J. Bras. Nefrol. 1996; 18(4): 424-426 424 M. C. M. Castro - Revisão/Atualização em Diálise Revisão/Atualização em Diálise: Reposição do ferro em pacientes em tratamento pela eritropoetina humana recombinante Manuel Carlos Martins de Castro Disciplina da Nefrologia do Hospital das Clínicas da F.M.U.S.P. Endereço para correspondência: Dr. Manuel Carlos Martins de Castro Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 255 05403-000 - São Paulo, SP Fone: (011) 853-5350 - Fax: (011) 883-7683 Com o desenvolvimento da eritropoetina humana recombinante (Epo Hur) tornou-se disponível uma forma altamente efetiva para o tratamento da anemia associada com a insuficiência renal crônica. Entretanto, nem todos os pacientes respondem igualmente à medicação. Desta forma, define-se resistência à Epo Hur quando não ocorre elevação na hemoglobina de pelo menos 2 g/dl após 12 semanas de tratamento com dose adequada da droga (150 U/kg/semana ou mais). 1 Diversas condições podem predispor a resistência à Epo Hur, 2 entre elas estão o hiperparatireoidismo, a intoxicação por alumínio, a presença de infecção ou inflamação, a perda de sangue e a hemólise, as hemoglobinopatias, as deficiências de vitaminas, a presença de enxerto renal rejeitado in situ, a gestação, a subdiálise e, finalmente, a deficiência de ferro. Entre estas causas, a mais importante e comum é a deficiência de ferro, que induz a resistência relativa à Epo Hur. 3 A biópsia de medula óssea com coloração para o ferro é um dos melhores métodos para avaliar os estoques de ferro, 4 no entanto, não se justifica sua utilização na prática clínica. Desse modo, métodos como a determinação da elevação da zinco protoporfirina 5 e da redução da ferritina eritrocitária, 6 além da elevação dos receptores de transferrina no soro 7 e da elevação da porcentagem de hemácias hipocrônicas 8 durante o tratamento com Epo Hur têm sido propostas para diagnóstico da deficiência de ferro. Entretanto, esses métodos não são disponíveis para a maioria dos nefrologistas. Assim sendo, arbitrariamente, para o paciente em diálise, o diagnóstico de deficiência de ferro é feito quando se observa ferritina sérica < 100 µg/l, saturação de transferrina < 20% ou porcentagem de hemácias hipocrônicas > 10%. 2 Apesar de úteis, esses índices podem induzir a erros. Na insuficiência renal crônica, o nível sérico de ferritina correlaciona-se bem com o ferro da medula. 9 No entanto, elevações da ferritina ocorrem como resposta não específica à inflamação, neoplasia ou doença hepática, condições freqüentemente presentes no paciente em diálise, limitando, portanto, seu uso como marcador de deficiência de ferro na insuficiência renal crônica. 10 Desse modo, alguns autores têm proposto que somente níveis de ferritina sérica menores que 200 ou 300 µg/l indiquem deficiência de ferro. 4,11,12 Por outro lado, saturação de transferrina menor que 15 a 20% pode significar apenas deficiência funcional, e não absoluta, de ferro. 13,14,15 Isto ocorre porque durante o tratamento com Epo Hur, a demanda de ferro pela medula pode exceder a capacidade de liberação e transporte desse íon para a transferrina, com conseqüente redução da saturação. 16 Nesse sentido, pelo menos durante o tratamento com Epo Hur, o desenvolvimento de microcitose 17 ou a elevação na porcentagem de hemácias hipocrômicas 8,18 pode indicar uma situação de eritropoese ineficiente por deficiência de ferro. Por outro lado, alguns autores têm sugerindo que saturação de transferrina menor que 25% já significa deficiência de ferro no paciente com insuficiência renal crônica em tratamento pela Epo Hur. 11 Em conjunto, essas observações sugerem que o metabolismo do ferro deve ser monitorizado não só no início, mas também, durante o tratamento com Epo Hur. No início do tratamento existe uma boa correlação entre ferritina e saturação de transferrina. Desse modo, pelo menos antes do tratamento, esses dois parâmetros podem ser utilizados indistintamente no diagnóstico da deficiência de ferro. Entretanto, após o início do tratamento, esta correlação desaparece e, portanto, as duas variáveis devem ser utilizadas, conjuntamente para o adequado diagnóstico de deficiência de ferro. 19 As reservas orgânicas de ferro (RF) podem ainda ser avaliadas através da equação: 19,20 A publicação desta seção foi possível graças à colaboração da Cilag Farmacêutica Ltda. 425 J. Bras. Nefrol. 1996; 18(4): 424-426 M. C. M. Castro - Revisão/Atualização em Diálise FR = 400 x [ln (ferritina) - ln (50)] onde o ferro é dosado em mg e a ferritina em µg/l. Em condições adequadas, essa reserva tem sido estimada em, aproximadamente, 1000 mg o que garante suficiente disponibilidade de ferro durante a intensa eritropoese secundária ao uso da Epo Hur. Desse modo, temos que reserva de ferro superior a 1000 mg indica sobrecarga de ferro. Reserva entre 500 e 1000 mg indica estoque de ferro adequado e, reser va inferior a 500 mg sugere fortemente a necessidade de reposição de ferro durante o tratamento com Epo Hur. 19 Em média, 6 semanas após o início do tratamento com doses efetivas de Epo Hur, o nível de ferritina sérica se reduz para 50% dos valores iniciais e, aproximadamente, na décima quarta semana esses valores atingem o seu ponto mais baixo. 21 Por outro lado, aproximadamente, 14 semanas após o início da Epo Hur 40% dos pacientes apresentam saturação de transferrina menor que 25%. 11 Ainda nessa linha de raciocínio Grützmacher e cols., 16 utilizando saturação de transferrina menor que 20% como indicativo de deficiência de ferro, observaram que 14 semanas após o início do tratamento com doses efetivas de Epo Hur, 80% dos pacientes necessitaram de reposição de ferro por via intravenosa. Estas observações sugerem que a reposição de ferro durante a terapêutica com Epo Hur é um fenômeno relativamente precoce e, geralmente, ocorre durante os primeiros 3 a 4 meses após o início do tratamento. Tanto a via oral quanto a intravenosa têm sido utilizadas para repor os estoques de ferro. Em pacientes onde, antes e durante o tratamento com Epo Hur, o estoque de ferro é adequado, a via oral parece suficiente para a manutenção das reser vas de ferro. 19,21 Entretanto, doses tão elevadas quanto 200 a 300 mg/dia de ferro devem ser administradas de modo fracionado. 19,22 Visto que sob a for ma de sulfato ferroso somente 20% corresponde a ferro elemento, isto significa administrar grande número de comprimidos por dia. Este fator, aliado aos efeitos colaterais de náuseas, vômitos, diarréia ou obstipação, observados em alguns pacientes, favorecem a não aderência ao tratamento. Para esses casos e aqueles onde existe franca deficiência de ferro, o uso da via endovenosa tem sido utilizada. 23,24 A dose proposta corresponde a 1000 mg, administrados em frações de 100 mg durante 10 diálises consecutivas. 23,24 Entretanto, cabe ressaltar que o aparecimento de reação anafilática ao ferro intravenoso tem sido estimada em 0,5 a 1,0%. 25 Assim, a prévia utilização de uma dose teste de 25 mg parece justificada. Fishbane e cols. 26 compararam a eficiência da reposição de ferro por via oral e intravenosa em pacientes em tratamento com Epo Hur, e observaram que os indivíduos que receberam a reposição intravenosa apresentavam hematócrito significativamente maior e dose de Epo Hur significativamente menor que aqueles que receberam a reposição por via oral. Nesse estudo, a dose total intravenosa foi 3200 mg de ferro dextran (100 mg, 2 vezes/semana, 16 semanas). No início do tratamento, a ferritina sérica e a saturação de transferrina eram de 191 ± 18 µg/l e 22 ± 3%, respectivamente. Ao final da reposição esses valores eram de 753 ± 30 µg/l e 74 ± 2%, respectivamente. Isto sugere que esse esquema pode induzir a sobrecarga dos estoques de ferro. Entretanto, 4 meses após o tér mino do tratamento, esses valores tinham retornado ao nível observado antes do uso do ferro intravenoso (ferritina 183 ± 18 µg/l e saturação de transferrina 18 ± 2%), garantindo que, a longo prazo, não houve sobrecarga excessiva de ferro . Finalmente, cabe ressaltar que, sendo a Epo Hur uma medicação de custo elevado e a concomitante deficiência de ferro a principal causa para resposta inadequada ao tratamento, justifica-se avaliar os índices do metabolismo de ferro a cada 4 a 8 semanas durante o tratamento da anemia da insuficiência renal crônica com Epo Hur. Referências 1. Ponticelli C, Casati S. Correction of anaemia with recombinant human erythropoietin. 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