Por que as pessoas mentem? - Associação Brasileira de Psiquiatria

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APCD Jornal - Abril 2012
COMPORTAMENTO
Por que as pessoas mentem?
Embora a mentira em si não
seja uma patologia, ela pode
estar associada a transtornos
graves de comportamento
que devem ser tratados
Por Swellyn França
Muitos especialistas afirmam que é
impossível passar um dia inteiro sem
mentir e que todas as pessoas mentem. De
acordo com alguns estudos, mentimos pelo
menos duas vezes a cada dez minutos de conversação; 25% das vezes em que falamos.
O mestre em Psicologia e aluno especial
do Programa de Doutorado em Ciências da
Reabilitação com ênfase em Neuropsicologia
do Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da Universidade São Paulo
(HRAC-USP), Rui Mateus Joaquim, explica que
até é possível que alguém passe o dia todo sem
mentir, contudo, o contrário – não passar sequer um dia sem mentir - é algo extremamente comum. “Não necessariamente inventamos
algo, porém, omitimos fatos ou, às vezes, negamos com a boca sentimentos que experimentamos durante uma conversa.” Ele alerta, no
entanto, que mentimos com as palavras, mas
nosso corpo e microexpressões faciais deixam
escapar sinais emocionais contraditórios daquilo que elaboramos no discurso.
Mas, por que as pessoas mentem? Para o
psiquiatra, integrante da Associação Brasileira
de Psiquiatria (ABP), William Dunningham, as
mentiras fazem parte do desenvolvimento e
da aprendizagem infantil como subterfúgio
para a fuga de castigos, a obtenção de recompensas, o reforço de sua independência ante
os pais e a criação de um mundo interior. Em
outro estágio, a mentira passa a ser uma estratégia natural da comunicação humana, um
recurso social, às vezes justificável, dependen-
do dos danos que uma verdade pode causar.
“Os adultos também fazem uma leitura particular do mundo alterando a realidade, às vezes, recorrendo a mentiras para obter, manter
ou evitar alguma coisa”.
O especialista em Neuropsicologia, Rui
Mateus, concorda: “mentimos para esconder
ou para conseguir algo. Muitos organismos
se utilizam de táticas de dissimulação comportamental em suas atividades predatórias
ou de defesa. Penso que a origem da mentira esteja intimamente associada à evolução
e surgimento do neocórtex humano (região
do cérebro mais recentemente evoluída) e sua
extraordinária capacidade de abstração e representação simbólica. Manipular elementos
abstratos, concatenar lógicas sobre os eventos
da vida, ser sensível à suas consequências e
planejar estratégias verbais de ação para minimizar possíveis danos requer um sofisticado
nível de processamento da informação; requer um cérebro humano. A mentira, às vezes,
ocorre por uma necessidade de ser educado.
Aprendemos a mentir educadamente, por
exemplo, quando ganhamos um presente que
odiamos e respondemos ‘Que lindo, adorei,
muito obrigado!’”, esclarece Rui Mateus.
Quando o ato de mentir
pode ser um problema
A mitomania é a tendência compulsiva
para mentir. “Comumente, as mentiras dos
mitomaníacos estão relacionadas a assuntos
específicos, no entanto, podem ser ampliadas
e atingir outras questões em casos considerados mais graves. Por exemplo, um adolescente cujo pai o maltrata pode inventar para os
colegas que a sua relação com o pai é boa e
divertida, contando sobre passeios e conversas
amistosas que nunca existiram. Justamente
pelos mitômanos não possuírem consciência
plena daquilo que comunicam por meio da
palavra, costumam iludir os outros em histórias de fins únicos e práticos, com o intuito
Mentirinha de criança
Mentir é, na maioria das vezes, uma
fonte de reforço admirável. Segundo o psicólogo, Rui Mateus, há estudos que relacionam competência social das crianças com
habilidade em mentir. “Crianças começam
a distinguir entre uma emoção real e uma
emoção aparente durante a fase pré-escolar (3-4 anos), embora façam isso de maneira rudimentar, visto que crianças nesta idade ainda têm dificuldades de verbalizar seu
entendimento sobre o porquê percebem
uma emoção como real ou não. Por volta
dos seis anos, elas são capazes de relatar
quando e porque precisam mentir e já começam a compreender como esse comportamento pode afetar as pessoas. Entre dez e
11 anos, as crianças se tornam mais capazes
de controlar suas expressões faciais e outros
fatores envolvidos na interação social”.
Embora o psiquiatra William considere que entre os três e os sete anos seja
normal que a criança misture realidade
com fantasia, as ‘mentirinhas’ propositais que surgem para livrar a criança do
que ela não quer fazer ou a ajudam a
fugir de uma responsabilidade, devem
ser combatidas com firmeza, calma e
amor. “Não se deve castigar ou chamar
uma criança de mentirosa, mas é preciso que os pais conversem com ela para
descobrir porque a verdade foi camuflada e qual a origem da mentira.”
de suprirem aquilo que falta em suas vidas”,
elucida o psiquiatra, William Dunningham.
Atualmente, a Psiquiatria e a Psicologia
não reconhecem mais a mentira como um
transtorno em si. Porém, este comportamento
associado a outros sintomas ajuda a identificar transtornos mentais importantes. Do ponto de vista da Psicopatologia, alguns tipos de
transtornos psiquiátricos fazem do comportamento de mentir um ato compulsivo.
“Neste sentido, a mitomania pode ser
considerada uma síndrome mental grave, que
ocorre mais frequentemente em transtornos
de personalidade (antissocial, histriônica, borderline etc.), nas dissociações histéricas graves,
em retardo mental leve e em quadros maníacos
do transtorno bipolar, sendo necessário que os
indivíduos recebam a devida atenção por parte
dos amigos e familiares”, reforça William.
O psicólogo Rui Mateus Joaquim fala
sobre alguns destes transtornos:
Transtorno de Personalidade Limítrofe
(TPL), também muito conhecido como
Transtorno de Personalidade Borderline
(TPB): É definido como um grave transtorno de
personalidade caracterizado por desregulação
emocional, raciocínio extremista e relações
caóticas. “Vão de um extremo ao outro muito
rápido. Em um dia são os melhores amigos; no
outro os piores inimigos. O transtorno é mais
comum em adolescentes. Por que mentem?
Buscam ocultar as consequências dos atos de
sua identidade instável”;
Tra ns t o r n o d e Pe rs o n a l i d a d e
Antissocial: É caracterizado pelo comportamento impulsivo do indivíduo afetado,
desprezo por normas sociais e indiferença
aos direitos e sentimentos dos outros. “Não
sentem remorso, não internalizam regras
sociais ou legais e não zelam pela própria
segurança e a dos outros. Por que mentem?
Assim sentem prazer, tiram vantagem pessoal e também fogem de obrigações”.
Tra ns t o r n o d e Pe rs o n a l i d a d e
Histriônica: Se distingue por um padrão de
emocionalidade excessiva e necessidade de
chamar atenção para si mesmo. “Precisam
estar sempre nos centro das atenções. Para
isso, usam artimanhas sedutoras. Quando
rejeitados, partem para o drama. Por que
mentem? Isso atrai a atenção dos outros em
relatos dramáticos (e inventados)”;
Transtorno da Personalidade Narcisista:
Se estabelece por um padrão invasivo de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de
empatia. “Acham que são superiores e usam
todos os meios para parecerem os maiorais. Por
que mentem? Aumentando suas realizações, os
narcisistas garantem a fama, a glória e a admiração que eles acreditam merecer.”
O psicólogo volta a afirmar que mentir é
uma defesa psicológica, um mecanismo adaptativo adquirido pela espécie em sua história
evolutiva e, por isso, não há um tratamento
para a mentira. Contudo, quando a mentira
aparece como elemento importante em vários
tipos de transtornos de personalidade esses,
sim, devem ser tratados.
De acordo com o psiquiatra William
Dunningham, o tratamento do indivíduo
consiste na implementação de cuidados que
associam o tratamento psiquiátrico do transtorno mental subjacente a um acompanhamento psicoterapêutico, que vise à expansão
da consciência, o fortalecimento do self (o
eu, o si mesmo), e o aumento da autoestima.
“Dentre os diversos tipos de Psicoterapia, a
Psicoterapia Centrada na Pessoa, criada por
Carl Ranson Rogers (1902/1987) e a terapia cognitivo-comportamental costumam
ter efeitos mais consistentes e duradouros. É
importante nunca negar à pessoa o acesso à
Psicoterapia, sendo este a chave para a remissão, até mais importante que o tratamento
psiquiátrico ‘stricto sensu’”, considera William.
Rui Mateus acrescenta que os transtornos de personalidade citados anteriormente por ele apresentam diferentes motivos
para o comportamento de mentir, conforme as características próprias do transtorno.
“Entretanto, há algo em comum entre eles;
todos os motivos devem produzir, na maioria
das vezes, consequências positivas para quem
mente. Ocultando as consequências desastrosas, o indivíduo afasta as consequências
negativas, como a pena que seria imposta,
a inimizade de alguém etc., e, às vezes, atrai
coisas boas como a atenção das pessoas, admiração etc. Sob a ótica da análise do comportamento, mentir é extremamente reforçador. O Behaviorismo Radical de Skinner (B. F.
Skinner, um dos maiores psicólogos do século
XX), demonstrou que a frequência e a manutenção do comportamento dos organismos
dependem das consequências e dos efeitos
produzidos por este comportamento.”
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