo em todo o território nacional, a suposta inconstitucionalidade alegada se embasa no fato de que a norma geral não deveria ser afastada por outra norma não-geral. Seguindo essa linha, Rigolin (2011), em artigo publicado logo após o advento da lei, faz severas críticas: A Lei nº 12.462/11 sepultou definitivamente, com sete pás de cal em cima, a liturgia das normas gerais de licitações e contratações. Norma geral passou a ser sinônimo de nada, de coisa nenhuma em direito, desmoralizando por completo a classificação da Lei nº 8.666/93. Sim, porque na medida em que existem os pregões¸ que ignoraram a proibição de que existam novas modalidades de licitação além das da Lei nº 8.666/93; na medida em que todo Estado e já muitos Municípios a todo tempo editam leis invertendo as fases da licitação conforme previstas na Lei nº 8.666; na medida em que a periodicidade de reajuste dos contratos no Brasil é dada por uma lei federal de 2.001 que não se diz norma geral de coisa alguma, então fácil é concluir que nesta autêntica festa do caqui em que se converteu o direito público brasileiro ninguém mais respeita minimamente a idéia de a que a lei de normas gerais de licitação limite qualquer ação de qualquer pessoa de direito público interno – que literalmente faz o que bem entende em tema de licitação. Normas gerais – que piada! 345 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Na mesma linha de raciocínio, coaduna Rezende (2011, p. 13), que nessa questão, também defende a inconstitucionalidade da norma impugnada: Mesmo que as novas regras fossem dirigidas exclusivamente à administração pública federal, somente poderiam ser reputadas válidas se compatíveis com as normas gerais presentes na Lei nº 8.666, de 1993. E o que faz a Lei? Pura e simplesmente autoriza seja afastada a aplicação da Lei Geral de Licitações. É de clareza solar que o legislador de cada ente, ao editar normas específicas sobre licitações e contratos, deva observar a Lei Geral. Não fosse assim, a Lei Geral seria um nada jurídico, contornável ao mero talante do legislador de cada ente federado.[...]. Ora, se há normas gerais na Lei nº 8.666, de 1993, a Lei do RDC não poderia afastar de todo a sua aplicação, como o faz no § 2º de seu art. 1º. Visível, pois, a inconstitucionalidade da Lei nesse ponto. Nesse sentido, extrai-se da inicial que está suposta Inconstitucionalidade se dá por violação ao Art. 37, Inc. XXI, da CF173. Para a AGU, nas contra-razões, os argumentos são vagos e abstratos, pois não demonstram em qual dispositivo o RDC viola a CF: Os autores alegam que os instrumentos da Lei nº 12.462/2011 não seriam suficientes para assegurar a moralidade administrativa e a isonomia. A argumentação, todavia, não está atrelada à indicação de um único dispositivo da lei impugnada que contenha suposta proteção insuficiente aos princípios mencionados. [...] os requerentes limitaram-se a indicar, de forma genérica, ofensa ao disposto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição de 1988, sem demonstrar como exsurgiria tal relação de contrariedade[...] Dessa forma, verifica-se que a impugnação formulada pelos requerentes, no ponto específico, caracteriza-se como genérica e abstrata a inviabilizar a exata compreensão do pedido formulado. (grifos nossos). Dessa forma, alega-se a inconstitucionalidade da norma, pelo fato do RDC poder afastar a aplicabilidade da Lei Geral de Licitações, violando o dever do agente público sempre realizar a licitação, e conseqüentemente o princípio da isonomia e da 173 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 346 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE moralidade administrativa. Por outro lado, a AGU defende a constitucionalidade, partindo da premissa de que, para haver uma inconstitucionalidade, o autor deve demonstrar no caso concreto o vício, sem expor argumentos vagos e abstratos. 2.2.2 Da Delegação ao Executivo e da Ampla Discricionariedade Dada ao Agente Público Outro aspecto relevante, extraído das ações, é que a Constituição atribuiu à união competência para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos, leis estas que devem dar pouca discricionariedade ao agente público. Nas ADINS propostas, verifica-se que a alegação da inconstitucionalidade material existiria devido ao fato da Lei do RDC não estabelecer alguns parâmetros mínimos sobre o que deve ser licitado através do RDC, deixando ampla discricionariedade ao executivo174 para verificar quais licitações deverão ser realizadas pelo novo Regime. É o que pode ser observado nas palavras do Procurador-Geral da República, na ADIN 4655: A ofensa ao art. 37, XXI, da CR, parece bastante evidente, pois o regime de licitação pública não está definido em lei, e sim por ato do Executivo. Não há, reitere-se, qualquer parâmetro legal sobre o que seja uma licitação ou contratação necessária aos eventos previstos na lei, outorgando-se desproporcional poder de decisão ao Poder Executivo. Na mesma linha de raciocínio está o argumento levantado pelos partidos políticos, na ADIN 4645: 174 Art.1. É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. 347 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em que pese a aparente taxatividade da redação do caput do art. 1º (“aplicável exclusivamente”), na verdade, as hipóteses descritas nos incisos são essencialmente vagas e imprecisas, conferindo ao Executivo liberdade total na escolha do regime de licitação a aplicar. (...) Observe-se, assim, verdadeira delegação de competência a ente da Administração Pública para definir o regime licitatório aplicável ao caso. Ou seja, na prática, o Executivo poderá escolher, caso a caso, o regime jurídico aplicável. Concordando com as supostas alegações, na visão Krawczyk (2011), A criação do ente “Autoridade Olímpica”, como órgão de definição da necessidade de uso do RDC (Art.1), é o segundo fator de descontentamentos. A alegação é de afronta direta aos artigos 22 XXVII e 37, inciso XXI, CF, pois licitações e contratações são matérias que só deveriam vir reguladas por legislação federal. Uma cláusula demasiadamente aberta conferindo ao Executivo o poder de escolher critérios elevaria o regime jurídico a um nível de subjetividade tão severo que tornaria o instituto totalmente ilegal. Seguindo a mesma linha, Rezende (2011, p. 23) concorda que há uma ampla discricionariedade dada ao poder executivo, ensejando outro vício constitucional, já que “Não há como discordar do argumento de que a Lei nº 12.462, de 2011, submete, em boa medida, à discrição do Poder Executivo, a escolha de aplicação de um regime licitatório bem mais flexível a determinadas obras, compras e serviços”. Por outro lado, em parecer publicado logo após o advento da Lei e as proposições das ações, a Advocacia-Geral da União pronunciou-se favorável ao RDC, alegando não existir nenhuma inconstitucionalidade nesse sentido: [...] cabe evidenciar que as próprias peculiaridades estabelecidas no PLV para o regime diferenciado são balizas para a sua aplicação ou não, podendo o administrador entender ser mais condizente para determinado caso a aplicação do regime geral da Lei de Licitações (Lei nº 8.666, 21 de junho de 1993) ou da Lei do Pregão (Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002). Assim, se, por exemplo, o administrador verificar que, para determinada obra, se faz necessário utilizar uma técnica específica e determinados materiais, cujo detalhamento se faz necessário desde o início da licitação em projeto básico, poderá optar pela utilização da Lei nº 8.666, de 1993, e não do RDC. Por sua vez, não há de se falar que deveria o PLV especificar ainda mais as hipóteses da aplicação do RDC, uma vez que ele se refere à competência da União, prevista no art. 22, inciso XXVII, da Lei Maior, de expedir normas gerais de licitação e contratação, não devendo dispor acerca de minudências a não ser que sejam aplicáveis, única e exclusivamente, à União. A esse respeito, cabe lembrar que o Egrégio 348 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Supremo Tribunal Federal, ao julgar pedido liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 927-3/RS, deu interpretação conforme à Constituição a dispositivos da Lei nº 8.666, de 1993 (Lei de licitações), entendendo ser aplicáveis apenas no âmbito da União Federal em face de tratar de especificidades. E aqui se deve observar que o Projeto de Lei de Conversão, caso aprovado, terá aplicação também a Estados e Municípios que também são responsáveis pela execução de empreendimentos para realização dos mencionados eventos esportivos. 175 Da mesma forma, nas contra-razões, a Advocacia-Geral da União manteve a argumentação, pois não teria como delimitar, no caso concreto, todas as situações em que o agente poderia utilizar o RDC: É certo que não poderia o legislador determinar, de forma antecipada e taxativa, quais as obras necessárias à realização dos eventos esportivos. A questão merece maior destaque diante do fato de estar o Brasil sujeito a exigências diversas provenientes dos órgãos responsáveis pelos eventos, como a Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA e o Comitê Olímpico Internacional. Portanto, ao instituir o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, a lei sob invectiva não poderia antever quais obras, serviços e compras poderiam estar submetidos a referido procedimento. [....]Assim, com o escopo de evitar o engessamento da atividade administrativa, bem como o eventual descumprimento das normas incidentes, a lei delegou ao administrador a tarefa de especificar a obras que são necessárias à realização dos eventos esportivos. Verifica-se que a ampla discricionariedade dada aos órgãos do executivo para definir quais serão os objetos pertinentes ao RDC pode acarretar a inconstitucionalidade da norma. Por outro lado, a Advocacia-Geral da União defende a Constitucionalidade da Norma, alegando que não é viável que a lei preveja todas as situações possíveis para a sua aplicação. 2.2.3 Da Contratação Integrada e da Ausência de Projeto Básico No que tange ainda a Inconstitucionalidade material, outro argumento supracitado nas ações seria a possibilidade das licitações precedidas pelo RDC 175 BRASIL. Advocacia Geral da União. Nota SGCS/AGU SUBST. Nº 1/2011. Disponível em: < www.agu.gov.br/page/download/index/id/4993841> Acesso em: 23 fev. 2015. 349 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE serem contratadas integralmente. A contratação integrada está prevista no Artigo 9º, da Lei nº 12.462/2011176. Segundo esse procedimento, a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básicos e executivos, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação, e todas as demais operações necessárias para a entrega final do objeto ficam por conta de uma única empresa. Essa suposta inconstitucionalidade ocorreria devido à possibilidade do vencedor realizar todas as etapas do processo licitatório, incluindo o projeto básico, já que este não ficaria anexado no edital. Dessa forma, extraí-se trecho da ADIN 4645: Não é por outra razão que a lei 8666/93 define em seu art. 6º, inciso IX, o projeto básico, com especificações de todos os elementos que permitem o estabelecimento de critérios objetivos no julgamento de uma licitação. Entretanto, a Lei 12.462/11, ao criar o tipo de licitação denominado „contratação integrada‟, simplesmente afastou a necessidade de projeto básico para dar início ao processo licitatório, passando a exigir, tão somente um „anteprojeto‟, cujas características são insuficientes para a devida objetivação da obra ou serviço. Na mesma linha, o Procurador-Geral da República também argumentou sobre o alto grau de subjetividade do agente público na delimitação do objeto: [....] para que a Administração possa fixar as „exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações‟, é fundamental um delineamento prévio e preciso do objeto licitado. Do contrário, as exigências podem ficar subavaliadas ou serem impertinentes ou exageradas, tudo em contrariedade aos postulados que regem a licitação pública, comprometendo, ao final, a sua razão de ser que é a eleição da melhor proposta para a administração [...]. A Lei nº 8.666/93 prevê177 que o projeto básico é indispensável para a abertura do certame. A ausência de projeto básico poderia desvirtuar a finalidade da licitação, qual seja, a eleição da melhor proposta para a administração pública, 176 Art. 9o Nas licitações de obras e serviços de engenharia, no âmbito do RDC, poderá ser utilizada a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificada e cujo objeto envolva, pelo menos, uma das seguintes condições: 177 Art. 7o As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte seqüência:§ 2o As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando: I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório. 350 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE previsto no artigo 37, Inc. XXI, da CF. Se a lei contrariar a finalidade do processo licitatório, automaticamente estaria afetando os princípios constitucionais da moralidade e isonomia. Nesse sentido, Rezende (2011, p. 45-46), [...] o dispositivo contraria normas da Lei nº 8.666, de 1993, mais precisamente: a) o art. 7º, § 2º, I e II, de acordo com o qual as obras e os serviços somente poderão ser licitados quando houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório, e existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários; b) o art. 40, § 2º, I e II, segundo o qual constituem anexos do edital, dele fazendo parte integrante, o projeto básico e/ou executivo, com todas as suas partes, desenhos, especificações e outros complementos. Materialmente, a contratação integrada, tal como prevista na Lei do RDC, pode conduzir a situações de ofensa aos princípios do julgamento objetivo e da isonomia, além de dar ensejo a situações lesivas ao interesse público. Isso porque até mesmo a elaboração do projeto básico das obras é deixada a cargo do licitante vencedor. Assim, o Poder Público realizará certame sem dispor de balizamento mínimo daquilo que deseja ver executado. A deficiência de parâmetros comparativos prejudica a aferição do grau de adequação das propostas às necessidades do Poder Público e abre margem ao subjetivismo no julgamento. Ademais, dá-se um poder excessivo ao contratado para definir o que e como será executado. A AGU, ao contestar as duas ações, afirmou que a contratação integrada se dará por critérios objetivos, podendo ser benéfica para a administração pública, [i] pela economia de tempo gerada, já que a mesma empresa realizaria a confecção do projeto e a execução da obra, e por [ii] inviabilizar a celebração de termos aditivos, ocorridos com muita freqüência nas obras públicas. Verifica-se os argumentos através de trecho reproduzido das contra-razões da ADIN 4645: [...] o ante projeto de engenharia deverá conter documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, consoante disposto no § 2º do artigo em exame. Tais documentos tornarão possível uma escolha realizada de açodo com critérios objetivos. [...] De outro lado, a contratação integrada possui uma grande vantagem, pois inviabiliza a celebração de termos aditivos, freqüentemente solicitados com base em falhas do projeto básico. [...] Outrossim, as contratações integradas implicam ganho de tempo, algo extremamente necessário, considerando a proximidade dos eventos esportivos. 351 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Reisdorfer (2013, p. 173) afirma que a contratação integrada pode ser algo muito viável, pautado na economia que esse dispositivo pode gerar para a Administração Pública: A previsão legislativa de um regime contratual que dispensa a elaboração do projeto básico pela Administração Pública revela mais do que uma busca por maior eficiência nas contratações administrativas. Na verdade, parece refletir também uma preocupação com o problema crônico de planejamento que tem marcado as licitações públicas no Brasil. Por diversas razões, a experiência prática aponta que o planejamento e a elaboração de projetos pela Administração Pública são dois dos principais impasses que põem em causa a eficiência dos contratos celebrados. A deficiência no planejamento produz em si uma “álea” que, no mais das vezes, gera prejuízos tanto ao particular quanto, invariavelmente, desperdício de recursos e de tempo também para o Poder Público. Conquanto as ações tramitam perante o STF, parte da doutrina é a favor do RDC, com base na eficiência que a contratação integrada pode trazer para a Administração Pública. Nota-se a presença de um conflito, segundo o qual, por um lado contratação integrada pode trazer mais celeridade e eficiência aos contratos públicos, e em contrapartida, pode ser inconstitucional, por supostamente afrontar a Constituição Federal. 2.2.4 Da Remuneração Variável Na ação direta de inconstitucionalidade proposta pelos partidos políticos (ADI 4655), os autores apontam breves inconstitucionalidades em relação à remuneração variável, prevista no art. 10 na Lei 12.462/11178. Segundo esse dispositivo, há a possibilidade do contratado receber um bônus em sua remuneração, conforme atinja determinadas metas, previstas em edital. A lei em questão pode possuir suposta inconstitucionalidade por esse preceito afrontar alguns princípios constitucionais da administração pública, principalmente a 178 Art. 10. Na contratação das obras e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser estabelecida remuneração variável vinculada ao desempenho da contratada, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazo de entrega definidos no instrumento convocatório e no contrato. Parágrafo único. A utilização da remuneração variável será motivada e respeitará o limite orçamentário fixado pela administração pública para a contratação. 352 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE moralidade administrativa e a impessoalidade. A afronta aos princípios ocorre pela ampla discricionariedade dada ao agente público para decidir o quanto de remuneração variável contratos diferentes poderão receber. Conforme exposto na inicial da ADIN 4645, “esse mecanismo, em lugar de estimular a eficiência dos contratos, fomentará relações promíscuas entre o público e o privado”. Em contrapartida, a AGU contestou, alegando não haver nenhum vício material nesse dispositivo: Mais uma vez, verifica-se que a inovação trazida pelo legislador não fere preceitos constitucionais, além de constituir forma de incentivo ao particular, que será remunerado conforme sua eficiência e economicidade no trato da coisa pública. Cuida-se, portanto, de previsão de incentivo àquele que ultrapassar as metas mínimas estabelecidas, instituindo um sistema dinâmico de remuneração. Conjuntamente, segundo Schwind (2013, p. 175), Os contratos de eficiência e a remuneração variável em função do desempenho do contratado configuram mecanismos bastante interessantes para o incentivo à eficiência nas contratações públicas. Utilizam a lógica dos contratos de risco como forma de vincular o dispêndio de recursos públicos à obtenção de vantagens efetivas à Administração A utilização desses mecanismos no âmbito do RDC será um importante teste para a identificação das suas potencialidades. Caso bem concebidos, os contratos de eficiência e as avencas que contemplam remuneração variável poderão proporcionar economias relevantes aos cofres públicos. Por isso, não faz sentido que o seu âmbito de aplicação seja restrito ao RDC. Dessa forma, pleiteia-se a inconstitucionalidade do art. 10 da lei do RDC, em relação à remuneração variável nos contratos de desempenho, enquanto a AGU defende a constitucionalidade, embasada na eficiência e economicidade que o instituto pode gerar à Administração Pública. 2.2.5 Da Pré-Qualificação No que tange ao requisito da pré-qualificação, previsto na Lei do RDC, o Procurador-Geral da República sustenta a inconstitucionalidade desse dispositivo, por supostamente afrontar a finalidade do procedimento licitatório previsto no art. 37, 353 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE XXI, da Constituição da República. Segundo esse regramento, todos os licitantes devem preencher requisitos de habilitação genéricos ou específicos, a fim de que possam participar de uma ou mais licitações. A alegação é de que a pré-qualificação viola o princípio da isonomia e, conseqüentemente o princípio da impessoalidade, por afastar da licitação interessados que não sejam previamente qualificados, diminuindo o âmbito de concorrentes. Importante mencionar trecho exposto na Inicial da ADIN 4655: O procedimento de pré-qualificação permanente, no âmbito do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, está na contramão disso tudo, uma vez que busca a habilitação prévia dos licitantes em fase anterior e distinta da licitação. E ainda permite que interessados não pré-qualificados sejam alijados da licitação (art. 30, § 2º).[...] Já na hipótese da Lei 12.462, a pré-qualificação é prevista para qualquer situação que envolva fornecimento de bem e execução de serviço e obra. Ou seja, não há aqui qualquer caráter de excepcionalidade, o que permite concluir pela possibilidade concreta de lesão à ampla competitividade que deve nortear as licitações. Por outro lado, a Advocacia-Geral da União manifestou-se de forma contrária, afirmando que não há prejuízo à ampla concorrência e ao princípio da isonomia na questão da Pré-qualificação, conforme trecho extraído nas contra-razões: Observe-se, portanto, não haver prejuízo à ampla concorrência, pois a préqualificação destina-se, tão somente, a identificar os candidatos que reúnem as condições mínimas de habilitação. Tal verificação também ocorre no procedimento regular de licitação, disciplinado na Lei nº 8.666/93, só que em momento posterior, realizado no próprio procedimento licitatório. Na verdade, embora haja inovações no novo regime instaurado pela Lei nº 12.462/11, a pré-qualificação guarda semelhanças com o que estabelece a Lei nº 8.666/93. No mesmo sentido da AGU, Justen Filho (2011, p. 05) acredita não ser vício constitucional a respectiva questão, já que “A pré-qualificação é um mecanismo útil para tornar o procedimento licitatório mais expedito e rápido, além de ampliar a segurança contratual da Administração Pública”. 354 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.2.6 O Princípio da Publicidade e a Questão do Orçamento Estimado Em relação ao princípio da publicidade, alega-se, na ADIN 4645 que há alguns dispositivos da Lei do RDC que supostamente afetam o princípio da publicidade. As críticas e alegações são em relação ao art. 15, § 2º179 da Lei, pois este dispositivo dispensa a publicação em diário oficial em licitações que não ultrapassem o valor de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais). Nesses casos, só ocorre a publicidade eletrônica, e essa disposição da Lei em questão fere o artigo 37, caput180, da Constituição Federal, principalmente, os princípios da moralidade e da publicidade. Alegam, ainda, que publicações impressas servem para dar maior segurança para consultas futuras. Sendo assim, a ausência de publicações impressas reduz a possibilidade de eficácia de controle social, automaticamente enfraquecendo o princípio da moralidade. A publicidade é regra, e não exceção, devendo sempre ser concretizada, na maior amplitude possível. Nessa linha, importante destacar trecho extraído da inicial da ação: Tal dispensa de publicação não se coaduna com a norma do caput do art. 37 da Constituição Federal, mormente os princípios constitucionais da publicidade e moralidade.[...] De acordo com o que prevê o art.15 da Lei 12.462 de 2011, seriam dois os meios que se voltam a tal finalidade: (1) a publicação em diário oficial e (2) a divulgação em sítio virtual oficial. Um e outro não concorrem, complementam-se. Se de um lado, os meios eletrônicos mostram-se mais ágeis e, em alguns casos, mais econômicos para o Poder Público; as publicações impressas ainda são estáveis e oferecem um registro mais seguro para a posteridade.[...] O princípio da publicidade como os demais princípios constitucionais, deve ser cumprido na maior medida possível, conferindo-se aos atos da Administração Pública a mais ampla divulgação, por meio dos instrumentos de que dispõe o gestor público. 179 Art. 15. Será dada ampla publicidade aos procedimentos licitatórios e de pré-qualificação disciplinados por esta Lei, ressalvadas as hipóteses de informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, devendo ser adotados os seguintes prazos mínimos para apresentação de propostas, contados a partir da data de publicação do instrumento convocatório:[...] § 2o No caso de licitações cujo valor não ultrapasse R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para obras ou R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para bens e serviços, inclusive de engenharia, é dispensada a publicação prevista no inciso I do § 1o deste artigo. 180 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 355 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Requer-se a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 15 da Lei 12.462/11, no que diz respeito a publicação dos atos pelo Poder Público. A AGU novamente afirmou não haver nenhum vício de natureza constitucional, alegando que tal dispositivo não fere o princípio da publicidade: É imperioso consignar, quanto ao tema, não constituir ofensa ao princípio da publicidade a divulgação dos procedimentos licitatórios apenas em sítio eletrônico oficial centralizado de divulgação de licitações. Com efeito, a Constituição Federal determina a obediência ao princípio da publicidade, mas não estabelece os parâmetros de aplicabilidade de referido preceito. Assim, não se pode afirmar que a opção administrativa pela publicação em endereço eletrônico especializado viole tal princípio. Outro ponto questionado, correlacionado com o princípio da publicidade, é a constitucionalidade do orçamento estimado. Para os autores, o artigo 6º, § 3º181 da Lei do RDC é inconstitucional, por afronta ao artigo 5º, Inciso XXXIII182, da Carta Magna. Esse dispositivo estabelece o sigilo do orçamento, invertendo a lógica constitucional, segundo a qual, a publicidade da administração pública é regra, e não exceção, devendo o sigilo do orçamento ser sempre justificado, em casos de relevante interesse público. Assim, ressalta-se trecho extraído da ADIN 4645: O disposto no § 3º estabelece uma presunção de sigilo, invertendo a lógica constitucional. De acordo com tal disposição, se a informação não constar do instrumento convocatório presume-se que seja sigilosa. Há nisto uma inversão da regra constitucional. Na Constituição Federal a publicidade e a transparência são regra. O sigilo justifica-se apenas em casos excepcionais, isto é, quando haja risco à segurança nacional ou da sociedade ou quando se trate de informação que diga respeito à vida privada e a intimidade do cidadão. 181 Art. 6o_Observado o disposto no § 3o, o orçamento previamente estimado para a contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas. § 3o Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno. 182 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. 356 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Na mesma linha, de acordo com Rezende (2011, p. 41), [...] embora a previsão do orçamento sigiloso seja justificada com o argumento de que ele poderia combater estratégias cartelísticas, é duvidosa a sua eficácia. Em um mercado cartelizado, bastará aos participantes do conluio persistir nas práticas atuais, para obterem resultado semelhante aos verificados atualmente. Se todos oferecerem propostas de preço superiores ao orçamento sigiloso da Administração, esta findará por negociar melhores condições com o autor da melhor proposta, valendo-se do disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei, até que o preço por ele oferecido se equipare ao constante do orçamento. Por outro lado, para Cardoso (2011, p. 07), O diferimento da publicidade do orçamento estimado estabelecido pelo art. 6º da Lei 12.462 é válido e compatível com a Constituição. De um lado, tem-se o princípio da publicidade, que tem como objetivos precípuos, no caso das licitações públicas, (i) a participação do maior número de interessados, (ii) a proteção à igualdade entre os licitantes e (iii) viabilizar o amplo controle da atividade administrativa na licitação e do contrato dela decorrente. De outro, (a) a busca da maior competição entre os licitantes, tendo como consequência (b) a redução da possibilidade de conluio entre eles na participação em licitações e licitações e (c) a obtenção de propostas mais vantajosas. Ressalte-se que nenhum dos objetivos buscados com a ampla publicidade é atingido pela regra do art. 6º, da Lei nº 12.462. Não se pode afirmar que a não divulgação do orçamento estimado com o edital possa automaticamente reduzir a participação de eventuais interessados. Tampouco é válido reputar que haveria a possibilidade de tratamento desigual entre os licitantes ou redução do controle da atividade da Administração. Seguindo a mesma linha de Carsdoso, para Di Pietro (2013, p. 447), a não divulgação do orçamento estimado antes do procedimento licitatório pode ser benéfica aos cofres públicos: A medida – não divulgação do orçamento estimado antes do orçamento do procedimento da licitação – parece útil, sendo conveniente que se estenda a todas as modalidades de licitação, porque a sua divulgação influencia os licitantes na apresentação de suas propostas, podendo resultar em resultados danosos para a escolha da melhor proposta. 357 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Sobre a economia que o RDC pode vir a gerar aos cofres públicos devido a não divulgação do orçamento estimado, o DNIT183 economizou cerca de 01 (um) bilhão de reais aos cofres públicos, na realização de 500 (quinhentas) licitações. De um montante de cerca de R$ 11.808.027.405,30 (onze bilhões, oitocentos e oito milhões, quatrocentos e cinco mil e trinta reais) que havia no orçamento estimado previsto pelo departamento, ao término dos certames as contratações ficaram, no total, em cerca de R$ 10.828.867.237,00 (dez bilhões, oitocentos e vinte e oito milhões, oitocentos e sessenta e sete mil e duzentos e trinta e sete reais). Por conta dos argumentos expostos, enquanto resultados práticos (economia do DNIT) e parte da doutrina são favoráveis a lógica do orçamento estimado, os autores pleiteiam a inconstitucionalidade do artigo 6º, § 3º da Lei em questão, vez que o sigilo dos orçamentos públicos nos processos de licitação pública regidos pela Lei nº 12.462/11 supostamente afronta o princípio da publicidade. 2.2.7 Do Pedido Cautelar Na ADIN 4645, a parte autora pleiteou que o STF concedesse medida cautelar, conforme possibilidade prevista na Lei 9.868/99. Entretanto, o Ministro Relator, Luiz Fux, determinou o julgamento definitivo, sem prévia análise de medida liminar, diante da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica184. Dessa forma, destaca-se que nenhuma das duas ações interpostas foram analisadas até a conclusão do presente trabalho, nem em sede cautelar. 2.2.8 Repercussão dos Efeitos da Decisão Caso a Lei do RDC seja declarada inconstitucional pelo STF, a lei passará a não produzir mais efeitos no mundo jurídico, não sendo mais utilizada, devendo o 183 Portal Brasil. Infraestrutura. Dnit economiza quase R$ 1 bi em 500 procedimentos licitatórios. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/01/dnit-economiza-quase-r-1-bi-em-500procedimentos-licitatorios>. Acesso em 24 mar. 2015. 184 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação que questiona regime de contratações para obras da Copa terá rito abreviado. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=188346&caixaBusca=N>. Acesso em 10 mar. 2015. 358 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE agente público realizar todas as licitações com base na Lei nº 8.666/93. Se a inconstitucionalidade for apenas parcial, só os dispositivos que forem declarados inconstitucionais deixarão de ser utilizados. O STF, poderá, ainda, modular os efeitos da decisão, decidindo a partir de quando está decisão passará a surtir efeito, bem como decidir como ficarão as situações na qual foi utilizada o RDC. Espera-se que, se declarado inconstitucional todo o dispositivo, os contratos em vigor continuarão a ter efeitos até o seu termo final, resguardando a segurança jurídica, não se admitindo a utilização da Lei nº 12.462/11 somente em situações posteriores à sentença. Há ainda, a possibilidade da Lei do RDC ser revogada, havendo a perda de objeto da ação direta de inconstitucionalidade, e conseqüentemente, a extinção da ação sem julgamento do mérito, conforme leciona Moraes (2005, p. 656): O Supremo Tribunal Federal não admite ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já se tenha exaurido (por exemplo: medida provisória não convertida em lei) entendendo, ainda, a prejudicialidade da ação, por perda do objeto, na hipótese de a lei ou ato normativo impugnados vierem a ser revogados antes do julgamento final da mesma, pois, conforme entende o Pretório excelso, a declaração em tese de ato normativo que não mais existe transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concreta. Outra situação seria a hipótese da Lei do RDC ser declarada constitucional. Nesse caso, continuará a possuir eficácia no mundo jurídico, até que uma lei posterior a revogue. Aguarda-se, agora, a decisão do Supremo em relação a essas ações, para verificar qual será o futuro das licitações e contratos administrativos no Brasil, acabando com a ampla discussão doutrinária que gira em torno do Regime Diferenciado de Contratações Públicas. 3 CONCLUSÃO O Legislador editou a Lei 12.462/11 para tentar dar mais celeridade as obras necessárias à realização de jogos esportivos internacionais no Brasil, pois acreditou 359 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE que a Lei nº 8.666/93 não seria capaz de dar a mesma celeridade e eficiência do que o novo regime. Posteriormente, a Lei acabou por ter o seu âmbito de aplicação aumentado, o que não foi objeto do presente trabalho. Parece que, mais do que dar celeridade a obras de eventos esportivos, o intuito inicial do legislador era o de testar novos procedimentos diferentes da Lei nº 8.666/93, já pensando numa futura reforma. A vontade de reformular as Licitações no Brasil fica ainda mais evidente com o posterior Projeto de Lei nº 559/2013, em trâmite perante o Congresso Nacional. Caso esse projeto seja convertido em lei, há a previsão de revogação das Leis 8.666/1993, principal norma aplicável às licitações, e a 10.520/2002, que instituiu o pregão, bem como dos artigos 1º ao 47 da Lei 12.462/2011, que criou o Regime Diferenciado de Contratações Públicas. A inserção do RDC no âmbito jurídico nacional fez com que partidos políticos da oposição federal e o Procurador-Geral da república propusessem perante o STF duas ações diretas de inconstitucionalidade, requerendo a inconstitucionalidade formal e material da Lei. No que tange à constitucionalidade formal, alega-se não haver urgência e relevância para a edição da MP que originou a referida Lei, e pelos abusos de emenda que a MP sofreu até virar Lei. Nesse aspecto, o autor do presente trabalho concorda com a argumentação bastante razoável da AGU, no sentido de que não há em que se falar em inconstitucionalidade formal da Lei, já que pressupostos de urgência e relevância são institutos inerentes e subjetivos ao Presidente da República, devendo, apenas, ser analisados em casos excepcionais, em que a ausência dos pressupostos seja evidente. No que diz respeito as emendas que a MP sofreu até virar Lei, há a dúvida sobre a (in)constitucionalidade formal da Lei. Não há identidade, similitude ou afinidade entre o conteúdo original da MP e as matérias nela inseridas. O Congresso Nacional e o Governo Federal, para não deixar dúvidas quanto a sua constitucionalidade, deveriam ter editado o RDC através de Projeto de Lei, para evitar futuros questionamentos através de ADIN. Entretanto, a edição de Leis através de MP é costume bastante corriqueiro do Congresso Nacional, o que pode ter como conseqüência declarações inconstitucionais totais de leis, conforme pleiteia-se nas ADIN 4645 e 4655. 360 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE No que diz respeito às inconstitucionalidades materiais alegadas, o autor do presente trabalho acredita ser mais plausível, em todos os sentidos, os argumentos levantados das contrarrazões da AGU. Parece que a sua aplicação pode vir a ser benéfica e eficiente às licitações, já que, entre outros dispositivos, o RDC [i] possui o intuito acabar com a burocracia e morosidade trazida pela Lei nº 8.666/93, [ii] pode reduzir os custos das propostas ofertadas devido ao sigilo temporário do orçamento estimado, [iii] pode ser eficiente ao instituir o procedimento de contratação integrada, já que transfere ao particular a responsabilidade de elaboração do projeto básico (o que normalmente já é feito, só que por terceiros), e consequentemente, reduz chances para termos aditivos, habitualmente utilizados pela Administração Pública. Por óbvio que, para que o RDC seja eficaz e consiga atingir as metas e os objetivos desejados, sua aplicação deve ser precedida da boa-fé e da moralidade, que devem ser inerentes do agente público. Nem a aplicação da Lei 8.666/93, nem a aplicação da Lei 12.462/11, ou qualquer outra lei que venha a vigorar em nosso ordenamento jurídico consegue impedir que agentes e administradores públicos se corrompam ou hajam de má fé. O fato é que, de um lado, a doutrina mais liberal defende que não há nenhum vício na lei, tanto formal, quanto material, devido à suposta eficiência que o RDC pode vir a trazer para as contratações públicas no Brasil. Em contra-ponto, a doutrina mais conservadora alega que pode haver alguns vícios no novo regime, principalmente de natureza material. Espera-se, agora, [i] saber se o Projeto de Lei nº 559/2013 será aprovado no Congresso Nacional, e [ii] a decisão da Suprema Corte, quanto a Constitucionalidade ou a Inconstitucionalidade da Lei ora impugnada, para ver se esse instituto continuará sendo aplicado no âmbito das Licitações Brasileiras. REFERÊNCIAS CARDOSO, André Guskow. 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Referências RESUMO O presente trabalho objetiva relacionar o aumento progressivo do número de demandas judiciais, principalmente aquelas ajuizadas por hipossuficientes, o trabalhador e o consumidor por excelência, e como a forma de interpretação da legislação vigente dá margem ao ajuizamento de demandas indevidas, para tanto, analisa-se as normas protetivas do Direito do Consumidor e do Direito Trabalhista. Em razão da atualidade do tema, não há doutrinas publicadas que analisem especificamente a discussão proposta, razão pela qual a principal fonte de pesquisa é a jurisprudência. Pelo contexto histórico em que ambas as legislações foram criadas foi necessária a rigidez das normas a fim de tentar inibir as condutas abusivas por parte das empresas empregadoras e fornecedoras. As modificações das relações de emprego e consumeristas, atualmente, fundamentam ações indevidas, aquelas em que a condição de hipossuficiência tem sido invocada por quem não o é e utilizada para obtenção de proveito econômico ilícito. Demonstra-se neste artigo uma das razões pela qual existem demandas excessivas tramitando no Judiciário: o abuso de direito por parte do autor, em especial aqueles protegidos sob conceito da hipossuficiência processual. A problemática em foco é pertinente haja vista a sobrecarga do Judiciário ser um problema atual e preocupante, pois recentes relatórios apontam um crescimento de 3,4% no número de ações judiciais, e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta estimativa de que em 2020 devemos chegar a um patamar de 114 milhões de ações em tramitação, sendo aqui estudada uma de suas causas e uma possível solução. Palavras chave: Hipossuficiência, abuso de direito, litigância de má-fé, justiça gratuita, morosidade. 185 Acadêmica de Direito do Unicuritiba. [email protected] Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1984. Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Professora no curso de Graduação da Faculdade de Direito de Curitiba desde 1986. Ao longo do magistério já lecionou as disciplinas de Direito Civil (Parte Geral de Contratos, Contratos em Espécie, Teoria da Relação Jurídica I e II), Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho (Execução) e Direito Sindical. Atua na área trabalhista. 186 365 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT The present study aims to relate the progressive increase in the number of lawsuits, especially those filed by workers and consumers, who are characterized by the figure of hiposuficiency, and how the interpretation of the current legislation enables the filing of undue lawsuits. Therefore, the protective norms of Labor Law and Consumer Law are analyzed. There is no published doctrine that specifically analyzes the proposed discussion due to the novelty of the topic, reason why the main research source is the jurisprudence. By the historical context in which both legislations were created, the strictness of the norms was necessary in order to inhibit abusive conduct committed by the companies, whether as employers or suppliers.Taking into account the modifications that have taken place in the consumption relation and in the employment relationship, the law protection justify the undue lawsuits, in other words, those litigations used to obtain illicit economic advantage, once the hiposuficiency has been invoked for those who do not possess such attribute. It is demonstrated in this article one the reasons why there is an excessive amount of litigations in the judiciary: the abuse of rights by the applicant, especially the one protected under the concept of hiposuficiency. The issue in focus is relevant considering that the overload of cases in the judiciary is a current and worrying situation. Recent studies reveal an increase of 3,4% in the number of litigations and the CNJ (National Justice Council) estimates that in 2020 the number of lawsuits will achieve 114 million. This study analyzes one of its causes and a possible solution. Keywords: hiposuficiency, abuse of right, free legal assistance, bad faith. 1 INTRODUÇÃO Inicialmente é necessário se perceber que, na época da Revolução Industrial, houve uma grande alteração do sistema econômico, qual seja, com o fortalecimento da burguesia, qualquer um, com capital suficiente, poderia ter um investimento comercial. Obviamente, aqueles com melhor poderio econômico acabaram tendo o monopólio do mercado, fazendo com que se estabelecesse uma relação de trabalho: quem não tinha condições de competir no mercado acaba se tornando empregado do detentor dos meios de produção. Em troca da mão de obra, era pago um salário, negociado ao piso mais baixo, haja vista a obtenção do maior lucro possível, o que culminou numa relação abusiva, quase que equiparada à escravidão. Nesse modelo econômico, o Estado deveria preocupar-se apenas com a proteção, com a segurança, principalmente no que tange a ameaças externas e invasões. Alheio aos conflitos, cada vez mais patentes, o Estado demorou a intervir nas relações trabalhistas quando então a aplicação das regras do capitalismo puro, 366 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE tornaram mais claras as atrocidades comumente cometidas. Com o agravamento da situação, o Estado se viu obrigado a intervir de maneira a minimizar perdas e permitir o convívio de ambas as classes de forma mais equilibrada e harmônica. Nasce assim o Direito do Trabalho, que veio a regular as relações do empregador e empregado. No Brasil, em 1943, a Consolidação das Leis Trabalhistas reuniu a legislação até então esparsas, passando a funcionar como um verdadeiro Código do Trabalho. A Constituição de 1988, no mesmo sentido, em seu artigo 7º, declarou a redução da carga horária de 48h semanais, majorou o valor das férias em 1/3 do salário base, estabeleceu o alargamento da licença maternidade para 120 dias, determinou que a idade mínima para trabalho fosse de 14 anos, na condição de aprendiz, reconheceu os direitos das domésticas, e determinou o dever do empregador ao pagamento do 13º salário. Assim, o Estado passou a legislar para reparar o desequilíbrio fático entre trabalhador e empregador, garantindo que os mínimos direitos existenciais, baseados na dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, da nossa Carta Magna, fossem respeitados. No âmbito do Direito do Consumidor, com o advento da Revolução Industrial, foi necessária a existência de um público consumidor para absorção dos produtos industrializados. Ocorreu que, ante a completa omissão legislativa não havia nenhum tipo de regulação quanto à informação sobre o produto oferecido, o que fazia com que o consumidor ficasse unicamente dependente da confiança depositada no fornecedor sobre a qualidade do que consumia. O abuso dessa relação, que deveria ser de confiança, porém corrompida em razão dos vorazes princípios do início do capitalismo, pois o fornecedor visava tão somente o lucro do seu empreendimento, não havendo qualquer tipo de preocupação com a segurança do consumidor, exigiu uma intervenção estatal para que houvesse a imputação de limites e regras a serem obedecidos. A Constituição de 1988 incorporou o Direito do Consumidor, tratando-o como um direito fundamental e determinando a observância a princípios como o da transparência nas relações consumeristas. Em 1990, entra em vigor o Código de Defesa do Consumidor, que trouxe a consolidação dos direitos consumeristas, 367 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE reconhecendo-os como hipossuficientes, traduzidos nos princípios essenciais da boa-fé, transparência e informação. Essas relações se modificaram no decorrer dos anos, contudo, quando foram criados novos mecanismos de controle, o que torna a legislação atual exacerbadamente rígida. O fato é que não mais vivemos naquela sociedade dividida onde, de um lado tem-se o grande empresário, detentor do capital, e do outro o “Zé ninguém”, pouco esclarecido, sem formação e desprovido de renda. Nossa sociedade expressa a ascensão da classe média, onde as diferenças sociais estão cada vez mais atenuadas. Presenciamos a multiplicação das micro e pequenas empresas, cujo capital é menor, a mão-de-obra é menor, no entanto, o trabalho e as dívidas são quase que equivalentes às empresas de grande porte.187 No Direito do Trabalho, o controle de jornada atualmente pode ser demonstrado com a juntada de e-mails trocados fora do expediente, através de atas notariais que demonstrem chamadas telefônicas, mensagens e mais recentemente até pelo WhatsApp, o que, automaticamente imputa ao empregador um cuidado maior, que acaba por, em regra, inibir esse comportamento ou a adequá-lo, principalmente para evitar seu prejuízo em passivos de demandas judiciais. O Direito Consumerista não ficou atrás, no século XX, foram criados, no Brasil, os PROCON’s (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), órgãos administrativos que visam o atendimento das demandas consumeristas quando da ocorrência de impasses entre o prestador dos serviços e a parte hipossuficiente. Foi facultado ainda a esses órgãos administrativos a aplicação de multas quando constatadas de ações lesivas ao consumidor, quer seja fática, técnica ou sobre a transparência nas informações, o que também funciona como mecanismo de controle e repressão de práticas abusivas, anteriormente praticadas pelos fornecedores. Tem-se assim que o cenário atual não é o mesmo de quando as respectivas legislações foram criadas, sendo que com base nessa constatação fática, a norma 187 LIMA, Juliana Correia da Silva; A hipossuficiência fictícia do trabalhador como instrumento para obtenção de proveito econômico. Jus Navengandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22962/ahipossuficiencia-ficticia-do-trabalhador-como-instrumento-para-obtencao-de-proveito-economico>. Acesso em 25.fev.2015. 368 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE deve se amoldar ao contexto atual, sob pena de acabar por inverter o desequilíbrio, bem como o objetivo da própria norma. Isso porque, a legislação trabalhista e consumerista são normas de direito público, visam um bem coletivo: a harmonia nas relações econômicas como forma de garantia do desenvolvimento nacional; por essa razão, ambas não se prestam à proteção de direitos personalíssimos ou à proteção deste ou daquele indivíduo, mas a um grupo. A existência da norma significa que direta ou indiretamente o Estado precisa do bom desenvolvimento desta relação para o atingimento dos seus fins, principalmente no que tange ao desenvolvimento nacional, previsto no artigo 3º, da Constituição Federal, em seu inciso II. Verifica-se, portanto, que, antes de ser a proteção de um direito individual, as legislações trabalhistas e consumeristas são protetivas ao Direito Econômico, um conjunto de regras que visam a promoção do desenvolvimento nacional. 2 ABUSO DE DIREITO Visto qual a intenção do legislador quando da criação das legislações protetivas do consumidor e do trabalhador, a estrutura das leis, o contexto o qual foram criadas, bem como a alteração da relação protegida no curso do tempo, verificar-se-á um dos maiores impactos da manutenção do perfil ultrapassado de determinadas normas ainda vigentes sem a devida análise e adequação à atualidade: o abuso do direito. De acordo Paulo Nader (NADER, 2004, p. 554-556), o abuso de direito pode ser classificado quanto: a) Titularidade do Direito. O agente responsável civilmente há de estar investido da titularidade de um direito subjetivo, ao exercitá-lo, por si ou por intermédio dos seus subordinados. b) Exercício Irregular do Direito. O titular do direito vai além do necessário na utilização do que o seu direito. c) Rompimento dos limites impostos. O titular do direito subjetivo ultrapasse os limites ditados pelos fins econômicos ou sociais. d) Violação do direito alheio. É necessária a violação ao direito alheio para que o prejudicado possa se valer das medidas judiciais. e) Elemento subjetivo da conduta. Dentre os elementos do ato ilícito tem-se a culpa como requisito da conduta. Todavia, no caso ato abuso de direito, o legislador não colocou de forma expressa a ideia de culpa, a qual poderia 369 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE estar subentendida. Todavia, é dispensável tal elemento como requisito necessário para caracterizar o abuso de direito. f) Nexo de Causalidade: É o liame entre a lesão causada e a conduta do agente. (Grifos nossos) Para melhor compreensão de cada uma das características verificaremos alguns exemplos práticos. 2.1 DA TITULARIDADE DO DIREITO Nosso ordenamento estabeleceu como uma das condições a legitimidade das partes, o que significa que para pleitear a reparação de um direito deve ser o sujeito lesionado ou o representante deste, nos termos determinados pela lei. Em recente julgado, o magistrado reconheceu a ilegitimidade ativa, bem como a possibilidade de, no caso concreto, existir abuso de direito, intimando-se o Ministério Público para apuração dos fatos. “Vistos etc... Trata-se de ação de revisão de contrato c/c repetição de indébito e pedido de Antecipação de Tutela proposta por Associação Nacional dos Servidores Públicos em face de Banco Rural S.A e outros. Pois bem. Tenho que, primeiramente, se faz necessário fixar a natureza dos interesses em disputa. Isso porque a natureza dos direitos em disputa é prejudicial ao conhecimento, ou não, do mérito do presente caso. Explico. A depender as espécies de direitos, estabelece-se a forma de tutela destes em juízo, fixando-se se a legitimação ativa é de natureza ordinária ou extraordinária. Veja-se que a legitimação extraordinária é vedada, via de regra, pelo CPC, salvo nos casos em que há expressa previsão legal: “artigo 6 Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. Todavia, consolidou-se a doutrina de que o Código de Defesa do Consumidor deve ser lido conjuntamente com outros dispositivos legais que abordem o assunto – tutela coletiva de direitos, dentre eles a Lei 7.347/85, que disciplina a Ação Civil Pública. É inconteste que os direitos versados na inicial não possuem natureza coletiva ou difusa. Observe-se que tais direitos têm por característica elementar a indissociabilidade subjetiva, ou seja, não poderiam ser separados para ser tutelados individualmente, por dizerem respeito, estes, à titularidade coletiva em razão de situação de fato (o exemplo clássico é o direito a um meio ambiente clássico), ou, aqueles, à titularidade coletiva em razão de um elo jurídico (a exemplo de ações que versem sobre direitos de uma classe de trabalhadores como um todo). No máximo, portanto, poderiam tais direitos caracterizar-se como individuais homogêneos. Mas não o são. (...). 370 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Ora, não se tratando de ação coletiva lato sensu, não se pode tratar no caso concreto de substituição processual, mas de mera representação, exigindose autorização expressa dos associados. Tal autorização, não obstante, não consta nos autos. (...) Impera, então, reconhecer a ilegitimidade ativa ad causam no processo, conforme reconheceu o Superior Tribunal de Justiça. No mais, a título de obter dictum, a demanda trazida a este juízo parece amoldar-se em uma prática que vem sendo utilizada por determinados servidores públicos com residências em outros Estados da Federação, que se traduz em verdadeira e manifesta tentativa de fraude tanto aos credores de tais verbas, quanto em uma afronta à autoridade e à função precípua do Poder Judiciário, que é, a fim e a cabo, a pacificação social. Trata-se de uma indústria que vive de liminares concedidas em ações de consignação em pagamento, com o intuito de liberar a margem consignável dos devedores, os quais, sem qualquer pudor, correm para a obtenção de novos empréstimos fraudando os credores antigos e ludibriando os novos. Tal circunstância chamou a atenção do Conselho Nacional de Justiça, que, segundo noticiou-se, iniciaria uma investigação à fraude. ” Colaciono links para acesso de notícias que melhor explicam o sistema de fraude que vem se perpetrando e, pior, contando, até o momento, com a chancela do Judiciário: -http://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/100533927/cnj-vai-investigarfraudeno-consignado -http://www.creditsolutions.com.br/carregaArquivo.html?idArquivo=192 -http://www.conjur.com.br/2013-mar-26/esquema-usa-liminaresburlarconsignado-causa-prejuizo-bancos Assim, julgo EXTINTO o feito, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, na forma do Artigo 267, VI do CPC.” (Grifos nossos)188 A decisão trata de ingresso de ação revisional, ajuizada por sindicatos que pleiteavam a concessão de medida liminar para suspensão do pagamento de empréstimos, sendo que a liminar era usada de modo a possibilitar que o representado obtivesse novos financiamentos. Deve-se ainda esclarecer que os empréstimos de que trata o julgado é consignado, ou seja, aquele cujo descontos das parcelas avençadas são feitos diretamente em folha de pagamento do contratante, sendo que, para a realização dos descontos, deve ser averbado o valor da parcela na margem consignável. 188 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (1ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho). Trata-se de Ação de Revisão de Contrato cumulada com Repetição de Indébito e Pedido de Antecipação de Tutela proposta por Associação Nacional dos Servidores Público em face Banco Rural S.A e outros Bancos. Sentença proferida nos autos nº 0602168-13.2015.8.04.0001. Requerente: Associação Nacional dos Servidores Públicos. Requerido: Banco Rural e outros. Juiz de Direito: Roberto Santos Taketomi. 24 de fevereiros de 2015. Publicação no Diário de Justiça do Estado do Amazonas. Relação :0015/2015 disponibilizados em 23/02/2015, diário número 1.630. Página 26. Disponível em: <http://consultasaj.tjam.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=7&nuDiario=1631&cdCaderno=2&n uSeqpagina=4.>. Acesso em 15.maio.2015 371 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A título de breve esclarecimento, a margem consignável consiste no valor possível de ser descontado em folha de pagamento e se divide em descontos obrigatórios (imposto de renda e pensão alimentícia) e facultativos (empréstimos). O limite consignável é disciplinado por lei própria aplicável a cada categoria e deve ser observado pelos órgãos empregadores ao autorizar a consignação de um novo empréstimo. Chegando ao limite mencionado o órgão empregador recusa a averbação de um novo contrato, impedindo o empregado/consumidor de realizar novos empréstimos. A saída encontrada foi o ajuizamento de demandas de ações revisionais que pleiteavam liminarmente a desaverbação da margem consignável dos consumidores, o que lhes possibilitava a realização de um novo contrato, com outra instituição bancária. A problemática exposta pelo juiz que proferiu a sentença citada é que, muitas vezes, a demanda era julgada improcedente e o antigo credor jamais conseguia retomar a cobranças das parcelas, pois a reserva da margem que lhe pertencia já estava destinada ao pagamento de um novo contrato, com outro credor, o que caracteriza a fraude contra credores mencionada na decisão acima. Quanto à titularidade de direito, é sabido que os sindicatos possuem legitimidade para propor demandas pleiteando direitos coletivos em nome alheio. O que ocorreu no julgado relatado é que o sindicato ingressou com diversas demandas, cada qual com diversos representados no polo ativo, pleiteou o deferimento da medida liminar para determinação da suspensão do pagamento dos empréstimos consignados contra vários bancos, bem como a liberação das margens consignáveis, e sequer juntou aos autos documentos de autorização da representação. Ou seja, o sindicato ingressou com as ações pleiteando direito em nome alheio e não acostou aos autos as procurações dos representados autorizando o ingresso das ações, o que vicia a representação, como bem observou o juiz prolator da decisão acima. 372 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.2 DO EXERCÍCIO IRREGULAR DO DIREITO Nosso ordenamento jurídico tem por finalidade a proteção de um direito, sendo que, o sujeito que tenha qualquer um dos seus direitos violados tem direito à reparação. Assim, o exercício regular de um direito refere-se à conduta das partes, pessoas físicas e pessoas jurídicas, que têm o dever de cumprimento da lei, conforme determinado no artigo 5º, da Constituição Federal, em seu inciso II, o qual determina que a previsão legal vincula um determinado comportamento das partes. O exercício regular de um direito é, portanto, a ação nos limites da lei, enquanto que o abuso de direito, noutro ponto, é uma ação que viole ou ultrapasse os limites autorizados. RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PAGAMENTOS REALIZADOS COM PELO MENOS 30 DIAS DE ATRASO. COBRANÇA REALIZADA DE FORMA DEVIDA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO NÃO VERIFICADO. EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DO CREDOR. DANOS MORAIS INEXISTENTES. MANTIDA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO.189 RECURSO INOMINADO. REPARAÇÃO DE DANOS. ALEGAÇÃO DE COBRANÇA VEXATÓRIA EM LOCAL DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA PRÁTICA DE CONDUTA HÁBIL A ENSEJAR O PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. 1. O autor postulou o pagamento de indenização por danos morais, em razão de alegadamente ter sofrido cobranças vexatórias em seu local de trabalho, através de e-mail profissional e ligações. 2. Nesse sentido, necessária a comprovação de que o autor tenha sido submetido a situação vexatória capaz de atingir de pronto sua higidez psíquica. A situação descrita na inicial não pode ser enquadrada como passível de ser reparada por dano moral puro. O autor não produziu prova de que tenha ocorrido situação excepcional a ensejar um juízo de convencimento para acolhimento de seu pedido nesse ponto, ônus que lhe incumbia por força do artigo 333, I, do CPC3. Assim, ausente comprovação acerca da conduta ilícita da ré ou de situação vexatória, levando em conta também o princípio da imediatidade, pelo qual se prestigia a impressão obtida pelo Juiz que atuou diretamente na instrução do feito, tenho que não 189 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (4ª Turma Recursal). Recurso inominado. Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais. Pagamentos realizados com pelo menos 30 dias de atraso. Cobrança realizada de forma devida. Alegação de excesso não verificado. Exercício regular do direito do credor. Danos morais inexistentes. Mantida sentença de improcedência. Recurso desprovido. Recurso Inominado nº: 0023502-50.2015.8.21.9000. Recorrente: Valdir Dutra Da Silva. Recorrido: BANCO BRADESCO FINANCIAMENTOS S/A. Relator: Gisele Anne Vieira de Azambuja. 26 de junho de 2015. JusBrasil: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/204205238/recurso-civel71005524004-rs/inteiro-teor-204205250>. Acesso em 20.ago.2015 373 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE merece reforma a sentença que julgou improcedente o pedido. RECURSO DESPROVIDO.190 Necessário ainda se frisar que o dano deve ser comprovado para que se possa falar em abuso de direito. O magistrado analisando os autos, as provas produzidas, bem como na própria audiência, quando tem contato com as partes, deve analisar o caso concreto observando e regulando a conduta de cada uma das partes de modo que haja observância à boa-fé e lealdade processual. RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. COBRANÇA VEXATÓRIA EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL. COMPROVADA AGRESSÃO VERBAL. ABUSO DE DIREITO NA COBRANÇA DE DÍVIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. decidem os Juízes Integrantes da 1ª Turma Recursal Juizados Especiais do Estado do Paraná, conhecer do recurso, e no mérito, negar-lhe provimento, nos exatos termos do voto. (Grifos nossos).191 DANO MORAL. DIVULGAÇÃO DESNECESSÁRIA E ABUSIVA DE FATOS DESABONADORES. EXERCÍCIO IRREGULAR DE DIREITO. REPARAÇÃO MORAL. É devida a reparação moral se o empregador que divulga de forma desnecessária e abusiva os fatos desabonadores imputados ao empregado, sejam ou não verdadeiros. (Grifos nossos)192 190 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (3ª Turma Recursal). Recurso Inominado. Reparação de danos. Alegação De Cobrança Vexatória em local de trabalho. Ausência de demonstração da prática de conduta hábil a ensejar o pagamento de indenização por danos morais. Exercício regular de direito. Sentença de improcedência mantida. Recurso Inominado nº: 005024971.2014.8.21.9000.Recorrente: Luis Humberto Cerezoli. Recorrido: LOJAS RENNER S/A. Relator: Roberto Arriada Lorea. 26 de março de 2015. JusBrasil: <http://tjrs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/177480367/recurso-civel-71005267380-rs/inteiro-teor-177480387>. Acesso em 25.abr.2015 191 BRASIL, Tribunal de Justiça do Paraná. Recurso inominado. Indenizatória. Abuso do direito de cobrança não comprovado. Ônus que compete ao autor. Danos morais indevidos. Sentença de improcedência mantida por seus próprios Fundamentos. Recurso desprovido. Recurso Inominado nº: 0037814-32.2013.8.16.0014/0. Recorrente: Tatiana Cristina Alves Ribeiro. Recorrido: BANCO ITAUCARD S.A. Relator: Renata Ribeiro Bau. 20 de setembro de 2014. JusBrasil: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=ABUSO+DO+DIREITO+DE+COBRAN%C3%87 A>. Acesso em 06.set.2015 192 BRASIL. Tribunal Regional Do Trabalho (1ª Turma Recursal). Dano moral. Divulgação desnecessária e abusiva de fatos desabonadores. Exercício irregular de direito. Reparação moral. É devida a reparação moral se o empregador que divulga de forma desnecessária e abusiva os fatos desabonadores imputados ao empregado, sejam ou não verdadeiros. Recurso Inominado nº: 011182010-011-18-00-0. Recorrente: Vinícius Barbosa Costa. Recorrido: Centro De Apoio Aos Pequenos. Relator: Mário Sérgio Bottazzo. 14 de outubro de 2010. JusBrasil: <http://trt18.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18970547/1118201001118000-go-01118-2010-011-18-00-0/inteiroteor-104219222.>.Acesso em 15.jun.2015 374 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Temos assim que o exercício regular de um direito se vincula essencialmente com o princípio da boa-fé, haja vista que ocorre quando há ruptura dos limites da ação de umas das partes para além do esperado ou permitido. Em contrapartida, o abuso de direito é a conduta que se vincula à quebra desse princípio, consistindo nas hipóteses em que o titular do direito, em que pese não o tenha violado, busca reparação judicialmente. Em se tratando de relações com partes hipossuficientes, em razão a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova, indiscriminadamente, essa prática é facilitada. 2.3 DO ROMPIMENTO DOS LIMITES IMPOSTOS Os limites legais neste ponto versam sobre a correta e adequada medida entre o caso e a reparação necessária. APELAÇÃO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS RESPONSABILIDADE CIVIL CARACTERIZADANEGATIVAÇÃO INDEVIDA - DANO MORAL PRESUMÍVEL - INDENIZAÇÃO DEVIDA MINORAÇÃO DO QUANTUM. - A fixação da indenização por danos morais pauta-se pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A finalidade da indenização é a de compensar o ofendido pelo constrangimento indevido que lhe foi imposto e, por outro lado, desestimular o ofensor a, no futuro, praticar atos semelhantes, não se podendo prestar, entretanto, para o enriquecimento desproporcional daquele. Nesse sentido haveria abuso de direto sempre quando a parte autora de uma demanda pleiteasse em juízo um valor exorbitante ou desproporcional à lesão. (Grifos nossos)193 Podemos citar aqui a banalização do dano moral, um pedido crescente e preocupante ao Poder Judiciário, como já manifestado pelos Tribunais Superiores. Nesta esteira, tomemos como exemplo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que realizou pesquisa com o objetivo de demonstrar o aumento do número 193 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (18ª Câmara Cível). Apelação - ação de indenização por danos morais - responsabilidade civil caracterizada- negativação indevida - dano moral presumível - indenização devida - minoração do quantum. Apelação Cível nº 021553348.2011.8.13.0145. Apelante: CASAS BAHIA COMERCIAL LTDA e outros. Apelado: Edilza Luna De Oliveira. Relator: Corrêa Camargo. 09 de abril de 2013. JusBrasil: <http://tjmg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/114869761/apelacao-civel-ac-10145110215533001-mg/inteiroteor-114869807>. Acesso em 04.mai.2015 375 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de demandas dessa natureza no estado, alertando os operadores do direito para o devido cuidado que tais demandas exigem: 194 Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu nota referente à elevação do número de demandas buscando indenização por dano moral: A dificuldade em estabelecer com exatidão a equivalência entre o dano e o ressarcimento se reflete na quantidade de processos que chegam ao STJ para debater o tema. Em 2008, foram 11.369 processos que, de alguma forma, debatiam dano moral. O número é crescente desde a década de 1990 e, nos últimos 10 anos, somaram-se 67 mil processos só no Tribunal Superior. O ministro Luis Felipe Salomão, integrante da 4ª Turma e da 2ª Seção do STJ, é defensor de uma reforma legal em relação ao sistema recursal, para que, nas causas em que a condenação não ultrapasse 40 salários mínimos — por analogia, a alçada dos Juizados Especiais —, o recurso ao STJ seja barrado. “A lei processual deveria vedar expressamente os recursos ao STJ. Permiti-los é uma distorção em desprestígio aos tribunais locais”, critica o ministro. 195 Sendo assim, notória a necessidade de cautela quanto aos pedidos desta natureza, para que não venha a ser deturpada a função social que representa a responsabilidade civil por danos morais, tornando-se um comércio de indenizações, gerando assim enriquecimento sem justa causa. 194 MACHADO, R. D. A banalização do instituto do dano moral. 2011. p. 50. Monografia (Bacharelado em Direito). Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba. Disponível em: < http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2012/04/a-banalizacao-do-instituto-do-dano-moral.pdf>. Acesso em 31.ago.2015. 195 STJ define valor de indenizações por danos morais. Revista Consultor Jurídico. 5 de setembro de 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-set-15/stj-estipula-parametros-indenizacoesdanos-morais>. Acesso em 07.set.2015. 376 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.4 DA VIOLAÇÃO DO DIREITO ALHEIO Conforme dito, para que haja direito de reparação deve haver primeiramente violação do direito protegido. O ingresso de uma demanda sem a existência de um direito violado implica, necessariamente, na tentativa de obtenção de vantagem econômica indevida. EMBARGOS INFRINGENTES –– EMBARGADOS QUE TINHAM AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA PARA PESQUISA DAS ÁGUAS – MATRÍCULA E ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA QUE RESSALVARAM O DIREITO DOS EMBARGADOS DE EXPLORAÇÃO DAS FONTES DE ÁGUA – DANO MORAL – ABUSO DO DIREITO DE PETIÇÃO – CONFIGURADO – EMBARGANTE QUE UTILIZOU DE MEIOS JUDICIAIS PARA OBSTRUIR O DIREITO DOS EMBARGADOS – QUANTUM INDENIZATÓRIOADEQUADO AO CASO EM EXAME - VOTO VENCEDOR MANTIDO – DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES. Compulsando os autos e lendo atentamente o voto majoritário, verifica-se que não houve apenas o exercício do direito de petição, restando caracterizado seu abuso. Há provas suficientes nos autos para verificar a existência de direito dos embargados a exploração exclusiva da fonte em questão. Em momento nenhum tal direito pode ser contestado ou afastado, uma vez que tanto a matrícula do imóvel quanto o contrato entabulado entre as partes reconhecem o direito em questão.196 SINDICATO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. INTERESSE INDIVIDUAL HOMOGÊNEO. RECLAMAÇÃO PROPOSTA EM NOME DE UM TRABALHADOR. POSSIBILIDADE. LITISPENDÊNCIA. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO. RECURSO DE REVISTA DESFUNDAMENTADO. SÚMULA De número 422 DO TST. O Tribunal Regional entendeu que o sindicato não tem legitimidade ativa para propor ação na defesa de interesses não passíveis de tratamento coletivo de apenas um substituído e também não pode pleitear parcelas já cobradas em favor do reclamante em outros processos. Verifica-se, entretanto, que o Sindicato não atacou o entendimento decisivo do Regional de que se trata de repropositura de ação, com o simples aproveitamento das peças processuais anteriormente apresentadas, configurando abuso do direito de ação. Assim, a ausência de impugnação desse aspecto no recurso de revista atrai a aplicação da Súmula de número 422 do TST . Recurso de revista não conhecido.197 196 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (8ª Câmara Cível). Embargados que tinham autorização do ministério de minas e energia para pesquisa das águas – matrícula e escritura pública de compra e venda que ressalvaram o direito dos embargados de exploração das fontes de água – dano moral – abuso do direito de petição – configurado – embargante que utilizou de meios judiciais para obstruir o direito dos embargados – quantum indenizatório adequado ao caso em exame - voto vencedor mantido – desprovimento dos embargos infringentes. Embargos Infringentes nº 5063458/03. Embargante: TRACTEBEL ENERGIA S.A. Embargado: José Canestraro E Outro. Relator: Desembargador João Domingos Küster Puppi. 11 de novembro de 2010. JusBrasil: <http://tjpr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19510007/embargos-infringentes-civel-ei-506345803-pr-0506345-803/inteiro-teor-104361245>. Acesso em 06.out.2015 197 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (2ª Turma). Sindicato. Substituição processual. Legitimidade ativa ad causam. Interesse individual homogêneo. Reclamação proposta em nome de 377 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O que ocorre hoje, e deve ser veemente rechaçado pelo Judiciário, é o abuso de direito, ou seja, justamente pelo fato de o Código de Defesa do Consumidor prever um ônus probatório maior ao fornecedor. Muitos consumidores ingressam com ações judiciais visando exclusivamente o benefício econômico, caracterizando o enriquecimento ilícito. Não havendo violação de direito não há como se falar em ação judicial, pois esta se presta tão somente à reparação pela violação deste. 2.5 ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA Esse elemento não se encontra expresso em nosso ordenamento, referindose à intensão do sujeito, ou seja, no momento do ingresso da ação o objetivo era o recebimento da justa reparação pelo seu direito violado, ou o recebimento de valores extraordinários, que o levariam a enriquecer indevidamente. A 4ª Vara Cível da Comarca de Suzano julgou improcedente no último dia (5), ação de indenização por danos morais movida por um consumidor que pretendia ser indenizado em 34 mil reais. Ele acabou sendo condenado por litigância de má-fé, e ainda a pagar as custas e despesas do processo, bem como os honorários advocatícios. O autor alega que compareceu até uma agência de veículos da requerida para comprar um carro, em que havia um anúncio afixado na fachada da loja com os seguintes dizeres: Deu a louca no gerente. Veículos a preço de banana. Após examinar os modelos disponíveis, ele se interessou por um deles, anunciado ao preço de R$ 0,01 (um centavo). Chamou então uma das vendedoras e mostrou interesse na aquisição do veículo. No entanto, ao lhe ser entregue a nota fiscal, pelo gerente, constava o valor de R$ 34.500,00. Perguntou sobre a diferença de preço, e o gerente disse que aquele anúncio servia apenas para atrair clientes e que não poderia vender o veículo por R$ 0,01. O autor invoca o artigo 30 do CDC, que, entende, lhe autoriza a exigir o que foi ofertado. Afirma que a conduta da ré lhe causou grande frustração e vários transtornos, reclamando uma indenização por danos morais no valor de R$ 34.000,00. Em sua sentença, o magistrado ressalta: É público e notório que nenhum veículo, nem mesmo de brinquedo, de plástico, é vendido por R$ 0,01. Nada há no mercado que se negocie por tal valor. Disso decorre que não houve a formação de uma justa expectativa, que pudesse vir a ser um trabalhador. Possibilidade. Litispendência. Abuso do direito de ação. Recurso de revista desfundamentado. Súmula Nº 422 do TST. Embargos de Declaração em Recurso de Revista nº 9586220125030064. Embargante: Sindicato Dos Trabalhadores Em Empresas Ferroviarias Dos Estados Do Espirito Santo E Minas Gerais. Embargado: VALE S.A. Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta. 25 de março de 2015. JusBrasil: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178789556/recurso-de-revista-rr-9586220125030064>. Acesso em 07.set.2015 378 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE posteriormente frustrada, frente à propaganda veiculada pela ré, como quer fazer crer o autor. O juiz afirma ainda: Não se ignora entendimentos no sentido que o que vincula o fornecedor não é sua vontade, mas sim a mensagem publicitária veiculada. Isso não ocorre, contudo, quando a publicidade não puder ser recebida como real pelo consumidor. Inexiste seriedade apta a obrigar a oferta. Tanto a lealdade como a boa-fé devem nortear todas as relações jurídicas, daí porque a melhor interpretação das relações consumeristas não prescinde da análise sob essa ótica. E devem existir perante os dois polos da relação. O magistrado conclui: Por fim, não se pode desprezar o fato que o autor, em flagrante litigância de má-fé, utilizou-se do processo para alcançar objetivo ilegal. O juiz pode e deve aplicar, até mesmo de ofício, a pena por litigância de má-fé, na forma do artigo 18 do CPC, como forma de desestimular a conduta reprovável da parte que, aventureira e irresponsavelmente, utilizase de instrumento idôneo, como é o processo, para tentar atingir objetivo moralmente ilegítimo. (Grifos nossos)198 No caso julgado, resta patente a tentativa de enriquecimento ilícito, haja vista que nenhum veículo jamais seria vendido por R$ 0,01 centavos. O autor desta demanda, não apenas tinha ciência desse fato, como buscou o Judiciário para receber indenização por danos morais com critérios totalmente desarrazoados. No Direito do Trabalho, o escritório de advocacia Percival Maricato publicou a obra Como Evitar Reclamações Trabalhistas, de autoria do advogado Percival Maricato, com exemplos de demandas absurdas, do ponto de vista jurídico, que demonstram, claramente, como muitos trabalhadores ingressam com reclamações com o único objetivo de angariar vantagem econômica indevida. 2- Um trabalhador ajuizou uma ação reclamando danos morais de uma fábrica, onde em decorrência do trabalho pegou “fimose”. O juiz não o condenou (nem ao advogado) por má fé, por achar que ele estava muito necessitado;199 No caso, observa-se com clareza que muitos juízes ainda se prendem à figura do trabalhador da época da criação das leis trabalhistas, não lhe imputando o ônus de suas condutas e incentivando o ajuizamento de demandas inúteis que apenas 198 Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé. JusBrasil. Disponível em: <http://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-porlitigancia-de-ma-fe>. Acesso em 18.jul.2015. 199 MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso em 11.ago.2015 379 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE sobrecarregam o Judiciário e impedem o rápido julgamento daqueles que efetivamente precisam da prestação jurisdicional. 3- Um barman de um bar de São Paulo ajuizou uma reclamação alegando não ter recebido a remuneração durante 18 meses. O bar só estava aberto a 6 meses e ele tinha trabalhado menos ainda; no mesmo local uma funcionária que trabalhou por período de 45 dias, com 6 faltas, tendo remuneração de R$ 700,00, saiu e reclamou, afirmando que foi demitida, pleiteando R$ 18 mil.200 No relato, é flagrante o abuso de direito e má-fé dos empregados que pleiteiam o recebimento de verbas das quais certamente têm ciência não serem devidas. Sequer houve trabalho para o caso do barman e a funcionária, após inúmeras faltas e um pedido de demissão, vem pleitear indenização alegando ter sido injustamente demitida. 15- Reclamações absolutamente caricatas, alucinadas, desequilibradas, acabam sendo comuns, por falta de punição dos responsáveis. O goleiro Bruno, do Flamengo, preso por assassinato, causador de enorme prejuízo moral e dano à imagem do clube, ajuizou reclamação pedindo indenização de R$ 10 milhões. Ao final aceitou receber R$ 13 mil. Em qualquer outra Justiça seria condenado por sucumbência proporcional e má fé. Às vezes a aventura dá certo. Um segurança de Xuxa conseguiu um acordo para receber R$ 4 milhões, um reclamante de Campinas após trabalhar na empresa por 4 anos, ganhou um valor de R$ 1,3 milhão, valor que em situação normal um cidadão, se nada de ruim acontecer, leva a vida inteira para acumular.201 A completa ausência de aplicação de punições ao abuso de direito, principalmente quando, falamos de partes hipossuficientes, tem incentivado o ajuizamento de demandas nas quais o único intuito é o enriquecimento ilícito e não a reparação por um direito violado, o que muitas vezes sequer ocorreu. Essa permissividade do Judiciário acaba por incentivar a prática do abuso do direito e tornam o exercício da justiça lento e precário àqueles que efetivamente necessitam do poder público na solução dos seus conflitos. 200 MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso em 11.ago.2015 201 MARICATO, Percival. ... 380 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.6 NEXO DE CAUSALIDADE O nexo de causalidade corresponde à adequação entre o ato praticado e o resultado discutido. Sergio Cavalieri Filho (CAVALIERI FILHO, 2012. p. 67) define nexo causal como sendo o elemento referencial entre a conduta e o resultado. É através dele que poderemos concluir quem foi o causador do dano. Com a análise do nexo de causalidade é possível (i) determinar a quem se deve atribuir um resultado danoso e (ii) é indispensável na verificação da extensão do dano a se indenizar, pois serve como medida da indenização (CRUZ. 2005. P.22). Assim, para que haja condenação de qualquer natureza é necessário que se apure primeiramente se: (i) houve ilícito, (ii) quem o cometeu, para que só então apurado, dentro dos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, o valor a ser arbitrado a título de reparação. A previsão deste instituto jurídico em nosso ordenamento jurídico tem previsão, principalmente, nos artigos nº 14 a nº 18, do Código de Processo Civil, e versa sobre atos que contrariem a boa-fé e a lealdade dos atos praticados por cada uma das partes. Os referidos artigos são também aplicáveis na Justiça do Trabalho, haja vista a inexistência de previsão expressa nas legislações dessa área, o que possibilita a aplicação por analogia do disposto na área cível. Entende-se assim que os Tribunais têm poderes para não apenas disciplinar o processo, como também os atos praticados pelas partes, sendo plenamente cabível a aplicação do instituto do abuso de direito no Direito Trabalhista, tal qual na área cível. No mesmo sentido já disse Calamandrei, citado por Manoel Antônio Teixeira Filho (TEIXEIRA FILHO. 1994. P. 94) o processo é um jogo onde a habilidade é permitida, mas a trapaça não. Conforme demonstrado anteriormente, a pura aplicação das normas se sua devida análise no tempo e espaço acabam por gerar um desequilíbrio entre as partes, quando em verdade a proteção legal visa justamente reestabelecer o 381 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE equilíbrio. Isso porque, no recorte deste estudo, verificamos que no decorrer do tempo as estruturas das relações trabalhistas e consumeristas foram alteradas com o advento de novas tecnologias e órgãos de fiscalização e proteção. As leis protecionistas, contudo, continuam sendo aplicadas com tamanha rigidez que ao invés de proteger acabam por desestimular o fornecedor/ empregador de cumpri-las, pois tem ciência de que se o consumidor/empregado ingressar com uma demanda judicial há grandes chances de condenação. O Poder Judiciário precisa admitir que a aplicação radical do Código de Defesa do Consumidor e da Consolidação das Leis Trabalhistas culminou na viabilização do ingresso de demandas em que nenhum direito foi violado, ou seja, o autor da ação visa tão somente angariar vantagem econômica, obviamente indevida. Já tratado desde o direito medieval, consiste basicamente na prática de atos com a intenção deliberada de causar prejuízos a outrem ou angariar para si benefícios econômicos. Em que pese a existência desde à época medieval, essa teoria acabou por se desenvolver apenas no século XX pela Doutrina e Jurisprudência. Emulação, nesse sentido, é o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. Quer dizer que em vez de ter o fim de tirar para si um benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem. Historicamente, a rixa, a briga, a altercação, são elementos característicos da vida medieval. Brigas de vizinhos, brigas de barões, brigas de corporações, nos seios das sociedades; brigas entre o poder temporal e o poder espiritual. Todas as formas de alterações a sociedade medieval conheceram, como não podia deixar de acontecer numa época de considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de prejudicar a outrem, ou seja, o direito como elemento de emulação (Barros, 2005).202 O abuso de direito aparece pela primeira vez em nosso ordenamento no Código Civil de 1916, em seu artigo nº 160, inciso I, e atualmente é regulamentado no Código Civil, no Código de Processo Civil, na Consolidação das Lei Trabalhistas, bem como Código de Ética da Ordem dos Advogados, e consiste, em linhas gerais, na quebra dos princípios basilares do Direito Brasileiro, tendo sido também incorporados no Código de Defesa do Consumidor. FERREIRA, Wallace. Abuso de direito – entre a teoria e a realidade. JusNavegandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26208/abuso-de-direito-entre-a-teoria-e-arealidade#ixzz3iHuAlC8k>. Acesso em 08.ago.2015. 202 382 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A problemática que se estabelece é que a prática totalmente impune deste ato é bastante presente, como mostra amplamente a jurisprudência. 2- Um trabalhador ajuizou uma ação reclamando danos morais de uma fábrica, onde em decorrência do trabalho pegou “fimose”. O juiz não o condenou (nem ao advogado) por má fé, por achar que ele estava muito necessitado;203 3- Um barman de um bar de São Paulo ajuizou uma reclamação alegando não ter recebido a remuneração durante 18 meses. O bar só estava aberto a 6 meses e ele tinha trabalhado menos ainda; no mesmo local uma funcionária que trabalhou por período de 45 dias, com 6 faltas, tendo remuneração de R$ 700,00, saiu e reclamou, afirmando que foi demitida, pleiteando R$ 18 mil.204 O mesmo pode ser visto no âmbito do Direito do Consumidor. O autor alega que compareceu até uma agência de veículos da requerida para comprar um carro, em que havia um anúncio afixado na fachada da loja com os seguintes dizeres: Deu a louca no gerente. Veículos a preço de banana. Após examinar os modelos disponíveis, ele se interessou por um deles, anunciado ao preço de R$ 0,01 (um centavo). Chamou então uma das vendedoras e mostrou interesse na aquisição do veículo. No entanto, ao lhe ser entregue a nota fiscal, pelo gerente, constava o valor de R$ 34.500,00. Perguntou sobre a diferença de preço, e o gerente disse que aquele anúncio servia apenas para atrair clientes e que não poderia vender o veículo por R$ 0,01. O autor invoca o artigo 30 do CDC, que, entende, lhe autoriza a exigir o que foi ofertado. Afirma que a conduta da ré lhe causou grande frustração e vários transtornos, reclamando uma indenização por danos morais no valor de R$ 34.000,00. Em sua sentença, o magistrado ressalta: É público e notório que nenhum veículo, nem mesmo de brinquedo, de plástico, é vendido por R$ 0,01. Nada há no mercado que se negocie por tal valor. Disso decorre que não houve a formação de uma justa expectativa, que pudesse vir a ser posteriormente frustrada, frente à propaganda veiculada pela ré, como quer fazer crer o autor. O juiz afirma ainda: Não se ignora entendimentos no sentido que o que vincula o fornecedor não é sua vontade, mas sim a mensagem publicitária veiculada. Isso não ocorre, contudo, quando a publicidade não puder ser recebida como real pelo consumidor. Inexiste seriedade apta a obrigar a oferta. Tanto a lealdade como a boa-fé devem nortear todas as relações jurídicas, daí porque a melhor interpretação das relações consumeristas não prescinde da análise sob essa ótica. E devem existir perante os dois polos da relação. O magistrado conclui: Por fim, não se pode desprezar o fato que o autor, em flagrante litigância de má-fé, utilizou-se do processo para alcançar objetivo ilegal. O juiz pode e deve aplicar, até mesmo de ofício, a pena por litigância 203 MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso em 11.ago.2015. 204 MARICATO, Percival... 383 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE de má-fé, na forma do artigo 18 do CPC, como forma de desestimular a conduta reprovável da parte que, aventureira e irresponsavelmente, utilizase de instrumento idôneo, como é o processo, para tentar atingir objetivo moralmente ilegítimo. (Grifos nossos)205 O fato dos magistrados admitirem ou relevarem esses fatos, em decorrência da histórica vulnerabilidade do trabalhador e consumidor, acaba por incentivar o ajuizamento de demandas desarrazoadas, que visam o enriquecimento ilícito e utilizam o Judiciário como uma espécie de loteria. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese o Judiciário esteja começando a reconhecer que o hipossuficiente, historicamente a parte vulnerável de uma relação, pode utilizar-se do tratamento benevolente da lei em seu favor, ajuizando demandas indevidas, que visam exclusivamente o enriquecimento ilícito, não há qualquer punição a esse abuso quando constatado. Isso pois, na maioria dos casos, às partes hipossuficientes é deferido o benefício da justiça gratuita, o que garante a isenção do pagamento das custas processuais e honorários de sucumbência. Como fica então o conflito entre o benefício da isenção de custas, que tem por finalidade garantir a todos o pleno acesso à justiça, e a condenação de litigância de má-fé, caracterizada quando o direito ao acesso à justiça é deturpado? Quando analisamos a condenação das partes, a jurisprudência majoritária atual defende que a condenação em litigância de má-fé não exclui o benefício da justiça gratuita, de modo que a parte, ainda que condenada por flagrante abuso de direito, em sendo beneficiária da justiça gratuita, não arcará com nenhum tipo de pagamento. RECURSO DE REVISTA. JUSTIÇA GRATUITA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. COMPATIBILIDADE. A condenação por litigância de má-fé não retira do reclamante o direito à concessão do benefício da justiça, pois as sanções aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra de caráter punitivo, que deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina a justiça gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da 205 Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé. JusBrasil. Disponível em: <http://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-porlitigancia-de-ma-fe>. Acesso em 18.jul.2015. 384 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE concessão desse benefício com a eventual litigância de má-fé do beneficiado. Precedentes. Recurso de revista a que se dá provimento.206 Ora, o Poder Judiciário não pode coadunar com a prática de atos ilícitos, vedados pelo próprio ordenamento jurídico. A justiça gratuita tem a finalidade de garantir a todos aqueles que necessitem da prestação jurisdicional acesso à justiça, mas não pode se prestar a financiar o abuso de direito. O fato do autor da demanda ser pessoa simples e hipossuficiente não lhe dá o direito de infringir a lei e agir de modo a prejudicar a outra parte ou mesmo tentar com um processo judicial obter qualquer tipo de enriquecimento. Mais recentemente, parte da jurisprudência se posiciona no sentido de que a concessão do benefício da justiça gratuita não isenta o pagamento da multa prevista pela litigância de má-fé, mas tão somente das custas processuais. MULTA E INDENIZAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. ARTIGOS 17 E 18 DO SUBSIDIÁRIO CPC (CLT, ARTIGO 769). JUSTIÇA GRATUITA. ISENÇÃO. NÃO ABRAGÊNCIA. O benefício da gratuita da justiça estampado nos termos do artigo 790, § 3º da CLT, tem por escopo apenas facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, garantindo com isso a isenção ao pagamento das custas e despesas processuais, não tendo o condão de abranger multas e indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos praticados pela parte postulante. Agravo de petição ao qual se nega provimento.207 206 BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho (6ª Turma). Recurso de revista. Justiça gratuita. Litigância de má-fé. Compatibilidade. A condenação por litigância de má-fé não retira do reclamante o direito à concessão do benefício da justiça, pois as sanções aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra de caráter punitivo, que deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina a justiça gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da concessão desse benefício com a eventual litigância de má-fé do beneficiado. Precedentes. Recurso de revista a que se dá provimento. Recurso de Revista nº 21184720125020001. Recorrente: Cryovac Brasil Ltda. Recorrido: Flávio Dos Santos Pereira. Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta. JusBrasil: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/172130051/recurso-de-revista-rr-21184720125020001>. Acesso em 25.abr.2015 207 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (11ª Turma). Multa e indenização por litigância de má-fé. Artigos 17 e 18 do subsidiário CPC (CLT, artigo 769). Justiça gratuita. Isenção. Não abrangência. O benefício da gratuita da justiça estampado Nos Termos Do Artigo 790, § 3º da CLT, tem por escopo apenas facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, garantindo com isso a isenção ao pagamento das custas e despesas processuais, não tendo o condão de abranger multas e indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos praticados pela parte postulante. Agravo de petição o qual se nega provimento. Agravo de Petição Nº 801009320085020 SP 00801009320085020061. Agravante: Silmara Cristina Carrapato. Agravado: Finasa Promotora Venda Ltda. Relator: Ricardo Verta Luduvice. 14 de maio de 2013. JusBrasil: <http://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24681897/agravo-de-peticao-agvpet-801009320085020-sp00801009320085020061-trt-2/inteiro-teor-112150906>. Acesso em 12.ago.2015 385 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E JUSTIÇA GRATUITA. COMPATIBILIDADE. Muito embora considerado litigante de má-fé, essa irregularidade na conduta do autor não pode obstar seu direito de acesso ao Judiciário, de maneira que a litigância de má-fé não é incompatível nem excludente da gratuidade da justiça, até porque a concessão do benefício não isenta o litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título.208 Assim sendo, ainda que se defira a justiça gratuita à parte autora, caracterizada a litigância de má-fé, não há que se falar em afastamento da multa aplicada, eis que o acesso à justiça não visa permitir o ingresso de demandas sem que sejam preenchidos os requisitos das condições da ação e pressupostos processuais, principalmente, quanto ao interesse de agir, ou seja, a existência de um fato danoso que justifique o ajuizamento da ação judicial. Quanto à punição dos advogados pela prática de atos de má-fé, a jurisprudência vem se posicionando no sentido de que a condenação deve se dar de forma solidária. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DO ADVOGADO DO RECLAMANTE. Ante a aparente violação do artigo 32 da Lei de número 8.906/94, nos termos exigidos no artigo 896 da CLT, provê-se o agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. RECURSO DE REVISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. O Tribunal Regional, baseado no exame da prova, concluiu pela não configuração do vínculo empregatício entre as partes. Assim, a análise dos elementos caracterizadores da relação de emprego (artigo 3º da CLT) depende de nova avaliação do conjunto fático-probatório sobre o qual se assenta o acórdão recorrido, procedimento vedado nesta instância recursal, nos termos da Súmula 126 do TST. Recurso de revista não conhecido. INDENIZAÇÃO E MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FE. ALTERAÇÃO DA VERDADE DOS FATOS. Em se tratando de penalidade imposta à parte que age com deslealdade processual, as causas as quais ensejam a aplicação da pena de litigância de má-fé, elencadas no artigo 17 do CPC, devem ser interpretadas restritivamente. O direito da parte de utilizar todos os recursos e meios legais para a discussão de seu direito não a exime de responsabilidade por danos processuais, quando verificadas as hipóteses 208 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (1ª Turma). Multa por litigância de má-fé e justiça gratuita. Compatibilidade. Muito embora considerado litigante de má-fé, essa irregularidade na conduta do autor não pode obstar seu direito de acesso ao Judiciário, de maneira que a litigância de má-fé não é incompatível nem excludente da gratuidade da justiça, até porque a concessão do benefício não isenta o litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título. Agravo de Instrumento em Recurso Ordinário nº 1289201100223002 MT 01289.2011.002.23.00-2. Agravante: Benedito da Silva Oliveira. Agravado: Centro De Processamento De Dados Do Estado De Mato Grosso – CEPROMAT. Relator: Desembargador Roberto Benatar. 14 de fevereiro de 2012. JusBrasil:< http://trt-23.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21278979/agravo-de-instrumento-em-recurso-ordinarioairo-1289201100223002-mt-0128920110022300-2-trt-23>. Acesso em 12.ago.2015 386 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE previstas no referido dispositivo legal. No caso, o Regional consignou que o reclamante alterou a verdade dos fatos, acarretando a aplicação da multa e da indenização previstas no artigo 18 do CPC, tendo como fundamento o artigo 17, II do CPC. Inexistência de violação do 5º, XXXIV, XXXV e LV da Constituição Federal. Arestos inespecíficos. Recurso de revista não conhecido. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DO ADVOGADO DO RECLAMANTE. Da leitura do artigo 32, parágrafo único, da Lei de número 8.906/94, observa-se ser vedada a condenação, solidária ou exclusiva, do advogado da parte por litigância de má-fé no mesmo processo em que ficou verificada a temeridade da lide. A análise relativa à má-fé do patrono deve ser apurada em ação própria na Justiça Comum. Há precedentes, inclusive desta Sexta Turma. Recurso de revista conhecido e provido.209 É dever dos patronos orientar as condutas dos seus clientes, bem como zelar pelas suas próprias condutas, não tumultuando o processo e agindo com lealdade aos princípios processuais e morais, assim como pela prática do expresso no Estatuto da Ordem dos Advogados, em seu artigo nº 32. A ausência de penalidades para o abuso de direito torna o Judiciário uma loteria, pois a parte beneficiária da justiça gratuita não terá nenhum ônus econômico para o ingresso da demanda. Ganhando recebe uma indenização. Perdendo não corre nenhum risco de desembolsar qualquer valor. É justamente por isso que, muitas pessoas se sentem até incentivadas a tentar a sorte, aumentando em muito o número de ações que tramitam no Judiciário, tornando-o parcimonioso, pois essas demandas abusivas, igualmente, tomam tempo do Judiciário, atrasando a prestação jurisdicional daqueles que dela realmente necessitam. Há muito, vem-se revendo o posicionamento doutrinário e jurisprudencial no que tange ao deferimento do benefício da justiça gratuita à parte hipossuficiente economicamente. Nesse sentido, acosta-se trecho de recente julgado da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos sob de número 020759260.2010.8.19.0001, no qual o Relator entendeu que a lei de assistência judiciária 209 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (6ª Turma). Agravo de instrumento. Recurso de revista. Multa por litigância de má-fé. Condenação solidária do advogado do reclamante. Recurso de Revista nº 693006520095150107. Recorrente: Ademir Do Nascimento. Recorrido: Walter Cruz Teixeira. Relator: Augusto César Leite de Carvalho. 17 de junho de 2015. JusBrasil: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/200534402/recurso-de-revista-rr-693006520095150107>. Acesso em 15.maio.2015 387 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE gratuita (Lei nº 1.060/50) não é aplicável quando houver litigância de má-fé por parte do postulante do benefício. (...) o litigante de má-fé não pode ser favorecido com os benefícios da gratuidade de justiça, devendo arcar com o pagamento de todos os ônus sucumbenciais, e não apenas a multa por litigância de má-fé. (...) como antes mencionado, a jurisprudência atual informa que a pena por litigância de má-fé não está inserida no rol de isenções previsto no artigo 3º da Lei 1.060/50. Todavia, e ressalvadas as respeitáveis posições contrárias, penso que o postulante inescrupuloso, que atua no processo de forma desleal, não pode ser premiado com qualquer benesse processual, como a isenção dos ônus sucumbenciais. Acredito que esse posicionamento deve ser revisto, como forma de desestimular o ajuizamento de ações irresponsáveis e aventureiras, praticamente a risco zero. (Grifos nossos).210 Os desembargadores da 7ª Câmara Cível, por unanimidade, acompanharam o voto do relator e condenaram a autora, Vera da Silva, a pagar, além da multa por litigância de má-fé, os honorários do advogado da empresa, reformando de ofício a sentença para afastar a gratuidade de justiça anteriormente deferida à parte autora. O Código de Defesa do Consumidor e a legislação trabalhista trouxeram consigo o princípio da vulnerabilidade. Este princípio visa garantir o bom relacionamento entre as partes consumidora/trabalhadora e fornecedora/empregadora na realidade fática, ou seja, o que objetiva é a obediência aos princípios da transparência, informação, lealdade e boa-fé nas relações econômicas consumeristas e trabalhistas. O que ocorre hoje, e deve ser veemente rechaçado pelo Judiciário, é o abuso de direito, ou seja, justamente pelo fato de o Código de Defesa do Consumidor e a Consolidação das Leis do Trabalho preverem um ônus probatório maior ao fornecedor/empregador. Muitos consumidores/ trabalhadores ingressam com ações judiciais visando exclusivamente o benefício econômico, o que caracteriza o enriquecimento ilícito. Temos assim que, quando for constatada a existência de práticas temerárias e abusivas, os magistrados devem, sim, afastar o benefício da justiça gratuita e 210 TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Gratuidade de justiça não se aplica nos casos de litigância de má-fé. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa. 23 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/55602>. Acesso em 31.mai.2015. 388 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE condenar a parte, ainda que hipossuficiente, ao pagamento das custas processuais, multa por litigância de má-fé e honorários de sucumbência. Apenas desta forma, teremos efetiva repressão à essa prática tão comum, a qual certamente contribui em muito com a sobrecarga do Judiciário. Ainda que a base sejam valores simbólicos, de modo a não prejudicar a sobrevivência da parte, a punição pecuniária é uma saída que certamente surtiria efeitos. Não se trata de cercear o direito ao pleno acesso à justiça ao hipossuficiente, que, muitas vezes, não possui condições de arca com as custas processuais, mas sim de coibir o ajuizamento de demandas inúteis, que não se prestam a outra coisa que não a obtenção de vantagem econômica indevida e ainda a absurda sobrecarga do Judiciário, que poderia estar atendendo qualquer outra demanda que efetivamente precisasse de sua prestação. REFERÊNCIAS CAVALIERE FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10 ed. São Paulo. Atlas, 2012, p. 67. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 22 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Parte Geral – vol. 1. 7 ed. Rio de Janeiro. Forense. 2004. p. 554-556. TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. A sentença no processo do trabalho. 4 ed. São Paulo. LTr. 1994. p. 94. FERREIRA, Wallace. Abuso de direito – entre a teoria e a realidade. JusNavegandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26208/abuso-de-direito-entre-a-teoria-e-arealidade#ixzz3iHuAlC8k>. Acesso em 08.ago.2015. MARICATO, Percival. Reclamações Folclóricas E Bizarras Na Justiça Do Trabalho. Maricato Advogados Associados. Disponível em: <http://www.maricatoadvogados.com.br/?p=1155>. Acesso em 11.ago.2015. Tribunal de Justiça de São Paulo. Consumidor é condenado por litigância de má-fé. JusBrasil. Disponível em: <http://tjsp.jusbrasil.com.br/noticias/100028763/consumidor-e-condenado-por-litigancia-dema-fe>. Acesso em 18.jul.2015. 389 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho (6ª Turma). Recurso de revista. Justiça gratuita. Litigância de má-fé. Compatibilidade. A condenação por litigância de má-fé não retira do reclamante o direito à concessão do benefício da justiça, pois as sanções aplicadas ao litigante de má-fé constituem regra de caráter punitivo, que deve ser interpretada restritivamente. Ademais, na legislação que disciplina a justiça gratuita, não há nenhuma previsão sobre a incompatibilidade da concessão desse benefício com a eventual litigância de má-fé do beneficiado. Precedentes. Recurso de revista a que se dá provimento. Recurso de Revista nº 21184720125020001. Recorrente: Cryovac Brasil Ltda. Recorrido: Flávio Dos Santos Pereira. Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta. JusBrasil: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/172130051/recurso-de-revista-rr21184720125020001>. Acesso em 25.abr.2015 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (11ª Turma). Multa e indenização por litigância de má-fé. Artigos 17 e 18 do subsidiário CPC (CLT, artigo 769). Justiça gratuita. Isenção. Não abrangência. O benefício da gratuita da justiça estampado Nos Termos Do Artigo 790, § 3º da CLT, tem por escopo apenas facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, garantindo com isso a isenção ao pagamento das custas e despesas processuais, não tendo o condão de abranger multas e indenizações aplicadas no transcorrer processual em razão dos atos praticados pela parte postulante. Agravo de petição o qual se nega provimento. Agravo de Petição Nº 801009320085020 SP 00801009320085020061. Agravante: Silmara Cristina Carrapato. Agravado: Finasa Promotora Venda Ltda. Relator: Ricardo Verta Luduvice. 14 de maio de 2013. JusBrasil: <http://trt2.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24681897/agravo-de-peticao-agvpet801009320085020-sp-00801009320085020061-trt-2/inteiro-teor-112150906>. Acesso em 12.ago.2015 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (1ª Turma). Multa por litigância de má-fé e justiça gratuita. Compatibilidade. Muito embora considerado litigante de má-fé, essa irregularidade na conduta do autor não pode obstar seu direito de acesso ao Judiciário, de maneira que a litigância de má-fé não é incompatível nem excludente da gratuidade da justiça, até porque a concessão do benefício não isenta o litigante de má-fé da multa que lhe é imposta a tal título. Agravo de Instrumento em Recurso Ordinário nº 1289201100223002 MT 01289.2011.002.23.00-2. Agravante: Benedito da Silva Oliveira. Agravado: Centro De Processamento De Dados Do Estado De Mato Grosso – CEPROMAT. Relator: Desembargador Roberto Benatar. 14 de fevereiro de 2012. JusBrasil: <http://trt23.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21278979/agravo-de-instrumento-em-recursoordinario-airo-1289201100223002-mt-0128920110022300-2-trt-23>. Acesso em 12.ago.2015 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (6ª Turma). Agravo de instrumento. Recurso de revista. Multa por litigância de má-fé. Condenação solidária do advogado do reclamante. Recurso de Revista nº 693006520095150107. Recorrente: Ademir Do Nascimento. Recorrido: Walter Cruz Teixeira. Relator: Augusto César Leite de Carvalho. 17 de junho de 2015. JusBrasil: 390 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/200534402/recurso-de-revista-rr693006520095150107>. Acesso em 15.maio.2015 TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Gratuidade de justiça não se aplica nos casos de litigância de má-fé. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa. 23 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/home//noticias/visualizar/55602>. Acesso em 31.mai.2015. 391 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 392 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A LUTA CONTRA BIOINVASÃO CAUSADA PELO USO DA ÁGUA DE LASTRO THE FIGHT AGAINST BIO INVASION CAUSED BY THE USE OF THE BALLAST WATER Rafael Joppert Carvalho de Souza211 Maria da Glória Colucci212 SUMÁRIO Resumo. 1 Introdução 2 Poluição e a Proteção Jurídica ao Meio 2.1 Princípios do Direito Ambiental 2.2.1 Princípios da Cooperação e Precaução 2.2.2 Princípio do Desenvolvimento Sustentável 2.2.3 Princípio Poluidor Pagador 2.2.4 Princípio da Cooperação Entre os Povos 3 Bioinvasão Pela Água de Lastro, a Conferência Internacional da Água de Lastro 2004 e Normam/20 3.1 Espécies Invasoras 3.1.1 Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei) 3.1.2 MexilhãoZebra (Dreissena polymorpha) 3.2 Convenção Internacional da Água de Lastro 2004 3.3 Normam 20/DPC 4 Considerações Finais. Referências. RESUMO A seleção do tema objeto deste artigo tem como objetivo estimular o estudo acerca dos riscos ao meio ambiente marítimo, em especial a invasão de espécies exóticas, por conta do uso da água de lastro sem o devido gerenciamento, bem como as principais medidas adotadas pela comunidade internacional em prol do combate a esta prática, que já é considerado uma das quatro maiores ameaças aos oceanos. Será apresentado o conceito de poluição e demonstrada a necessidade de tutela do meio ambiente através do Direito Ambiental e seus princípios. Em seguida, será realizado um estudo acerca dos riscos da bionvasão, onde serão apresentados alguns casos notórios. Por fim, serão analisadas duas das mais importantes ferramentas para o combate ao mal uso da água de lastro no Brasil: a Convenção da Água de Lastro de 2004 e a NORMAM 20/DPC. Palavras-chave: Água de lastro; Bioinvasão; Poluição marítima; Convenções internacionais; NORMAM 20/DPC. Aluno de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. [email protected] 212 Mestre em Direito Público (UFPR); Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Titular de Teoria Geral do Direito (Unicuritiba), Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae do Unicuritiba. [email protected] 211 393 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT The choice of the subject of this article has aims to stimulate the study regarding the risks to the maritime environment, specially the bio invasion, caused by the usage of the ballast water without a proper management, as well as the main actions taken by the international community in favor to the fight against this issue, that is already considered to be one of the four major treats to the oceans. It will be presented the concept of pollution and shown the need to safeguarding the environment by the environment law and its principles. Furthermore, there will be a study about the bio invasions, where it will be presented two of the main cases. Lastly two of the main tools against the damages caused by the misuse of the ballast water will be analyzed: The Ballast Water Convention of 2004 and the NORMAM 20/DPC. Keywords: Ballast water; Bio invasion; Maritime pollution; International conventions; NORMAN 20/DPC. 1 INTRODUÇÃO O lastro é utilizado para garantir estabilidade e segurança às embarcações marítimas, assim como a eficiência das operações de transporte. Desde o final do século XIX, com o advento dos cascos de ferro, que permitem a total vedação, a utilização de água marinha, por conta da facilidade de carregamento e descarregamento, passou a substituir os tradicionais sacos de areia e pedra e hoje é a modalidade mais comum de lastramento. Atualmente, o transporte marítimo é utilizado para transportar 80% das mercadorias no comércio internacional. Como consequência deste imenso fluxo de navios, estima-se que todo ano mais de 10 bilhões de toneladas de água de lastro, com todo seu material biológico são trazidas de regiões do planeta para outras, que possuem ecossistemas completamente diversos, causando grandes desequilíbrios ambientais. Ao longo de décadas, diversos casos de invasão de espécies – como o notório caso de invasão do mexilhão-zebra, que foi identificado pela primeira vez na década de 80, nos Estados Unidos e rapidamente se proliferou causando sérios danos ao ecossistema e um prejuízo estimado em mais de 100 milhões de dólares foi oriundo da água de lastro. Contudo, apesar de já ser apontada como um dos quatro maiores riscos aos mares e oceanos, conforme será visto adiante, a água de lastro só passou a ser normatizada pelo Direito Internacional em 1988, há pouco menos de 30 anos, 394 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE quando o tema passou a ser tratado e discutido em convenções internacionais. Destas, cumpre estudar a Convenção Internacional da Água de Lastro de 2004, que será abordada no presente estudo. Igualmente, será analisada a NORMAM/20, a legislação adotada no Brasil especificamente para combater os danos causados pela água de lastro em território nacional. O presente estudo tem, portanto, o intuito de abordar as principais ferramentas legislativas que visam gerenciar o uso da água de lastro no transporte marítimo. 2 POLUIÇÃO E PROTEÇÃO JURÍDICA AO MEIO AMBIENTE A interação com a natureza é, e sempre foi, um pressuposto para a existência do ser humano. É do meio ambiente que o ser humano extrai suas principais fontes de alimento, matéria para construção de abrigos e até geração de energia. Contudo, nem sempre desta interação com o meio natural resulta em algo positivo. Conforme a humanidade foi se desenvolvendo, na medida que novas tecnologias foram implementadas, percebeu-se o potencial lesivo que o homem pode gerar à natureza. Efeito estufa, causado pelos gases gerados por veículos automotores e grandes fábricas, águas de rios e mares contaminadas pelo despejo de esgoto, solos improdutivos por conta do uso de produtos químicos usados na agricultura. Todos esses são exemplos de como o ser humano prejudica o meio ambiente por conta da sua interação. E é esse dano causado que pode ser compreendido por poluição. No ordenamento jurídico brasileiro é trazida uma definição objetiva de poluição. A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, conhecida como Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, dispõe, em seu artigo 3º, que: III - poluição (é) a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; 395 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. A poluição é, portanto, todo desequilíbrio sofrido pelo ecossistema, ou as consequências negativas a ele causadas, em decorrência da interação dos seres humanos, com a natureza (LARA, 2000, p. 67). É exatamente por conta deste entendimento que notou-se a necessidade de regulamentar a interação do ser humano com a natureza ou, em outras palavras, tutelar o meio ambiente como um bem a ser protegido pela lei, “[...] estabelecendo valores jurídico-ambientais e estabelecendo sanções para toda pessoa física ou jurídica que ofendesse tais regras” (PETERS; PIRES, 2000, p. 67). No mesmo sentido, afirma o autor Bessa Antunes que “[...] a norma que, baseada no fato ambiental e no valor ético ambiental, estabelece mecanismos normativos capazes de disciplinar as atividades humanas em relação ao meio ambiente.” (ANTUNES, 2012. p. 6). Esta proteção é a espinha dorsal do denominado Direito Ambiental, que pode ser definido como o ramo da Ciência Jurídica, mais especificamente do Direito Público, que visa proteger, através de mecanismos legais, o meio ambiente (AMADO, 2014. p.40). No ordenamento jurídico brasileiro, suas bases estão no artigo 225213 da Carta Magna brasileira. Tem-se, portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito fundamental de todos os cidadãos, garantido pela Lei Maior brasileira. Tal condição eleva a importância da preservação da natureza, que deve ser observada ante à regulação das atividades humanas. Assim, pode-se concluir que o Direito Ambiental é o ramo que busca, através de normas jurídicas, regular o comportamento humano em sua interação com o meio ambiente. Nesse sentido, para que haja melhor compreensão acerca do tema, cumpre destacar os princípios desta importante disciplina jurídica. 213 CF, art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações 396 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 2.1 PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL Celso Antônio Bandeira de Mello, ensina que princípio corresponde aos mandamentos nucleares de um sistema, que serve como “[...] verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência” (MELLO, 1992, p. 299). A análise e estudo dos princípios é relevante, portanto, na medida em que traduzem uma visão macro do Direito estudado. Além disso, com maior compreensão dos princípios, perceber-se-á maior facilidade na compreensão de sua aplicação prática. Aliás, em se tratando de Direito Ambiental, os princípios se tornam ainda mais relevantes pelo fato das normas estarem sendo criadas para regular casos cada vez mais específicos e concretos, de tal sorte que a norma ambiental está perdendo características importantes como a abstração e a generalidade (ANTUNES, 2012. p. 22). A seguir, passa-se a expor alguns dos princípios do Direito Ambiental. 2.2.1 Princípios da Cooperação e Precaução O princípio da cooperação possui um forte vínculo com o princípio da prevenção. Tem base na Constituição Federal, em seu artigo 225, caput, que determina como dever de todos, tanto do Estado como da Sociedade, contribuir para a prevenção do meio ambiente, visto que essa função não é apenas do governo e sim de toda a população. Nesse mesmo sentido, é seguro afirmar que a proteção do ambiente é tarefa e finalidade do Estado ao mesmo tempo em que é uma obrigação de cada indivíduo (TEIXEIRA, 2006, 87). A constante busca do ser humano para o desenvolvimento de novas tecnologias, principalmente nas últimas décadas, trouxe consigo um imenso risco ao meio ambiente, na medida em que muitas vezes é impossível determinar os 397 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE impactos negativos que a nova descoberta pode causar ao planeta. Seja pelo processo produtivo, como ocorrem nas usinas termoelétricas, que liberam bilhões de toneladas de poluentes na atmosfera durante o processo de geração de energia elétrica pela queima de carvão, seja pelos resíduos gerados, que dificilmente são absorvidos pela natureza, como é o caso das embalagens de plástico, bastante utilizados pela indústria alimentícia. O avanço tecnológico, portanto, traz um interessante paradoxo: na medida em que é um elemento fundamental para garantir um aumento da qualidade de vida do ser humano, bem como uma maior longevidade é, também, justamente por conta da incerteza de seus impactos ambientais, que em grande parte são irreparáveis, um possível responsável pelo esgotamento de recursos naturais fundamentais para a manutenção da vida humana. Essa incerteza de como ações do ser humano impactarão no meio ambiente é o alicerce do que é chamado de princípio da precaução, através do qual são dadas diretrizes aos operadores do Direito, para que sejam mitigados os desastres ambientais. Trata-se de um princípio que estabelece a regra “in dubio pro ambiente” (CANOTILHO; LEITE, 2012, p. 62). Entende-se, portanto, que o princípio da precaução é de grande utilidade prática, tendo em vista que é aquele que garante que, antes de quaisquer atividades ou utilização de novas tecnologias, sejam realizados estudos de impacto à natureza, mitigando as chances de desastres naturais. 2.2.2 Princípio do Desenvolvimento Sustentável Decorre da análise do artigo 225 combinado com o artigo 170, VI214, ambos da Carta Magna brasileira. O desenvolvimento sustentável é a busca por um desenvolvimento socioeconômico, que satisfaça às necessidades da atual geração, sem, porém, com 214 CF, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. 398 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE isso ensejar o esgotamento dos recursos naturais, de forma que isso venha a prejudicar o desenvolvimento das futuras gerações. Há de se considerar que as necessidades humanas são ilimitadas, porém os recursos naturais não, eis então a importância deste princípio (AMADO, 2014, p. 88). Assim, é fundamental que as atividades econômicas sejam exercidas de maneira a promover a harmonia entre as questões econômicas e ambientais (FIORILLO; FERREIRA, 2009, p.14). Cumpre destacar que, da análise do princípio do desenvolvimento sustentável, o Direito Ambiental brasileiro não objetiva frear o crescimento econômico, mas sim fazer com que o crescimento e desenvolvimento ocorram de forma consciente, protegendo o meio ambiente e garantindo que os recursos naturais do planeta não se extingam no futuro. 2.2.3 Princípio Poluidor Pagador Trata-se de um princípio que é extraído, implicitamente, da leitura do parágrafo 3º, do artigo 225 da Lei Suprema215. Salienta-se que esse princípio não afirma que toda poluição ao meio ambiente é permitida, desde que haja uma compensação pecuniária para tal. Deve ser extraído o entendimento de que qualquer atividade econômica que, de maneira inevitável, acabe por causar algum tipo degradação ao meio ambiente somente poderá ser efetuada dentro dos limites estabelecidos pela legislação ambiental, devendo, inclusive, observar-se que para tais práticas é necessário o devido licenciamento (AMADO, 2014. p. 94). O que se objetiva através desse princípio é que o poluidor arque com eventuais prejuízos causados por ele, por conta de sua atividade econômica, para que evite-se, conforme dispõe o art. 4ª da Lei 6.938/91216, a “[...] privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos”. Bessa Antunes explica: 215 CF, art. 225, § 3º: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 216A imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos. 399 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Os recursos ambientais como água, ar, em função de sua natureza pública, sempre que forem prejudicados ou poluídos, implicam um custo público para a sua recuperação e limpeza. Este custo público, como se sabe, é suportado por toda a sociedade. Economicamente, este custo representa um subsídio ao poluidor. O PPP (princípio do poluidor pagador) busca, exatamente, eliminar ou reduzir tal subsídio a valores insignificantes. (ANTUNES, 2012. p. 53) Desta forma, a aplicação prática do princípio do poluidor pagador se faz extremamente necessária, visto que, além de proteger os custos públicos de arcar com eventuais prejuízos causados pela atividade privada, serve, também, como uma forma de estimular os empresários a buscarem alternativas menos danosas ao meio ambiente e que, consequentemente, causarão menos prejuízos a estes empreendedores. 2.2.4 Princípio da Cooperação Entre os Povos Tendo em vista que os danos causados por determinado país, podem causar prejuízos para toda a população mundial, os cuidados com o meio ambiente não devem possuir limites geopolíticos. Essa noção básica é o alicerce para que sejam celebrados diversos tratados internacionais de cunho ambiental, que serão abordados mais adiante na presente pesquisa. Um exemplo de como o Direito brasileiro adota essa política de colaboração é o artigo 77 da lei 9.605/1998217. Inclusive, com relação ao tema, Amado explica “[...] que este princípio foi elevado pelo poder constituinte originário ao status de princípio fundamental que 217 Art. 77. Resguardados a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, o Governo brasileiro prestará, no que concerne ao meio ambiente, a necessária cooperação a outro país, sem qualquer ônus, quando solicitado para: I - produção de prova; II - exame de objetos e lugares; III - informações sobre pessoas e coisas; IV - presença temporária da pessoa presa, cujas declarações tenham relevância para a decisão de uma causa; V - outras formas de assistência permitidas pela legislação em vigor ou pelos tratados de que o Brasil seja parte. 400 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE deverá nortear as relações internacionais do Brasil, consoante insculpido no artigo 4.º, IX218, da Lei Maior” (AMADO, 2014. p. 98). Em suma, pela aplicabilidade deste princípio, nota-se a atitude positiva do Brasil na participação de acordos que visam o bem estar social na perspectiva global, através da aceitação de normas em comum, desde que resguardada, entretanto, a soberania do País. Tendo em vista o objeto do presente estudo, o princípio da cooperação entre povos é extremamente importante no combate à bioinvasão de espécies pela água de lastro, na medida em que permite alicerçar a participação do Brasil em tratados internacionais, como a Convenção da Água de Lastro de 2004, que será analisada mais adiante. 3 BIOINVASÃO PELA ÁGUA DE LASTRO: A CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA ÁGUA DE LASTRO 2004 E A NORMAM/20. 3.1 ESPÉCIES INVASORAS A vida no planeta terra como hoje é conhecida é fruto de um longo processo de evolução, que se iniciou há aproximadamente 4,6 bilhões de anos: os primeiros seres vivos eram espécies microscópicas e unicelulares que lentamente foram evoluindo até atingirem o tamanho em complexidade dos tempos atuais. Diferentes partes do planeta Terra possuem diferentes características da natureza, como o clima, umidade, acidez da água, pressão atmosférica etc. E é graças a essa imensa variedade de condições ambientais que hoje existem incontáveis formas de vida, conhecida como biodiversidade, ou seja, “a biodiversidade pode ser definida como a variação biológica de determinado lugar ou, em termos mais genéricos, como o conjunto de diferentes espécies de seres vivos de todo o planeta” (VARELA; FONTES; ROCHA, 1998, p. 20). 218 CF, Art. 4º, IX: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; 401 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Durante o processo evolutivo, na medida em que se espalhavam pelo globo terrestre, as espécies foram se adaptando ao ambiente e adquirindo características físicas e biológicas próprias219. Com o passar do tempo a vida na Terra se auto regulou, até que fossem formados os ecossistemas atuais. Assim, regiões tropicais ou polares, chuvas ou secas, com mares rasos ou profundos, com ou sem atividades vulcânicas, todas estas possuem animais, plantas e até seres microscópicos adaptados aos seus respectivos ambientes ao longo deste longo processo de evolução. Diferentes espécies, de diferentes regiões possuem características próprias que as permitem viver de forma harmoniosa com o ambiente e com o ecossistema local. E, com efeito, há de se destacar que a recíproca também é verdadeira: na medida em que os diversos ecossistemas foram se desenvolvendo por todo o mundo, a interação dos seres vivos também alterou as condições físicas do meio ambiente. Um exemplo é a maneira com que diferentes espécies de algas alteram a cor dos mares e oceanos. Outro exemplo, ainda mais evidente, é como os seres humanos alteraram a paisagem do planeta, substituindo o verde das florestas pelas grandes metrópoles. Aliás, a maneira como o ser humano e o meio ambiente se adequaram um ao outro é bastante curiosa e peculiar. O homem passou por mudanças físicas para se adaptar ao seu habitat natural. Cor da pele, estatura, quantidade de pelo no corpo e até o sistema digestivo, tudo se adaptou de acordo com a respectiva região do planeta. Da mesma forma, condições naturais influenciaram a maneira como o ser humano adaptou o ambiente a si próprio. Nas regiões mais secas, por exemplo, o homem se viu obrigado a construir sistemas de irrigação para trazer a água de regiões onde ela é mais abundante. Nos locais onde há maior atividade sísmica, as construções são preparadas para resistir aos terremotos. Onde existiam rios, foram construídas usinas hidrelétricas, onde existiam áreas planas, com grande intensidade dos ventos, construíram-se usinas Os referidos autores completam afirmando que “a existência de maior ou menor número de espécies em determinado lugar depende de diversos fatores, como a temperatura, a umidade, o solo, a quantidade de rios, a interferência humana, entre muitos outros. As regiões que têm maior número de fatores favoráveis, por consequência, têm maior número de espécies, maior biodiversidade. 219 402 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE eólicas. Igualmente, nas regiões costeiras, aproveitaram-se as condições naturais para a construção dos portos. Ou seja, pode-se dizer que se hoje existe um equilíbrio entre o ambiente e os seres que nele habitam, este é o resultado de um longo período de evolução, adaptação de um ao outro. Entender esse equilíbrio que os ecossistemas hoje possuem é fundamental para que se compreenda o maior risco trazido pelo uso descontrolado da água de lastro: a introdução de espécies invasoras. A operação de carregamento e descarregamento da água de lastro é bastante simples: a embarcação abre comportas que permitem a entrada da água dos portos de origem para que estas preencham seu compartimento de lastro. Ao chegar ao porto de destino, a embarcação, na medida em que vai sendo carregada, bombeia a água para fora esvaziando o referido compartimento. O grande problema é que a água utilizada para lastrear muitas vezes contém espécies de seres vivos, como crustáceos, algas e até pequenos peixes, que acabam sendo introduzidas em ambientes (COLLYER, 2007, p. 147). Ao se encontrarem em um novo habitat, as espécies invasoras se deparam com um ecossistema totalmente diverso e em muitos casos não encontram predadores naturais. Logo, começam rapidamente a se multiplicar e, por consequência, desequilibram o ecossistema local. A introdução de uma diferente espécie de alga, por exemplo, pode perfeitamente alterar as propriedades físicoquímicas da água, tornando-a imprópria para que peixes locais nela sobrevivam (VARELLA; FONTES; ROCHA, 1998, p. 34.). Os riscos de dano envolvendo a bioinvasão são de curto, médio e longo prazo. No primeiro caso, a introdução de espécies exóticas pode causar um prejuízo econômico à comunidades locais, que dependam da pesca, por exemplo. Em médio prazo, existe o risco de extinção de espécies que possam não resistir a concorrência dos novos “visitantes”. Por fim, a longo prazo, há o risco da homogeneização de espécies ao longo do globo terrestre, uma vez que já em 1998, segundo estudos, “[...] a extinção (tinha) procedido na faixa dos 1.000 a 10.000 vezes sua taxa de referência nos últimos 65 milhões de anos.” (VARELLA; FONTES; ROCHA, 1998, p. 28.). 403 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE A água de lastro, com o grande aumento de fluxo dos transportes marítimos e com advento de tecnologias que possibilitaram o aumento das embarcações nas últimas décadas (ZANELLA, 2010, p. 64), tornou-se um dos maiores vetores de espécies invasoras. A seguir, para trazer maior compreensão a respeito do tema, serão apresentados alguns casos notórios de invasão de espécies que foram comprovadamente oriundas da água de lastro. 3.1.1 Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei) O mexilhão dourado é um molusco aquático oriundo da parte sul do continente asiático. A espécie é conhecida pela capacidade de adaptação e pela rapidez de sua infestação: começam a reprodução com cerca de um mês de vida, quando tem pouco mais de 0,5 cm. O período de vida médio destas criaturas é de aproximadamente 3 anos (COLLYER, 2007, p. 148). Apesar de atingirem um tamanho de 3 ou 4 centímetros na fase adulta, em sua fase larval o mexilhão dourado é tão pequeno que não pode ser visto a olho nu. Isso significa que cada carregamento de água de lastro pode transportar uma grande quantidade, o que faz com que a invasão deste tipo de criatura seja bastante agressiva. Durante o seu desenvolvimento, a larva do molusco se fixa em objetos sólidos e logo passa tanto a crescer quanto a se reproduzir rapidamente, resultando em uma imensa colônia de “massa incrustante”. (ZANELLA, 2010, p. 83): Ao serem introduzidos em um novo ecossistema, o mexilhão dourado não encontra predadores e por isso seu desenvolvimento é extremamente voraz e as consequências podem causar grande prejuízo. Quando se fixam em tubulações, podem acarretar no seu entupimento, por exemplo. Quando se fixam em turbinas de grande usinas hidrelétricas o prejuízo pode ser ainda maior, tendo em vista que a limpeza e manutenção geram custos extraordinários às companhias, que direta ou indiretamente são repassados ao consumidor final. Além das prejuízos financeiros, o mexilhão dourado causa um imenso estrago à natureza, na medida em que quebra o equilíbrio do ecossistema local. Uma das grandes consequências é a alteração das características físico-químicas da água, pelo fato de ser uma espécie filtradora (ZANELLA, 2010, p. 84). 404 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O outro grande dano causado ao ambiente é a o prejuízo acarretado à cadeia alimentar. Algumas espécies locais eventualmente podem passar a se alimentar do mexilhão dourado e excluir de sua dieta as e outras espécies que costumavam consumir, resultando no aumento desproporcional da população. Acredita-se que sua entrada, por volta de 1991, na América do Sul tenha ocorrido inicialmente pela Argentina, através de água de lastro oriunda de embarcações chinesas. Logo a espécie se espalhou por vários países sulamericanos, inclusive o Brasil. A principal causa para esse rápido avanço foi a falta de políticas comum aos países da região para combate de espécies exóticas. (ZANELLA, 2010, p.85). O Brasil, foi igualmente incapaz de conter seu avanço e logo o molusco invasor pode ser localizado em diversos estados do País. Os prejuízos foram imensos. Um bom exemplo foram os danos causados àquela que era até então a maior usina hidroelétrica do mundo, Itaipú. A presença do mexilhão dourado em suas turbinas gerou um aumento nas custas de manutenção que atingiram valores estratosféricos: mais de um milhão de dólares por dia (COLLYER, 2007, p.148). Custo este que foi repassado à população. 3.1.2 Mexilhão-Zebra (Dreissena polymorpha) O molusco conhecido popularmente como mexilhão-zebra recebe esse nome por conta de suas conchas listradas em branco e preto, que na fase adulta raramente ultrapassa os 0,5 centímetros de comprimento. Natural do Mar Cáspio, foi detectado no início da década de 1980 na Região dos Grandes lados, localizada próxima à fronteira dos Estados Unidos da América com o Canadá e tem sua invasão atribuída à água de lastro (ZANELLA, 2010, p. 82). As consequências de sua introdução nesse ambiente exótico causou uma série de consequências negativas em questões ecológicas, econômicas e diretamente relacionadas à saúde e bem estar dos seres humanos. Por ser uma espécie filtradora, causou a redução de plânctons nativos, o que afetou drasticamente a cadeia alimentar da região, causando uma grande redução na quantidade de peixes que eram importantes para a pesca local. Além disso, no 405 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE processo de filtração o mexilhão-zebra acaba por acumular em seu tecido uma quantidade de poluição orgânica que pode chegar a 300.000 vezes os níveis das águas locais. Parte desse acúmulo de material poluente acaba sendo eliminado de volta ao ambiente e, ao ser consumida por outras espécies acaba por contaminá-las. Se consumidas, essas espécies contaminadas podem ser bastante prejudiciais à saúde humana. Assim como outras espécies de moluscos, também, se fixa em qualquer superfície dura para logo começar a se multiplica. Contudo, uma característica única faz dessa espécie diferente das demais e acaba por torná-la uma invasora bastante agressiva: o mexilhão-zebra tem a capacidade de se fixar na massa incrustante formada por outras espécies de moluscos. O resultado é a diminuição de espécies nativas menos resistentes, que podem eventualmente até acabar sendo completamente eliminadas. Nos Grandes Lagos, o mexilhão-zebra não encontrou predadores naturais e logo sua multiplicação acelerada causou grandes prejuízos, quando a espécie começou a bloquear passagens de água, bombas e dutos de refrigeração industriais. Em menos de 10 anos após sua introdução na região, o mexilhão-zebra já havia se espalhado por outros lagos e começou a chamar a atenção das autoridades locais. Embora o governo norte-americano tenha investido grande quantidade de dinheiro para combater o avanço do mexilhão-zebra, os resultados foram frustrantes (ZANELLA, 2010, p.62). Os impactos causados pelo mexilhão-zebra na América do Norte foram imensos e até hoje pode ser percebidos. Contudo, algo positivo pode ser extraído: por ter sido o primeiro caso notório de invasão de espécie, foi também um dos mais importantes, vez que chamou a atenção do mundo sobre os potenciais riscos deste tipo de poluição e forçou o mundo a tomar medidas específicas para o seu combate, conforme será a seguir. 406 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3.2 CONVENÇÃO INTERNACIONAL DA ÁGUA DE LASTRO 2004 Confirme dito, ao perceber os riscos decorrentes do uso da água marítima como objeto de lastreamento das embarcações, as nações de todo o mundo passaram a tomar medidas para mitigar tais riscos e proteger a humanidade. Tratados internacionais e normas reguladoras locais foram adotadas por diversos países, numa tentativa de se controlar os potenciais danos decorrentes do alto fluxo de navios entre nações. É seguro afirmar que, dentre as principais convenções envolvendo o Direito Marítimo, a mais importante, em se tratando de água de lastro, é a Convenção Internacional sobre o Controle e Gestão da Água de Lastro e Sedimentos de Navios. Assinada em fevereiro de 2004, na cidade de Londres, Inglaterra, onde é localizada a sede da Organização Marítima Internacional (“IMO”)220, foi realizada a Conferência Internacional sobre a Gestão da Água de Lastro de Navios. Participaram desta Conferência representantes de 74 países, um representante da IMO, bem como 18 membros de membros organizações não governamentais. Como resultado, foi adotada a Convenção Internacional sobre o Controle e Gestão da Água de Lastro e Sedimentos de Navios. A referida Convenção dá diretrizes aos Estados signatários, para que os navios em tráfego internacional sejam obrigados a seguir determinados padrões na manipulação da água de lastro e sedimentos, que variam de acordo com o plano de gestão do navio. As embarcações deverão também manter um livro de gerenciamento, bem como um Certificado Internacional de Gestão de água de lastro221. Outra importante medida estabelecida, é aquela que determina que os navios em trânsito troquem a água de lastro a pelo menos 200 milhas náuticas, em águas com pelo menos 200 metros de profundidade antes de entrar em águas territoriais de outras nações, anulando as chances de introdução de espécies exóticas, vez que a salinidade das águas em alto mar é relativamente elevada, se comparada com 220 IMO é uma agência especializada, ligada às Nações Unidas, responsável por aumentar a segurança marítima e prevenir a poluição causada por navios. 221 Trata-se de um documento emitido nos termos da Convenção da Água de Lastro, de 2004, que certifica que o navio foi devidamente vistoria e que está em conformidade com as exigências e requisitos da Convenção. 407 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE águas costeiras – por conta do desaguamento dos rios de água doce. As espécies costeiras não sobrevivem ao nível de salinidade em alto mar, e vice-versa (ZANELLA, 2010, p.78). Embora tenha contado com a participação de um grande número de países, a Convenção não passou a vigorar de maneira imediata, por conta do que está disposto em seu art. 18222, que determina que a Convenção só passará a ser mandatória, quando ao menos 35 Estados forem signatários e que a frota mercante desses países represente, no mínimo, de 35% da frota mundial Mesmo passados cerca de onze anos desde o acontecimento da Conferência da Água de Lastro em Londres, esta permanece aguardando para que passe a produzir efeitos em nível internacional. Embora já se tenha atingido o número mínimo de países signatários, até o dia 01 de novembro de 2015 eram 44, a frota mercante combinada destes países ainda era suficiente para que o mínimo estabelecido de 35% fosse atingido, sendo que até está mesma data esse percentual chegava a 32,89. Todavia, esse fato não torna a Conferência da Água de Lastro de Londres menos importante. Embora ainda não esteja sendo mandatória, nada impede que os países que aderiram à Convenção implementem tais regras em seus territórios. O Brasil não só foi o segundo signatário da Convenção, sendo antecedido somente pela Espanha, como também, já no ano seguinte, aprovou a NORMAM/20, que até o presente momento é a maior ferramenta normativa brasileira no combate aos males causados ao meio ambiente pela água de lastro, conforme será demonstrado a seguir. 3.3 NORMAM 20/DPC Conforme visto, embora o Brasil tenha aderido à Convenção Água de Lastro 2004, esta ainda não entrou em vigor, pois ainda não atingiu a porcentagem mínima 222 Artigo 18 Entrada em vigor: 1- A presente Convenção entrará em vigor 12 meses após a data em que não menos do que trinta Estados, cujas frotas mercantes combinadas constituam não menos que trinta e cinco por cento da arqueação bruta da frota mercante mundial, tenham assinado a mesma sem reservas no que tange a ratificação, aceitação ou aprovação, ou tenham entregue o instrumento de ratificação, aceitação, aprovação, ou adesão requerido em conformidade com o Art. 17. 408 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE da frotas mundial de navios. Entretanto, conforme já citado acima, cabia a cada país optar pela aplicação das regras dentro de seu próprio território. Desta forma, em julho de 2005, por meio da Portaria 52, a DPC aprovou a NORMAM 20/DPC, que até o presente momento é a maior ferramenta normativa brasileira no combate aos males causados ao meio ambiente pela água de lastro. A NORMAM 20 deve ser seguida por quaisquer embarcações que utilizarem portos ou trafegarem em águas jurisdicionais brasileiras. Traz importantes determinações, como a obrigação das embarcações realizarem a troca da água de lastro a pelo menos 200 milhas náuticas, em águas com pelo menos 200 metros de profundidade, sendo que essas trocas deverão ser realizadas com uma eficiência mínima de 95% (ZANELLA, 2010, 87). Tal medida, seguindo as diretrizes da Convenção da Água de Lastro de 2004, visa impedir que águas de regiões exóticas, que possivelmente estejam transportando material biológico ou contaminado, adentre em águas brasileiras, minimizando o risco de invasão de espécies e propagação de epidemias. A legislação brasileira tem se mostrado bastante rígida no tratamento da poluição causada pela água de lastro. O Brasil é signatário de grandes conferências internacionais a respeito do tema e possui normas e regulações que responsabilizam, inclusive de forma criminal, aqueles que deixarem de cumpri-las. Contudo, o combate a este mal que ameaça o meio ambiente e a saúde do ser humano não pode se limitar apenas à edição de normas. É necessário que se faça cumprir a regra. E não há melhor maneira de garantir o efetivo cumprimento, do que através de um bom processo de fiscalização. Dentre os procedimentos de fiscalização, cabe à Autoridade Marítima verificar se o Plano de Gerenciamento dos Navios está de acordo com as exigências da NORMAM 20, verificar se os Relatórios de Troca da Água de Lastro estão devidamente preenchidos e a validade do Certificado Internacional de Gestão da água de lastro (ZANELLA, 2010, p.108). Contudo, uma fiscalização com tamanha responsabilidade não pode se limitar somente à análise de papéis. A NORMAM 20 prevê a possibilidade da Autoridade Marítima de coletar amostras da água de lastro e testá-las para que seja 409 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE comprovado que, de fato, a troca da água de lastro foi realizada de acordo com as normas. Todavia, nem sempre essa verificação física, através do teste da água, é realizada. A falta de pessoal especializado, os custos gerados ou ainda o tamanho da área a ser fiscalizada e o grande números de portos existentes no Brasil tem criado verdadeiras barreiras para a efetiva aplicação das normas (SILVA; SOUZA, 2004, p.6). Desta forma, pode-se concluir que embora o Brasil seja bastante avançado para o gerenciamento e controle, a maneira ineficiente com que as fiscalizações são realizadas, ainda deixa as costas brasileiras e a região portuária suscetíveis aos riscos trazidos pela água de lastro. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Há séculos que o comércio marítimo entre nações faz parte da história da humanidade e, até hoje, ocupa uma importante posição para o desenvolvimento socioeconômico de vários países. Contudo, o advento das embarcações com casco de aço, que permitiram o uso da água como material para lastreamento, trouxe consigo uma consequência, que hoje já é uma das maiores ameaças ao ambiente marinho: a invasão de espécies exóticas e a propagação de micro-organismos patogênicos. Diversos casos de invasão, como o mexilhão-zebra, que causou imensos prejuízos, ou o surto de cólera, que custou milhares de vidas na América do Sul são fortes exemplos dos perigos oferecidos. Por conta do seu potencial destrutivo, o uso da água de lastro sem o gerenciamento apropriado chamou a atenção das lideranças mundiais que vem aderindo, em maior ou menor escala, meio de combate para este mal. Conferências e tratados internacionais vêm sendo realizados exclusivamente com o intuito de mitigar tais riscos. O Brasil é um país com uma imensa faixa litorânea, o que lhe garante uma riquíssima biodiversidade e um grande potencial para se tornar uma potência do comércio exterior mundial. 410 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Entretanto, o vasto litoral brasileiro, também, torna o país extremamente vulnerável aos riscos trazidos pela grande movimentação de navios que transitam diariamente em seu território. Talvez por esse motivo que o Brasil seja um dos países do mundo cuja legislação versando sobre o controle da água de lastro seja uma das mais avançadas do mundo, bem como é “presença garantida” nas grandes conferências globais sobre o tema. Nesse sentido o País inclusive já sediou importantes eventos como o RIO 92, além de ter sido o segundo a aderir a Convenção da Água de Lastro de 2004. No âmbito nacional, o Brasil vem mostrando firmeza no combate ao mal uso da água de lastro, com a instituição da NORMAM 20 e com avançadas e rígidas leis ambientais, que preveem inclusive a prisão de responsáveis por danos ao meio ambiente. Todavia, ainda há muito progresso a ser feito, nesse sentido. As leis firmes e avançadas não terão a devida eficácia para combater o uso descontrolado da água de lastro enquanto as fiscalizações nos portos nacionais não tiveram o mesmo vigor e rigidez. Ademais, como foi demonstrado, a invasão de espécies é um problema que não conhece territórios. O caso do mexilhão dourado, que adentrou na América do Sul pelo território argentino, se tornou um grande problema no Brasil. Desta forma, para que a batalha contra a poluição causada pela água de lastro seja vencida, é extremamente importante que todas as nações se unam para aderir a essa batalha. Afinal, o que se busca é que o meio ambiente do planeta Terra continue saudável e protegido para todos. REFERÊNCIAS AMADO, Frederico. Direito Ambiental Esquematizado. 5 ed. São Paulo: Método, 2014 ANTUNES, Paulo de Bessa Antunes. Direito Ambiental. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2012 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. DF: Senado, 1998. 411 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2012 COLLYER, Wesley O. Água de lastro, bioinvasão e resposta internacional. Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, v. 9, nº 84, abr./maio, 2007. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia: Tutela Jurídica da água, do petróleo e do biocombustível. São Paulo: Saraiva, 2009 IMO – International Maritime <http://www.imo.org/en/Pages/Default.aspx>. Organization. Disponível em MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1992. PETERS, Edson Luiz; PIRES; Paulo de Tarso de Lara. Manual de Direito Ambiental. Curitiba: Juruá, 2000. SILVA, Julieta Salles Viana da; SOUZA, Rosa Corrêa da Luz de. Água de Lastro e Bioinvasão. Rio de Janeiro: Interciência, 2004. TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. VARELLA, Marcelo Dias; FONTES, Eliana; ROCHA, Fernando Galvão da. Biossegurança & Biodiversidade: Contexto Científico e Regulamentar. Belo Horizonte: Del Rey, 1998 ZANELLA, Tiago Vinicius. Água de Lastro: um problema ambiental global. Curitiba: Juruá, 2010. 412 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO: O FUNDAMENTO LIBERAL DOS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NEGATIVE INCOME TAX: THE LIBERAL FOUNDATION OF INCOME TRANSFER PROGRAMS Rayza Maiczak Cardoso223 Nelson Souza Neto224 SUMÁRIO Resumo 1 Introdução 2 Da Intervenção Estatal 2.1 Pressupostos Econômicos e Políticos 2.1.1 Limitações à Liberdade e a Legitimação do Intervencionismo 2.2 Pressupostos de Justiça 2.2.1 Justiça e o Direito 3 Papel dos Tributos na Intervenção Estatal 3.1 Limitações ao Ato de Tributar 3.1.1 Princípio da Igualdade 3.1.2 Capacidade Contributiva 3.1.2.1 Capacidade contributiva nos impostos extrafiscais e indiretos 3.1.3 Princípio da Redistribuição 4 Imposto de Renda Negativo 4.1 Conceito Inicial: Milton Friedman 4.2 Variações e Críticas ao IRN 4.3 Programas Similares ao IRN nos Estados Unidos 4.4 Programas Similares ao IRN no Brasil 5 Conclusão. Referências RESUMO O presente trabalho visa apresentar o instituto do Imposto de Renda Negativo, como um programa de transferência de renda apontado por vertentes políticas liberais. Pretende-se destacar, portanto, a possível convergência entre o estado mínimo e a realização de uma distribuição de renda. Inevitavelmente expõe-se, também, os aspectos relacionados à justiça e a necessidade dos valores éticos e morais na realização de regras e princípios de direito uma vez que estes elementos fundamentam legalmente a existência de programas de transferência de renda na sociedade. Ademais, o trabalho compreende o embasamento do sistema tributário nos princípios da igualdade, capacidade contributiva e redistribuição, apontando a função destes nas intervenções estatais de transferência, visto que a proposta do Imposto de Renda Negativo, como seu próprio nome aduz, se determina pelo conceito de capacidade contributiva inexistente. Por fim, realiza-se uma análise dos programas de transferência de renda em vigência nos Estados Unidos e no Brasil, depreendendo-se que, muito embora o instituto do Imposto de Renda Negativo tenha importante influência nestes e possuam características essenciais de seu mecanismo, não se constata a aplicação do seu conceito original, mas de suas variações doutrinárias. 223 Técnica Contábil pelo Instituto Federal do Paraná. Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba. [email protected] 224 Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo. Especialização em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo. Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. [email protected] 413 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Palavras-chave: imposto de renda negativo, transferência de renda, liberalismo, justiça tributária, capacidade contributiva. ABSTRACT This paper presents the Negative Income Tax institute, as an income transfer program conceived by liberal political movements. The aim is to highlight, therefore, a likely convergence between the minimal state and the realization of an income distribution. Inevitably, this paper also exposes the aspects related to the justice and the necessity of ethical and moral values in carrying out rules and principles of law, once these elements are the foundation of the legally existence of cash transfer programs in community. Furthermore, this paper comprises the foundation of the tax system on the principles of equality, ability to pay and redistribution, pointing out the function of these principles in state cash transfer interventions, since the proposal of the Negative Income Tax, as its own name indicate, is determined by the concept of non-existent ability to pay. Finally, the present paper make an analysis of certain cash transfer programs in effect in the United States and in Brazil, inferring that although the institute of Negative Income Tax has important influence in these programs, and even though they show essential features of its mechanism, they do not represent an implementation of its original concept, but of its doctrinal variations. Keywords: negative income tax, cash transfer, liberalism, tax justice, ability to pay. 1 INTRODUÇÃO É manifesta a existência da desigualdade social, representada pela disparidade na distribuição de renda entre determinados grupos, sendo que muitos indivíduos sobrevivem, atualmente, com menos do que o necessário para uma sobrevivência digna, sem acesso a valores que lhes possibilitem todos os itens necessários para a manutenção de suas vidas: saúde, alimentação, educação, etc. A relatividade quanto a existência maior ou menor desta desigualdade, em determinados locais, pode ser afetada por inúmeros motivos, entre eles construções históricas e culturais diferentes, economias diferentes e principalmente por posições governamentais diferentes. Neste sentido, é preciso verificar até que ponto o Estado se responsabiliza pela ampliação destas disparidades e da concentração de riquezas, quando deixa a liberdade de seus cidadãos ser desenvolvida sem qualquer atenção à igualdade de oportunidades, bem como quando institui intervenções que, ainda que indiretamente, prejudiquem o exercício desta pelos indivíduos. Dentro desta concepção de responsabilização do Estado é que se tem como 414 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE foco principal deste trabalho a apresentação do modelo de transferência de renda denominado Imposto de Renda Negativo, permitindo uma realidade de desigualdade inferior a encontrada mundialmente, inserindo cidadãos novamente dentro da cadeia de consumo e proporcionando-lhes uma igualdade que nunca tiveram para exercerem suas liberdades. Portanto, por meio da apresentação desta forma de transferência de renda, que tomou destaque na década de 60 com economistas liberais, não se visa focar na distribuição de renda como solidariedade do Estado ou assistencialismo, mas pelo contrário, têm-se o intuito de demonstrar a exigência de um programa que seja uma consequência lógica das próprias atitudes do Estado, como obrigação deste para com seus cidadãos, totalmente compatível os ideias liberais de estado mínimo e proteção do exercício da liberdade individual. Importante salientar que, como o próprio nome do instituto sugere, a obrigatoriedade do Estado na distribuição de renda deriva, nesse ponto de vista, do mecanismo tributário. Explica-se que, apesar de esforçar-se aparentemente em analisar a capacidade contributiva do cidadão, o sistema tributário atual, neste caso em especial o brasileiro, acaba não se atentando àqueles que não possuem qualquer capacidade contributiva quando da cobrança de impostos indiretos ou quando realiza algumas funções extrafiscais. Não havendo capacidade contributiva, ainda que indiretamente, os indivíduos permanecem dentro do sistema tributário e afetam ainda mais seus meios de sobrevivência para atender as exigências estatais. Assim, demonstra-se natural a concretização de uma devolução aos indivíduos daquilo que pagaram quando não haviam qualquer possibilidade de fazê-lo. Ademais, mais que por aspectos políticos e econômicos, esta lógica se fundamenta por uma questão de justiça. A aplicabilidade do Imposto de Renda Negativo também se baseia na obrigatoriedade moral e/ou ética de se ansiar uma sociedade e uma legislação justa, que coloque em foco e dê relevância a aspectos sociais e permeie de forma plausível as adversidades existentes. Desta forma, para a compreensão do Imposto de Renda Negativo, em seus aspectos práticos, se faz necessária a construção de prévios objetivos específicos, sendo eles: a demonstração da necessidade da intervenção do Estado mesmo em 415 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE políticas liberais, em compatibilidade com a realização de transferências de renda que não cerceiem a liberdade individual e afastem qualquer caráter meramente assistencialista deste ato; a compreensão do anseio e da necessidade de uma sociedade de leis justas e, ainda, a apresentação dos princípios do sistema tributário que justificam e limitam a distribuição de renda, como o da igualdade, da capacidade contributiva e da redistribuição. Por fim, em uma análise mais prática, será também colocado em exposição a trajetória dos programas de transferência de renda existentes nos Estados Unidos e no Brasil, a fim de se verificar a influência do instituto do Imposto de Renda Negativo nestes e se, de algum modo, esta teoria já foi colocada em prática. 2 DA INTERVENÇÃO ESTATAL 2.1 PRESSUPOSTOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS É sabido que o sistema capitalista, desde a ascensão da burguesia na idade média, tem como premissa econômica inicial a ideia de que cada sujeito age conforme seus interesses privados, isto pois a base para o funcionamento desse sistema está na barganha, ou seja, nas relações de troca e negociação. Diante dessas relações, Adam Smith (1996, p. 438), quando apresenta sua teoria da “mão invisível”, coloca que os interesses pessoais movem o mercado, o qual seguiria leis naturais preestabelecidas e independes da sociedade e de seus costumes específicos. Nesse panorama, o autor coloca que não se pode aguardar que o desenvolvimento econômico e social no sistema capitalista seja pensado de forma consciente à sociedade, tendo em vista que esta é apenas uma circunstância consequencial das pequenas negociações voltadas ao autointeresse. Entretanto, deve-se ter em mente que dizer que o mercado é regido por uma predisposição natural e independente não implica em dizer que este é perfeito. Quando se passa a analisar o sistema capitalista pelo viés da política liberal, demonstra-se que o Estado deve ter papel mínimo, porém, não se pode afirmar que o intervencionismo estatal deve ser nulo, inclusive pela ideia que de o mercado não é perfeito por si só. Logo, ainda que se tenha como prioridade a valorização das 416 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE liberdades e garantias individuais neste modelo de política governamental, se faz imprescindível a atuação do Estado em determinadas funções, pois, “O liberal consistente não é um anarquista” (FRIEDMAN, 1977, p. 38). Desta forma, depreende-se que o governo deve realizar a manutenção do sistema capitalista, mas por meio da regulamentação das regras aplicáveis a este e visando corrigir as falhas do mercado que através do tempo foram passiveis de identificação, contudo, não sendo possível a limitação da intervenção em uma lista taxativa, mas exemplificativa, pois Nas circunstancias específicas de determinada época ou nação, dificilmente há alguma coisa realmente importante para o interesse geral que não possa ser desejável, ou até necessário, que o governo assuma – não porque os particulares não tenham condições de fazê-lo eficientemente, mas porque não o farão. (MILL, 1996, p. 547) Portanto, considerando que o mercado, por meio de particulares, não visa essencialmente o bem-estar coletivo como fim próprio e que a liberdade é um ponto de defesa essencial da política liberal, necessária se faz a verificação do que se enquadra no conceito de liberdade e até que e ponto o Estado deve, por meio do referido intervencionismo, garanti-la. 2.1.1 Limitações à Liberdade e a Legitimação do Intervencionismo A liberdade, em seu conceito literal, deve ser entendida como “1. Condição de Livre. 2. Direito de decidir e agir segundo a própria vontade; livre-arbítrio” (LUFT, 2000, p. 423). Logo, a liberdade é a capacidade que os sujeitos têm de agir conforme suas aspirações, contudo, para que um indivíduo seja de fato livre, deve este possuir um conjunto capacitário que lhe permita isto (SEN, 2000, p. 95). Explica-se que o individuo deve possuir subsídios fáticos que lhe permitam agir conforme suas vontades e necessidades: alimentação, saúde, educação, emprego, entre outros. Assim, quando o sujeito é privado de quaisquer dos elementos acima, passa a ser privado de liberdade substantiva e limita suas escolhas por questões de sobrevivência e dignidade. Desta forma, a falta de liberdade substantiva coloca em questão um ciclo, 417 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE pelo qual o individuo não consegue renda para obtê-la, e não a obtém de forma com que possa gerar renda (SEN, 2000, p. 23), concluindo-se, portanto, que a pobreza pode ser entendida como falta de renda, mas também como falta de determinadas capacidades e ambas possuem uma correlação fática conforme demonstrado. Acontece que tal ciclo afeta diretamente o sistema capitalista e demonstra, ainda, uma afronta à defesa da liberdade protegida pela política liberal, pois causa uma direta limitação da capacidade de realizar transações econômicas essenciais ao mercado. Uma vez sem liberdade substancial e renda, o indivíduo passa a considerar em suas escolhas outros fatores de negociação do que sua real vontade, ficando susceptível a negociações desfavoráveis. Diante do exposto, o intervencionismo estatal se faz justificável na atuação de permitir o acesso do sujeito às bases do que lhe torna livre e proporcione o crescimento econômico individual e, em maior escala, da sociedade em geral. Logo, o desenvolvimento dos aspectos sociais será tão fim ao Estado, quanto o próprio desenvolvimento econômico, pois estarão diretamente relacionados. Como já explicitado, dificilmente, o próprio mercado por meio de seus agentes tome o dever de promover subsídios necessários à liberdade substantiva e renda dos indivíduos. Por este motivo entende-se ser “altamente desejável que a garantia de subsistência seja assegurada por lei.” (MILL, 1996, p. 539). Portanto, tal intervencionismo deve ser realizado pelo Estado, mas tanto quanto possível limitado pelas liberdades dos demais indivíduos da sociedade e dentro de um conjunto previamente acordado e legitimado como justo, momento em que o direito, por meio das leis e princípios, se faz essencial. 2.2 PRESSUPOSTOS DE JUSTIÇA Para que a atuação estatal seja legítima, esta deve ser previamente acordada por meio de regras, que estejam relacionadas ao valor de justiça da sociedade. Não é concebível a ideia de que, por meio de políticas governamentais, seja fomentado um instituto que a sociedade não considera como justo. Para John Rawls (2008, p. 4) “as leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas.” 418 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Nesse sentido, verifica-se que as intervenções estatais devem ocorrer de forma previamente estabelecidas, de maneira que sua aplicabilidade esteja dentro dos padrões éticos e morais da sociedade, bem como dentro de uma ordem jurídica aprovada e condizente com os objetivos desta. Ralws (2008, p. 73) coloca que a justiça deve ser representada por dois princípios de caráter universal, escolhidos pelos indivíduos enquanto estes estavam sob um “véu da ignorância”, ou seja, para o autor, as pessoas são aptas a escolher princípios de justiça quando não têm a mínima percepção sobre seus talentos, vantagens e desvantagens. Desta forma, neste estado de ignorância quanto a sua posição social e capacidades individuais, os indivíduos tendem a escolher princípios norteadores que visem a igualdade e a justiça, formulando assim um contrato social. De forma implícita, pode-se entender, portanto, que o autor concorda que, sabendo de suas características, o indivíduo tende ao autointeresse, como já afirmado anteriormente. 2.2.1 Justiça e o Direito Claramente pode-se perceber que a noção de justiça se aplica tanto aos cidadãos como ao Estado, o qual deve possuir um sistema estruturante a fim de se organizar e fazer a manutenção da sociedade. Os institutos devem ser justos e devem gerar um sistema também assim definido, com regras, princípios e políticas que confirmem e fomentem tal característica. Diante disto, importante observar a diferença entre estes elementos. Ronald Dworkin (2002, p. 36) demonstra essa diferenciação e afirma que um princípio jurídico é na realidade um padrão a ser seguido, não com um objetivo específico de promover algo, ou assegurar alguma condição econômica ou social, mas sim por ser apenas uma expressão de justiça, equidade ou moralidade e, neste sentido, não apresentam consequências jurídicas automáticas. Ainda, os princípios possuem um mecanismo de possível dimensão, prescrevendo direitos que, durante um conflito, ambos podem continuar sendo considerados válidos, entretanto, possuindo valorações diferentes na aplicação do caso concreto. Já as regras prescrevem condições e apresentam consequências jurídicas 419 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE exatas, sendo a única forma – ou a ideal forma – de se prever exceções, as suas respectivas previsões na própria regra, essas tantas quanto forem necessárias (DWORKIN, 2002, p. 40). Na situação em que duas regras entram em conflito, uma delas não poderá ser válida, e diante desta situação, haverão outras regras que definirão qual delas deve permanecer no ordenamento. Princípios e regras não podem ser confundidos ainda com as políticas, estas representam outro instituto, o qual possui influência mútua com o direito, tendo em vista que dele depende para ser legítimo e ao mesmo tempo, pode vir a moldá-lo conforme suas finalidades. A política, por sua vez, é “aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade.” (DWORKIN, 2002, p. 36). Identifica-se, portanto, que o Estado precisa do direito, ou seja, de regras, princípios e políticas, cada um desses institutos dentro de suas atribuições práticas, para intervir nas relações da sociedade, visando à atribuição de deveres e direitos aos indivíduos de forma legítima e justa, principalmente, como já explanado, no que se refere a evitar a pobreza como falta de renda e de liberdades substantivas. 3 PAPEL DOS TRIBUTOS NA INTERVENÇÃO ESTATAL 3.1 LIMITAÇÕES AO ATO DE TRIBUTAR Com o neoconstitucionalismo o direito passa a se aproximar novamente da moral e da ética, de forma a determinar a necessidade da legislação ser, em geral, interpretada e validada juridicamente sob determinados pontos de vista éticos. É desta forma que se faz necessário entender a aplicabilidade dos princípios à tributação, como forma de limitação ao próprio ato de tributar. Isto pois, é por meio destes institutos que se tem as circunstâncias e impedimentos dos atos de tributação, que visam evitar arbitrariedades e a criação de privilégios ou discriminações injustificadas na instituição das leis tributárias, bem como em suas aplicações (TIPKE, 2002, p. 29). Neste sentido, dentre todos os princípios norteadores e limitadores do direito tributário, faz-se necessário debruçar-se acerca dos postulados que demonstram um 420 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE dos fundamentos deste trabalho: que o direito tributário deve ser interpretado de forma justa com a situação fática pela qual os contribuintes passam. 3.1.1 Princípio da Igualdade Nitidamente, é possível afirmar que as diferenças permeiam os indivíduos das mais variadas formas, sejam elas econômicas, culturais, religiosas etc., neste sentido, verificar a existência de um princípio da igualdade demonstra a necessidade de se relevar tais diferenciações para determinados fins. Diz-se determinados fins pois, é possível que, de forma justificada, tais discriminações mereçam diferentes tratamentos frente à sociedade (MELLO, 2013, p. 11). Compreende-se o princípio da igualdade, em linhas gerais, sob dois aspectos: material e formal. O primeiro, diretamente relacionado com o anseio de nivelamento dos indivíduos em sua totalidade, deve ser entendido como o “tratamento equânime de todos os homens, proporcionando-lhes idêntico acesso aos bens da vida. Cuidase, pois, da igualdade em sua concepção ideal, humanista, que jamais foi alcançada” (COSTA, 2007, p. 55). Já a igualdade formal se caracteriza como a igualdade na lei e perante a lei, direcionada respectivamente àqueles que realizam e aplicam as normas (SILVA, 2005, p. 215). Portanto, inicialmente, o legislador não deverá formular normas que de alguma forma visem a discriminação injustificada, enquanto o aplicador da legislação, em segundo momento, tem por função proteger a interpretação e aplicação das referidas normas, dentro das finalidades para quais foram instituídas. Visto o princípio da igualdade sob seus aspectos gerais, necessário se faz verificar sua aplicação no âmbito tributário. Destarte, se o princípio é geral e fundamenta todo o ordenamento jurídico, resta inegável sua aplicabilidade sobre as relações jurídico tributárias. A igualdade na tributação desenvolve-se em inúmeros aspectos: a generalidade da tributação, a atenção à capacidade contributiva, a cautela na concessão de isenções de forma com que não venham a gerar privilégios odiosos, etc. (TORRES, 2011, p. 79). 421 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Muito embora a generalidade na tributação seja um dos aspectos da igualdade, se faz de extrema importância frisar sua diferenciação. No que se refere a generalidade, esta se caracteriza pela premissa de que todos aqueles que possuem condições de pagar tributos, devem fazê-lo, enquanto a igualdade na tributação é o aspecto que trás a necessidade de haver tratos diferentes para situações diferentes. Destarte, a generalidade é o fato de que “todas as pessoas, naturais ou jurídicas com capacidade de pagar devem submeter-se ao imposto[...]” (QUINTANA, 1994, p. XXXV, tradução nossa) 225, enquanto a igualdade seria o fato que de “as pessoas em igual situação devem receber o mesmo tratamento, devendo conceder-se um tratamento desigual as pessoas que encontrem em situações diferentes.” (QUINTANA, 1994, p. XXXV, tradução nossa).226 Resta inegável, portanto, que analisar a igualdade tributária implica necessariamente em verificar a capacidade que cada cidadão tem de contribuir com este ônus e diferencia-los conforme esta análise, assim, muito bem coloca a doutrina quando afirma que a capacidade contributiva é um instrumento do princípio da igualdade (ÁVILA, 2012. p. 434). 3.1.2 Capacidade Contributiva O princípio da capacidade contributiva tem sua principal fundamentação na proteção do mínimo existencial e na dignidade da pessoa humana, visto que determina à tributação a devida atenção ao que se faz possível tributar sem afetar a vida digna do cidadão. Luciano Amaro (2010, p. 138) afirma muito acertadamente quando explica que “O princípio da capacidade contributiva inspira-se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água.” Logo, não havendo riqueza, o cidadão não possui nenhum mecanismo para o pagamento dos tributos que não acarrete em afetar sua vida pessoal. Neste sentido, o mínimo existencial é o limite da tributação, visto que este de forma alguma pode ser atingido, sob consequência de se limitar a sobrevivência digna da pessoa, sua “Todas las personas naturales y jurídicas con capacidad de pago deben someterse al impuesto”. “Las personas en situación igual han de recibir el mismo trato impositivo, debiendo concederse un trato tributario desigual a las personas que se hallen en situaciones diferentes”. 225 226 422 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE liberdade, ou, inclusive, quando direcionada as pessoas jurídicas, inviabilizar sua própria existência e poder de negociação no mercado. Entretanto, importante ressaltar que o critério do mínimo existencial, por si só, não apresenta certa objetividade em se entender quanto é necessário para uma vida digna, o que claramente pode ser variável pelas condições vividas por cada indivíduo. Neste sentido, deve-se destacar a diferenciação apresentada por Francesco Moschetti (1980, p. 265) entre capacidade contributiva e capacidade econômica, sendo estas quaisquer manifestações de riqueza realizadas pelo cidadão e aquela apenas a parte desta riqueza que de fato pode ser direcionada aos tributos, após a devida análise das condições pessoais e familiares desse. No que se refere a legislação brasileira, a capacidade contributiva vem atualmente prevista no artigo 145, § 1° da Constituição Federal, afirmando a premissa de que o legislador deverá “sempre que possível” verificar a capacidade contributiva. Deve-se dizer que tal expressão erroneamente leva a crer que a pessoalidade exercida em tal verificação seria submetida ao poder discricionário do legislador, isto é, a pensar que o legislador poderia determinar aquilo que julga possível ou impossível, contudo, deve-se entender no sentido de que “apenas sendo impossível, deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica subjetiva do contribuinte.” (BALEEIRO, 2010, p. 1097). Logo, levanta-se a questão acerca da verificação quando tal análise se faria impossível. Neste sentido, necessário se faz adentrar na aplicabilidade do princípio em relação aos tributos extrafiscais e indiretos, visto que são os que demonstram maior dificuldade em se compreender se são abrangidos pela capacidade contributiva ou não. 3.1.2.1 Capacidade contributiva nos impostos extrafiscais e indiretos Depreende-se que os impostos extrafiscais visam induzir o contribuinte a praticar ou não praticar determinada conduta, logo, o imposto extrafiscal pode ser incentivador ou desincentivador. Diante disto, a doutrina se interroga acerca da real 423 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE aplicação da capacidade contributiva quanto aos impostos com finalidade extrafiscal, visto que se torna aparentemente difícil conciliar a elevação ou isenção de determinado imposto e atender a capacidade contributiva, uma vez que tal conciliação poderia afastar a própria finalidade extrafiscal, qual seja a realização de um ato ou não. Alguns autores defendem a total incompatibilidade entre a extrafiscalidade e o princípio da capacidade contributiva (TIPKE, 2002, p. 46), bem como se tem na doutrina o ponto de vista contrário, com enfoque na compatibilidade completa entre os institutos (MITA, 2006, p. 127). Entretanto, foca-se na posição de Regina Helena Costa (2003, p. 72 – 73) que afirma sobre a possível compatibilidade entre impostos extrafiscais e a capacidade contributiva, quando esta é aplicada de forma atenuada. Tendo em vista a tutela de outros princípios, isto pois a Constituição deve ser analisada como um todo, acredita-se ser essa a interpretação mais próxima da realidade pois, apesar de atenuada pela aplicação de outros objetivos e proteções constitucionais, a capacidade contributiva ainda seria um limite a tributação. Isto é, havendo a elevação da carga tributária para a inibição de determinada conduta, ainda não poderá esta ser tanta que atinja o mínimo existencial e se configure como confisco. No que se refere aos impostos indiretos, primeiramente é preciso compreender que, quanto a relação destes com a capacidade contributiva, esta deve ser analisada sob o ponto de vista do contribuinte “de fato” e não do “de direito”, pois, caso contrário, “o princípio poderia ser abandonado, para efeito de tributação de alimentos básicos e de remédios, a pretexto de que os contribuintes de direito dos impostos aí incidentes são empresas de altíssimo poder econômico” (AMARO, 2010, p. 141). Casalta Nabais (1998, p. 481) e outros doutrinadores entendem que há capacidade contributiva nos impostos indiretos, mas de uma forma muito branda, que exige, ainda, a aplicação de outros princípios constitucionais que venham a corrigir tal problemática. É diante deste fato que, quando se trata de capacidade contributiva nos impostos indiretos, tem-se em discussão também o princípio da seletividade. Parece claro que aquele individuo considerado pobre não consumirá, em 424 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE regra, artigos de luxo, devido sua falta de capacidade para arcar com a compra destes, entretanto, tal situação não parece tão acertada quando se coloca em discussão a repercussão dos valores incidentes sob itens de necessidade básica. A compra de um pacote de feijão não necessariamente indica que a obtenção deste não está sacrificando outras necessidades do indivíduo, como a moradia digna ou a educação, enquanto para outra parte da população a compra do mesmo produto em nada influencia nas demais necessidades vitais. Portanto, verifica-se que a aplicação do princípio da seletividade muito pouco resolve o problema da capacidade contributiva nos impostos indiretos, pois, apesar da menor alíquota em itens considerados essenciais, ainda assim retira-se das mãos dos economicamente menos favorecidos valores que poderiam ser aplicados para a manutenção da sua vida pessoal, logo, os impostos indiretos acabam possuindo um caráter regressivo. Assim, apesar de auxiliar, parcialmente, no consumo de itens fundamentais, não seria razoável analisar a capacidade contributiva nos impostos indiretos dividindo tal análise entre bens indispensáveis ou não, de forma que resta inegável que os impostos indiretos não conseguem completamente atender a capacidade contributiva dos indivíduos. 3.1.3 Princípio da Redistribuição O termo redistribuição, quando visto dentro do contexto apresentado, por si só já reflete o conteúdo de seu princípio. É possível certamente imaginar, e visto que correto compreender, que a redistribuição se relaciona com as noções de solidariedade, justiça fiscal e capacidade contributiva. No Brasil, a Constituição Federal em seu artigo 3° apresenta os objetivos fundamentais que a nação deve buscar, entre eles a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Sendo estes objetivos fundamentais, dificilmente seria possível sustentar que a tributação estaria livre de promovê-los. Ainda que fosse possível, o legislador confirma a extensão de tais objetivos aos tributos quando confirma no artigo 170 da Constituição Federal que a ordem 425 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE econômica terá por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, tendo entre seus princípios a redução das desigualdades regionais e sociais. Compreende-se que a redistribuição é um processo contínuo que deve visar corrigir a distribuição primária causada pelo mercado (NEUMARK, 1994, p. 211), isto é, afasta-se neste sentido as desigualdades consequenciais dos diferentes objetivos de vida de cada indivíduo, uma vez que este é o desempenho de sua própria liberdade (GODOI, 1999, p. 211). Deve-se dizer que a redistribuição ocorre de duas maneiras, primeiramente pela própria forma que o ônus dos tributos é dividido entre os indivíduos da sociedade e, ainda, por meio da definição dos próprios gastos públicos, momento seguinte a realização do ato de tributar (MACHADO, 2010, p. 45). A redistribuição, pela forma como o ônus da tributação é distribuído pela sociedade, trás consequentemente a discussão acerca da progressividade, que não deve ser confundindo com a proporcionalidade, visto que A progressividade não é uma decorrência necessária da capacidade contributiva, mas sim um refinamento desse postulado. A proporcionalidade implica que riquezas maiores gerem impostos proporcionalmente maiores (na razão direta do aumento da riqueza). Já a progressividade faz com que a alíquota para as fatias mais altas de riqueza seja maior (AMARO, 2010, p. 142). Por outro lado, a redistribuição por meio dos gastos públicos, momento seguinte à tributação, envolve além da própria prestação de serviços pelo Estado, também, a redistribuição de renda. Neste sentido é necessário ponderar que a redistribuição é um limitador do ato de tributar, quando se faz pela distribuição do ônus tributário, mas, ao mesmo tempo, se torna elemento de correção dos atos governamentais que, de alguma forma, ferem seus próprios limitadores. Se o sistema tributário nacional não atende alguns requisitos fundamentais estabelecidos a ele, como por exemplo a análise da capacidade contributiva, exigível se faz a existência de meios redistributivos que visem corrigir tais adversidades e retorne o conceito de justiça tributária. 426 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 4 IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO Diante do exposto acerca do sistema tributário, resta inegável a existência de lacunas legislativas e atividades estatais que, de alguma forma, permitem a inadequação da tributação com seus princípios norteadores. De destaque dessa inadequação, entende-se a verificação incompleta da capacidade contributiva em atuações tributárias do Estado, quando se utiliza de alguns métodos extrafiscais e, principalmente, quando impõe impostos indiretos. Por este motivo, tendo em vista o principio da redistribuição, entende-se necessário, por parte do próprio Estado, a correção deste ato que vai além dos reais limites atribuídos a este. Diante disto é que se apresenta o Imposto de Renda Negativo, que por meio do próprio sistema tributário, visa atender àqueles que não possuem capacidade contributiva e ainda assim permanecem dentro deste sistema. 4.1 O CONCEITO INICIAL: MILTON FRIEDMAN Muito embora se tenha breves esboços na literatura acadêmica já na década de 40 sobre o Imposto Negativo ou Imposto de Renda Negativo (IRN), o instituto apenas tornou-se definitivamente reconhecido com o economista norte americano Milton Friedman em 1962 no livro “Capitalismo e Liberdade”, no qual faz sua primeira explicação acerca desta possível forma de distribuição de renda. Basicamente, segundo a proposta de Friedman, o IRN se caracteriza pelo mecanismo do próprio Imposto de Renda experimentado atualmente, contudo aplicado de forma negativa em proporções inferiores ao mínimo tabelado. Isto é, assim como ultrapassando certo limite de valor, resta demonstrada a capacidade contributiva e o sujeito passa a estar obrigado a determinado pagamento de imposto, estando este com renda abaixo de determinado valor tabelado e, portanto, não havendo capacidade contributiva, estaria obrigado a receber do Estado uma complementação em dinheiro da diferença entre o realmente recebido e o mínimo preestabelecido, em um cálculo porcentual. 427 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Importante salientar que as porcentagens aplicadas sob o cálculo do subsídio poderiam ser graduadas, no mesmo modo como o próprio pagamento do imposto de renda, desta forma, havendo um limite claro de qual o valor mínimo que uma pessoa deve receber como garantia de renda (FRIEDMAN, 1977, p. 167), supondo que esta não tenha nenhuma além da oferecida pelo subsídio. O IRN, em sua concepção original, apresentaria, assim, a possibilidade de mitigar a pobreza por meio da transferência de renda sem interferir no mercado (FRIEDMAN, 1977, p. 167), bem como, se destina a auxiliar especificadamente o pobre, não categorizando o auxílio por qualquer outra motivação que não sua renda e número de familiares (dependentes), caso o beneficio seja calculado por família. Assim, aqueles seriam de fato amparados não por terem certa ocupação ou idade, mas apenas pelo fato de não possuírem renda suficiente a manutenção digna de suas vidas, sendo, portanto, o IRN substitutivo e centralizador dos programas de distribuição de renda, facilitando inclusive sua manutenção pelo Estado e diminuindo as burocracias da concomitância de diversos programas. Percebe-se que o conceito de o subsídio ser pago em dinheiro é um dos pontos mais importantes deste instituto em especial, visto que valoriza a liberdade do indivíduo e influi apenas indiretamente na atuação do mercado, através do consumo. Desta forma, o IRN está possibilitando a escolha pelo destinatário da utilização dos valores recebidos, na forma que mais lhe convém. 4.2 VARIAÇÕES E CRÍTICAS AO IRN Após o IRN tomar maiores proporções nas discussões políticas, como consequência natural o instituto passou a ser alvo de análises críticas e propostas de variações. Sendo assim, autores passaram a apresentar pontos que julgaram capazes de aperfeiçoar o programa proposto por Friedman, tornando-o mais adaptável e praticável, bem como apontar os defeitos teóricos e práticos do instituto, entre eles, destaca-se o possível desincentivo ao trabalho e a utilização dos valores inadequadamente. Certamente, apresenta-se a questão do desincentivo ao trabalho como suposta consequência do recebimento de transferências em dinheiro, justificada pela 428 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE indagação referente a falta de estímulo para, por meio de seus próprios esforços, o beneficiário adquirir renda. Robert Lampman foi um autor que mais escreveu acerca do instituto e sua visão se distancia da proposta apresenta por Friedman. Para Lampman o IRN não seria centralizador dos programas de distribuição de renda, mas deveria ser um complemento às demais prestações do Estado, bem como, o autor propõe a possibilidade da distinção entre aqueles capazes de trabalhar e os não capazes, de forma que os primeiros passariam a receber menores subsídios que os segundos (MOFFIT, 2004, p. 2). Esta distinção não se caracteriza diretamente como a aplicação de work requirements, pois não exige exclusivamente a condição de se estar trabalhando, contudo, age com efeito muito próximo, pois condiciona àqueles aptos ao trabalho menores benefícios e os incita a maior necessidade de estarem dentro do mercado de trabalho. Por outro lado, muito embora o desincentivo ao trabalho seja uma crítica de destaque na doutrina acerca do tema, se faz importante salientar que a própria ideia do IRN ser em cálculo porcentual já apresenta a possível manipulação dos incentivos ao trabalho, sem a exclusiva necessidade da aplicação de work requirements ou diferenciações entre os beneficiários. Isto pois, compreende-se que a taxa de redução do beneficio, proposta por Friedman como 50 por cento, atua na realização do cálculo fazendo com que o indivíduo receba maior valor quando trabalha do que quando não o faz, conforme se demonstra: Em 1978, as deduções importaram em 7.200 dólares por família de quatro pessoas, e nenhuma acima da idade de 65 anos. Suponhamos que estivesse em vigor o imposto de renda negativo, com uma taxa de subsídio em 50% sobre as deduções não utilizadas. Neste caso, uma família de quatro pessoas que não houvesse auferido renda se qualificaria para um subsidio de 3.600 dólares. Se seus membros houvessem arranjado emprego e auferido renda, o volume do subsidio seria rebaixado, mas a renda total da família – subsidio mais renda –teria subido. Se a renda houvesse sido de 1.000 dólares, o subsidio seria baixado para 3.100 dólares e a renda total chegaria a 4.100 dólares (FRIEDMAN; FRIEDMAN, 1980, p. 127-128). No cálculo apresentado, o valor do benefício varia conforme a renda anterior auferida, sendo independente disso aplicada uma taxa de redução, desta forma, 429 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE percebe-se que o montante total recebido pelo indivíduo será sempre maior quanto houver renda anterior auferida. Outra crítica apontada pela doutrina se refere a destinação dos valores recebidos pelos indivíduos, uma vez que sendo a transferência feita em dinheiro, deixa-se ao beneficiário a escolha de seus gastos e não se garante que estes valores sejam realmente utilizados para os fins propostos pelo programa. Claramente, o IRN, assim como qualquer outro programa de distribuição de renda por meio de transferência direta de dinheiro, tem por objetivo mitigar a pobreza, oferecendo, assim, uma possibilidade do sujeito atingir a igualdade de oportunidades, entretanto, é essencial compreender que neste tipo de transferência de renda, não cabe ao Estado invadir os anseios do sujeito e obriga-lo a utilizar os valores de forma previamente estipulada, isto pois, retoma-se a ideia de que o IRN foi pensado por doutrinadores liberais. Logo, possível se faz levantar a questão de que criar estas diferenciações, por sua vez, acabaria afastando um dos principais objetivos do IRN que é a desburocratização e facilitação da manutenção do sistema pelo Estado. Neste sentido, apresenta-se a opção de que, uma vez não sendo possível que o Estado realize as diferenciações entre aqueles que utilizarão o dinheiro em alimentação ou itens desnecessários, cabível se faz a orientação, por este e pode-se até supor com auxílio das entidades particulares, sobre as prioridades relacionadas as finanças familiares, sendo esta uma forma de educação que, consequentemente, pode vir a gerar maior probabilidade da utilização do benefício dentro das pretensões e objetivos do programa. 4.3 PROGRAMAS SIMILARES AO IRN NOS ESTADOS UNIDOS Em geral, prevaleceram durante a trajetória histórica dos EUA os modelos de programas de assistências de caráter liberal e de necessária comprovação de renda, assim chamados programas means tested, afastando geralmente os programas de transferência universal (SOARES, 2010. p. 84). Ademais, importante salientar que, nos primeiros momentos, os programas de transferência de renda não tinham caráter federal, visto a falta de centralização neste sentindo e, por isto, deu-se a 430 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE existência de múltiplos programas sociais, que variavam suas características conforme o estado que os instituiu. Na década de 30 ocorre, então, o início de uma intervenção federal visando a padronização dos programas de distribuição de renda e o auxílio financeiro a estes. Como primeiro passo, realizou-se a criação do SSA (Social Security Act) que instituiu, entre outras coisas, o ADC (Aid to Dependent Children) (SOARES, 2010. p. 84). O ADC, que atualmente se denomina TANF (Temporary Assistance for Needy Families), apesar de constituir-se um programa de transferência de renda em dinheiro, pouco se parece com o IRN em sua forma original. O objetivo do programa era o auxílio a especificadamente famílias monoparentais com dependentes, entretanto, em 1996, após a realização de reformas, além da alteração do nome, o programa passou a ser direcionado a famílias carentes com dependentes, bem como, passou a instituir a condição dos beneficiários estarem trabalhando em até 2 anos após o recebimento do primeiro benefício e estabeleceu o pagamento total limitado a 5 anos (GEORGIA DEPARTMENT OF HUMAN SERVICES, 2015). Outros programas paralelos também tomaram espaço no país como, por exemplo, em 1965, o Supplemental Nutrition Assistance Program, também conhecido como Food Stamp Program, que se caracteriza fundamentalmente dentro do mecanismo do IRN, contudo, é pago sob a forma de tickets de alimentação. Compreende-se também a ocorrência de algumas condicionalidades ao trabalho ou treinamentos àqueles que não possuem dependentes e têm determinada idade, variando conforme a regulamentação definida por alguns estados. (UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE, 2014). Contudo, apesar da existência de diversos programas americanos, o que se destaca nas discussões acerca do IRN é o EITC (Earned Income Tax Credit), isto pois, este programa é, em partes, consequência de uma proposta mais próxima ao IRN pelo governo norte americano, durante a presidência de Richard Nixon, denominado FAP (Family Assistance Plan) que não veio a ser efetivamente aplicado. O EITC, em sua configuração atual, após a reforma sofrida em 1994, se caracteriza pela concessão de um crédito tributário, o qual é calculado sobre os 431 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE valores recebidos pelos trabalhadores, dentro de uma tabela específica de variações, porcentagens e limites, sendo o recebimento independente de constituição familiar ou existência de dependentes, o que não implica afirmar que os valores e limites não sejam variantes com a existência ou não dessas circunstâncias (DEPARTMENT OF TREASURY – INTERNAL REVENUE SERVICE, 2015). Em 2014, o maior benefício seria concedido no valor de 6.143 dólares para aqueles com 3 ou mais crianças, que auferiram renda de 13.700 até 19.200 dólares para solteiros e até 23.300 dólares para casados (DEPARTMENT OF TREASURY – INTERNAL REVENUE SERVICE, 2014). Diante dos requisitos apresentados, depreende-se que o EITC realmente abrange algumas das características inerentes ao IRN, entretanto, daquele apresentado por Lampman e não da concepção original formulada por Friedman. Afirma-se isto pois, claramente o EITC apresenta work requirements, uma vez que só é pago àqueles com renda auferida anterior ao benefício, proveniente de trabalhos ou atividades equiparadas, bem como o EITC não representa uma substituição aos demais programas, mas um complemento aos existentes, mantendo-se, assim, o TANF, o FSP entre os demais programas americanos existentes. 4.4 PROGRAMAS SIMILARES AO IRN NO BRASIL Deve-se dizer que as disparidades existentes entre os indivíduos no Brasil têm suas origens na própria formação deste, quando, com seu descobrimento razoavelmente tardio e sua extensão territorial demasiada, baseada em latifúndios, deu-se a propensão da concentração de terras e de renda, o que inevitavelmente apenas acentuou as desigualdades sociais e econômicas já existentes (SILVA, 2011, p. 157). Ademais, constata-se a contribuição dos períodos de instabilidade política e jurídica, para a dificuldade de qualquer ação na alteração da realidade social do país por parte governamental. Compreende-se, então, que a pobreza passa a ser uma preocupação ao Estado efetiva e expressamente após a promulgação da Constituição de 1988, 432 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE quando se deu nova estabilidade e firmou-se os princípios e objetivos do Estado Democrático de Direito no Brasil. Assim, é década de 90 que se tem o maior avanço na ampliação do Estado nas políticas distributivas e protetoras, por meio de programas efetivamente implementados como o PRODEA (1993), o Programa Comunidade Solidária (1996), o PETI (1996) entre outros, até a criação, já a partir dos anos 2000, dos Programas Fome Zero, Bolsa Escola, Auxílio Gás etc., que posteriormente foram unificados pelo Bolsa Família. Concomitantemente a existência dos programas supracitados na década de 90, teve-se em andamento o Projeto de Lei nº 2.561/92, o qual visava a instituição do Imposto de Renda Negativo, direcionado a âmbito nacional e assinado pelo Senador Eduardo Suplicy. O fato da proposta ter sido federal se destacou na conjuntura política do período, no que se refere aos programas de renda mínima, pois até esta iniciativa, os projetos com estas mesmas características apenas se voltavam para implementação municipal ou estadual. Em setembro 1996, 76 projetos de renda mínima já haviam sido propostos, sendo 1 a âmbito nacional acima citado, 13 estaduais e 67 municipais, que, em porcentagens, representam respectivamente 1%, 17% e 82%. (SPOSATI, 1997, p. 117). Entretanto, o projeto nunca veio a ser efetivamente aprovado, tendo em vista as dificuldades políticas envolvidas, sendo que diante do desenvolvimento lento e pouco esperançoso, Suplicy, em 2003, realizou a apresentação de um novo Projeto de Lei nº 254/03, que originava no Brasil a Renda Básica da Cidadania. Diferentemente do projeto anterior, logo em 2004 o projeto foi sancionado e transformou-se na Lei 10.835/04, que dá direito a todo e qualquer brasileiro, ou estrangeiro residente há pelo menos 5 anos no país, o recebimento de um valor mensal a ser regulado pelo poder executivo, o que, atualmente, após 11 anos de sua vigência, permanece sem qualquer regulamentação satisfativa. Em certa medida, pode-se afirmar que a omissão quanto a regularização dos aspectos financeiros da Lei 10.835/04, em grande parte, pode ter sido motivada pela criação concomitante do Programa Bolsa Família, que recebeu e ainda recebe 433 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE demasiado destaque entre as transferências de renda realizadas pelo Estado brasileiro. Destarte, entende-se o Bolsa Família, por sua vez, como a incorporação dos diversos benefícios que passaram a surgir no período compreendido entre 2000 e 2003, como o Bolsa Escola, Auxílio Gás, Cartão e Bolsa Alimentação, que tiveram, consequentemente, um curto período de prazo de aplicabilidade (SOARES et al. 2006 p. 9) Realizado por meio da Lei 10.836/04 e regulamentado pelo Decreto 5.209/04, o Bolsa Família consiste, basicamente, na entrega de valores as famílias consideradas carentes, dentro de montantes preestabelecidos, que variam conforme a quantidade de dependentes, sendo necessário o atendimento de devidas condicionalidades. Atualmente, por meio da última alteração realizada pelo Decreto 8.232/14 nos valores dos benefícios, o Bolsa Família passou a ser pago da seguinte forma: um benefício fixo para as famílias com renda mensal per capita até R$ 77,00, no valor de R$ 77,00; um benefício variante pago as famílias com crianças de 0 a 5 anos, gestantes ou nutrizes de 0 a 6 meses de idade, no valor de R$ 35,00, limitado a 5 por família e um benefício variante devido às famílias com jovens estudantes de 16 e 17 anos, no valor de R$ 42,00, limitado a 2 por família, sendo que, os benefícios variantes limitam-se àqueles com renda mensal per capita de até R$ 154,00. Por fim, tem-se o benefício de superação de extrema pobreza, que é pago no valor de R$77,00 àqueles que, mesmo após o recebimento de benefícios não atingem esta mesma marca mínima per capita. Logo, compreende-se que o maior montante a ser pago pelo instituto ficaria em R$ 413,00, quando verificada a existência de 5 crianças e 2 jovens estudantes em uma família com renda mensal per capita inferior a R$ 77,00. Já quanto as condicionalidades ao recebimento, estas podem ser de duas naturezas: de saúde e educacional. No que se refere à saúde, se faz essencial para o recebimento do benefício que, sendo gestante, se tenha a correta realização do pré-natal e havendo nutrizes e crianças, que estas tenham o devido acompanhamento da saúde e desenvolvimento, bem como a atualização da carteira de vacinação. Já no concernente à educação, exige-se a matrícula e frequência 434 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE mínima de 85% àqueles com idade entre 6 a 15 anos, enquanto aos adolescentes de 16 e 17 anos, impõe-se a frequência de 75% (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE A FOME, 2015). Inegável se faz a relevância dos programas de distribuição de renda brasileiros no combate a desigualdade e a pobreza, especialmente o Bolsa Família, que muito embora seja ainda em níveis de valores baixos, já auxilia na estrutura de um país socialmente mais justo. Tal fato é verificável por meio dos estudos realizados na área, que apresentam que em 1995 o coeficiente de Gini 227 estava em 0,601, em 2005 no patamar de 0,570 e, em 2012 reduzido para 0,530 (INSTITUTO DE PESQUISA EM ECONOMIA APLICADA, 2013). Desta forma, muito embora em 1992 tenha se dado a realização de um projeto de lei efetivamente visando a aplicação do IRN, percebe-se que da mesma forma como analisado quanto aos programas existentes nos Estados Unidos, os programas brasileiros que de fato foram colocados em prática se demonstram como variantes do instituto, sendo os cálculos muito análogos, contudo, ocorrendo condições impostas não previstas inicialmente na concepção original desta teoria, assim como a concomitância com outros programas de transferência de renda. 5 CONCLUSÃO Claramente é possível se entender que o Estado tem papel essencial na condução do desenvolvimento político, social e econômico da sociedade e, de alguma forma, precisa estar atuante neste sentido, não podendo se abster de buscar a manutenção de uma vida digna à seus cidadãos. É neste panorama que se procurou demonstrar as justificativas para uma atuação estatal e as limitações dessa, ainda que dentro de um contexto político liberal, que, muito embora, em um primeiro momento, possa parecer incompatível com algumas intervenções voltadas ao desenvolvimento social, restou demonstrada sua compatibilidade com interferências diretas aos indivíduos e justas. 227 O coeficiente de Gini é indicador de concentração de renda que varia entre 0 e 1, sendo o valor de 0 igual a uma distribuição de renda ideal, isto é, todos recebem os mesmos valores, enquanto 1 representa a concentração de renda total, situação em que um único indivíduo recebe todo o valor analisado. (BORGES; CHADAREVIA, 2010. p. 97.) 435 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Resumir o liberalismo em Estado mínimo e não interferência nas liberdades individuais apenas o transformaria em uma expectativa irreal, a qual se almejaria a existência de um mercado regido por si próprio sem quaisquer adversidades consequenciais. Pois bem, sabendo que esta é uma perspectiva além da realidade já experimentada, admite-se a intervenção estatal para a manutenção dos efeitos negativos surgidos nestes contextos econômicos e sociais. Uma vez permitidas neste cenário, as intervenções realizadas pelo Estado, para que possuam real aplicabilidade, precisam estar limitadas às liberdades individuais e serem apenas indiretas à ordem econômica, isto é, a função das intervenções deve ser de basicamente de duas naturezas: regulamentadoras e/ou corretivas. Neste sentido, é possível verificar que a intervenção precisa garantir a própria liberdade por meio da regulamentação desta na sociedade, e, sendo esta função insuficiente, passar a agir por meio de correções. No que se refere a palavra liberdade, apresentou-se sua significação mais importante, qualificada como liberdade substantiva. Entende-se, que este é o aspecto da liberdade que deve ser o principal foco de tutela pelo Estado, logo, é a capacidade de que todos possam partir das mesmas posições de escolha e, portanto, agir conforme suas vontades e determinações, sem estarem presos a limitações preestabelecidas resultantes de suas condições pessoais. Isto pois, depreende-se que a pobreza não significa apenas falta de dinheiro, mas também pode ser entendida como a falta de liberdade substantiva e ambas possuem uma relação consequencial: sem renda o sujeito não possui meios para obter liberdades substantivas e sem liberdades substantivas o sujeito não consegue obter renda, pois não encontra trabalho ou sequer possui forças para isto. Ocorre que os meios utilizados pelo Estado para a regulamentação e correção das liberdades, não poderão ser ilimitados ou injustificados, por este motivo, procurou-se demonstrar a importância dos pressupostos de justiça dentro de um contexto de convivência em sociedade e como estes se aplicam a legislação, a qual é elemento fundamental para legitimar a referida atuação estatal, visto que preestabelece aquilo que pode se esperar do próprio Estado. Verificada as premissas acima explanadas, conclui-se que ao Estado é permitida, bem como por vezes necessária, a concretização das devidas 436 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE intervenções estatais, desde que estas sejam justas e condizentes com o ordenamento jurídico, visando a correção daqueles atos que, apesar de regulamentados, ainda assim contribuem para a ineficácia da efetivação das liberdades. Um destes atos que contribuem para a criação das adversidades às liberdades encontra-se, nitidamente, na tributação, pois, muito embora o sistema tributário possua reais justificações de existência e princípios e regras limitadoras, em determinadas situações estes regramentos se tornam insuficientes, enfatizando disparidades entre os indivíduos. Logo, passa-se então a analisar como a tributação, que é um método de intervenção estatal regulamentador, baseado em leis e princípios, ainda assim contribui na inexistência das liberdades substantivas, quando, retira de seus contribuintes valores que seriam aplicados para a obtenção destas e consequentemente os coloca em posição pior do que a inicial. Tal aspecto da tributação se relaciona diretamente com os princípios da igualdade e da capacidade contributiva. Analisar a igualdade tributária implica necessariamente em verificar a capacidade de contribuir que cada cidadão tem e respeitar esta condição, o que restou demonstrado que se faz completamente afastado nos impostos indiretos e atenuado nas funções extrafiscais dos tributos. Diante dessa premissa, depreende-se que os tributos, da forma como hoje são realizados, afetam muito mais a população carente do que qualquer outra. Logo, o próprio funcionamento do sistema tributário passa a impor a necessidade da intervenção corretiva à estas adversidades. Independente das mais diversas formas de intervenção que podem ser realizadas, coloca-se instituto do Imposto de Renda Negativo, como uma consequência lógica de todo o mecanismo tributário atualmente aplicado, que se faz obrigatório do ponto de vista da capacidade contributiva e auxilia na obtenção de liberdades substantivas por meio das transferências de renda. Seu mecanismo se baseia na premissa que se há capacidade contributiva suficiente haverá o pagamento de impostos, enquanto não havendo o Estado deve retornar os valores devidos àqueles que deles necessitam para a manutenção de suas vidas. 437 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE O conceito inicial, proposto por Friedman inicialmente na década de 60, ainda que não tenha sido colocado efetivamente em prática dentro de suas concepções, teve papel importantíssimo para o início de uma discussão sobre meios de distribuição de renda e, a partir deste ponto, suas variações doutrinarias tomaram relevância no contexto político. Entendeu-se que as variações especuladas acerca do instituto o moldaram para uma viabilidade condicionalidades que, prática, em por certa meio medida, da aplicação politicamente de requisitos facilitaram e suas implementações, mas que, entretanto, não seriam necessárias pela própria lógica da modelo proposto. Desta forma, nos programas que atualmente estão em prática nos Estados Unidos e no Brasil, é possível verificar a influência do Imposto de Renda Negativo, mas muito mais voltado a suas variações e alterações políticas. Neste sentido, compreende-se que, se estas condicionalidades são realmente necessárias para a aplicação deste instituto de distribuição de renda, por ora, é melhor que existam com condicionalidades, do que não existam, visto que conforme a análise dos dados, especialmente daqueles referentes ao Brasil, atualmente, convive-se com uma sociedade menos desigual que a 20 anos atrás. Entretanto, espera-se, dentro destes avanços trazidos pelos programas de distribuição de renda, com o acesso a educação e uma revolução cultural, que em algum momento o mecanismo hoje aplicado neste sentido seja entendido do seu ponto de vista lógico e deixe de precisar de condicionalidades, pois estas, que facilitam a aplicabilidade dos programas frente a opinião pública, se dão exatamente pelo fato do desconhecimento deste raciocínio lógico e liberal condizente com as transferências de renda, que é apresentado pelo Imposto de Renda Negativo, sendo visto atualmente tais programas como mero assistencialismo e formulação de injustiças, quando, na verdade, resta este entendimento completamente equivocado. REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 438 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE BALEEIRO, Aliomar. 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Renda mínima mundial: saída ou agravamento? São Paulo: Cortez, 1997. 441 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE TIPKE, Klaus. Moral tributaria del estado y de los contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE. Supplemental nutrition assistance program (SNAP). Disponível em: <http://www.fns.usda.gov/snap/ eligibility>. Acesso em: 19 mar. 2015. 442 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO CRITÉRIO DE DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO CONTRIBUTORY CAPACITY PRINCIPLE AS A DISCRIMINATION CRITERIA ON THE TAXATION TREATMENT Robert Thomé Neto228 Maurício Dalri Timm do Valle229 RESUMO O presente artigo busca analisar, principalmente, a essência do princípio da capacidade contributiva na ordem tributária, paralelo, sempre, ao preceito maior da igualdade. Entendido no que consiste a igualdade, e como esta é aplicada no âmbito do direito tributário, analisar-se-á, dentro de uma perspectiva doutrinária crítica, a relação direita entre igualdade e capacidade contributiva, bem como seus limites, suas espécies e aplicabilidade. A capacidade contributiva como subprincípio, está, indiscutivelmente, na essência do princípio maior da igualdade, ao passo que é uma efetiva ferramenta de materialização da igualdade no universo tributário. Não obstante a isso, buscar-se-á compreender a necessária relação existente entre capacidade contributiva e os princípios do ‘mínimo existencial’ e da ‘proibição dos efeitos de confisco’, na medida em que estes últimos exercem papel limitador não só à capacidade contributiva, mas, também, ao Estado e ao Legislador. Assim sendo, caminhará rumo a clarear não só os já mencionados, quantos outros pontos relacionados com o princípio da capacidade contributiva, para, então, buscar explicar porque a capacidade contributiva, como princípio da ordem tributária, exerce papel importantíssimo na medida em que serve como critério de discriminação no tratamento tributário. Palavras-chave: princípio, igualdade, capacidade contributiva, limite e discriminação no tratamento. Graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – Faculdade de Direito de Curitiba, Curitiba, Estado do Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] 229 Mestre e Doutor em Direito do Estado ? Direito Tributário ? pela UFPR. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pela UFPR. Professor Substituto de Metodologia do Trabalho Científico em Direito da UFPR. Professor de Direito Tributário e de Direito Processual Tributário do Centro Universitário Curitiba ? UNICURITIBA. Professor-Coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário e Processual Tributário e do Curso de Especialização em Direito Aduaneiro, ambos do Centro Universitário Curitiba ? UNICURITIBA. Associado à Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito - ABRAFI. Membro do Grupos de Pesquisas em "Fundamentos do Direito" e em "e-Justiça", ambos orientados pelo Professor Doutor Cesar Antônio Serbena e do Grupo de Pesquisa em "Direito Tributário Empresarial", orientado pelo Professor Doutor José Roberto Vieira, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Membro do Grupo de Investigação - Programa de Acreditación Institucional de Proyectos de Investigación en Derecho (DeCyT) da Universidad de Buenos Aires. Advogado e consultor tributário. 228 443 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE ABSTRACT The present project aims to analyze mainly the essence of the contributory capacity principle on the tax order always parallel with the equality precept. Known what consists the equality and how it is applied on tax law, it will be analyzed inside of the critical doctrinal perspective, the right relation between equality and contributory capacity, as well as the limits, their species, applicability etc. The contributory capacity as sub-principle is, undoubtedly, in the essence of the equality principle, which is an effective tool of equality materialization in the tax universe. Not restricted to it, the project aims to comprise the relation between the contributory capacity and the 'existential minimum' and 'prohibition of the confiscation effects' principles, wherein the latest exercises the limiter role not only related to the contributory capacity but also related to the State and the Legislator. Therefore, the present project will clarify not only the mentioned before, but other topics related to the tax law principle to finally understand why the contributory capacity, as a tax order principle, exercises an important role as soon as it is a discriminatory criteria. Keywords: principle, equality, contributory capacity, limit and discriminatory treatment. 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 adotou como base o Princípio da Igualdade – cuja máxima trazida por Aristóteles – consiste em tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual na medida da sua desigualdade. No âmbito do direito tributário, a igualdade existe na medida em que, o Estado, trate cada contribuinte em razão de sua capacidade econômica para arcar com o ônus tributário. O Princípio da Capacidade Contributiva, como subprincípio do preceito maior da Igualdade, possui papel concretizador deste, ao passo que busca igualar, a todos, os impactos causados pelos tributos. Assim, analisar-se-á, primeiramente, sempre ao lado de entendimentos e posições doutrinárias, a igualdade como Princípio Constitucional, para então, adentrar no Princípio da Capacidade Contributiva como sendo um desdobramento do Princípio da igualdade, ao passo que possui a função de concretizar o que entende-se por igualdade no âmbito do direito tributário. Portanto, será objeto de análise, sempre ancorado ao Princípio da Igualdade, o que consiste Capacidade Contributiva, sua relação com o ‘mínimo vital’ e a ‘proibição do confisco’, bem como suas importantes funções para finalmente, chegar em suas espécies, a diferença entre capacidade contributiva, financeira e econômica e sua aplicação nos impostos classificados como diretos e indiretos. 444 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Assim, tratar-se-á do Princípio da Capacidade Contributiva, com enfoque paralelo ao Princípio da Igualdade, demonstrando que aquele serve como instrumento efetivador deste, em razão de ser o critério de discriminação no tratamento tributário. 2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE Aristóteles já dizia que a igualdade é elemento indispensável à justiça, por isso afirmava que a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno sentido do termo, porque é o exercício atual da virtude completa”. 230 Não é fácil conceituar o Princípio da Igualdade em uma frase pronta e acabada. Percebe-se que existe hoje muita divergência quanto a sua interpretação e, portanto, certa dificuldade em conceituá-la. Mas inúmeros autores entendem que somente é possível falar em igualdade quando a relaciona com o primado da justiça. Pois, há justiça quando se garantir uma equidade desde o tratamento entre pessoas até entre situações e coisas. Assim sendo, perante a lei todos devem, necessariamente, receber tratamento parificado231, ou seja, o Princípio da igualdade nada mais é do que uma expressão dos direitos fundamentais do cidadão, em que da mesma forma que devem nivelar os cidadãos para diminuir suas desigualdades deve também, orientar o legislador a não agir em desconformidade com a isonomia quando redigir as normas infraconstitucionais e elaborar a vontade geral.232 A máxima aristotélica já dizia que a igualdade consiste em tratar os iguais de maneira igual e os diferentes de maneira diferente. Ou seja, todos devem ser tratados pela lei de igual maneira, porém todos que estejam inseridos dentro de uma mesma ‘categoria’, ou seja, existem especificidades ou melhor fatores pessoais que, por consequência destes tornam as pessoas diferentes frente ao direito justificando, portanto, tratamentos diferenciados. 230 ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco. 6. ed. São Paulo: Martin Claret, 2014. p. 96. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 10. 232 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 85. 231 445 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Explica Celso de Mello que “as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes”233, logo, a lei deve edificar elementos, situações diferenciais que justifiquem um tratamento desigual e, por consequência, efeito desuniforme em razão dessa. Foi com base nesta indagação que a igualdade passou a ser entendida como tratar os iguais de maneira igual e os desiguais desigualmente na medida de sua desigualdade, ou seja, pelas ‘diferenças’ serem uma realidade presente dentro da sociedade não se estaria materializando a igualdade, caso todos recebessem tratamentos idênticos. Se estiver certo que dentro de uma sociedade seria impossível falar em tratar todos de maneira igual atribuindo, portanto, uma visão homogênea individualista do homem, visto que existem especificidades de cada um que, por consequência direta dessas tornam as pessoas diferentes, pergunta-se: como definir quem ou o que deveria ser considerado para atribuir, então, o carimbo de igual ou desigual? Sendo assim para o Princípio da igualdade “qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações”234, pode ser adotado como fator discriminatório. Porém, ainda segundo Bandeira de Mello, elementos que não apresentem pertinência lógica, ou melhor, que sejam aleatórios ao ponto de não serem justificáveis não podem ser acolhidos pela lei como fatores discriminatórios. Em síntese, pelo Princípio da Igualdade, devem-se tratar igualmente os iguais e os desiguais de maneira desigual, na medida da sua desigualdade. Significa dizer, portanto, que “[...] o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça”.235 Desde que, o critério discriminatório possua um nexo lógico uma justificativa racional para que legitime o tratamento desigual. 233 Ibidem, p. 12. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 17. 235 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 36. 234 446 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO ÂMBITO TRIBUTÁRIO O Princípio da igualdade, no direito tributário consiste, sinteticamente, que todos aqueles que encontrarem-se em uma mesma condição tributária devem ser tratados de igual maneira aos olhos da lei, portanto, se a lei tributária conferir determinado benefício ou isenção tributária, esta deve, por força do aludido Princípio, alcançar todos aqueles que estão inseridos nesta mesma condição tributária. Sendo assim, a aplicação da igualdade no direito tributário, depende de um critério diferenciador e também, de um fim a ser alcançado.236 É certo então, que o critério que diferenciará o tratamento tributário, por força do princípio da igualdade tributário deve necessariamente, ter congruência lógica com a finalidade buscada por ele. Segundo José Afonso da Silva, o Princípio da Igualdade Tributária é aquele que “busca a justiça fiscal na distribuição do ônus fiscal na capacidade contributiva do contribuinte”, ou seja, é esta capacidade contributiva de cada contribuinte que permite que sejam classificados em diversas ‘categorias’, cada qual seja tributada de maneira diferente. Dentro de cada “categoria”, o Princípio da Igualdade Tributária garante que os contribuintes sejam submetidos a idênticos regimes fiscais. É certo que uma diferenciação dos contribuintes, feita com base em critérios exclusivamente subjetivos, não sendo, estes, fundamentados e justificados numa finalidade objetiva constitucionalmente aferível é, segundo Humberto Ávila, insatisfatório, ou seja, ilegítima, sendo, portanto, uma diferenciação normativa arbitrária. Nesta ordem de ideias significa que, a medida de comparação, para ser legítima (possível) e consequentemente, discriminar o tratamento tributário entre as classes tributantes, deve necessariamente possuir uma relação conjugada237 com a finalidade de sua existência. Neste sentido é imprescindível que exista um nexo de causalidade, ou seja, uma relação de causa e efeito entre a medida de comparação (critério adotado para discriminação) e o elemento indicativo da medida de comparação, onde, além disso, ambos devem estar coligados a uma finalidade que justifique a sua utilização. 236 ÁVILA, Humberto. Tratado de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 410. 237 ÁVILA, Humberto.Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 51. 447 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE E, para além disso, não basta tão somente, que exista este nexo de causalidade entre a medida e o elemento indicativo e estes estejam correlacionados com uma finalidade lógica e sem contradição. A validade de tal medida de comparação depende, impreterivelmente, de sua compatibilidade com a Constituição da República. 4 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE Grande parte da doutrina entende que o princípio da capacidade contributiva é uma derivação – subprincípio – do, então, princípio da igualdade, cuja função é materializar a isonomia dentro do âmbito tributário. Como bem disse, Regina Helena Costa: “A igualdade está na essência da noção de capacidade contributiva, que não pode ser dissociada daquela”, 238 logo, pode-se dizer que o princípio da capacidade contributiva possui papel concretizador da igualdade no que diz respeito à tributação, na medida em que aquele visa igualar, a todos, os impactos causados pelos tributos. Na realidade, o princípio da igualdade deve ser entendido como um preceito maior, geral, aplicado à todos e em qualquer âmbito do direito, vez que emana de direito individual fundamental. Desse modo, o princípio da capacidade contributiva, por ser um critério material, viabiliza a concretização da igualdade no universo tributário. Motivo então, que torna viável o entendimento daquele ser uma decorrência (subprincípio) deste. Em outros termos, o princípio da igualdade deve abranger todos os campos do direito, portanto, fala-se em preceito maior/genérico. Afunilando a incidência para o direito tributário, tem-se que a essencialidade da igualdade está dentro do princípio da capacidade contributiva, na medida em que busca materializá-la. Desse entendimento retira-se que, no âmbito tributário, a igualdade revela-se pela capacidade contributiva. Desse modo, a igualdade no âmbito tributário será efetiva quando o peso do encargo tributário for igual para todos os contribuintes que encontrarem-se em igual capacidade contributiva. Em suma, o princípio da capacidade contributiva é o critério material de aplicação da igualdade no universo tributário. Isso porque, o princípio da igualdade, por ser muito 238 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 41. 448 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE genérico, não possui, por si só, critérios materiais para efetivar-se, logo, como sustenta Humberto Ávila “os homens [...] somente podem ser iguais ou diferentes em razão de um critério.239 5 CONCEITO DE CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Sendo o princípio da capacidade contributiva o fator de discrímen, ao passo que busca alcançar e efetivar a igualdade material dentro do direito tributário, no que consiste, então, o presente princípio? Atualmente, o princípio da capacidade contributiva está consagrado, na Carta Magna, em seu artigo 145, parágrafo primeiro, in verbis: § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 240 Um conceito inicial, trazido por Regina Helena Costa, ao dizer que capacidade contributiva é “A aptidão da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento de imposto, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.”241 O ilustre Alfredo Augusto Becker, para definir capacidade contributiva, buscou relacioná-la com riqueza individual e carga tributária suportada, chegando na ideia que “a capacidade contributiva é aferida mediante a relação existente entre a riqueza de um indivíduo e a carga tributária por ele suportada”.242 Para Fernando Aurelio Zilveti, a capacidade contributiva é o princípio segundo o qual as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os cidadãos, ou seja, deve haver uma divisão equitativa das despesas estatais na 239 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 434. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm > Acesso em: jul. 2015. 241 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 107. 242 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, 496 - 497 240 449 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE medida da capacidade individual de suportar o encargo fiscal de cada contribuinte.243 Trilha o mesmo sentido Stuart Mill ao entender que o princípio da capacidade contributiva significa distribuir a contribuição de cada pessoa para com os gastos públicos de tal forma que ela não sinta nem mais nem menos incômodo, com a cota que lhe cabe pagar, do que qualquer outra.244 Significa dizer, em palavras mais simples, que aquele(s) que apresenta(m), em termos econômicos, ‘mais’, pague(m) proporcionalmente mais do que aquele(s) que apresenta(m) ‘menos’. Logo, como explicou Carrazza: “as pessoas, pois, devem pagar impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, de seus índices de riqueza”.245 Em suma, capacidade contributiva é a aptidão que as pessoas têm para, dentro de um dever de solidariedade, contribuir para com o plano de despesas do Estado. Esta capacidade contributiva é medida a partir de um fato-signo presuntivo de riqueza, ou seja, um fator revelador de conteúdo econômico (manifestação de riqueza). Portanto, a capacidade contributiva possui duas funções: de um lado representa o fator discrimén (discriminação), vez que concretiza a igualdade dentro do campo tributário, na medida que estabelece quem são os iguais e quem são os desiguais à luz da tributação. Por outro lado, é um importante limitador ao poder de tributar do Estado, por conta da impossibilidade de se tributar aonde não existir capacidade contributiva. Assim, o princípio da capacidade contributiva apresenta dois grandes efeitos no âmbito tributário, os quais são: a) O primeiro (aspecto negativo) seria um limite ao poder de tributar, vez que somente pode sofrer tributação aquele ou aquilo que apresentar capacidade contributiva – medida a partir de um ‘fato-signo presuntivo de riqueza’, ou seja, um fato revelador de conteúdo econômico –. Esta função negativa é responsável pela materialização da igualdade no âmbito tributário, pois ao representar o fator de discrimén, fixa a graduação tributária em função da capacidade contributiva. 243 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo: QuartierLatin, 2004. p.134. 244 MILL, John Stuart. Princípios de economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290. 245 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 97. 450 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE b) O segundo (aspecto positivo) assegura os “direitos subjetivos do cidadão-contribuinte”246, na medida em que serve como sensível limitador ao legislador, proibindo-o de tributar fatos que não sejam reveladores de riqueza – capacidade contributiva –. Sendo, portanto, uma garantia fundamental. 6 PRINCÍPIOS RELACIONADOS À CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Sendo a capacidade contributiva um limitador ao poder de tributar, ao passo que somente pode ser tributado aquilo ou aqueles que apresentarem capacidade contributiva, ou seja, ‘riqueza’, há de se haver, por conta disso, um limite mínimo bem como um limite máximo à capacidade contributiva, delimitando o real ‘espaço’ passível de sofrer tributação. Diante disso, caminha-se no sentido da necessidade do princípio da capacidade contributiva possuir, efetivamente, um limite ‘máximo’ e ‘mínimo’. Caso contrário toda e qualquer manifestação de riqueza poderia ser passível de tributação. É por esta consequência que entram aqui, outros dois princípios, na medida em que exercem funções limitadoras, vez que delimitam em que momento começa e em qual encerra-se o ‘intervalo de riqueza’ entendida como capacidade contributiva passível de ser tributada. 6.1 MÍNIMO EXISTENCIAL Segundo Zilveti, mínimo existencial (mínimo vital) é a menor parcela de renda, absolutamente necessária para a sobrevivência digna da pessoa e de sua família. 247 Explica-se, nada mais é do que determinada quantia mínima, que, caso fosse tributada, estaria por ferir, indiscutivelmente, os direitos fundamentais constitucionais do cidadão, como o direito à alimentação, saúde, educação, habitação etc. O parâmetro entendido como mínimo existencial é isento de qualquer tributação, ou seja, pode-se entendê-lo sendo uma hipótese de imunidade tributária, na medida que inexiste capacidade contributiva, sendo proibida toda e qualquer tributação sobre esta parcela de riqueza entendida como ‘mínimo vital’. 246 247 NATOLI, 1979 apud COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 52. ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo: QuartierLatin, 2004. p. 203. 451 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Portanto, entende-se que o princípio do mínimo existencial, aplicado paralelamente com o da capacidade contributiva, exerce função limitadora (limite inferior). Sendo assim, nem toda aferição de riqueza pode ser passível de tributação; a capacidade contributiva – espaço de riqueza passível de ser tributado – incide, tão somente, na porção de riqueza que exceder aquela considerada ‘mínimo vital’, pois trata-se de direito fundamental consagrado na lei maior. Nessa ordem de ideias conclui Klaus Tipke e Douglas Yamashita ao entenderem que “enquanto a renda não ultrapassar o mínimo existencial não há capacidade contributiva”248, logo, o princípio do mínimo existencial é uma garantia intributável, ancorada nos fundamentos de liberdade, dignidade humana e igualdade. Em suma, entende-se que a impossibilidade de incidir tributação sobre a riqueza denominada mínimo existencial, provém da ausência de capacidade contributiva, ao passo que a pessoa encontrada nesta faixa econômica, possui somente aquele patrimônio mínimo necessário para a manutenção de sua existência digna e de sua família, não devendo, portanto, incidir qualquer quantia a título de tributo.249 6.2 NÃO CONFISCO Se o princípio do mínimo existencial é um ‘limite mínimo’ à capacidade contributiva, uma vez que só é passível de sofrer tributação aquela parcela representativa de riqueza que o exceder. Faz-se necessário, também, que esta parcela de riqueza tributável venha a ter um ‘limite máximo’ (superior), pois caso não houvesse, o legislador teria poder arbitrário de tributar, qualquer quantia, desde que respeitado o mínimo existencial. Foi diante disso, que fez-se necessário, a existência do princípio do não efeito de confisco (não confisco), previsto no artigo 150, inciso IV da Lei maior, in verbis: 248 249 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p.34. VALLE, Maurício Darli Timm do. Princípios Constitucionais e Regras-Matrizes de Incidência do Imposto Sobre Produtos Ind.ustrializados – IPI. 414f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. p. 196. 452 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: IV - utilizar tributo com efeito de confisco;250 Significa dizer, que todo e qualquer tributo possui um ‘limite máximo’, impossibilitando, portanto, que haja a violação, por consequência do elevado grau da tributação, dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade dos contribuintes. Assim, por força do princípio do não confisco, proíbe-se que o tributo exceda o seu ‘limite máximo’, e por consequência, apresentar efeitos de confisco, acabando com a capacidade contributiva do sujeito passivo. Como bem sintetizou Regina Helena Costa, a capacidade contributiva deve ser um limite da tributação, permitindo, portanto, a manutenção do mínimo vital, bem como inibindo que a progressividade tributária venha a atingir níveis de confisco.251 Mas então o que vem a ser Confisco? Explica Regina Helena Costa, ao entender que confisco é “... a absorção total ou substancial da propriedade privada pelo Poder Público, sem a correspondente indenização”.252 Assim sendo, confisco é quando o Estado, no todo ou em parte, apropriar-se de maneira injusta, do patrimônio e/ou renda dos contribuintes de modo a comprometer-lhes em sua liberdade, propriedade e dignidade, em razão da insuportabilidade da carga tributária. Outro ponto seria quando ou em que momento o tributo passa a ter efeitos de confisco, sendo, então, proibido à luz da Constituição? A resposta está intimamente relacionada com o princípio da capacidade contributiva, ao passo que será considerado confiscatório quando determinado tributo exceder a capacidade contributiva do sujeito, acarretando a desestimular, prejudicar, ou inviabilizar o exercício dos direitos de propriedade e liberdade do cidadão.253 250 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: jul. 2015. 251 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 30-31. 252 Ibidem p. 79 e 94. 253 VALLE, Maurício Darli Timm do. Princípios Constitucionais e Regras-Matrizes de Incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI. 414f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. p. 187. 453 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em suma, as pessoas políticas, no exercício de suas competências, devem necessariamente, sob pena de violação do princípio do não confisco, levar em consideração a capacidade contributiva como parâmetro na imposição do ônus fiscal. Sendo assim, qualquer carga tributária que ultrapassar os limites da capacidade contributiva, ou, ainda, incidir sobre a parcela de riqueza considerada ‘mínimo vital’, será inconstitucional. 7 PRISMAS DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA 7.1 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA OBJETIVA (ABSOLUTA) A capacidade contributiva absoluta, por assim dizer, funciona como um limite, ao legislador, no momento que este escolhe os fatos passíveis de tributação. Limite, pois, somente aqueles fatos manifestamente reveladores de riqueza poderão ser, pelo legislador, tributáveis. Em outras palavras, pelo princípio da capacidade contributiva, em seu sentido objetivo, a manifestação de riqueza é requisito que confere, a princípio, legitimidade à imposição tributária.254 Capacidade contributiva em seu caráter objetivo ou absoluto é aquela em que desconsiderará as características pessoais dos contribuintes, em favor “... da consideração a elementos médios...”255 Sendo assim, perfaz-se pela manifestação de riqueza de determinado fato, na medida em que desconsidera as condições individuais de cada contribuinte, pois presume-se objetivamente. Assim sendo, a capacidade contributiva objetiva é aquela em que, por ser inviável – em termos de praticabilidade tributária – analisar caso a caso, minuciosamente, o caráter pessoal de cada cidadão, para tantos tributos, estabeleceu-se padrões em que presume-se a capacidade contributiva por consequência do contribuinte ser proprietário de determinado bem. Assim, se determinado bem é caracterizado como luxuoso, conjetura-se, por padrões pré-estabelecidos, que a sua capacidade contributiva é elevada. 254 255 Ibidem. p. 177. ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 78. 454 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Em suma, a capacidade contributiva objetiva revela-se pelo próprio ‘bem’, pois existe uma presunção de riqueza a partir do estado de propriedade desse, pouco importando fatores personalíssimos do sujeito passivo da tributação. 7.2 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA SUBJETIVA Entendido no que consiste a capacidade contributiva em seu prisma objetivo ou absoluto, por outro viés, a capacidade contributiva em seu prisma subjetivo diz respeito ao dever de se levar em conta as condições pessoais do sujeito passivo – contribuinte – com o objetivo de verificar se o mesmo possui aptidão econômica para com o ônus tributário. Assim, a capacidade contributiva subjetiva advém quando ocorre uma autêntica individualização do tributo, levando em apreço, de maneira individualista, circunstâncias pessoais e familiares de cada contribuinte. Para José Marcos Domingues de Oliveira, capacidade contributiva subjetiva diz respeito a parcela da riqueza que será objeto de tributação em face de condições individuais [...] sendo uma garantia à preservação das necessidades de subsistência e no padrão de vida que se revelará o conteúdo isonômico do princípio da capacidade contributiva, tratando portanto, desigualmente os desiguais.256 A capacidade contributiva subjetiva, então, serve como critério de graduação de impostos na medida em que o quantum que, determinado contribuinte, deve pagar a título de tributo está individualmente relacionado com a capacidade contributiva desse. É exatamente aqui, que ocorre a manutenção do ‘mínimo vital’ e que os tributos não alcancem efeitos de confisco. É importante deixar claro, que a capacidade contributiva subjetiva pressupõe, obrigatoriamente, a existência da objetiva, no seguinte sentido: o legislador, deve necessariamente, eleger situações que manifestem riqueza, ou seja, conteúdo econômico, para que sejam consideradas passíveis de sofrerem tributação. Após e tão somente, a existência de conteúdo econômico no fato eleito como tributável, passará a vigorar – dentro de certa viabilidade – a capacidade contributiva em seu sentido subjetivo, verificando, caso a caso, de maneira individual, a aptidão que o contribuinte possui para arcar com o ônus tributário. 256 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. DireitoTributário: Capacidade Conteúdo e Eficácia do Princípio. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 57. Contributiva: 455 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 8 CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E IMPOSTOS INDIRETOS Primeiramente faz-se necessário, mesmo que de maneira sucinta, estudar quais são e no que consiste os impostos ditos como indiretos. Ou seja, qual o critério de classificação para que determinados impostos sejam classificados como indiretos ao invés de diretos. Por diretos, tem-se aqueles impostos que são arrecadados pela pessoa política, sobre o patrimônio ou renda dos contribuintes. Assim, o ‘contribuinte de fato’ é o mesmo que o ‘contribuinte de direito’ na medida em que não tem a possibilidade de repassar o ônus tributário para outrem. Em outras palavras, por impostos diretos temos aqueles em que o ônus econômico recai, necessariamente, sobre o sujeito que praticou determinado fato previsto como passível de tributação. Tomando-se como exemplo o imposto de renda. Por outro lado, por impostos indiretos, tem-se aqueles que incidem sobre os produtos e serviços consumíveis, tendo a figura de ‘contribuinte de direito’ os produtores, fornecedores, comerciantes etc. Porém, são ditos indiretos, na medida em que permitem a possibilidade de repassar o ônus econômico à uma terceira pessoa – que não praticou o fato gerador previsto na hipótese de incidência como passível de tributação – porém, cabe à ela suportar a carga tributária da cadeia toda. Assim, os impostos indiretos, ao incidirem sobre os produtos e serviços, são recolhidos pelos ‘contribuintes de direito’ – aqueles que realizaram o fato jurídico previsto como passível ser tributado –, entretanto, possibilita-se que ônus econômico seja repassado para uma terceira pessoa – assim chamada de ‘contribuinte de fato’. Geralmente, nas relações de consumo, é o consumidor final quem se enquadra em ‘contribuinte de fato’ e, portanto, suporta todo o ônus econômico. Como exemplo de impostos indiretos hoje, temos o Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), Imposto sobre serviços (ISS), Imposto sobre produtos industrializados (IPI) etc. Em suma, frisa-se que, esta classificação, mesmo não sendo muito mais utilizada, é importante para o presente trabalho, na medida em que os tópicos seguintes estarão coligados à ela, de maneira a buscar uma explicação coesa para 456 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE a impossibilidade de se aplicar o princípio da capacidade contributiva, em seu prisma subjetivo, nos impostos então ditos indiretos. 8.1 IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA SUBJETIVA NOS IMPOSTOS INDIRETOS. Quando estudou-se a capacidade contributiva em seu prisma subjetivo, ficou claro que trata-se de uma individualização do tributo, ou seja, a capacidade contributiva do sujeito passivo de tributação é delineada considerando fatores personalíssimos, não havendo qualquer tipo de presunção objetiva ou padronização no momento da graduação do tributo. No universo dos impostos ditos indiretos, em que a tributação dá-se sobre os produtos e serviços pergunta-se: É possível a aplicação do princípio da capacidade contributiva em seu viés subjetivo nesta classe de impostos? Nos impostos indiretos, posiciona-se pela impossibilidade de aplicar o princípio da capacidade contributiva subjetiva, por consequência da inviabilidade de analisar, caso a caso, individualmente, as condições subjetivas de cada contribuinte ao adquirirem um produto ou serviço. Como nestes impostos, o ônus econômico é repassado pelos ‘contribuintes de direito’, – nas relações de consumo – aos consumidores finais (‘contribuintes de fato’), a impossibilidade apresenta-se tanto do ponto de vista fiscalizatório quanto arrecadatório. Impossível, pois não há como o fisco analisar, minuciosamente, caso a caso, as condições individuais dos consumidores finais no momento da aquisição de produtos ou serviços, para então, calcular o montante do tributo a ser cobrado. Exemplificando, é de total inviabilidade que duas pessoas, ao adquirirem o mesmo produto em um estabelecimento comercial, pagassem preços diferentes por ele, em consequência de um ser financeiramente melhor do que o outro. Inviabilidade por conta da impossibilidade de existir uma efetiva fiscalização e, por conseguinte, discriminação por parte do fisco. Ou seja, não existe como mensurar diferentes valores, a título de imposto, para mesmos produtos adquiridos por pessoas diferentes em razão de suas capacidades econômicas individuais, por conta do gigantesco número de ‘contribuintes de fato’ existentes. 457 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE É exatamente por consequência dessa situação, que aplica-se, aos impostos indiretos, a capacidade contributiva em seu prisma objetivo, ao passo que é presumido, objetivamente, a capacidade contributiva dos sujeitos pelos produtos ou serviços por eles adquiridos. Sendo assim, há uma ‘padronização’ dessa presunção, não levando em consideração, portanto, fatores pessoais. Consonante a mesma linha de pensamento segue Klaus Tipke, ao entender que se o princípio da capacidade contributiva realmente fosse minuciosamente aplicado por leis altamente diferenciadas, as leis tributárias, então não poderiam mais ser aplicadas isonomicamente, com o emprego razoável de ‘pessoal’ e ‘tempo’, vez que as autoridades fiscais têm milhões de contribuintes para fiscalizar.257 O princípio da praticabilidade tributária, implícito no ordenamento jurídico, porém relevante na imposição tributária indireta, atenua a intensidade dos conceitos de igualdade e de capacidade contributiva. Entretanto, compreende uma série de recursos que se destinam a simplificar e facilitar a execução em massa das normas. Contudo, mesmo autorizando a criação de presunções, ficções e simplificadores, não poderá desconsiderar a essência do princípio da igualdade e da capacidade contributiva.258 Logo, esta massificação e padronização, por consequência do preceito de praticabilidade tributária, está por concretizando, na medida do possível ede certa forma, o princípio da capacidade contributiva bem como o princípio maior da igualdade, concluindo Cassalta Nabais que “a ideia de praticabilidade exige do legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e econômica ou eficiente, ou seja, leis que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos.”259 257 258 259 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 38. COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e Justiça Tributária: Exequibilidade da lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 55. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998. p. 621. 458 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE 8.2 PRINCÍPIOS DA CONCRETIZADORES SELETIVIDADE DA CAPACIDADE E NÃO-CUMULATIVIDADE CONTRIBUTIVA OBJETIVA COMO NOS IMPOSTOS INDIRETOS No sentido que o princípio da praticabilidade tributária atenua sim a intensidade da capacidade contributiva, por questões de eficácia, economicidade e efetividade, por conta da imensa quantidade de contribuintes existentes e a impossibilidade de, nos impostos indiretos, analisar minuciosamente, caso a caso, a fim de utilizar-se dos fatores econômicos individuais subjetivos de cada sujeito para delinear a capacidade contributiva de cada um e, por fim, determinar o valor a ser pago a título de tributo. Contudo, isso não significa que o princípio da capacidade contributiva é afastado, completamente, na graduação destes tributos. Embora, tal presunção de capacidade econômica dê-se objetivamente, o princípio da capacidade contributiva é sim prestigiado, porém de forma ‘indireta’, se assim possível dizer, por consequência da aplicação dos princípios da não-cumulatividade e da seletividade. O princípio da não-cumulatividade é, na verdade, uma verdadeira aplicação do prestígio de capacidade contributiva objetiva nos impostos indiretos (IPI e ICMS), ao passo que, segundo Roque Antônio Carrazza, pela regra da não-cumulatividade o montante recolhido, a título de tributo, em cada operação tributária, formará um ‘crédito fiscal’que, então, será deduzido do quantum de imposto que irá pagar na próxima operação tributária.260 Ou seja, irá deduzir, do valor devido a título de imposto em cada operação tributária, o valor já pago na operação anterior. Pela regra da não-cumulatividade assegura-se a impossibilidade de uma mesma mercadoria ser multiplamente onerada pelo imposto, afastando aos contribuintes, a possibilidade de pagarem valores já debitados nas operações anteriores. Impede-se, portanto, que os impostos, no decorrer das inúmeras operações de circulação de produtos e prestações de serviços tornem-se um gravame cada vez mais oneroso, deixando-os restritivos.261 260 261 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 835-836. COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 100. 459 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Tal garantia impede que os subsequentes na cadeia de produção paguem impostos cada vez mais elevados, atingindo então, efeitos de confisco (princípio do não-confisco) e violando o princípio maior da igualdade. Homenageia-se, assim, a capacidade contributiva, aqui, uma vez que a essência da igualdade encontra-se neste, e para, além disso, está fortemente ligado ao princípio do não-confisco, na medida que este é pressuposto limitador daquele. Pelo princípio da seletividade, quanto mais essencial for determinado produto, menor deverá ser a alíquota incidente sobre este, ocasionando, desse modo, a redução do montante pago a título de imposto. O contrário também é verdadeiro, logo quanto menos essencial for um determinado produto, maior deverá ser a alíquota incidente sobre esse, aumentando, então, o valor pago a título de tributo. Fato é que o princípio da seletividade é uma garantia ao já estudado ‘mínimo vital’, uma vez que a lei maior, em seu artigo 7º garante, entre outros direitos sociais, o da necessidade básica, alimentação e saúde.262 Logo, os produtos essenciais, como por exemplo, ‘cesta básica’, devem, por força do princípio da seletividade, apresentar alíquotas – referentes ao ICMS e IPI –, reduzidas, preservando assim, os direitos sociais consagrados na lei maior. É nesse sentido, que posiciona-se no entendimento de que o princípio da seletividade, também, prestigia o conceito de capacidade contributiva, ao passo que a seletividade garante a impossibilidade de tributação do ‘mínimo vital’. Contudo, quem assegura o princípio do mínimo existencial, é o principio da capacidade contributiva, na medida em que só é passível de sofrer tributação a quantia a qual exceda este mínimo. Quando estudou-se a capacidade contributiva objetiva ou subjetiva, ficou claro que, na maioria dos casos, a capacidade contributiva no seu prisma subjetivo, não pode ser efetivamente aplicada, por questões não só de praticabilidade tributária, mas também por ineficácia e inviabilidade. Nestes casos, há uma ‘padronização’ e, portanto, pressupõe objetivamente que determinado sujeito apresenta capacidade contributiva por consequência de apresentar objetos que manifestam riqueza, sem, no entanto, levar em consideração qualidades individuais. 262 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: jul. 2015. 460 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Contudo é claro que, por se tratar de princípio constitucional decorrente do preceito maior da igualdade, a capacidade contributiva em hipótese alguma, pode ser totalmente afastada. Em relação aos impostos indiretos, sua inviabilidade assenta-se no viés subjetivo, entretanto, nada obsta a sua aplicabilidade de forma indireta, ou seja, em seu viés objetivo. 9 A DIFERENÇA ENTRE A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, A CAPACIDADE ECONÔMICA E A CAPACIDADE FINANCEIRA Visto que pelo princípio da capacidade contributiva a carga tributária, em cima do contribuinte, deve ser relacionada com sua aptidão para suportar o ônus tributário, ou seja, que possa ser suportada economicamente pelo contribuinte. Fazse necessário, contudo, distinguir os conceitos de três elementos que por parecerem semelhantes, gerou divergência doutrinária. Trata-se da capacidade contributiva, econômica e financeira. Por capacidade contributiva, como já foi visto, trata-se da relação existente entre a riqueza de um indivíduo e a carga tributária por ele suportada. Em outras palavras, as despesas públicas devem ser rateadas proporcionalmente entre os cidadãos. Assim, deve haver uma divisão equitativa das despesas estatais na medida da capacidade individual, dos contribuintes, em suportar o encargo fiscal, possibilitando, portanto, garantias e direitos fundamentais constitucionais tais como a livre iniciativa, propriedade privada, dignidade etc. Por sua vez, capacidade econômica é a simples manifestação de riqueza, ou seja, qualquer bem ou renda pertencente ao indivíduo será uma manifestação de riqueza e, portanto, caracterizará a existência de capacidade econômica. Assim sendo, fala-se na aptidão, genérica, para produzir ou dispor de riqueza, revelando, pelo menos, indícios de força econômica.263 Como bem disse Regina Helena Costa “[...] constituem unidades econômicas de possessão e de emprego de recursos produtivos ou de riqueza”.264 263 264 MOTA FILHO, Humberto Eustáquo César. Introdução ao Princípio da Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 80. COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 3. ed. atualiz. rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 26. 461 COLETÂNEA 5 – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA: GESTÃO E CONTROLE Por fim, capacidade financeira, está diretamente ligada à ideia de liquidez, 265 ou seja, terá capacidade financeira aquele que apresentar recursos suficientes necessários para liquidar suas obrigações, em seus tempos, assumidas. Em outras palavras, capacidade financeira é a condição que o sujeito apresenta para saldar suas dívidas, no tempo e na forma assumidas. Nessa ordem de ideias, é evidente que capacidade contributiva não é, necessariamente, demonstração de disponibilidade financeira, e, para, além disso, uma pessoa pode apresentar capacidade econômica, e ao mesmo tempo, não apresentar capacidade contributiva. Nesse mesmo sentido, um sujeito que adquire um salário mínimo ao mês, apresenta, sem sombra de dúvidas, capacidade econômica, na medida em que está se conceitua como a simples manifestação de riqueza, (bens, renda etc.), além disso, poderia, este mesmo sujeito, apresentar capacidade financeira, ao passo que consegue quitar, na forma e no tempo, suas obrigações. Porém, este mesmo sujeito não apresenta capacidade contributiva, pois com a capacidade econômica retida à um salário mínimo por mês, sua aptidão para com as despesas públicas é inexistente, uma vez que toda sua renda será destinada à manutenção do ‘mínimo vital’, conforme já estudado. Por outro lado, aquele que apresenta capacidade contributiva, deve, necessariamente, manifestar capacidade econômica, ao passo que aquela pressupõe esta. Ora, veja, se a tributação está relacionada com manifes