edgar allan poe a filosofia da composição prefácio tradução pedro süssekind léa viveiros de castro sumário . 9 prefácio A lição aristotélica de Poe [Pedro Süssekind] 17 A filosofia da composição 35 The raven 43 O corvo [tradução de Fernando Pessoa] 51 O corvo [tradução de Machado de Assis] 61 Edições consultadas prefácio a lição aristotélica de poe Normalmente cabe aos críticos a tarefa de desvendar uma obra de arte, de revelar o processo por meio do qual o poeta chegou àquele resultado que foi publicado, ao poema pronto e acabado que os leitores conhecem. Um determinado tipo de crítica, que busca explicar a obra pelo seu criador, recorre à pesquisa de cartas, entrevistas, testemunhos, a todas as informações biográficas disponíveis, em busca da frase que possa esclarecer qual foi o ponto de partida para a composição poética: um sonho, uma ideia que ganhou forma lentamente, uma observação casual, uma reflexão ou uma opção consciente para atingir o efeito visado. Da mesma maneira, a análise dos elementos formais do poema, privilegiada por outro tipo de crítica, traz à tona os recursos que justificam as opções e as realizações do poeta – as rodas e engrenagens, as escadas e alçapões da “teatralidade literária”, para usar expressões de Edgar Allan Poe. É muito raro que o próprio artista assuma o papel do crítico e revele, em primeira mão, o modus operandi da com9 posição de uma de suas obras, como Poe se propõe a fazer no ensaio “A filosofia da composição” sobre o poema “O corvo”. Teoricamente, do ponto de vista da filosofia da arte que concebeu a noção romântica do gênio artístico, o poeta não pode e não sabe desempenhar esse papel. É célebre a sentença de Kant, na Crítica da faculdade do juízo, a respeito da incapacidade que os artistas têm de explicar a sua criação e, por isso, de ensinar sua arte: [...] nenhum Homero ou Wieland pode indicar como suas ideias ricas de fantasia e, contudo, ao mesmo tempo densas de pensamento surgem e se reúnem em suas cabeças.1 Segundo a concepção kantiana, o gênio artístico é um dom, um talento inato de produzir aquilo para o qual não se pode dar nenhuma regra determinada, pré-estabelecida. Como esse talento é algo natural, que se opõe ao espírito de imitação e a qualquer procedimento que obedeça a regras, o artista não pode e não sabe descrever ou indicar cientificamente a sua maneira de produzir. Contrariando a concepção kantiana e, em geral, a noção romântica do gênio artístico, Poe decidiu presentear os críticos e os leitores presentes e futuros com a sua filosofia da composição poética. Ele pretende revelar aquilo que, talvez por omissão, talvez por vaidade, talvez para dar a impressão de um êxtase intuitivo da inspiração, a maioria dos escritores não permite que o público conheça. Próximo de uma perspectiva formalista, o projeto de Poe é deixar claro que a obra chega a seu resultado final, passo a passo, “com a precisão e a rígida consequência de um problema matemático”, ou seja, ele quer 1 Immanuel Kant. Crítica da faculdade do juízo, § 47. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 341. 10 mostrar que o efeito alcançado – a beleza da obra e a emoção despertada no leitor – resulta de uma organização de elementos formais cuidadosamente pensada. Umberto Eco, num ensaio sobre a atualidade da Poética de Aristóteles, considera o texto de Poe sua “experiência aristotélica decisiva”.2 Essa declaração, que pode parecer desconcertante ou pelo menos curiosa, por parte de um estudioso da tradição aristotélica, tem uma razão muito simples: “O escândalo deste texto é que seu autor explica a regra mediante a qual conseguiu dar a impressão de espontaneidade, e esta é a mesma lição que nos vem da Poética [...]”. Nesse texto em que analisa “palavra por palavra, estrutura por estrutura a razão de ser de seu ‘O corvo’ ”, Poe teria evidenciado para Umberto Eco a presença da lição aristotélica na crítica literária moderna. A análise específica do poema “O corvo”, tomado como exemplo de composição, identifica recursos e estratégias do procedimento poético em geral. Para Umberto Eco, esse ensaio “fascinante e ambíguo”, em que o autor se coloca como “leitor crítico de sua própria obra”, resume algumas das questões características do debate em torno da Poética aristotélica e de sua tradição. Trata-se de prescrições para outros poetas ou de uma teoria da arte em geral, ou seja, de uma teoria normativa ou de uma teoria descritiva? Como o efeito a ser alcançado orienta o processo de criação da obra? Como se relacionam o conteúdo e a forma do poema num determinado gênero? Umberto Eco afirma que o texto de Poe é “aristotélico em seus princípios inspiradores, em seus fins, em seus resultados e em suas ambiguidades”, porque pretende revelar as regras de composição a partir da descrição de uma obra particu2 Umberto Eco. “A Poética e nós”. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 221. 11 lar, pensando essas regras em função do efeito visado pelo artista. Assim, é a finalidade, concebida como a beleza da obra capaz de despertar uma “intensa e pura elevação da alma”, que orienta cada passo do processo de elaboração do poema, desde as escolhas das imagens e personagens, até o ritmo e a métrica. Ao mesmo tempo, ainda segundo Eco, sua análise de “O corvo” poderia ter sido feita por um crítico moderno como Jakobson, pois a leitura feita por Poe indica a importância dos elementos linguísticos, propriamente literários, que um teórico da literatura analisaria no século xx. O interesse de Poe é questionar a imagem romântica do artista inspirado e, por meio de um exemplo, discutir a relação entre o pensamento e a imaginação na poesia. Ao fazer esse exercício como leitor de si mesmo, escolhendo seu poema mais conhecido para expor a matemática e as engrenagens de sua “teatralidade literária”, o autor de “O corvo” apresenta um tipo de autorreflexão que caracterizaria posteriormente a poesia moderna. Como crítico, ele não estava interessado em justificar o poema segundo critérios formais estabelecidos para sua aprovação ou reprovação, mas em expor as questões linguísticas e poéticas por trás da beleza aparentemente espontânea da obra finalizada. Com suas ambiguidades entre a ciência descritiva e a normativa, entre o formalismo e a contextualização biográfica, o ensaio “A filosofia da composição” assume a tarefa da crítica de uma maneira que renova a tradição filosófica de reflexão sobre a arte, em diálogo com a antiga tradição da poética dos gêneros e com a moderna teoria literária. Pedro Süssekind 12