A CERCA DA IGREJA E DA SINAGOGA: DISPUTAS DOGMÁTICAS NA OBRA APOLOGÉTICO DO BEATO DE LIÉBANA. doi: 10.4025/XIIjeam2013.parmegiani37 PARMEGIANI, Raquel de Fátima1 Nosso objetivo neste trabalho é pensar como se dá, dentro da construção narrativa da obra Apologético, escrita pelo Beato de Liébana na Região das Astúrias no final do século VIII, as disputas dogmáticas. Nossa preocupação estará voltada para a forma como o autor se utiliza do material cultural disponível em seu mosteiro, para a partir dele, construir um discurso que lhe possibilite, dentro da narrativa, administrar os conflitos culturais, sociais e religiosos que estavam presentes em sua realidade material. A Astúrias foi, entre os séculos VII e VIII, palco de importantes disputas teológicas, principalmente aquelas relacionadas ao adocionismo. Essa teoria sobre a divindade de Jesus, respondia em muitos aspectos a presença muçulmana na Península e ao rígido monoteísmo do Corão que rapidamente chocou-se com os princípios básicos de Encarnação e Trindade cristãs. No ano 783 Elipando2 tomou posse da sede metropolitana de Toledo e defendeu essa doutrina sobre o mistério de Cristo, na qual afirmava ser este, enquanto homem, filho adotivo de Deus. No concílio de Sevilha (784), ele escreve a frase que vai dar corpo a toda a batalha adopcionista: No fomos redimidos por ele que é filho adotivo como nós (...), mas fomos redimidos pelo é Filho por natureza que supõe uma dupla filiação em Cristo: enquanto Deus, Filho por natureza do Pai, e enquanto homem, filho adotivo de Deus.3 1 Doutora pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/Campus de Assis; Professora de História Medieval na Universidade Federal de Alagoas – UFAL; Professora do Programa de Pós-Graduação em História – UFAL. 2 Elipando foi arcebispo de Toledo por volta do ano 785, e exerceu sua autoridade sob o povo e o clero cristão da Espanha muçulmana e da Marca Hispânica (grosso modo, a atual Catalunha) tomada pelas tropas carolíngias e do nascente reino de Astúrias. 3 HERNÁNDEZ, A. Del Campo. Introduccion. In: BEATO DE LIEBANA. OBRAS COMPLETAS E COMPLEMENTARIAS. Comentario al Apocalipsis, Hinno “O Deus verbum”, Apologético. Edición bilíngüe preparada por J. G. Echegaray, A. del Campo y L. G. Freeman. II vol., Madrid: BAC, 2004. vol. I, pp. 657-670, p. 663. 1 Bastante aceito pelos cristãos das áreas sob o domínio muçulmano, essa ideia difundiu-se também ao Norte, no reino independente de Astúrias, e contou com a oposição do Beato e seu discípulo Etério, apesar de se fazer bastante divulgada pela região. Essa questão marca de forma efetiva as obras do Beato de Liébana. A questão adopcionista e os embates teológicos que ele manteve neste período com o Bispo de Toledo - Elipando, estão presente não apenas em sua obra Apologético e nas diversas cartas escritas pelo autor sobre o tema, mas também em seu Comentário ao Apocalipse. Deve-se destacar ainda nesse contexto geográfico e politico, a influência do Império Carolíngio e, depois, do reino da Francia Ocidentalis. Aquele Império estendeu seu domínio sobre um extenso território que ia desde a Marca Hispânica, até o velho limes danubiano, na Panônia. Além da força política, seu governo marcou uma época de apogeu cultural com repercussões por toda a Europa Ocidental – a chamada Renascença Carolíngia. A Igreja asturiana contou com a influência e proteção de Carlos Magno que, juntamente com Alcuino 4 participou de forma ativa em apoio ao Beato na disputa teológica adocionista. Não há dúvidas aqui, que há uma vinculação entre o Beato e Roma e, que esta aproximação não se deu da mesma forma entre Elipando – bispo de Toledo, centro da Igreja Hispânica – e Roma. Pode-se afirmar que, mesmo não tendo certeza de que o havia pretendido, esse monge liebanense inicia um processo que levará a Igreja de Astúrias a se desvincular de Toledo, abrindo-se a influência carolíngia, e como resultado, à consolidação do projeto de tornar Igreja e o Reino do Norte, legítimos herdeira do Reino visigodo. Nesse processo soma-se a divulgação presença do aposto Thiago na Região. Este projeto aparece de forma muito nas obras do Beato, ele diz em seu hino O Dei Verbum que São Thiago pregou na hispânia e que é seu patrono. No Comentário ao Apocalipse sinaliza essa região como lugar de missão do Apóstolo. Anos mais tarde, tem lugar a invenção da localização geográfica do sepulcro do apostolo nessa região e isto era o que faltava para consolidar o Reino asturiano e para justificar a independência dessa Igreja em relação a Toledo. 4 Alcuíno (735-804) natural de Nortúmbria, iniciou sua carreira como bibliotecário da catedral de York. Em 782 passou a fazer parte da corte de Carlos Magno, tendo papel proeminente na Renascença caloríngia. Fundou uma importante biblioteca e escola na abadia de São Matinho de Tours, onde foi abade nos últimos anos de sua vida (790-804). 2 Se temos as questões políticas concretas que envolvem a relação entre Toledo, os Reinos Cristãos ao Norte e o Império Carolíngio como um elemento importante dentro das querelas relacionadas ao adopcionismo, não devemos, no entanto resumi-lo a esta perspectiva de análise. A questão da ortodoxia na Alta Idade Média, é com certeza, uma das questões mais interessantes e debatidas pela historiografia relacionada ao período. Como definir ortodoxia? Como definir Heresia? Segundo Jean-Pierre Weiss, o hereges poderia ser definido, para este período, como aquele que rejeita tal doutrina de tal concílio preciso. Futuramente será aquele que não reconhece, ou dá a impressão de não reconhecer, uma doutrina fundada sobre a tradição em sua totalidade.5 Dentro do contexto da Alta Idade Média portanto, as disputas doutrinais podem se dar entre aqueles que fazem parte do corpo eclesiástico. Neste caso preciso, entre dois modos diferentes de ser Igreja: um bispo e um monge. Ambos carregavam consigo uma autoridade que lhes permitiam ser interpretes do textos divino. Podemos definir o que é heresia ou ortodoxia dentro desta querela? Essa interrogações serão por nós investigadas pelo viés da análise dos discursos e como estes legitimam ou excluem os grupos sociais a partir da construção de um projeto de sociedade que se materializa, por meio das narrativas. Nos propomos a pensar como esses conflitos sociais, políticos e cultuais se organizaram dentro das formas argumentativa. Aqui portanto, nos voltamos para a maneira como o Beato de Liébana articulou, todos esses elementos, dentro de um gênero discursivo que é o texto apologético. A própria escolha deste gênero – cuja ênfase recai sobre a defesa que se faz de algo; defesa da fé contra seus opositores – pode nos dar indícios da forma como os conflitos vão se organizando a partir das argumentações. O autor quer a primeira vista, desconstruir as afirmações teológicas do credo do sínodo de Sevilha, no qual Elipando defendeu o adocionismo. Por meio de um compendio da doutrina cristã, o autor traça os principais pontos da controvérsia adopcionista. Expõe e refuta esta doutrina que considera heréticas. Este é o eixo narrativo da obra, o que dá coerência e unidade a suas páginas. 5 WEISS, Jean-Pierre. O método Polêmico de Agostinho no Contra Faustum. In: Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas, SP: Editora da UNICANP, 2009, pp. 15-38, p. 16. 3 Assim, ao usar de um gênero discursivo cuja característica, como já dissemos, destaca-se pela defesa da fé que o autor considera ortodoxa, contra ideias conflitantes, há todo um esforço de legitimação das afirmações por ele levantadas, que parte da utilização das regras da produção cultura na Alta Idade Média. Em primeiro lugar a auctoritas. Os pais da Igreja são chamados a testemunhar e argumentar em favor desta que é a ortodoxia defendida pelo autor – a Trindade. Dentro da tradição exegética da Alta Idade Média, o autor frente aos objetivos pastorais e ortodoxos, deixa de lado sua capacidade criadora, para exercer a função de transmissor da auctoritas. Coloca-se como um fiel transmissor a fé da Igreja e da doutrina dos padres primeiros. Porém a seleção de textos e autores dos quais se utiliza, nos permite conhecer suas preocupações teológicas, seu universo mental. Não é uma teologia original, mas é a teologia com a qual se identifica. Mais presente ainda do que o uso que faz desses cristãos solenes, está o depoimento da própria voz divina - a Sagrada Escritura - que na obra é, na verdade, o elemento essencial da construção narrativa. Ao utilizar-se de estratos de passagem bíblicas do Antigo e Novo Testamento, provavelmente de texto utilizados nas leituras litúrgicas, e portanto, conhecida, em grande medida, pela comunidade cristão, o autor tem acesso ao que podemos chamar de lugar comum, a metáforas, histórias, figuras de linguagem compartilhado pela comunidade de leitores/ouvintes na qual a obra se insere. É possível pensar, pelas características do gênero discursivo e pelos usos sociais para os quais esta obra foi produzida, que existe nessa produção cultural, uma intensão primeira de construir um discurso cujo objetivo seria intervir sobre as opiniões, as atitudes e mesmo o comportamento dos indivíduos, por meio da narrativa. Trata-se portanto, de uma arquitetura linguista que que organiza a partir de um falar em sentido universal e como tal, parte de verdades incontestáveis, valores universais, supostamente admitidos por todos os seres razoáveis e competentes. Há assim, uma preocupação em acordar a construção do discurso com o auditório, com o público leitor/ouvinte da obra. Se existe assim, por parte de autor, uma dispersão de temas que vão desfilando pelos olhos do leitor por meio de um encadeamento de fragmento de textos teológicos, e principalmente bíblicos que, mesmo tornando sua leitura difícil, não impede que o leitor perceba por todo tempo sua linha argumentativa: combater a afirmação de que Jesus é filho próprio e natural de Deus em sua divindade, e filho adotivo em sua humanidade. 4 Devemos ter presente que toda a ontologia e toda a epistemologia que se esforcem por fornecer os critérios da realidade e do conhecimento válido, independentes das reações do auditório, funda-se necessariamente sobre a reação privilegiada – a evidência, a intuição irrefutável – de um espirito, quer se trate do espirito divino, ou do espírito do orador para impor, ou pelo menos propor, a todos, a conclusão às quais ele próprio chega”.6 Nessa perspectiva, o Beato agarra-se ao livro de Mateus, para criar uma narrativa, em torno da fala de Jesus: Também eu te digo que tu é Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja (Mt 16, 18). Utilizando-se do valor universal de negação e afirmação o autor constrói uma argumentação, cujo centro é este versículo bíblico, que dá fundação a Igreja Romana, sede da ortodoxia compartilhada pelo Beato. Articulada a esta afirmação de Pedro como fundador da Igreja, estão outras duas passagem em que este personagem, dentro da argumentação do Beato, se colocaria numa perspectiva afirmativa da divindade de Jesus: (...) Quem nega o homem, nega a Deus; porque Deus é o homem, e o homem é Deus, e Deus e o homem é o unigênito Cristo Filho de Deus. Pedro, que pilota esta nave, o negou como homem pois disse assim: não conheço esse homem (Mt 26,72). Pois não disse: não conheço a Deus, ou ao filho de Deus; mas ao negar o homem negou ao Deus filho, filho de Deus. E quando foi perguntado: E vós, quem dizeis que eu sou? (Mt 26,27), então respondeu: Tu és o Cristo, Filho de Deus Vivo. Ao mesmo Cristo, filho do Deus vivo, negou quando disse: não conheço esse homem (Mt 26,72).7 A negação de Pedro é acrescida de um elemento: as trevas. Isto é o que justiça a negação: Mas quando o negou, Cristo permanecia atado, estava diante do procurador, era golpeado e cuspido. Era noite, havia trevas, havia frio, estava no pretório, a criada mantinha a porta fechada. Todavia, o Espírito Santo não havia conferido plenamente à Pedro: porque Jesus não havia sido glorificado (Jn 7, 39).8 6 PERELMAN, Chaim. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. Oral/Escrito. Argumentação. Vol. 11. Lisboa: Impressa Nacional/Casa da Moeda, 1987,pp. 207-265, p. 241. 7 BEATO DE LIEBANA. Apologético. In: BEATO DE LIEBANA. OBRAS COMPLETAS E COMPLEMENTARIAS. Comentario al Apocalipsis, Hinno “O Deus verbum”, Apologético. Edición bilíngüe preparada por J. G. Echegaray, A. del Campo y L. G. Freeman. II vol., Madrid: BAC, 2004. vol. I, pp. 654-923, p. 675. 8 BEATO DE LIEBANA. Apologético, p. 675. 5 Logo em seguida, mais um elemento é acrescido: a luz. Ela é o que traz à afirmação de Pedro de que Jesus é Filho de Deus Vivo, um valor muito maior do que aquele atribuído a sua negação, embora esta tenha se realizado sobre as duas pessoas de Jesus, e não apenas no Jesus homem: Mas quando ele falou de Cristo como Filho de Deus, Jesus não estava não estava atado nem só, era seguido por uma multidão, cujos mortos ele ressuscitava, aos cegos devolvia a vista, curava os leprosos, expulsava os demônios, sanava suas enfermidades. (...)9 Aqui inaugura-se um novo desencadeamento discursivo. O texto de Isaias 28, 18 é chamado para a argumentação. Sobre ele é feita uma releitura, o Antigo Testamento é reatualizado pelo Novo. Sião torna-se a Igreja, o Javé é o Cristo – ou seja, o próprio Deus-, o povo de Israel é Pedro e consequente os santos Cristãos: (...) Então também o chamou de pedra, depois de ser o primeiro a reconhece-lo como pedra angular. Esta é a pedra da qual o Pai havia dito por meio do profeta Isaias: Eis que porei em Sião um pedra, uma pedra de granito, pedra angular e preciosa, uma pedra de alicerce bem firmado: aquele que nela puser a sua confiança não será abalado (...) (Is. 28,16). E certamente a pedra na qual manda crer é Deus. Desta pedra falou o apóstolo Paulo: A pedra é Cristo (1Cor 10,4). Certamente, a todos os santos que se fundamentaram em Cristo, se lhes chamam pedras e rochas, mas quando na Sagrada Escritura se designa a pedra e a rocha no singular, só refere a Cristo. Quando se diz no plural pedras, se refere aos membros, quer dizer, ao homens santos que se fazem firma na fortaleza do Cristo. A eles certamente chama o apostolo Pedro ao dizer: Também vós, como pedras vivas, então na construção do edifício espiritual (1 Pe 2,5). E todos esses, como também Pedro, não receberam este nome de Pedro, mas de Cristo, a pedra; por isso disse a Pedro: Sobre esta pedra edificarei minha Igreja (Mt. 16,18); (...)10 Enfim o autor atualiza a experiência da comunidade, colocando todos seus leitores ouvintes a compartilhar da experiência de Pedro: (...) não se dirigiu só a Pedro, mas também a nós hoje, que cremos no que crê Pedro. Pois quando hoje dizemos com o coração e a boca diante da Igreja: Tu es o Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele responde: não os foi 9 BEATO DE LIEBANA. Apologético, p. 675. BEATO DE LIEBANA. Apologético, p. 676. 10 6 revelado pela carne e pelo sangue, mas pelo Pai que está no Céu; esta verdade que disse a um, serve a todos (...).11 O texto exerce aqui sua função performática12. Enquanto escritura que se concretiza material, social e culturalmente no processo da leitura, da audição, ele se coloca nesse momento, como sujeito histórico. Como personagem que se insere no cotidiano da comunidade de leitores ao qual pertence, querendo se fazer passar como única possibilidade de compreensão de si. E aqui temos a resolução do conflito adopcionista dentro da narrativa. Os leitores ouvintes da obra são o próprio Pedro, aquele que representa a Igreja de Roma, aquela que carrega a defesa da Trindade. REFERÊNCIAS BEATO DE LIEBANA. OBRAS COMPLETAS E COMPLEMENTARIAS. Comentario al Apocalipsis, Hinno “O Deus verbum”, Apologético. Edición bilíngüe preparada por J. G. Echegaray, A. del Campo y L. G. Freeman. II vol., Madrid: BAC, 2004. vol. I. BEATO DE LIEBANA. OBRAS COMPLETAS E COMPLEMENTARIAS. DOCUMENTOS DE SU ENTORNO HISTÓRICO Y LITERARIO. Edición bilíngüe preparada por J. G. Echegaray, A. del Campo y L. G. Freeman. II VOL. Madri: BAC, 2004, vol. II. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1973. PERELMAN, Chaim. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. Oral/Escrito. Argumentação. Vol. 11. Lisboa: Impressa Nacional/Casa da Moeda, 1987,pp. 207-265. WEISS, Jean-Pierre. O método Polêmico de Agostinho no Contra Faustum. In: Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas, SP: Editora da UNICANP, 2009, pp. 15-38. ZUNTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005, p. 69-70. 11 BEATO DE LIEBANA. Apologético, p. 676. Performance, segundo Paul Zunthor, seria uma realização poetica plena: um ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe. (…) contrariamente ao que se passa na leitura, ato diferido, quando um poeta declama seu próprio texto, estamos diante dele numa situação de diálogo, uma imediatez se estabelece entre sua palavra, a percepção que temos dele e os efeitos psíquicos que ele gera em nós. ZUNTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005, p. 69-70. 12 7