18 APCD Jornal - Abril 2012 COMPORTAMENTO Por que as pessoas mentem? Embora a mentira em si não seja uma patologia, ela pode estar associada a transtornos graves de comportamento que devem ser tratados Por Swellyn França Muitos especialistas afirmam que é impossível passar um dia inteiro sem mentir e que todas as pessoas mentem. De acordo com alguns estudos, mentimos pelo menos duas vezes a cada dez minutos de conversação; 25% das vezes em que falamos. O mestre em Psicologia e aluno especial do Programa de Doutorado em Ciências da Reabilitação com ênfase em Neuropsicologia do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade São Paulo (HRAC-USP), Rui Mateus Joaquim, explica que até é possível que alguém passe o dia todo sem mentir, contudo, o contrário – não passar sequer um dia sem mentir - é algo extremamente comum. “Não necessariamente inventamos algo, porém, omitimos fatos ou, às vezes, negamos com a boca sentimentos que experimentamos durante uma conversa.” Ele alerta, no entanto, que mentimos com as palavras, mas nosso corpo e microexpressões faciais deixam escapar sinais emocionais contraditórios daquilo que elaboramos no discurso. Mas, por que as pessoas mentem? Para o psiquiatra, integrante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), William Dunningham, as mentiras fazem parte do desenvolvimento e da aprendizagem infantil como subterfúgio para a fuga de castigos, a obtenção de recompensas, o reforço de sua independência ante os pais e a criação de um mundo interior. Em outro estágio, a mentira passa a ser uma estratégia natural da comunicação humana, um recurso social, às vezes justificável, dependen- do dos danos que uma verdade pode causar. “Os adultos também fazem uma leitura particular do mundo alterando a realidade, às vezes, recorrendo a mentiras para obter, manter ou evitar alguma coisa”. O especialista em Neuropsicologia, Rui Mateus, concorda: “mentimos para esconder ou para conseguir algo. Muitos organismos se utilizam de táticas de dissimulação comportamental em suas atividades predatórias ou de defesa. Penso que a origem da mentira esteja intimamente associada à evolução e surgimento do neocórtex humano (região do cérebro mais recentemente evoluída) e sua extraordinária capacidade de abstração e representação simbólica. Manipular elementos abstratos, concatenar lógicas sobre os eventos da vida, ser sensível à suas consequências e planejar estratégias verbais de ação para minimizar possíveis danos requer um sofisticado nível de processamento da informação; requer um cérebro humano. A mentira, às vezes, ocorre por uma necessidade de ser educado. Aprendemos a mentir educadamente, por exemplo, quando ganhamos um presente que odiamos e respondemos ‘Que lindo, adorei, muito obrigado!’”, esclarece Rui Mateus. Quando o ato de mentir pode ser um problema A mitomania é a tendência compulsiva para mentir. “Comumente, as mentiras dos mitomaníacos estão relacionadas a assuntos específicos, no entanto, podem ser ampliadas e atingir outras questões em casos considerados mais graves. Por exemplo, um adolescente cujo pai o maltrata pode inventar para os colegas que a sua relação com o pai é boa e divertida, contando sobre passeios e conversas amistosas que nunca existiram. Justamente pelos mitômanos não possuírem consciência plena daquilo que comunicam por meio da palavra, costumam iludir os outros em histórias de fins únicos e práticos, com o intuito Mentirinha de criança Mentir é, na maioria das vezes, uma fonte de reforço admirável. Segundo o psicólogo, Rui Mateus, há estudos que relacionam competência social das crianças com habilidade em mentir. “Crianças começam a distinguir entre uma emoção real e uma emoção aparente durante a fase pré-escolar (3-4 anos), embora façam isso de maneira rudimentar, visto que crianças nesta idade ainda têm dificuldades de verbalizar seu entendimento sobre o porquê percebem uma emoção como real ou não. Por volta dos seis anos, elas são capazes de relatar quando e porque precisam mentir e já começam a compreender como esse comportamento pode afetar as pessoas. Entre dez e 11 anos, as crianças se tornam mais capazes de controlar suas expressões faciais e outros fatores envolvidos na interação social”. Embora o psiquiatra William considere que entre os três e os sete anos seja normal que a criança misture realidade com fantasia, as ‘mentirinhas’ propositais que surgem para livrar a criança do que ela não quer fazer ou a ajudam a fugir de uma responsabilidade, devem ser combatidas com firmeza, calma e amor. “Não se deve castigar ou chamar uma criança de mentirosa, mas é preciso que os pais conversem com ela para descobrir porque a verdade foi camuflada e qual a origem da mentira.” de suprirem aquilo que falta em suas vidas”, elucida o psiquiatra, William Dunningham. Atualmente, a Psiquiatria e a Psicologia não reconhecem mais a mentira como um transtorno em si. Porém, este comportamento associado a outros sintomas ajuda a identificar transtornos mentais importantes. Do ponto de vista da Psicopatologia, alguns tipos de transtornos psiquiátricos fazem do comportamento de mentir um ato compulsivo. “Neste sentido, a mitomania pode ser considerada uma síndrome mental grave, que ocorre mais frequentemente em transtornos de personalidade (antissocial, histriônica, borderline etc.), nas dissociações histéricas graves, em retardo mental leve e em quadros maníacos do transtorno bipolar, sendo necessário que os indivíduos recebam a devida atenção por parte dos amigos e familiares”, reforça William. O psicólogo Rui Mateus Joaquim fala sobre alguns destes transtornos: Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), também muito conhecido como Transtorno de Personalidade Borderline (TPB): É definido como um grave transtorno de personalidade caracterizado por desregulação emocional, raciocínio extremista e relações caóticas. “Vão de um extremo ao outro muito rápido. Em um dia são os melhores amigos; no outro os piores inimigos. O transtorno é mais comum em adolescentes. Por que mentem? Buscam ocultar as consequências dos atos de sua identidade instável”; Tra ns t o r n o d e Pe rs o n a l i d a d e Antissocial: É caracterizado pelo comportamento impulsivo do indivíduo afetado, desprezo por normas sociais e indiferença aos direitos e sentimentos dos outros. “Não sentem remorso, não internalizam regras sociais ou legais e não zelam pela própria segurança e a dos outros. Por que mentem? Assim sentem prazer, tiram vantagem pessoal e também fogem de obrigações”. Tra ns t o r n o d e Pe rs o n a l i d a d e Histriônica: Se distingue por um padrão de emocionalidade excessiva e necessidade de chamar atenção para si mesmo. “Precisam estar sempre nos centro das atenções. Para isso, usam artimanhas sedutoras. Quando rejeitados, partem para o drama. Por que mentem? Isso atrai a atenção dos outros em relatos dramáticos (e inventados)”; Transtorno da Personalidade Narcisista: Se estabelece por um padrão invasivo de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. “Acham que são superiores e usam todos os meios para parecerem os maiorais. Por que mentem? Aumentando suas realizações, os narcisistas garantem a fama, a glória e a admiração que eles acreditam merecer.” O psicólogo volta a afirmar que mentir é uma defesa psicológica, um mecanismo adaptativo adquirido pela espécie em sua história evolutiva e, por isso, não há um tratamento para a mentira. Contudo, quando a mentira aparece como elemento importante em vários tipos de transtornos de personalidade esses, sim, devem ser tratados. De acordo com o psiquiatra William Dunningham, o tratamento do indivíduo consiste na implementação de cuidados que associam o tratamento psiquiátrico do transtorno mental subjacente a um acompanhamento psicoterapêutico, que vise à expansão da consciência, o fortalecimento do self (o eu, o si mesmo), e o aumento da autoestima. “Dentre os diversos tipos de Psicoterapia, a Psicoterapia Centrada na Pessoa, criada por Carl Ranson Rogers (1902/1987) e a terapia cognitivo-comportamental costumam ter efeitos mais consistentes e duradouros. É importante nunca negar à pessoa o acesso à Psicoterapia, sendo este a chave para a remissão, até mais importante que o tratamento psiquiátrico ‘stricto sensu’”, considera William. Rui Mateus acrescenta que os transtornos de personalidade citados anteriormente por ele apresentam diferentes motivos para o comportamento de mentir, conforme as características próprias do transtorno. “Entretanto, há algo em comum entre eles; todos os motivos devem produzir, na maioria das vezes, consequências positivas para quem mente. Ocultando as consequências desastrosas, o indivíduo afasta as consequências negativas, como a pena que seria imposta, a inimizade de alguém etc., e, às vezes, atrai coisas boas como a atenção das pessoas, admiração etc. Sob a ótica da análise do comportamento, mentir é extremamente reforçador. O Behaviorismo Radical de Skinner (B. F. Skinner, um dos maiores psicólogos do século XX), demonstrou que a frequência e a manutenção do comportamento dos organismos dependem das consequências e dos efeitos produzidos por este comportamento.”