Ipea e a marcha do desenvolvimento brasileiro

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Ipea e a marcha do desenvolvimento brasileiro
Marcio Pochmann1
"O sapo não pula por boniteza, mas, porém, por precisão", escreveu
Guimarães Rosa no livro de contos Sagarana. O dito capiau expresso por um
dos maiores mestres do entendimento acerca do cotidiano do brasileiro simples
permite servir de pano de fundo para uma breve reflexão sobre formas de
atuação e funções do Ipea contemporâneas das principais transformações do
Brasil nos últimos 45 anos.
O maior instituto público de investigação aplicada do continente
americano, já identificado entre os maiores think tanks do mundo, não poderia
existir como um simples fim em si mesmo, porém, condicionado e influenciado
por sua missão estratégica: “Produzir, articular e disseminar conhecimento para
aperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do
desenvolvimento brasileiro”.
Como o desenvolvimento nacional não se apresenta por uma via de
sucessão simplesmente evolutiva, mas permeada por oscilações complexas e
nem sempre previsíveis, observa-se também que os altos e baixos do Ipea
encontram-se em sintonia com a marcha do desenvolvimento brasileiro desde
1964. Naquele ano, que marcou não apenas o surgimento do Ipea, constatouse que, guardada a devida proporção, a instituição de crescente credibilidade
nacional e internacional aproximou-se gradualmente do termo think tank,
adotado a partir dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial para
referir-se ao local que abrigava as reuniões do alto escalão da inteligência
militar voltada à definição de estratégias, mobilização e combate aos inimigos
de então.
No Brasil da década de 1960, os inimigos eram outros. Recorda-se,
por exemplo, que a expectativa média de vida do brasileiro não ultrapassava os
55 anos de idade (18 anos a menos do verificado atualmente), o ensino
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Professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do
Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Presidente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea).
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superior abrigava 93 mil graduandos, representando somente 1% da juventude
entre 18 e 24 anos de idade (hoje se encontra ao redor dos 13%). A elite
branca e bem nutrida que se guiava pelo funil da educação para alcançar os
melhores postos de ocupação e remuneração contrastava brutalmente com o
Brasil real, que naqueles anos de 1960 registrava quase 4/5 de sua população
submetida à condição de penúria decorrente da pobreza absoluta.
Os brasileiros esparramados pelo território nacional estavam muito
distantes de obterem condições de vida e trabalho decente. Enquanto 82% das
oportunidades educacionais estavam concentradas no Centro-Sul brasileiro, o
restante da população podia se contentar, no máximo, com o pau-de-arara de
caminhões a desbravar parcela significativa de estradas esburacadas com o
intuito de oferecer mais do que as luzes nas cidades grandes do país.
Essa triste realidade foi combatida com o ânimo de transformar a
realidade em prol do desenvolvimento. A fuga para frente que se tornou
possível, mesmo sem o apoio da vigência democrática, produziu outro país
superior, embora ainda contaminado por vícios do anacronismo do passado
agrário.
Sabia-se que o atraso brasileiro constrangia o mínimo da decência
nacional, exigindo mais do que a sua melhor compreensão, uma intervenção
planejada, segura e racional. Em um país incapaz de catalisar novas ideias, sem
a presença de um grupo objetivo e aplicado de especialistas a produzir
conhecimento e oferecer visões para além do curto prazo em assuntos de
estratégia civil para temas tão diversos como a indústria, bancos, ciência e
tecnologia, economia e sociedade, a transformação necessária para o Brasil
grande tenderia a ser ainda mais postergada.
A trajetória dos últimos 45 anos do país dificilmente pode ser
contada sem notar a colaboração explícita ou implícita do Ipea. Do plano
decenal dos anos 1960, passando pela contribuição teórica à reforma bancária
e tributária, bem como a ênfase na criação de novidades institucionais como a
construção da Finep e Embrapa, ou o estudo voltado ao estímulo da exploração
agromineral do Centro-Oeste, e até mesmo a proposição e manejo público do
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planejamento e gestão orçamentária tornariam possível o avanço da
modernização do país.
Para uma economia submetida à situação de periferia do centro do
capitalismo mundial, o impulso à internalização da base produtiva necessária à
continuidade da transição da sociedade agrária para a urbano-industrial exigia
também o avanço no sistema nacional de inovação. As universidades da época
não contavam ainda com o regime de dedicação exclusiva, bem como o sistema
de pós-graduação nas áreas sociais e econômica apenas engatinhava.
Foi aí que o Ipea também atuou, estimulando a pós-graduação com
apoio financeiro, conforme atestaram as iniciativas do Programa Nacional de
Pesquisa em Economia (Pnpe) e de bolsas para estudos no exterior. Mas o que
parecia ser mais do que um inacreditável sonho de Brasil grande que colocou a
produção no oitavo posto mundial terminou sendo interrompido pela crise da
dívida externa, logo no começo da década de 1980.
Seguido o ritmo econômico e social de 45 anos atrás, o Brasil seria
hoje a terceira potência do mundo, com carga tributária equivalente a 24% do
Produto Interno Bruto (e quase duas vezes mais recursos arrecadados do que
atualmente), com nível de pobreza absoluta superada e com quase 85% da
força de trabalho submetida ao assalariamento e plena de direitos sociais
trabalhistas.
Infelizmente, não foi isso o que ocorreu. Ao contrário, o Brasil
encontra-se submetido à condição de nona potência mundial, depois de ter já
sido considerada a décima quarta durante a mitológica década de 1990. Nem
mesmo a metade da força de trabalho possui algum grau de proteção social,
enquanto 1/3 da população que habita as regiões metropolitanas está
submetida à vergonhosa situação de pobreza absoluta, embora venha
decrescendo sua participação relativa nos últimos anos, assim como a
desigualdade da renda do trabalho.
As dificuldades de enfrentar conflitos, fazer escolhas de novos
caminhos, mesmo contrariando interesses constituídos, terminam por conter
parcial
ou
plenamente
o
aproveitamento
de
oportunidades
históricas
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vivenciadas pelo Brasil. Tal como no final do século 19, quando o Brasil
abandonou o anacronismo da escravidão e foi sucedido pela ascensão da
República, o que ensejaria a oportunidade de constituir uma nova maioria
política protagonizadora do desenvolvimento econômico e social aguardado, a
transição do regime autoritário para a democracia na primeira metade dos anos
1980 também continha a perspectiva da formação de uma base política
compatível com o que o mestre Celso Furtado asseverava: a necessidade
imediata de diminuir a distância que separa o Brasil real daquele que realmente
pode ser.
Assim como a abolição da escravatura terminou descolada da
superação das instituições da escravidão, como o monopólio territorial da
época, conforme identificado por Joaquim Nabuco – o grande paladino do
abolicionismo no último quartel do século 19 –, a maioria política do regime
democrático da década de 1980 terminou sendo constrangida pelo desenlace
das emergências do curto prazo, crescentemente maiores até o início do século
21.
Com isso, os projetos para o Brasil foram sendo gradualmente
postergados, quando não acumulados e empoeirados nas estantes das
bibliotecas, cada vez mais somente disponíveis ao decrescente grupo
minoritário de estudiosos e defensores do desenvolvimento nacional. Tal como
no período que foi do final do ciclo do ouro, na metade do século 18, até a
entrada do século 19, com o surto da exportação do café, o Brasil assistiu,
desde a crise da dívida externa (1981 – 1983), ao registro da semiestagnação
econômica e regressão social, com desemprego crescente, desproteção social e
trabalhista, explosão da violência, entre outros sinais de rebaixamento das
condições de vida, que durou ¼ de século. Somente os enriquecidos pelo
dínamo
da
financeirização
da
riqueza
passaram
incólumes
pelo
desmoronamento do projeto de Brasil ainda iniciado com a Revolução de Trinta.
Junto com isso, a temática do desenvolvimento terminou sendo
transformada em algo anacrônico, peça de descrédito e, porque não dizer,
escrachada pela elite do pós-modernismo como peça antiquada do filme de
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Spielberg, Parque dos Dinossauros. Assim, a maior instituição do pensamento e
do desenho de estratégias para o desenvolvimento nacional acusou o golpe,
tendo que se acomodar ao contexto geral de restrição orçamentária, de
competição
com
outras
instituições
de
pesquisas,
com
esvaziamento,
envelhecimento e não reposição de quadros técnicos. A pressão para o
abandono do cultivo de plantações como jabuticabas, jacas e mangas não foi
pequena, tornando compatível a emergência da especialização em técnicas do
bonsai. Daí para o insulamento, a autossuficiência, o abafamento da análise
crítica e construtiva em projetos de lei e políticas públicas, bem como a
organização do pensamento cada vez mais único foi um passo.
Somente mais recentemente o orçamento do Ipea voltou a ser
recuperado, interrompendo uma longa trajetória do seu definhamento.
Também foi possível a realização do seu maior e mais complexo concurso
público. Dos novos colegas ingressantes, 4/5 encontram-se na posição de
doutores ou doutorandos, advindos do creme de la creme das universidades
brasileiras e do exterior, e que encontram a casa organizada por uma carreira
de Estado, com plano anual de trabalho e metas institucionais. Até mesmo uma
sede passou a ser possível, após muitos anos de expectativas em torno da
construção de um local próprio a abrigar a todos os colegas ipeanos.
A partir de diferentes formações acadêmicas e visões técnicas
plurais, o Ipea reorienta estrategicamente sua forma e função, compatível com
a necessária organização dos dissensos em torno do desatar dos complexos nós
que entravam o desenvolvimento nacional. Exemplos disso podem ser
observados na alargada presença do Ipea no centro do debate nacional a
respeito dos mais distintos temas, da defesa nacional ao meio ambiente, da
macroeconomia à política social, da logística de base à dinâmica regional, da
inserção internacional ao papel do Estado, entre tantas outras registradas por
seu corpo editorial de livros, textos de discussão, notas técnicas, comunicados,
documentos-base, todos disponíveis gratuitamente em seu site ou mesmo
acompanhados por meio de divulgação em tempo real e por sua agência
própria de informações e análises.
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Nesta semana de comemorações dos seus 45 anos, o Ipea divulga o
novo Brasil em Desenvolvimento (da série Estado de uma Nação), produzido
por uma centena de servidores da casa, o que vem a ser a mais completa
análise das principais políticas públicas do Brasil. Conforme ressalta o inédito
documento de acompanhamento do conjunto das políticas públicas, o Brasil
precisa recuperar a força do planejamento governamental a partir de quatro
grandes níveis. O primeiro concernente ao binômio da condução do
planejamento com o engajamento político-social deve comprometer-se com a
participação ampliada e envolvimento democrático das forças vivas da
sociedade, ademais de especialistas e gestores públicos capacitados.
O segundo nível do planejamento deve se referir à articulação
institucional e coordenação geral das mais distintas ações do Estado, bem como
dos atores envolvidos em torno de uma perspectiva clara para o médio e longo
prazos. O terceiro nível deve procurar combinar a prospecção de futuro com a
proposição de mudanças da realidade sempre que ela se mostrar incompatível
com as pretensões maiores da sustentação do desenvolvimento econômico,
social e ambiental. O quarto nível do planejamento, por fim, precisa associar o
desafio da escolha de estratégias com o estabelecimento da trajetória ordenada
por parte do Estado compatível com o desenvolvimento para o século 21.
Nesse mesmo sentido, o Ipea programou-se para oferecer até o
primeiro trimestre de 2010, um conjunto de oito grandes estudos sobre a
perspectiva do desenvolvimento brasileiro. Essa contribuição tem por objetivo
ampliar o debate sincero e plural acerca da definição da agenda de Brasil para
a próxima década.
Ademais do esforço individual e coletivo dos colegas, destaca-se a
nova forma da organização de bancos de dados administrativos internos ao
poder público, bem como a promoção de fontes de informações estatísticas
próprias, responsável pela geração de indicadores sobre expectativas do setor
produtivo, qualidade do desenvolvimento e outras novas medidas de
monitoramento.
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Tudo isso alcança maior relevância quando se constata que a
multiplicação por 10 da produção editorial do Ipea vem sendo feita pelo
esforço do seu conjunto de servidores em articulação com as diferentes redes
de conhecimento que compõe com variadas instituições. A gestão pública do
conhecimento da temática do desenvolvimento vem sendo realizada a partir da
parceria com três das principais associações de cursos de pós-graduação do
país (Anpocs, Anpur e Anpec); com duas dezenas de instituições públicas de
pesquisas estaduais e municipais, como Seade, Fee, Ipardes, Joaquiam Nabuco,
João Pinheiro, entre outras; com 115 instituições de representação de
interesses patronais e de trabalhadores, como Confederação Nacional da
Indústria, Agricultura, Dieese, entre outras; com instituições de pesquisas
internacionais e de vários países; com associações nacionais de pesquisadores
de distintas áreas; e com organizações não governamentais.
Essa ênfase na reorientação da forma do Ipea se complementa com
o reforço da função em novas bases. Atualmente, o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada prepara-se para a sua descentralização em âmbito regional
e presença in loco internacionalmente. Dessa forma, sua expertise passa a
estar a serviço público em todas as distintas e grandes regiões geográficas
brasileiras, em cooperação técnica em diferentes países da América Latina, bem
como na África, especialmente aquela composta por países de língua
portuguesa.
Por fim, e em conformidade com o aconselhamento de meus
superiores em promover o desenvolvimento pleno da sociedade nacional, o
anúncio da criação da escola nacional de planejamento para o desenvolvimento
para atender à demanda de formação e qualificação de agentes públicos dos
distintos níveis de governo. Uma iniciativa mais do que adequada ao tempo
presente para criar bases para a sustentação da função do Ipea no contexto
do reforço necessário da planificação, da construção de projetos e análises, do
monitoramento e avaliação de políticas públicas, que a instituição assume de
bom grado e com determinação para contribuir com o objetivo estratégico da
transição brasileira para uma sociedade avançada, justa e mais igual.
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Do ponto de vista produtivo, a agropecuária e indústria continuam a
ser fundamentais num país de dimensão continental, com população próxima
aos 200 milhões de pessoas. Porém, ganha destaque o crescimento das
atividades terciárias, uma vez que somente o setor de serviços torna-se
responsável por mais de 2/3 do total das ocupações e do valor agregado
nacional. Essa passagem para a nova sociedade do conhecimento se tornou
mais adequada somente mais recentemente, quando a coordenação das
políticas públicas abandonou a lógica do curto prazismo que aprisionava a
economia nacional por quase duas décadas para liberar as energias do
investimento e da ocupação da capacidade ociosa no setor produtivo.
O atual processo de soerguimento do Estado se mostra fundamental,
imprescindível, inclusive para que o país pudesse enfrentar a maior crise dos
últimos sessenta anos por meio de novas bases. O esvaziamento do setor
público de período anterior gerava nas fases baixas do ciclo econômico mais
desemprego e aumento da pobreza e da desigualdade, sobretudo entre os
vulneráveis e excluídos.
No Brasil, depois de muito tempo, a base da pirâmide social não
arcou mais com o maior peso da crise internacional, favorecendo, inclusive, o
despertar do componente diferenciador e indispensável para a mais rápida
saída da recessão. Na crise econômica, mais de meio milhão de pessoas saíram
da condição de pobreza, bem como a desigualdade da renda no trabalho seguiu
decaindo.
A força do Estado, por meio da opção governamental de tornar
viável a ação das instituições bancárias públicas, bem como de protagonizar um
elenco de políticas anticíclicas, permite fazer com que o país saia em melhores
condições do que aquelas que predominavam no período pré-crise. O novo
ainda não está maduro, tampouco o velho disse adeus, mas os sinais que se
tem hoje antecipam que o rumo não está incorreto.
Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, um verdadeiro rosário
de milagres acompanha o Brasil ao longo dos distintos ciclos econômicos desde
o pau-brasil e do açúcar. O petróleo do pré-sal aproxima-se da visão de um
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milagre, que se prepara para ser explorado por uma perspectiva diferente das
dos anteriores. Junto com o necessário suporte ao reforço da estrutura
produtiva diversificada que o país possui, acrescida do enriquecimento do valor
agregado das cadeias de produção, encontra-se a estratégia de canalizar parte
significativa do seu excedente para o acerto de contas com as mazelas sociais,
regionais e ambientais.
A base de onde partir para a viagem do futuro já existe e o Ipea de
todos os seus servidores públicos está pronto para a colaborar decisivamente,
assim como nos últimos 45 anos procurou fazer. Quanto mais pudermos tomar
decisões sensatas e humanas, embasadas em estudos técnicos amplos e
profundos que permitam compreender como o Brasil e o mundo estão
mudando, como os produzidos pelo Ipea, maior a chance de garantia de que o
futuro do bem-estar do povo seja bem superior ao atual.
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