PERTINÊNCIA DA CATEGORIA RURAL PARA ANÁLISE DO SOCIAL DALVA MARIA DA MOTA1 HERIBERT SCHMITZ2 “O ´ambiente` soa como um contexto externo à ação humana. Porém as questões ecológicas só vieram à tona porque o ´ambiente` na verdade não se encontra mais alheio à vida social humana, mas é completamente penetrado e reordenado por ela. Se houve um dia em que os seres humanos souberam o que era a ´natureza`, agora não o sabem mais. Atualmente, o que é natural está tão intrincadamente confundido com o que é ´social`, que nada mais pode ser afirmado como tal, com certeza”( Beck, U.; Giddens, A.; & Lash, S. 1997:2). RESUMO – É pertinente falar do rural, no Brasil? A contar pela efervescência das discussões e pela diversidade de posições existentes pode-se afirmar que sim. A hipótese central é que o rural tem pertinência como categoria de análise do social e que, não obstante, as ondas de transformação que experimenta têm particularidades que podem ser constatadas por meio das atividades econômicas da paisagem, dos atores, das relações de trabalho e das representações sociais. No entanto, essa questão só tem pertinência quando é pensada de forma relacional, ou seja, o rural em relação ao urbano ou mesmo em relação a outros rurais , o que implica na abordagem da questão da mudança social. As discussões demonstram que no meio acadêmico brasileiro existem basicamente duas formas de abordagem do rural: uma, que propugna o fim do rural, pelo transbordamento do mundo urbano, e outra, que reconhece a existência de ruralidades, expressas de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos. Nas duas posições, o que está em jogo é a concepção que se tem da mudança social como resultante das ações que os homens exe rcem nas suas formas de convivência ou na forma como a sociedade impõe suas exigências às ações dos seus integrantes. Por último, são apresentadas pistas para futuras investigações, como, por exemplo, as influências da sociedade rural sobre as urbanas. TERMOS PARA INDEXAÇÃO: Rural, ruralidade, rural/urbano. ABOUT THE PERTINENCY OF THE RURAL CATEGORY FOR SOCIAL ANALYSIS ABSTRACT – Is it pertinent to talk about the rural in Brazil? Based on the excitement of the discussions and the diversity of opinions we can confirm that. The central hypothesis is that the rural has pertinency as category of the social analysis and that, despite of the waves of change it experiences, it has characteristics which may be observed through the economical activities, the landscape, the participants, the working relations and the social representations. However, this question is only pertinent when thought in a relational way, that is the rural related to the urban or even related to other rurals, which involves the social changes topic. The discussions show that in the Brazilian academic groups there are basically two forms of rural approach: one which predicts the end of the rural through the expansion of the urban world; and another which recognises the existence of ruralities, expressed of different forms, in cultural, social and economical heterogeneous universes. In the two evidenced positions, what is discussed is the conception people have of the social change as resulting from actions men show in their ways of living or as the society imposes its demands to the actions of its participants. In the conclusions some clues are presented for further research, such as, the influence of the rural societies over the urban ones. INDEX TERMS: Rural, rurality, rural/urban. 1. Socióloga Rural, M.Sc., Pesquisadora da Embrapa Tabuleiros Costeiros e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] 393 2. Professor Visitante e Coordenador do Curso de Mestrado e m Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável, NEAF/CAP/UFPA, Belém - PA; Supervisor Externo do Projeto Lumiar do INCRA. Caixa Postal 101; CEP 66.017.970 - Belém-PA; Tel. (091) 225-4336; Fax 241-8913 E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO Teve-se como objetivo central deste ensaio discutir a pertinência da categoria "rural" para análise dos diferentes processos sociais em curso nas áreas rurais brasileiras. A discussão se origina de diferentes teses defendidas, no Brasil e no mundo, dentre as quais destacam-se a dicotomia campo/cidade, o fim do rural ou a urbanização geral da sociedade, e aquela que advoga a existência de ruralidades expressas de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos. A hipótese central é que o rural tem pertinência como categoria de análise do social e que, não obstante, as ondas de transformação que experimenta têm particularidades que podem ser constatadas por meio das atividades econômicas, das formas de ocupação do espaço, da paisagem, dos atores, das relações de trabalho e das representações sociais Em face da problemática levantada, considera-se importante destacar cinco pressupostos que influenciam no caminho adotado para discussão da questão central deste ensaio. A primeira é que a cada dia é mais intenso o fluxo de informações, pessoas, materiais, energia, etc., entre as diferentes áreas geográficas, sejam elas pertinentes à sociedade nacional ou global, o que intensifica a produção de valores e comportamentos que alimentam e transformam padrões específicos das diferentes sociedades. No entanto, tal processo não resulta na uniformização das diferentes áreas, podendo-se observar especificidades locais que, muitas vezes, por serem diferentes firmam-se como pontos de atração. A segunda, conforme já constatado por diferentes analistas, é que as atividades econômicas no meio rural tendem a se diversificar. Assim, o campo não é lugar apenas de agricultura, muito embora, no Brasil, essa ainda seja a atividade predominante. A terceira é o reconhecimento de um espaço rural, com características suficientes para ser diferenciado do urbano. Nesse sentido, o rural é lugar de agricultura e de outras atividades, mas identificado como portador de particularidades evidenciadas em uma estrutura social pautada no interconhecimento dos seus membros, na organização da vida cotidiana - influenciada pelos ciclos da natureza -, e em regras específicas de convivência que se diferenciam dos citadinos, a exemplo das regras de herança. Essas particularidades, dentre outras, são reconhecidas, inclusive, nas políticas públicas direcio- nadas para os grupos sociais residentes no meio rural. Esse reconhecimento é também demonstrado pelos citadinos, que cada vez mais buscam o espaço rural como lugar de morada, sinônimo de melhores condições de v ida (tranqüilidade, espaço e preços), em oposição à cidade. A quarta é a representação dos mundos rural e urbano explicitada pelos atores sociais nos seus movimentos de pertença ou não pertença a determinados grupos. Isso significa que existe uma memória social relativa às diferenças existentes entre esses dois mu ndos. Essa memória, por sua vez, tanto recupera elementos pré-existentes como os cria, oferecendo uma sugestão de delimitação de áreas de pesquisa aos estudiosos do tema. Pode-se relacionar essas representações à criação de um fértil mercado, associado ao mundo rural, a exe mplo das festas de rodeio, vaquejadas, música sertaneja, forró, etc. A quinta e última é que, apesar das transformações da agricultura brasileira nas últimas décadas, não houve um processo de homogeneização das diferentes áreas, ou seja, a inclusão (total ou parcial) ou alijamento de determinados grupos pelas políticas modernizadoras da agricultura terminaram por imprimir um “campo” semeado de particularidades, a depender da forma como os grupos reagiram a essa ou aquela iniciativa. Assim, é apropriado falar-se de "ruralidades" no contexto nacional. Levando em conta essas considerações preliminares, o trabalho está organizado em três partes: a primeira, que aborda o rural sob a ótica da mudança social, trazendo à discussão as duas principais posições evidenciadas na literatura brasileira; a segunda, que analisa a utilização de determinadas categorias, como, por exe mplo, espaço, atividades, paisagem e atores como possibilidades de análise do rural, chamando a atenção para as múltiplas faces do rural como espaço de diferentes realizações. Por último, apresentam-se as observações finais e possíveis pistas para futuras investigações. A mudança social e a questão rural O estudo da pertinência da categoria "rural" para análise do social remete a uma questão mais ampla, qual seja, aquela da mudança social, como processo que assume feições particulares onde ocorre e é resultante de diferentes causas. Ciênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 394 No geral, os estudos que abordam o rural, não importam quais sejam os seus enfoques, trazem sempre embutidos, no seu conteúdo, uma concepção de mudança social que influencia na forma de analisar o lugar que o rural assume na morfologia social, seja como extensão do urbano ou em oposição ao mesmo. O estudo do rural, nas suas mais variadas dimensões, revela-se como uma possibilidade de compreensão de como se operam transformações em espaços precisos de uma dada sociedade e quais os reflexos das mesmas na dinâmica dessa sociedade. É importante observar que desde os precursores da sociologia, a concepção da mudança social já era discutida, tendo por parâmetro a oposição rural/urbano. Segundo Valade (1995), Durkheim, em sua obra “A Divisão Social do Trabalho”, já firma uma oposição entre o mundo rural - caracterizado sobretudo pela tradição, pela resistência às mudanças, pelo respeito ao passado por parte dos indivíduos – e as cidades – consideradas focos incontestáveis do progresso, lugar de geração de idéias, modos e costumes e necessidades que se expandem para o resto do País. O autor afirma que se pode ler na obra de Durkheim que a tradição enfraquece com as migrações e com a urbanização, o que, na nossa leitura, já anunciava a diminuição da importância do rural na sociedade moderna. Mas, que fatores levariam a essa diminuição de importância ou mesmo à extinção do rural? Essa questão remete a uma outra, que é: os fatores da mudança social, pensada de forma relacional rural/urbano. Pode-se encontrar na literatura inúmeras posições. Segundo Boudon (1995), Durkheim a associa à ordem demográfica; na teoria marxista, está associada às transformações que afetam a infra-estrutura; para R. Dahrendorf, está centrada na partilha desigual da autoridade e da influência, dentre outras associações. Bottomore (1987) alerta para a lacuna existente nas teorias acerca do papel desempenhado respectivamente pelos indivíduos e pelas forças sociais no aparecimento da mudança, e chama a atenção para a diversidade de posições existentes e a dificuldade de integrá-las em uma única teoria. Para ele, outra controvérsia importante está relacionada com o papel dos fatores materiais e das idéias na mudança social, expressa pela pelas posições de Marx e Weber sobre as origens do capitalismo moderno: “ Weber argumentava não se tratar de acreditar que ´as idéias governam o mundo`, mas de que, em certas situações históricas, idéias ou doutrinas podem, independentemente, afetar a direção da mudança social (....). Na própria teoria da mudança de Marx, as ´forças produtivas` são um Ciênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 elemento determinante, mas essas forças não são mais do que aplicações da ciência e da tecnologia, seu desenvolvimento só pode significar o aumento do conhecimento e das idéias científicas e técnicas” (Bottomore, 1987:280). Diante da diversidade de pensamento e das oposições que se formam, concorda-se com Valade (1995), ao afirmar que: “Um número considerável de mudanças observadas assume um caráter misto, endógenoexógeno; associa processos reprodutivos e processos transformadores. O que muda numa sociedade, o ritmo da mudança, os fatores que contribuem para sua evolução, o sentido das transformações que se processam aí não podem ser formulados por uma lei, nem explicados por uma teoria de âmbito universal. A crença em causas determinantes e em estruturas fundamentais resulta de um preconceito determinista, que serve apenas para corroborar a razão em seu poder de domínio conceitual e de previsibilidade. A escolha das variáveis explicativas deriva de óticas isoladas ou de opções ideológicas: não é dissociável da questão que nos propomos estudar nem de uma lógica dos sentimentos” (Valade, 1995:349). Mas como têm sido interpretados os processos de mudança social na agricultura brasileira? A priori, pode-se destacar duas posições bem marcantes. A primeira é liderada por Silva (1997), para quem o meio rural brasileiro urbanizou-se nas duas últimas décadas, como resultante do processo de industrialização da agricultura, de um lado, e, de outro, do transbordamento do mu ndo urbano naquele espaço que tradicionalmente era definido como rural. Como resultado desse duplo processo de transformação, a agricultura integrou-se ao restante da economia a ponto de não mais poder ser separada dos setores que lhe fornecem insumos e/ou compram seus produtos. Por outro lado, o mundo rural vive uma efervescência por causa do surgimento de novos movimentos sociais e novas atividades econômicas, que talvez apontem para a “nova sociedade em gestação", a exemplo de movimentos de luta pela terra, como também da redescoberta do turismo, atividade não tradicional no mundo rural. Silva (1997) afirma que o rural hoje só pode ser entendido como um continuum do urbano do ponto de vista espacial. Do ponto de vista da organização da atividade econômica, as cidades não podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, nem os cam- 395 pos com a agricultura e a pecuária. Em síntese, o autor afirma que o mundo rural brasileiro não pode mais ser tomado apenas como o conjunto das atividades agropecuárias e agroindustriais, podendo-se dizer que novas funções e novos tipos de ocupação ganham importância, a exemplo do turismo, da opção de moradia e do abrigo de um conjunto de profissionais, antes só existentes no meio urbano. Apesar dessa constatação, Del Grossi & Silva (1998), em pesquisa sobre a relevância dos cortes urbano/rural e agrícola/não-agrícola no desenvolvimento brasileiro recente, não obstante a intensificação de atividades não-agrícolas, constataram que as atividades agrícolas ainda constituem a mais significativa forma de ocupação das famílias residentes no meio rural. A segunda posição é defendida por Carneiro (1998:53), para quem “o ´campo` não está passando por um processo único de transformação em toda sua extensão. Se as medidas modernizadoras sobre a agricultura foram moldadas no padrão de produção (e de vida) urbano-industrial, seus efeitos sobre a população local e a maneira como esta reage a tais injunções não são, de modo algum, uniformes, assim como tais medidas não atingem com a mesma intensidade e proporções as diferentes categorias de produtores. Nesse sentido, não se pode falar de ruralidades em geral; ela se expressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos”.. Para Carneiro (1998), a intensificação das atividades não-agrícolas no meio rural brasileiro iniciou-se de forma tímida nos anos 70, e traz, como conseqüência, a possibilidade de ampliação de postos de trabalho para a população rural, antes dedicada quase que exclusivamente à agricultura, e a maior aproximação e integração de sistemas culturais distintos. “Novos valores sustentam a procura da proximidade com a natureza e com a vida no campo. A sociedade fundada na aceleração do ritmo de industrialização passa a ser questionada pela degradação das condições de vida nos grandes centros. O contato com a natureza é, então, realçado por um sistema de valores alternativos, neo-ruralistas e antiprodutivistas. O ar puro, a simplicidade da vida e a natureza são vistos como elementos ´purificadores` do corpo e do espírito poluídos pela sociedade industrial. O campo passa a ser reconhecido como espaço de lazer ou mesmo como opção de residência”(Carneiro, 1998:57). Está implícito, nessa afirmação, uma crítica à visão dualista que opunha o rural, como lugar de atraso, ao urbano, como sinônimo de moderno. A tese sobre o fim do rural vê o avanço da urbanização sobre as áreas rurais, negando as diferenças e descontinuidades entre esses dois espaços. Parte do princípio de que houve uma assimilação pela difusão da cultura, dos produtos, das práticas urbanas e vê na modernização o motor de homogeneização do espaço. Segundo essa perspectiva, é impossível diferenciar conjuntos sociais rurais dos urbanos. Segundo Carneiro (1998:54): “Ainda que os efeitos da expansão da ´racionalidade urbana` sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificados pelos mecanismos da globalização, não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário e na tendência à transformação uniformizadora das condições de vida no campo”. Em tese, as duas posições evidenciadas trazem no seu cerne, conforme já sugerido no parágrafo introdutório desse item, uma concepção de como a mudança social tem se processado na sociedade brasileira e, mais especificamente, no mundo rural. Ainda se pode pensar sobre uma terceira possibilidade para análise da mudança social, que é aquela que aborda a dicotomia campo-cidade. Não se conhece na literatura nacional nenhuma defesa dessa tese, mas é possível encontrá-la em Kayser (1990) e Rémy (1972). O primeiro reflete sobre a questão da dicotomia, revisando autores que a estabeleceram, a exemplo de Marx, Halbwachs, Friedmann, dentre outros. A tese central é de que o rural se define em oposição ao urbano, ou seja, firmamse como espaços que têm características próprias e opostas. As relações entre os dois espaços não são evidenciadas. A posição de Kayser, no entanto, não é a da dicotomia, mas a de buscar o status da ruralidade. O segundo autor aprofunda-se na tese da dicotomia, destacando as metamorfoses que vêm se processando nas relações existentes entre o campo e a cidade. Em síntese, a tese da dicotomia sugere um isolamento, oposição ou independência de um em relação ao outro. Isso significa dizer que o campo é lugar de trabalho agrícola e que a cidade é lugar de outras atividades, que são: intelectual, comercial, artesanato, etc. Não incorpora à análise que Ciênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 396 um é sempre definido em relação ao outro, mas toma-os como duas realidades opostas e uma negando a outra. Assim, a cidade é lugar do moderno, enquanto o campo é lugar do atraso, que só será superado com a adoção dos parâmetros urbanos de modernidade, quando então seria conformado um continuum rural/urbano, com a diluição da dicotomia. Por outro lado, é no espaço urbano que são tomadas as decisões relativas à existência do mundo rural. Ganham destaque em toda essa discussão os pressupostos de Rémy (1972), para quem o fim das sociedades rurais não é o fim do rural; a urbanização do campo não é menos importante do que a ruralização das cidades, e a diminuição das atividades agrícolas não significa o fim do rural. Fundamentando-se nesses pre ssupostos, o autor conclui pela pertinência do rural como campo de conhecimento nas ciências sociais e chama a atenção para os novos paradigmas que se impõem, tais como a perda da autonomia das sociedades rurais em face da dominação da sociedade global. Nestes termos, o mundo rural não é mais uma sociedade distinta, mas um segmento da sociedade global que o domina. Com base nas críticas à visão dicotômica e à noção de continuum, Carneiro (1998) afirma que alguns autores sustentam a necessidade de proceder a análises mais específicas do rural, destacando as relações sociais que se dão entre os processos de integração das aldeias à economia global. Segundo essa visão, esse processo, em vez de diluir as diferenças, pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. A autora termina por apontar novas possibilidades de investigação, rompendo com aquelas que, preocupadas apenas em estabelecer argumentos para demonstrar o fim do rural, desprezam as especificidades locais e suas permeabilidades a uma sociedade global. Essa posição reforça aquela já assumida por Boudon et al. (1993), ao criticar a pretensão da sociologia em efetuar enunciados de longo alcance sobre a questão da mudança social, em lugar de se concentrar na análise de processos de mudança datados e situados. Nesse sentido, concorda-se com a idéia de Valade (1995), que é: reconhecer a diversidade de configurações da mudança e da complexidade dos processos sociais leva a que se parta da análise de fenômenos específicos para se compreender os principais tipos de mudança. Isso não implica em renunciar ao enfoque macrossociológico, mas também a considerar que esses processos resultam da agregação dos comportamentos dos atores sociais. Ademais, poder-se-íam considerar outros aspecCiênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 tos da mudança social, como a evolução dos costumes, mudanças em escala local, conflitos de trabalho, etc. Discutindo sobre a questão da pertinência da sociologia rural no mundo atual, Jollivet (1998) chama a atenção para questões que não podem ser esquecidas na discussão do rural. Seleciona-se aqui algumas daquelas que têm uma relação direta com a questão da mudança social. A primeira refere-se a repensar a questão do desenvolvimento em um contexto marcado pela diminuição da população ativa agrícola e do redimensionamento das atividades do mundo rural no interior dos movimentos de mundialização das relações de trocas e da tensão frequente pelas exigências de preservação do meioambiente. A segunda é evitar tomar as afirmações generalizantes como verdades incontestáveis, a exemplo da perda da "autonomia relativa” das sociedades rurais e da transformação dos agricultores em empresários. Para o autor, não adotar essas posições “é ocultar toda uma diversidade de situações que correspondem a uma multiplicidade de vias experimentadas num processo de adaptação – esta também podendo assumir uma variedade de formas - a um contexto incerto, aberto e complexo” (Jollivet, 1998:17). A idéia, segundo Jollivet, é estabelecer como temas do dia os processos vivenciados pelos agricultores, como a pluriatividade, as formas associativas e a diversificação produtiva, de modo a caracterizar sociologicamente a situação atual dos agricultores. Entende-se que essa sugestão de Jollivet reforça aquela de Boudon et al. (1993:381), ou seja, centrar esforços “na análise de processos de mudança datados e situados”. A terceira e última questão é a que discute o lugar da ciência na sociedade, valorizando-se “uma ciência mais preocupada com suas próprias consequências, tanto sobre a sociedade quanto sobre o meio ambiente – quadro de vida imediato e base de vida a longo prazo” (Jollivet, 1998:21). A sociologia rural é uma das ciências mais diretamente envolvidas nessa preocupação pelos elementos que estudam e afirmam mesmo que o espaço rural é uma das principais reservas para a garantia de um equilíbrio ambiental. As três questões levantadas apontam para as possibilidades de utilização da sociologia rural no contexto de crescente globalização. O que chama a atenção é o reconhecimento, por parte do autor, de processos em andamento que conduzem a mudanças sociais, com repercussões que necessitam ser investigadas, considerando-se que o “rural assume formas constantemente 397 novas que correspondem – e estão paralelas – às evoluções das sociedades globais” (Jollivet, 1998:24). Atividades, espaços e atores como categorias de leitura do rural Nos estudos sobre o mundo rural, existem algumas características que, pelas suas repetições em diferentes contextos, são quase que automaticamente associadas ao denominado espaço rural, em oposição a outros tipos de espaço, mais freqüentemente o urbano. Kayser (1990) descreve essas características, como: a) uma baixa densidade de população, residências e outros prédios, fazendo aparecer a predominância de uma paisagem de cobertura vegetal; b) um uso econômico predominantemente agro-silvopastoril; c) um modo de vida de seus habitantes caracterizado pelo pertencimento a coletividades pequenas e pelas suas relações particulares com o espaço; d) uma identidade e representação específica fortemente marcadas pela cultura camponesa. A definição construida por Kayser é de grande contribuição ao elencar elementos que particularizam o espaço rural, especialmente onde a cultura camponesa tem presença marcante. Ao mesmo tempo que oferece elementos de caracterização de um tipo de espaço, leva a questionamentos do tipo: e naquelas áreas em que a cultura camponesa praticamente foi varrida para dar lugar aos grandes projetos agrícolas empresariais, a exemplo das áreas de fruticultura no Nordeste brasileiro? A resposta passa pelo estabelecimento de características complementares, como as atividades, as novas relações de trabalho e a construção de identidades desses “novos” atores que, apesar de t erem as suas origens muitas vezes no meio camponês, começam a se definir como um grupo específico sujeito às novas associações, como origem, cor, gênero, conforme constatado por Mota (1998) e analisado por Leite & Silva (1997). Nesse sentido, torna-se pertinente falar de "rurais" para a realidade brasileira. Uma outra noção importante para a compreensão do rural é o conceito de trans-terrritorialidade, conforme definido por Florentino (1998:19) “como referindo-se aos vínculos sociais do conjunto da família entre cidade e campo através da sua história”. Essa transterritorialidade (do rural ao urbano e do urbano ao rural) revela-se pelas idas e vindas sucessivas de um indivíduo e pela imbricação dos dois meios, quando a unidade de análise é a família. A autora rompe com a idéia de que migração campo-cidade corresponde a trajetórias descendentes e não implica, tampouco, em ruptura dos vín- culos sociais pré-existentes. A pesquisa em destaque mostrou que esses processos de idas e vindas significam uma reformulação dos vínculos sociais e ultrapassa a dicotomia rural/urbano ao estabelecerem conexões. No caso estudado por Florentino (1998), na região de Altamira, no Estado do Pará, há um grupo importante de novos urbanos que mantêm as atividades rurais e que se apóiam sobre uma e outra para garantirem a reprodução do grupo familiar. “A trans-territorialidade é portanto o resultado de um processo dinâmico de recomposição de um espaço (ou território) de vida no tempo, apreensível a partir das trajetórias das famílias. É um conceito que tem diretamente a ver com o estudo da localidade” (Florentino, 1998:30). Essa trans-territorialidade concomitante (pela repartição dos membros do grupo familiar entre urbano e rural) pode impedir o estabelecimento de uma fronteira fixa entre o rural e o urbano. A dificuldade que se impõe é que, segundo a mesma autora, no que se refere à questão do espaço no Brasil, muitas vezes a população considerada urbana termina por alcançar um grande número de rurais, considerando que o tamanho do município é um critério para a definição do urbano. Essa questão é reforçada por Marin (1985) ao analisar a migração sem urbanização em um município do semi-árido paraibano, onde os trabalhadores rurais apenas mudam as suas residências do campo para a cidade, aproveitando os incentivos da prefeitura, mas permanecem presos à estrutura de produção do meio rural. Nesse sentido, o conceito de localidade pode ser trabalhado segundo múltiplas abordagens, consideradas pertinentes aos objetos de estudo estabelecidos. No estudo sobre “O Agricultor e a Vida Local”, Wanderley & Lourenço (1998) priorizam entender o sentimento que os agricultores têm de pertencer a uma localidade e suas relações sociais locais. Florentino (1998) já associa o conceito como um objeto homogêneo e relativamente localizado no espaço. Santana et al. (1994) utilizam a denominação “unidades de desenvolvimento” na nossa compreensão como sinônimo de espaço, para referir-se a uma “unidade espacializada, onde os recursos produtivos, o uso e a valorização destes pela sociedade e as limitações enfrentadas constituem um conjunto homogêneo da problemática do desenvolvimento, cuja variabilidade é mínima, de acordo com a escala cartográfica”. Carneiro aborda a questão da localidade como uma possibilidade diante da dificuldade de utilizar a caCiênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 398 tegoria de ruralidade para definir a natureza das relações sociais num espaço, diante da intensificação das relações entre o rural e o urbano. Essa dificuldade, para ela “não parece invalidar a noção de localidade, já que esta denota apenas a referência espacial como qualificadora de um universo de relações sociais específico.... A noção de localidade não define, de forma alguma, a natureza rural ou urbana do grupo ou das práticas e relações sociais que ele desenvolve" (Carneiro, 1998:62). Assim, a noção de localidade guarda relação com o nível de consolidação das identidades dos grupos no sentido de pertencimento a uma dada localidade. Mesmo que reconheça-se a intensificação das relações rural/urbano como constatado por Carneiro, insiste-se nas particularidades já anunciadas na introdução desse ensaio e propõe-se uma abordagem intermediária que, partindo do reconhecimento da diferenciação dos espaços rural e urbano, venha a considerar a localidade como espaço de construção de identidades. Daí, provavelmente surgirão outras categorias como localidade rural, localidade urbana, dentre outras. Jollivet, referindo-se à questão da especificidade local em uma sociedade que sofre profundas mutações, afirma que “ os ´agricultores`, os ´municípios rurais` e outros vilarejos e pequenas cidades continuarão a existir; a profissão, a condição social, a cidadania dos primeiros, a fisionomia e as funções sociais e territoriais dos segundos continuarão a evoluir; e tudo isto continuará a fazer parte da sociedade global, isto é, a ser associado a suas evoluções e a pesar também sobre elas” (Jollivet, 1998:19). Acredita-se que essa afirmação sintetiza a inserção da sociedade rural e de seus atores na sociedade global, sem, no entanto, determinar a sua diluição. Ainda em relação à questão do espaço, pode-se pensar na dimensão ecológica, cada vez mais em evidência, em face da degradação das condições de vida na cidade e das preocupações crescentes com a qualidade dos alimentos e com o futuro do planeta. Nesse sentido, o espaço rural, como lugar de agricultura, que para se concretizar depende dos recursos naturais, passa a ser visto de outra maneira. No artigo sobre “Viejas y nuevas imágenes sociales de ruralidad”, Durán (1998) aborda a construção social das imagens sobre o rural, especialmente aquelas construídas pelos citadinos, que diante da crise da idéia do progresso e sujeitos às incertezas da globalização, retomam o ideal de encontro com a natureza, respeito ao Ciênc. agrotec., Lavras, v.26, n.2, p.392-399, mar./abr., 2002 tomam o ideal de encontro com a natureza, respeito ao meio-ambiente, busca por melhores condições de vida, etc. Essas buscas estão intimamente vinculadas às novas imagens construídas sobre a ruralidade. Tudo isso marca um movimento de retorno ao campo que, para o autor, parecem evidenciar sentimentos de nostalgia de um mundo agrário perdido. Estaria embutido, nesses sentimentos, o desejo de pertença a sociedades mais estáveis, previsíveis e, até mesmo, mais tradicionais? Curiosamente, todo esse movimento de retorno ao campo, observado em diferentes partes do mundo, coincide exatamente com um momento de grandes dificuldades para os habitantes das sociedades rurais que dependem diretamente da agricultura. Durán afirma que “Pero, la actual revalorización de la ruralidad tiene lugar de manera paralela a la creciente agudización de la crisis del medio rural. Sus pobladores experimentan procesos, problemáticas y sentimientos de incertidumbre, desconcierto, anomia o impotencia para controlar los cambios y los procesos globales en los que se vem inmersos similares a los del resto de los habitantes de otros sectores sociales y productivos de la urbanizada sociedad global mundial de la que forman parte....” (Durán, 1998:89). Assim, as incertezas diante do futuro ultrapassam os limites do rural e do urbano e colocam diante do desafio de construção de novos modelos menos excludentes e mais preservadores. Quem sabe novos pactos sociais se formarão considerando essas incertezas! Observações finais Para concluir essas reflexões, volta-se à questão central que as motivou: É pertinente falar do rural, no Brasil, na virada do século? Acredita-se que sim, especialmente pelas possibilidades de associações que a categoria impõe quanto à abordagem do espaço, dos atores e das atividades. Falar do rural não é reportar-se apenas a um espaço geográfico, mas às relações que são desenvolvidas ali e como estão inseridas em um todo envolvente. Falar do rural é pensar em "rurais", colcha de retalhos que constitui o mundo agrário brasileiro sujeito às tensões crescentes da competitividade e da urgência de preservação dos recursos naturais. Mas, falar do rural é também apontar as pistas que nos conduzam à melhor compreensão do mesmo. Nesse sentido, quais os rurais que estão sendo buscados pelos cit adinos? Quais as relações que os grupos pertinentes à sociedade local têm com as novas atividades? Quais os reflexos das mesmas 399 na conformação da paisagem? E na organização da vida local? Qual a validade dos conceitos (sociedade local, agricultor, mudança social, dentre outros) para interpretação da ruralidade? Quais as influências das sociedades rurais sobre as urbanas? Nesse novo contexto, quais serão os papéis socialmente atribuídos aos seus habitantes? Os de guardiões da natureza? A que novas associações estarão sujeitos? Essas são apenas algumas pistas de investigação que podem ser perseguidas para dar a dimensão dos processos sociais recentes em curso no meio rural. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOTTOMORE, T.B. Introdução à sociologia. 9. ed. Rio de Janeiro: JC, 1987. 318p. BOUDON, R. Tratado de sociologia. 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