Hegemonia às avessas - Instituto de Economia

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Hegemonia às avessas
Francisco de Oliveira
Entrevista a Lydia Medeiros para O Globo
Desde que assistiu ao filme “Infância roubada”, sul-africano que levou o Oscar
de melhor filme estrangeiro de 2005, o sociólogo pernambucano Francisco de Oliveira
está inquieto. Ele conta que a ficha caiu. Ao ver a história que retrata os guetos de
Joanesburgo, tão pobres quanto qualquer periferia das grandes cidades brasileiras,
não pôde deixar de questionar para quê servira a vitória de Nelson Mandela e o fim do
regime do apartheid. A miséria estava ali e a exploração persistia. O paralelo com o
Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva foi irresistível. Para o marxista Oliveira, de 73 anos,
professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da USP, a vitória do exmetalúrgico Lula criou no país, tal como na África do Sul, o que chamou de uma
hegemonia às avessas: a classe dominante aceita ceder aos dominados (que Lula, em
tese, representa) o discurso político, desde que os fundamentos da dominação que
exerce não sejam questionados. Em 2003, Chico de Oliveira, como o chamam os
amigos da “turma da pizza”, deixou o PT, que ajudou a fundar. Justificou-se
afirmando que não poderia ver o partido governando com um programa que não
apresentara ao país. As críticas ceifaram algumas amizades. No primeiro turno das
eleições presidenciais, votou em Heloísa Helena, do PSOL, ao qual se filiara. Mas no
segundo turno considerou que haveria espaço para a esquerda num novo governo do
petista. Cravou Lula e admite que se equivocou. Diz não ter arrependimentos. Nesta
entrevista, Oliveira diz que este governo não mudará o país porque Lula se
transformou num mito. E os mitos estão acima da política, dos conflitos e das classes
sociais.
O Globo: No segundo turno da eleição, depois de ter votado em Heloísa
Helena, o senhor disse que votaria em Lula por acreditar que haveria espaço
para a esquerda no segundo governo dele. Recentemente, mostrou-se
desiludido com essa perspectiva. Arrependeu--se do voto?
FRANCISCO DE OLIVEIRA: Sou um herege sem arrependimento. Achei que como ele
(Lula) dependia de votos, pensei que numa conjuntura como aquela talvez a esquerda
pudesse pressionar para ampliar uma brecha possível. Mas as primeiras declarações
dele já foram de que não ia haver modificação nenhuma. Minha posição mais recente
tem a ver com o reconhecimento de que eu me equivoquei. Não estou arrependido de
nada porque a tentativa era exatamente abrir um espaço maior para a esquerda que
reivindica mudanças. Arrependimento, só no amor. Em política não cabe, cabe
análise.
O Globo: qual o espaço de atuação da esquerda hoje, então?
OLIVEIRA: Nenhum. A esquerda foi massacrada. O próprio PSOL, com o qual tentei
contribuir, não existe praticamente. Essa vitória retumbante de Lula no segundo turno
tirou qualquer perspectiva da esquerda, dentro ou fora do PT.
O Globo: Por quê?
OLIVEIRA: Porque Lula converteu-se num mito, e o mito é antipolítico por excelência.
Ele se coloca acima das classes, dos conflitos. Com o mito você não faz política. E Lula
converteu-se num mito.
O Globo: As urnas legitimaram esse mito?
OLIVEIRA: Sem dúvida nenhuma, por caminhos que são quase impossíveis de decifrar
completamente. E este programa do Bolsa Família é extremamente perigoso, deste
ponto de vista. Cria o que chamei de hegemonia às avessas.
O Globo: O que significa isso?
OLIVEIRA: O Bolsa Família é a base dessa hegemonia torta. A ficha me caiu quando
eu vi um filme sobre a África do Sul, “Infância roubada”. Eles derrotaram um dos
regimes mais nefandos do século XX. Pois bem, a África do Sul, exatamente através
de um mito, que é Mandela, derrotou o apartheid. Para quê? Para as enormes favelas
da África do Sul (pausa). Joanesburgo é um horror. Adota a política neoliberal mais
ortodoxa possível, foi derrotado pelo neoliberalismo. É a hegemonia às avessas. Você
derrota o apartheid para servir aos senhores do apartheid.
O Globo: Vê um paralelo dessa situação com a vitória de Lula?
OLIVEIRA: Vejo. Talvez não tenha as mesmas cores dramáticas. Mas vejo algo
parecido. Você derrota a poderosa discriminação social brasileira, o preconceito de
classe absurdamente alto num país com tradição racista, para quê? Para governar
para os ricos. E os ricos consentem, desde que os fundamentos da exploração não
sejam postos em xeque. É o que o PT faz. É o que o governo do Lula faz. É ao avesso,
portanto. A característica da hegemonia às avessas é que a política não passa pelo
conflito de classes. Desviou-se.
O Globo: Lula se apresenta como o presidente dos pobres e reclamou por que
não era o presidente dos ricos. Há essa dicotomia ou é o exercício do mito?
OLIVEIRA: É o exercício do mito. Ele não entende. Segundo a lógica do Lula, que é
elementar — todos acham que ele é um gênio político; não é coisa nenhuma — como
você favoreceu certas capas da sociedade, elas deviam retribuir com o voto. Ele se
sente injustiçado. Mas é o mito em ação. Ele anula ou simula uma anulação dos
conflitos sociais. Hoje se vê o maior consenso. Todo mundo achando que “o governo
não é nenhuma maravilha, mas tem Bolsa Família”. É um desastre. Por isso a
esquerda não tem espaço. Vá convencer algum elemento popular de que o Bolsa
Família é um seqüestro da sua capacidade democrática de optar!
O Globo: Num prazo maior, que conseqüências o senhor prevê que essa
política produza?
OLIVEIRA: São sérias. A exploração predatória que é feita no Brasil está legitimada.
Por que Lula está tão perdido, mesmo com uma votação contundente? Porque perdeu
o inimigo de classe. Do mesmo jeito que Fernando Henrique. Esse processo começou
há 30 anos, são mudanças radicais.
O Globo: Lula será forte neste segundo mandato?
0LIVEIRA: Será fraco. Perdeu a noção de quem é o adversário. Não é porque dá
ministérios. É porque perdeu a noção de quem trabalha contra o desenvolvimento do
país. A gente antes sabia. Hoje, não. Há o consenso, todo mundo a favor do
crescimento e ele se faz a 2,5% ao ano. Qual é o mistério? É que a política perdeu a
capacidade de processar o conflito de classes.
O Globo: O senhor quer dizer que Lula ao chegar ao poder minou a esquerda
brasileira, no sentido da capacidade de mudança?
OLIVEIRA: Não é ele ao chegar ao poder. Lula sempre foi de direita. Isso é uma
ilusão. Nunca foi de esquerda. O PT era de esquerda. Vestia uma camisa da qual ele
não gostava. É como um palmeirense ser obrigado a jogar pelo Corinthians. No caso
dele, o contrário (Lula é corintiano).
O Globo: O senhor diz que os dirigentes de fundos financeiros estatais são
uma nova classe social. É um fenômeno brasileiro?
OLIVEIRA: São uma nova classe social
própria Constituição criou o FAT, Fundo
trabalhadora. Na verdade, pelo BNDES,
no conselho de administração do FAT, a
e da forma que se apresenta, é brasileiro. A
de Amparo ao Trabalhador, gerido pela classe
mas tem lá um membro das centrais sindicais
maior fonte de recursos do BNDES.
O Globo: A ascensão dessa classe levou ao fim do sindicalismo que produziu
Lula?
OLIVEIRA: Levou. É o que chamo de perder a noção de quem é o adversário. Com
esse capitalismo em que a dominância financeira determina a direção dos processos
de crescimento econômico e de acumulação de capital, você tornou-se aliado do êxito
do capitalismo. Imagine um dirigente sindical no conselho do FAT. Chega um projeto
para reestruturação de uma fábrica que bota para fora, de um contingente de cinco
mil trabalhadores, mil. Qual é sua escolha? É um dilema real. As forças em ação são
tão mais poderosas, que o caráter dos homens conta pouco. E isso, como o velho
Marx dizia, muda a forma de pensar.
O Globo: Qual é uma plataforma plausível para a esquerda hoje?
OLIVEIRA: É investir poderosamente em mecanismos de distribuição de renda, tais
como a Previdência Social. Fiquei feliz que o discurso do Lula mudou e agora diz que o
déficit é a forma de justiça social que o país escolheu. Está correto. A Previdência foi o
mecanismo mais efetivo de redistribuição de renda. No Brasil também. É preciso
investir nisso, num esforço enorme de inclusão social.
O Globo: No Bolsa Família não?
OLIVEIRA: Não. Você tem que transformar o Bolsa Família em numa coisa ligada e
administrada pela Previdência, que venha a fazer parte da renda dos mais pobres. E
ampliar.
O Globo: Quem banca?
OLIVEIRA: O Estado, através da punção dos lucros escandalosos do capitalismo no
Brasil. Isso não é revolucionário. Isso ajuda ao capitalismo.
O Globo: O senhor acredita que Lula quer um terceiro mandato?
OLIVEIRA: Está na cabeça dele, mas não vai. Porque aí, de fato, exigiria que fosse
capaz de mobilizar, e não é. Lula quer ser consagrado como pai dos pobres e estar
acima da política. Já conseguiu. Para entrar nessa teria de reentrar na política. E aí o
mito se esboroa.
O Globo: O senhor perdeu amigos com as críticas ao PT?
OLIVEIRA: Perdi. Os mais caros não perdi, aqueles que amo, que tenho prazer de
estar com eles, que são a turma da pizza, a “pizza marxista”. A gente fofoca sobre
tudo. Mas muitos já nem falam comigo. E com outros a relação é só cordial. Todos
sabem que estou de olho neles.
Francisco de Oliveira é professor titular (aposentado) do Departamento de Sociologia
da USP, doutor “honoris causa” na Universidade Federal do Rio de Janeiro, por
iniciativa do Instituto de Economia da UFRJ. Esta entrevista foi publicada no jornal
O Globo, edição de 4 de fevereiro de 2007.
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