UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES O FINO DA BOSSA: TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (1965-1967) Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História, Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel e licenciada em História. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Ribeiro. CURITIBA 2010 RESUMO O historiador Paulo César de Araújo procura entender como se construiu a definição de música “brega” nos anos 1970 e atribui a essa categoria a assimilação da “tradição” ou da “modernidade” para essa produção. Marcos Napolitano, ao trabalhar com a expressão MPB, que, segundo ele, surge em meados dos anos 1960, também mostra a importância dessas duas categorias para a formulação dessa sigla. Entretanto, essa conceituação é bastante complexa e é importante entender o que significam historicamente essas categorias, pois elas marcam também um processo de construção identitária. Esse é o objetivo dessa monografia, que pretende discutir como as categorias de “tradição” e “modernidade” foram importantes para a produção musical de meados dos anos 1960, a partir do programa musical televisivo O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, entre os anos de 1965 e 1967. A intenção é compreender como era construída uma identidade musical a partir dessas duas categorias, vendo não só a produção dos discursos mas também como eles se efetivavam na prática musical. Palavras-chaves: música e política; identidades; regime militar de 1964. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................1 1 NA BOSSA COM ELIS REGINA E JAIR RODRIGUES ...........................................8 2 O MERCADO DE BENS SIMBÓLICOS NA DÉCADA DE 1960 ...........................22 3 TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM O FINO DA BOSSA......................................30 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 52 FONTES................................................................................................................... 54 REFERÊNCIAS........................................................................................................ 56 1 INTRODUÇÃO Em seu livro Eu não sou cachorro não, Paulo César de Araújo procura entender o silêncio da historiografia em relação a determinados gêneros e autores da música popular brasileira, que, apesar das vendagens expressivas de discos e recordes de execuções radiofônicas entre os anos de 1968 e 1978, não eram considerados objetos de estudo no campo das ciências sociais. Para o autor, os artistas pejorativamente denominados “bregas” são um “patrimônio afetivo de grandes contingentes das camadas populares” e suas obras podem se constituir em uma forma de entender a cultura brasileira.1 Após uma extensa e intensa discussão sobre a produção musical desses artistas e sobre a memória construída acerca da MPB, Araújo propõe uma definição para a música “brega”, como “toda aquela produção musical que o público de classe média não identifica à ‘tradição’ ou à ‘modernidade’”.2 Para o autor, quando a música popular brasileira começou a ser debatida e analisada por intelectuais e críticos musicais, já nas primeiras décadas do século 20, a discussão se realizava em torno dos conceitos de “tradição” e “modernidade”. Esse dualismo já estaria presente no debate político-cultural desde 1922, refletindo a necessidade de construção de uma identidade nacional. Essa tese é corroborada por Marcos Napolitano, em seu livro A síncope das 3 ideias , no qual o autor mostra como se constrói essa identidade nacional a partir da retomada de valores associados a elementos da tradição popular tensionados pela necessidade de modernização desses mesmos valores. A tensão estaria na tentativa de conciliar essas duas posições estéticas e também políticas, pois uma “moderna” música popular brasileira teria se construído na articulação com as raízes de cultura popular considerada “autêntica”, ou seja, ancorada em elementos da tradição musical brasileira. Conceitualmente, o autor destaca o caráter híbrido das obras – na acepção utilizada pelo antropólogo Nestor Canclini, ou seja, como estratégias para lidar com a modernidade, aceitando e rejeitando os seus pressupostos –, pois nas canções poderiam se perceber os dilemas que os artistas sofriam na tentativa de 1 ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 15. Ibidem, p. 353. 3 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. 2 2 realizar uma produção orientada pelo nacional-popular, mas que também recebe informações vanguardistas, seja do jazz, da música erudita contemporânea ou ainda tropicalistas, já no final da década de 1960.4 Assim, seguindo a MPB e procurando mostrar que a legitimidade de determinados gêneros e a construção de seus sentidos deve ser entendida não só sincrônica, mas também diacronicamente, que se deve “entender criticamente o processo histórico de legitimação sociocultural de autores, gêneros e obras, necessariamente diacrônico, marcado por descontinuidades, monumentalizações, lugares de memória e invenção de tradições”5, o autor acaba transformando a MPB, categoria construída historicamente, em algo imanente a praticamente toda produção musical brasileira realizada após a instalação das primeiras gravadoras e rádios no país, ou seja, após o início de uma incipiente indústria cultural, que se consolidaria a partir de meados da década de 1960. Em certo sentido, as duas interpretações, de Araújo e Napolitano, se encontram, ou melhor, se complementam. Se considerarmos que toda identidade é relacional e construída tanto simbólica quanto socialmente, podemos entender que o simbólico é a forma pela qual “damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído”.6 Da mesma forma, Michael Pollak argumenta que “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.”7 Contudo, se os autores percebem essa construção identitária que articula tradição e modernidade – pois o caráter de resistência atribuído exclusivamente à MPB é questionado por Araújo –, não fica claro de qual tradição e modernidade se está falando, pois mesmo entre essas duas vertentes há inúmeras modulações de sentido que devem ser entendidas em relação a determinados projetos políticos4 NAPOLITANO, Marcos. MPB: totem-tabu da vida musical brasileira. In: Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005, p. 126. 5 NAPOLITANO, Marcos. “História e música popular: um mapa de leituras e questões”. Revista de História, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 157, 2007, p. 167. 6 WOODWARD, Kathryn. “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.” In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 8. 7 POLLAK, Michael. "Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, vol. 5, nº 10, 1992, p. 204. 3 culturais que estão sendo propostos. Nesse sentido, a nossa proposta, nessa monografia, é entender essa tensão entre tradição e modernidade em seu contexto de formulação, pois, concordando com Jesús Martin-Barbero, acreditamos que “historicizar os termos em que se formulam os debates é já uma forma de acesso aos combates, aos conflitos e lutas que atravessam os discursos e as coisas.”8 Assim, o nosso objetivo é entender como esses conceitos informavam a produção musical de meados da década de 1960, período no qual teria sido criado o termo MPB, a partir do debate que confrontava diferentes posições políticas e estéticas. Para Araújo também foi produzido um “enquadramento” da memória da música popular brasileira, pois os pesquisadores que estudam essa produção saem do mesmo meio universitário que produziu o debate sobre a cultura popular e acabam reproduzindo esse mesmo discurso.9 Dessa forma, acaba-se produzindo um discurso etnocêntrico que coloca a MPB como centro da produção musical brasileira dos anos 1960 e 1970 e a ela são atribuídos os valores considerados “positivos” de resistência, liberdade criativa e independência mercadológica. E sobre os artistas e críticos musicais que apresentam uma voz discordante a esse discurso são produzidos silêncios – como no caso de Wilson Simonal – ou deslegitimadas as suas ideias, – como no caso de José Ramos Tinhorão –, que passam a ser consideradas xenófobas ou ultrapassadas. Porém, como demonstra Luísa Lamarão, são ultrapassadas “em relação a uma memória que certa esquerda quer cristalizar sobre sua atuação no campo cultural e político dos anos da ditadura”.10 O crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão foi uma das vozes do debate sobre a “moderna” música popular brasileira e o alcance das suas ideias pode ser percebido pela interlocução estabelecida com Augusto de Campos – que responderia com vários artigos na imprensa, posteriormente reunidos no livro Balanço da bossa – e com Caetano Veloso, quando formula o seu conceito de “linha evolutiva”11, em debate promovido pela Revista Civilização Brasileira. Tinhorão também foi ouvido por essa revista, junto com o músico Luiz Carlos Vinhas e o 8 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 31. 9 ARAÚJO, Paulo César de. Op. Cit., p. 343. 10 LAMARÃO, Luisa Quarti. As muitas histórias da MPB: as idéias de José Ramos Tinhorão. Dissertação. UFF. História, 2008. 155f, p. 126. 11 Ibidem, p. 46-47. 4 compositor Edu Lobo.12 Assim, as ideias de Tinhorão são igualmente importantes para entender o processo de construção da MPB. Se havia uma tensão entre “tradição” e “modernidade”, é importante destacar de qual “tradição” e de qual “modernidade” se está (e se estava) falando, uma vez que não se constituíam de projetos homogêneos. Para essa discussão, selecionamos o programa musical televisivo O fino da bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, na TV Record de São Paulo, entre os anos de 1965 e 1967, período marcado pelo debate no qual é forjado o conceito de MPB e em que os temas da tradição e da modernidade são constantemente retomados. Esses dois intérpretes também terão uma participação importante nos festivais de música popular brasileira realizados pela mesma emissora, principalmente em 1965, quando Elis Regina vence com a canção Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e 1966, quando Jair Rodrigues, interpretando a canção Disparada, Geraldo Vandré e Théo de Barros, divide o primeiro lugar com A banda, de Chico Buarque. É importante destacar a importância dos festivais da canção promovidos em meados da década de 1960, comumente lembrados quando se fala nos “festivais”, ou na “era dos festivais”, tanto pelo sucesso e repercussão que obtiveram na época e a capacidade de mobilização das pessoas em torno das canções participantes, quanto pelas transformações que introduziram na música popular brasileira. Além disso, em 1965, Elis Regina lança o seu quinto disco solo, Samba eu canto assim, considerado por Marcos Napolitano como fundamental para a constituição da nascente MPB, pois a intérprete estaria no centro do debate sobre a música popular brasileira em sua relação com a “tradição” e a “modernidade”, “na medida em que sua leitura de bossa nova remetia ao universo musical anterior ao movimento”.13 Para o autor, com esse disco Elis Regina contribuiria para ajudar a configurar a MPB que nascia, principalmente pelo “cruzamento de séries históricas e culturais diferentes na reorganização do panorama musical brasileira, do ponto de 12 LOBO, Edu; VINHAS, Luiz Carlos; TINHORÃO, José Ramos. “Confronto: música popular brasileira.” Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 3, p. 305-312, jul. 1965. Entrevistas concedidas a Henrique Coutinho. 13 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 110. 5 vista estético, ideológico e comercial.”14 Ainda de acordo com Napolitano, o desenvolvimento da televisão ajudou a ampliar a audiência da MPB, pois o seu público constituía-se, nesse primeiro momento, pelos ouvintes do rádio, que possuíam outros referenciais sonoros, anteriores à bossa nova, e Elis Regina teria tido um papel fundamental nesse processo, ao conciliar esse padrão estético radiofônico a um repertório formado por vários compositores oriundos da bossa nova. Assim, com esses dois artistas de importante atuação nos festivais de música, apresentando um programa musical em uma televisão ainda incipiente e que procurava aumentar e consolidar um público específico, podemos entender o debate sobre as tendências musicais da época. Embora ambos os artistas tenham lançado outros discos nesse período, sozinhos ou ainda em dueto, escolhemos como fonte as canções veiculadas no programa, lançadas pela gravadora Velas, em 1994, em três CDs, que contêm trechos do programa registrados pelo técnico de som na época, Zuza Homem de Mello, e que se constituem nos únicos registros fonográficos do programa O fino da bossa – e mesmo audiovisuais, se considerarmos que grande parte do acervo da emissora perdeu-se com incêndio em suas dependências e pelas constantes regravações de programas por sobre materiais antigos. Como o programa repercutiu na imprensa, entre intelectuais e críticos musicais, é possível historicizar o debate a respeito da produção musical popular brasileira. A escolha pelo programa faz-se pela intenção de não tratar apenas das canções que esses artistas estavam interpretando e gravando mas para estudar também os compositores e intérpretes que passavam pelo programa, o que sinalizava a filiação a determinadas propostas estéticas. Assim, os produtos fonográficos desses artistas, os discos – em dueto ou individuais –, serão discutidos como forma de ampliar a compreensão sobre os procedimentos estéticos, uma vez que ainda se inserem nas mesmas propostas musicais presentes no programa televisivo. O recorte temporal estabelecido para essa pesquisa é dado pelos anos em que o programa O fino da bossa foi transmitido, entre 1965 e 1967.15 Além disso, 14 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 107. Em 1966, o programa passará a ser chamado de O Fino, por questões contratuais, pois o “proprietário” do nome “O Fino da Bossa”, Horácio Berlinck se desligaria do programa. Depois, 15 6 esse recorte também marca a ascensão da trajetória artística desses dois artistas, suas participações nos festivais de música e o debate sobre a música popular brasileira, que suscita novas questões e posicionamentos a partir do golpe militar de 1964 e também pelo crescente desenvolvimento dos meios de comunicação. Assim, o período engloba momentos importantes para a política e a cultura brasileira. Metodologicamente, essa pesquisa seguiu o procedimento sugerido por Marcos Napolitano para a análise de uma canção como fonte histórica, cotejando a audição da obra em sua materialidade (os fonogramas resultantes das gravações das apresentações em O fino da bossa) com as manifestações escritas provenientes da escuta musical, que se dá por meio de artigos, críticas, entrevistas dos artistas e outros documentos que permitam situar historicamente a canção16, procedimento fundamental para entender as obras em sua historicidade, uma vez que estamos procurando entender o debate sobre essa produção musical. As fontes utilizadas podem ser divididas entre um material impresso – composto de artigos de jornais e revistas da época com depoimentos e entrevistas de Elis Regina e Jair Rodrigues, e artigos que discutem a produção musical do período e de forma mais restrita, a desses dois artistas – e um material sonoro, o registro fonográfico das canções. Os principais jornais pesquisados foram o Jornal do Brasil e, entre as revistas, foram utilizadas O Cruzeiro, marcada por uma linha editorial de apoio ao regime militar, à “Revolução de 1964”, e a Revista de Civilização Brasileira, que propiciava a discussão cultural entre intelectuais de esquerda ou críticos ao golpe militar. Além disso, foram utilizadas coletâneas de artigos publicados em livros, como Balanço da bossa, que reúne diversas formulações críticas à música popular brasileira do período. O interesse por fontes de orientações político-estéticas distintas resulta da intenção de compreender os vários discursos e as diferentes recepções em relação às propostas artísticas do período. É a partir dessa perspectiva que a monografia foi estruturada e dividida em três capítulos, sendo que, no primeiro, é discutida a trajetória artística de Elis Regina passará a ser O Fino 67. Entretanto, tanto nos três CDs que contêm essa produção musical quanto nas fontes do período, o programa é constantemente referido pelo seu nome original. 16 NAPOLITANO, Marcos. “A história depois do papel”. In: PINSKY, Carla. (Org.) Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 235-289. 7 e Jair Rodrigues nos primeiros anos de suas carreiras, com destaque para o início em festivais de música e a participação no programa O fino da bossa, procurando situá-los em relação à bossa nova e aos festivais de música – movimentos importantes para entender o debate sobre a música popular após o regime militar. No segundo capítulo, é dada ênfase ao mercado fonográfico e relacionamento dos artistas com os meios de comunicação e com as estruturas de marketing das gravadoras, em como se relacionavam e se inseriam na indústria cultural que estava se consolidando no país. Os dois primeiros capítulos abordam aspectos que entravam na discussão sobre a música popular: a origem social dos artistas e suas escutas musicais prévias, que contribuíam para a forma como se expressavam artisticamente, e a relação com o mercado, “cooptação” ou “negação”, termos que tensionavam a produção dos artistas que desejavam um posicionamento crítico em relação ao regime militar e ao capitalismo vigente no país. A partir dessa discussão iniciada nos dois primeiros capítulos, o terceiro procura destacar os depoimentos dos artistas, intelectuais e críticos musicais sobre a função social da arte, inseridos no debate produzido na mídia, com o intuito de entender qual(is) o(s) significado(s) que estão sendo construídos para as duas categorias, “tradição” e “modernidade”, a partir do programa O fino da bossa. Das 34 canções disponíveis nos 3 CDs sobre O Fino da Bossa, são analisadas 13, com o intuito de perceber como esse discurso era efetivado na prática. 8 1 NA BOSSA COM ELIS REGINA E JAIR RODRIGUES O termo bossa já era utilizado pelo menos desde os anos 1930, quando Noel Rosa dele se apropria em seu samba Coisas nossas, lançado em 1932, como se pode ouvir no refrão “o samba, a prontidão / e outras bossas / são coisas nossas / são coisas nossas”.17 Segundo o crítico musical José Ramos Tinhorão, o termo continuaria sendo bastante evocado nas décadas seguintes, até surgir a expressão cheio de bossa, que designaria “alguém capaz de frases ou atitudes inesperadas, recebidas como demonstração de inteligência ou de real bom humor.”18 Na gíria carioca, a palavra bossa era reconhecida como “o talento especial de uma pessoa para fazer determinada coisa”19, como se pode perceber na referência à cantora Elza Soares, pois o seu sucesso teria vindo da “bossa genial de cantar a música antiga usando o sabadabadá saído direto da garganta”20 ou na capacidade comunicativa de Wilson Simonal, expressa no domínio de palco que possuía, “dono de uma bossa toda sua”21. Não demoraria para aparecer a expressão “bossa nova”, que seria bastante divulgada pelo jornalista Sérgio Porto – também conhecido como Stanislaw Ponte Preta – em sua coluna no jornal Diário Carioca, que fazia uma espécie de síntese entre esses significados, incorporando também uma associação com o sentido de modernidade, bastante explorado pelo meio publicitário. Assim, podia-se ter um “delegado bossa nova”, “imaginoso e lírico”22, uma nota humorística que pedia um “aumento em bossa nova”, que poderia ser “em dinheiro ou em gêneros”23, uma “bossa nova legislativa”, com a malícia do vereador que queria votar por telegrama24, ou ainda uma forma de promover artigos de vestir, como a “bossa nova opina: os tons são elegantes”25. Para Tinhorão, seria dessa forma que a expressão “bossa nova” acabaria sendo utilizada para identificar um grupo novo de artistas surgidos 17 JUBRAN, Omar. Noel Rosa pela primeira vez. Ministério da Cultura / FUNARTE, 2000, p. 25. TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 28. 19 Ibidem, p. 19. 20 ELZA Soares mulata de 400 bossas. O Cruzeiro, 20 nov. 1965, p. 67. 21 DO MOLEQUE Simona a Wilson Simonal. O Cruzeiro, 19 ago. 1967, p. 56. 22 DELEGADO bossa-nova. Coluna O impossível acontece. O Cruzeiro, 23 maio 1964, p. 56. 23 AUMENTO em bossa nova. Coluna O impossível acontece. O Cruzeiro, 19 fev. 1966, p. 40. 24 BOSSA-NOVA legislativa. Coluna O impossível. O Cruzeiro, 28 jan. 1967, p. 56. 25 Publicidade casimiras Guahyba. Manchete, 17 maio 1964, p. 83. 18 9 entre 1958 e 1959 cuja maior “bossa” era apresentar “sambas modernos”. Tinhorão era extremamente crítico ao novo gênero musical – para ele apenas uma forma de tocar sambas e uma deturpação do samba de origens populares – e em seu artigo procurava questionar a “novidade” do movimento musical ao mesmo tempo em que valorizava a “velha bossa”, essa sim considerada uma “autêntica” música popular brasileira. Para o crítico, tratava-se de um processo de alienação do jovem de classe média – que consome música estrangeira e despreza a cultura popular – da produção das classes pobres. Assim, a sua crítica recaía tanto à produção quanto à recepção de classe média. Reconhecendo que o conceito de autenticidade tem um sentido histórico e ideológico, Luísa Lamarão argumenta que o pensamento de Tinhorão procurava articular folclore e marxismo, em um discurso que procurava “preservar a autenticidade da cultura popular face às influências alienantes da cultura estrangeira”.26 Para Marcos Napolitano, o sentido de modernidade atribuído à bossa nova pode ser entendido como uma das formas como os “segmentos médios da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista que desejava ‘atualizar’ o Brasil como nação perante a cultura ocidental”.27 O autor afasta-se de análises que definem a bossa nova como “reflexo” do desenvolvimentismo do governo de Juscelino Kubitschek, com a qual concordamos pois entendemos que a arte não pode ser entendida como se fosse apenas um “reflexo” da sociedade, mas como uma de suas manifestações, uma das respostas possíveis ao momento vivido pelo país, informada por e formadora do contexto, resultando de um processo de “trocas” e “interações” sociais. Contudo, essa “utopia modernizante” e os seus efeitos sobre a cultura brasileira também eram objeto de discussão e críticas. De acordo com Anna Moraes Figueiredo, em sua pesquisa realizada entre os anos de 1954 e 1964, a publicidade expressava um desejo de modernidade, “uma 26 LAMARÃO, Luisa Quarti. As muitas histórias da MPB: as idéias de José Ramos Tinhorão. Dissertação. UFF. História, 2008. 155f, p. 84. 27 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 21. 10 condição a priori imbuída de positividade”28, que se configurava mesmo como um ideal que deveria concretizar-se no crescimento urbano e industrial, que superaria o “atraso” das zonas rurais e inauguraria um “tempo novo”. E esse processo de desenvolvimento não poderia prescindir do capital estrangeiro. A produção deveria ser feita no Brasil, com a independência econômica vindo da iniciativa privada, mas os capitais não precisavam ser nacionais. Os produtos estrangeiros eram assumidos como modelos para a indústria brasileira e a soberania seria alcançada pela evolução capitalista, pela ampliação do consumo. O conceito de liberdade associava-se diretamente com a possibilidade de consumo de artigos variados. No período pré-golpe de 1964 encontra-se em periódicos da imprensa, como a revista O Cruzeiro, um discurso que realizava a fusão entre consumo, liberdade e democracia, que funcionava, também, como um discurso anticomunista. O estilo de vida “ocidental”, ou seja, das camadas médias urbanas norte-americanas, era contraposto ao “atraso” dos países comunistas e o jazz aparece como um referencial de modernidade a ser seguido. Procurando o sentido que era dado ao termo bossa ou a expressão bossa nova pelos meios de comunicação, percebemos que eles eram frequentes na mídia impressa, em propagandas publicitárias, para atribuir um caráter positivo de modernidade, bom gosto e sofisticação a uma roupa, ao modo de vestir, à decoração de uma casa, sentidos já comentados anteriormente. No plano estritamente musical, as referências eram várias – seguindo a influência do movimento da bossa nova – e iam desde o conjunto Bossa Três, com quem Elis Regina tocou na boate Little Club, depois que chegou ao Rio de Janeiro, passando pelo Rui Bar Bossa, de São Paulo, ou ainda presentes nos títulos e repertórios de shows, como O remédio é bossa ou nos realizados pelos centros universitários, como o Boa Bossa, do qual Elis participou, ou aquele que nomearia o musical televisivo da Record, O fino da bossa, ambos promovidos pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito de São Paulo.29 Segundo Zuza Homem de Mello, a partir de 1961 proliferaram espetáculos de bossa nova em São 28 FIGUEIREDO, Anna Moraes. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Hucitec, 1998, p. 31. Ver principalmente o capítulo “O progresso chega ao ‘fim do mundo’”, p. 31-51. 29 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007. 11 Paulo, principalmente nos circuitos universitários, que se transformavam em veículo de promoção do artista.30 Assim, podemos considerar que o nome do programa O fino da bossa, criado por um dos seus produtores, Horacio Berlinck, vinculava-se tanto ao gênero como a um sentido mais geral percebido pela utilização cotidiana do termo.31 Dois meses após a sua estreia outro musical televisivo incorporava o termo bossa ao seu título, mas com repertório distinto. Era o Bossaudade, apresentado por Elisete Cardoso. Para Napolitano, o formato de O fino da bossa mostrava as contradições entre as exigências de linguagem do meio televisivo e o legado intimista da bossa nova, mais próxima do cool jazz. Entretanto, não haveria contradição se considerarmos que a bossa nova também tinha uma vertente do hot jazz, com expoentes como o Zimbo Trio e o próprio Ronaldo Bôscoli, que dirigia os chamados pocket shows no Beco das Garrafas, reduto boêmio carioca composto pelas boates Ma Griffe, Little Club, Bottle’s Bar e Baccara. A bossa nova, tanto como movimento musical como um gênero musical, também não era um movimento homogêneo. Aqui também podemos perceber que a categoria “modernidade” informava diferentes projetos de bossa nova. Nesse sentido, consideramos importante fazer algumas considerações sobre as definições atribuídas a determinados gêneros e as polêmicas envolvidas nesse processo. Segundo Napolitano, um gênero não se define apenas musicologicamente, por um parâmetro rítmico ou melódico, mas também por convenções que são constantemente debatidas e redefinidas por críticos musicais, músicos, pelo público e pelas gravadoras, tornando-se necessário “entender a genealogia de uma determinada experiência musical, em seus aspectos diversos, como canção, como dança, como identidade cultural e como produto comercial revestido de efeitos que vão além da performance direta.”32 A bossa nova também foi objeto de discussão e reelaboração durante a década de 1960 e um dos elementos constituintes desse debate era a associação à modernidade, que também construía uma identidade cultural. 30 MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 34. Em 1967, com o desligamento de Berlinck do musical, este passaria a ser chamado apenas de O Fino. 32 NAPOLITANO, Marcos. “História e música popular: um mapa de leituras e questões”. Revista de História, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 157, 2007, p. 156. 31 12 Antes de estrear o programa da TV Record, a dupla Elis Regina e Jair Rodrigues protagonizou o show Dois na bossa, que estreou em 9 de abril de 1965, no Teatro Paramount de São Paulo, produzido pelo disc-jockey Walter Silva – também conhecido pela alcunha de Pica-pau – e após o seu sucesso rendeu novas edições e o lançamento de uma série de três discos homônimos, lançados em 1965, 1966 e 1967. Segundo dados da Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado (Nopem), criada em 1965 por um ex-funcionário do Ibope e que realizava sua pesquisa a partir das informações fornecidas pelos lojistas de discos das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o primeiro volume da série, de 1965, atingiu a quinta posição entre os mais vendidos.33 Assim, os artistas estavam ao mesmo tempo na televisão e nos discos, embora nem sempre com o mesmo repertório ou o mesmo arranjo. Além disso, enquanto os discos eram apenas dos dois intérpretes, o musical recebia convidados, o que permite perceber quais os artistas eram valorizados musicalmente. Atualmente podemos ter acesso a essa diversidade de cenário musical a partir da iniciativa do técnico de som Zuza Homem de Mello, que gravou algumas passagens de O fino da bossa que seriam lançadas em três discos em 1994, possibilitando o acesso ao programa, já que o acervo da Record foi bastante danificado por incêndios e regravações posteriores nas fitas originais do musical. O musical televisivo O fino da bossa estreou na Rede Record em 17 de maio de 1965, conduzido pela dupla Elis Regina e Jair Rodrigues. Era um programa semanal de auditório, gravado às segundas-feiras, no Teatro Record, da Consolação, em São Paulo, e exibido às quartas-feiras, no horário nobre das 20 às 22 horas, com produção do núcleo da chamada equipe A, constituída por Manoel Carlos, Nilton Travesso, A. de Carvalho, João Evangelista e Horácio Berlinck. Eram apresentados diferentes números musicais nos quais os artistas convidados alternavam-se em exibições solo ou com os apresentadores do programa. O musical foi líder de audiência durante o ano de 1965 e manteve o mesmo patamar, estável entre 23% e 26%, em média, durante o ano seguinte, mas perdeu a liderança para o programa Jovem Guarda, que estreou em agosto de 1965, com o comando de 33 VICENTE, Eduardo. Os dados do nopem e o cenário da música brasileira de 1965 a 1969. In: Anais do VII Congresso Latino-Americano da Associação Internacional para Estudo da Música Popular, Havana, 2006. Disponível em: <http://www.uc.cl/historia/iaspm/lahabana/articulosPDF/ EduardoVicente.pdf.> Acesso em: 10 ago. 2010. 13 Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderlea. A expressão excedeu os limites do programa e passou a identificar um movimento musical e comportamental “jovem” sob a influência do rock de Bill Haley e seus Cometas, Elvis Presley, Beatles, além de canções românticas italianas, que fizeram surgir uma linguagem própria denominada iê-iê-iê (yé-yé-yé).34 Segundo Adriana Mattos de Oliveira, o programa Jovem Guarda foi criado pela Rede Record devido à necessidade de a emissora apresentar em sua programação um programa jovem que pudesse concorrer e também superar os programas voltados ao rock e ao público jovem das redes concorrentes, além de poder preencher o horário antes reservado à transmissão de jogos de futebol, aos domingos.35 O novo meio, a televisão, trazia novas demandas em termos de linguagem. Agora, o que contava não era apenas o som, como no rádio, mas também o visual. Mas podemos entender esse visual também como uma adaptação dos programas de auditório de rádio – dos quais tanto Elis Regina e Jair Rodrigues participaram como concorrentes no início de suas carreiras – com seu público barulhento conduzido por apresentador(es) em clima festivo. Nesse aspecto, os dois artistas possuíam amplo domínio de cena e com um estilo expressivo sabiam explorar os recursos da televisão e estabelecer uma grande comunicação com a nova audiência televisiva que se formava. Segundo Tinhorão, foi o sucesso de O Fino da Bossa que mostrou que “era preciso um novo tipo de apresentação de palco para atender ao gosto das modernas gerações de jovens, voltadas agora para outras expectativas, geralmente ligadas a imagens e modelos projetados pela indústria do som e do show-business internacional”.36 Ressaltamos que a análise de Tinhorão sobre o surgimento da televisão está de acordo com as suas reflexões sobre o afastamento das classes pobres da produção de cultura, resultante de um processo de industrialização e urbanização que promoveu um divórcio entre o samba de classe média e o samba das classes populares. Para o crítico, “o aparecimento da televisão em 1950, no Brasil, marca o 34 JOVENS cantores fazem música jovem. O Cruzeiro, 13 nov. 1965, p. 6-13. OLIVEIRA, Adriana Mattos de. A jovem guarda e a indústria cultural: análise da relação entre o Programa Jovem Guarda, a indústria cultural e a recepção de seu público. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História, 2009. [CD] 36 TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981, p. 180. 35 14 início da ruptura definitiva entre a produção de cultura a nível popular e a capacidade de divulgá-la aproveitando os meios cada vez mais sofisticados da tecnologia da comunicação”.37 Entretanto, a sua análise também mostra a importância dos recursos tecnológicos e as transformações operadas na música popular pela nova demanda da linguagem televisiva, em que Elis Regina e Jair Rodrigues tiveram papel preponderante. O trio de apresentadores do Jovem Guarda também sabia aproveitar a nova mídia utilizando som e imagem. Voltando aos nossos dois artistas, percebemos que embora o programa tenha marcado a televisão brasileira e os colocado em destaque, eles já vinham de trajetórias ascendentes de sucesso. A gaúcha Elis Regina iniciou sua carreira artística ainda em Porto Alegre, ao participar do Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, tornando-se, também, secretária do apresentador Ary Rego, dos 11 aos 13 anos. Com 16 anos, lançou, em 1961, pela gravadora Continental, o seu primeiro disco, Viva a Brotolândia, composto basicamente de versões de canções estrangeiras e com um referencial estético apoiado na obra de Celly Campelo, cantora com um repertório baseado no rock e com bastante sucesso entre o público juvenil durante o final dos anos 1950 até 1962, quando abandonou a carreira artística. Antes de mudar-se para o Rio de Janeiro, Elis ainda lançaria mais um disco solo pela Continental, Poema, em 1962, e mais dois em 1963, Elis Regina e O bem do amor, por uma nova gravadora, a CBS. Embora o alcance dessa primeira fase fosse regional, mais restrita ao estado do Rio Grande do Sul e ao espaço em que atingiam as ondas médias da Rádio Farroupilha, as aparições de Elis Regina no programa radiofônico Clube do Guri lhe renderam o título Rainha do Disco Clube, ainda em Porto Alegre. Esse sucesso inicial, ainda local, também lhe renderia a proposta de um novo contrato, com nova gravadora, a Philips, e em março de 1964 Elis Regina deixava o Sul com a intenção de consolidar a sua carreira no eixo Rio-São Paulo. Continuando a ascensão vertiginosa, em menos de um ano ganhou o prêmio Roquette Pinto de melhor cantora de 1964, tanto pelos pocket shows realizados no Beco das Garrafas, produzidos pela dupla Miele e Ronaldo Bôscoli, quanto pela gravação do compacto com Menino das laranjas, de Theo de Barros. O prêmio Roquette Pinto foi criado, no 37 Ibidem, p. 157. 15 início da década de 1950, para premiar os melhores profissionais do rádio e da televisão brasileira. Foi adquirindo prestígio e na década de 1960 era transmitido ao vivo pela TV Record, o que aumentava a divulgação de um artista para o público. Elis também foi escolhida por Accioly Netto, da revista O Cruzeiro, em sua coluna semanal sobre teatro, como a melhor cantora da cena noturna carioca. Revelada no Bottle’s, seria no Little Club que Elis Regina passaria a “dominar nas madrugadas, gravando também seus melhores êxitos”.38 Já as madrugadas paulistas contavam com o crooner Jair Rodrigues, desde o início da década de 1960. Assim como Elis Regina, também participou de programas de calouros, como o Programa de Cláudio de Luna, da Rádio Cultura de São Paulo, no qual obteve a primeira colocação. O cantor obteve o seu primeiro sucesso com o samba O morro não tem vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, presente em seu primeiro disco, O samba como ele é, de 1964. Mas foi o seu segundo disco, Vou de samba com você, lançado no final desse mesmo ano, que trouxe o samba que ampliaria o seu sucesso, aquele em que “ele fazia ‘assim’ com a mão”: Deixa isso pra lá, de dois compositores desconhecidos, Alberto Paz e Edson Menezes.39 Com uma parte cantada e outra falada, na qual eram inseridos os gestos com a palma da mão direita, era uma música também para ser vista. A coreografia da “mão” foi aperfeiçoada por Jair para obter o melhor efeito possível em programas de televisão dos quais participava. Elis Regina também utilizaria efeitos coreográficos – mas dos “braços” – aprendidos com o bailarino Lennie Dale quando ainda cantava no Beco das Garrafas. Após essa experiência, no Rio de Janeiro, transferiu-se para São Paulo, no início de 1965, e participou do I Festival de Música da TV Excelsior, entre 27 de março e 4 de abril. Como vimos, possuía algum prestígio e reconhecimento como cantora, que foi ampliado para um público maior com a vitória dupla: o primeiro lugar obtido pela canção Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e o prêmio de Melhor Intérprete. Assim como Jair Rodrigues, Elis sabia utilizar a voz e o corpo de modo a causar impacto na televisão e, apesar do apelido “Elis cóptero”, os seus trejeitos de braços e cabeça estranhamente sincronizados “fizeram delirar uma 38 NETTO, Accioly. Os melhores do teatro na madrugada. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 13 fev. 1965, p. 25. 39 DEIXE isso pra lá. O Cruzeiro, 28 nov. 1964, p. 56. 16 plateia até então considerada pela maioria dos artistas como das mais apáticas do Mundo”.40 O tom da matéria mostra o impacto causado por sua apresentação. Assim, o musical O fino da bossa projetou ainda mais dois cantores que já vinham se destacando. Os festivais foram importantes para o reconhecimento dos artistas e também contribuíram para o surgimento de uma fórmula de canção de festival, pois os artistas tinham a intenção de obter uma boa classificação e recepção pelo público. Esse aspecto é evidenciado por Zuza Homem de Mello, que identifica a interpretação contagiante e épica de Elis Regina em Arrastão como um dos elementos dessa música de festival.41 Logo em seguida, participava com Jair Rodrigues do primeiro show Dois na Bossa, era contratada pela Rede Record com um salário muito alto para a época e lançava o seu disco Samba eu canto assim. A canção Arrastão e a produção musical associada apresentada por O fino da bossa passaria a ser chamada de “música popular moderna”, transformando-se, com o tempo, em MPM. Para Zuza de Mello, não era uma ruptura, nem uma corrente contrária, mas uma decorrência da estrutura harmônica da bossa nova.42 São os vários elementos componentes de uma composição que são objeto de disputa por uma convenção que busca a legitimação como um gênero musical socialmente aceito e reconhecido, como discutiremos no terceiro capítulo. A trajetória inicial seria lembrada por Elis Regina no espetáculo Falso Brilhante, que estrearia em 17 de dezembro de 1975, no Teatro Bandeirantes, em São Paulo. Uma das intenções manifestas do show era contar a história de um artista brasileiro, que poderia ser também a da própria Elis, pois o número que abre o show é a encenação de uma edição do Clube do Guri, onde ela se apresentou pela primeira vez. A sua trupe, composta por músicos acompanhadores e de atores, 40 ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1964, p. 46. Uma descrição detalhada sobre os festivais de música pode ser encontrada em “A era dos festivais”, de Zuza Homem de Mello, músico e técnico de som que participou de vários desses eventos e que faz, também, considerações interessantes sobre as propostas estéticas presentes em várias das canções desse período, mostrando como se pode constatar o uso de certas “fórmulas” musicais, usadas com o intuito de obter o apoio do público e, consequentemente, também uma melhor classificação na competição. Ver sua análise do arranjo e da interpretação de Elis Regina para Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, considerada paradigmática desse tipo de canção “empolgante” e que, segundo o autor, “esse expediente foi tão importante que passaria a determinar o modelo das músicas de festival.” In: MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p. 66-73. 42 MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p. 67. 41 17 representa as várias crianças que participavam do programa de auditório comandado por Ary Rego. Em meio a brincadeiras infantis, a candidata Elisa Beth (Elis Regina) interpreta a canção Mamãe, de David Nasser e Herivelto Martins, lançada por Ângela Maria, cantora por quem em determinados momentos da carreira Elis expressou a sua admiração. Nessa encenação, alguns aspectos da sua carreira eram evidenciados, como o estilo de cantar próprio das chamadas “cantoras do rádio”, com a valorização da potência vocal necessária ao canto operístico e o uso de vibratos, mas as brincadeiras e a simulação de uma voz infantil, “que parece querer reproduzir fielmente o que no rádio ouvia” apontam também para uma fase de descoberta do artista. Após a apresentação, a novata Elisa Beth é coroada vencedora.43 Ao mesmo tempo em que reconhecia a importância e influência do rádio em sua formação musical, Elis Regina mostrava que o processo de assimilação nessa fase juvenil era ainda o imitativo, da busca de um sentido próprio para a sua interpretação, que ela atingiria já na sua maturidade pessoal e artística, afirmada pela produção do show Falso Brilhante. Esse processo imitativo relacionava-se com as referências de escuta musical da cantora, dos programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com preferência para as interpretações de Ângela Maria e Cauby Peixoto. Esse aspecto seria fundamental para o estilo interpretativo que adotaria nos primeiros anos de carreira, com uma presença vocal mais próxima do bel canto potente expressionista do que do intimismo defendido pela bossa nova de João Gilberto. E na nossa análise é fundamental perceber as influências anteriores, pois a produção musical – e entendemos o intérprete como criador da obra, ou seja, também portador de sentidos – não se dá apenas em processo sincrônico, em relação ao que estava sendo realizado naquele contexto, mas articulando-se com as experiências vividas e as referências culturais anteriores, pois o intérprete elabora o seu projeto estético a partir das suas escutas anteriores. Por outro lado, enquanto podemos perceber essas influências a partir da audição das obras de Elis, vemos que ela também já 43 PACHECO, Mateus de Andrade. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação. UNB. História, 2009. 246f, p. 15. 18 procurava demarcar o espaço de atuação e circulação da sua produção, situando-se em relação a debates sobre a música popular brasileira. Se Elis Regina foi construindo uma memória que legitimava esse processo imitativo inicial de escutas anteriores como natural no desenvolvimento da artista, desde as suas primeiras declarações, já no eixo Rio-São Paulo, renegava os seus primeiros discos – com baladas, boleros e twists –, pois seriam resultado de uma imposição de repertório feita pelas gravadoras. Elis assumia a sua saída de Porto Alegre como uma necessidade de mudar de gravadora, de “romper seus contratos no Sul, para sair em busca da conquista do Planalto”, por não concordar em ter que “gravar as músicas que a empresa escolhesse”. 44 Nessa declaração da cantora já está presente um dos eixos que constituiria a memória sobre a produção musical que viria a ser denominada MPB, de que Elis Regina seria um dos ícones: a “aura” de independência do mercado, como se a música se realizasse sem qualquer intervenção mercadológica e somente no plano estético. Essa relação do artista com o mercado será tema do próximo capítulo. Nessa mesma entrevista, de julho de 1965, Elis também se situava em relação ao sentido que dava para a sua obra, a música popular como “a forma mais direta de comunicação com toda a gente de seu povo”. Essa intenção vinha sendo também defendida por outros artistas como se pode observar no libreto do espetáculo musical Opinião, que estreou em 10 de dezembro de 1964: “a música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social, quando mantém vivas as tradições de unidade e integrações nacionais.”45 E essa era a música “moderna” para Elis, “aquela que dissesse das coisas de seu povo e não as impingidas pelas gravadoras”. O repertório de Elis, nesse momento, constitui-se de composições de autores, como Edu Lobo, envolvidos com a proposição de uma canção baseada nas tradições populares e, em alguns casos, com letras de crítica social. A fala dela a coloca em sintonia com os debates políticos-musicais travados na época, enquanto a sua referência cultural a mantém 44 ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1965, p. 46. Texto presente no encarte do disco que contém o musical Opinião, gravado ao vivo. Foi remasterizado e lançado em CD pela gravadora Philips, em 2002, em caixa que contém a fase inicial da carreira de Nara Leão. 45 19 mais próxima de uma música com estilo anterior à bossa nova, no tocante à interpretação vocal e mesmo aos arranjos instrumentais. Pode-se perceber o encontro entre duas formas diferentes de expressão artística, que possuíam públicos também diversos. É interessante perceber que em momentos diversos de sua carreira Elis emitirá opiniões conflitantes em relação à bossa nova de João Gilberto, modelo de uma vocalização intimista contrária aos recursos vocais operísticos bastante presentes na música radiofônica do período. Ressaltamos que concordamos com Napolitano, que questiona os mitos de ruptura da bossa nova, no qual o estilo interpretativo de João Gilberto ocupa papel importante.46 Entretanto, João Gilberto aparece como ícone para vários artistas e referência em várias entrevistas. E nesse sentido podemos perceber que em diversos momentos os artistas dialogavam e se posicionavam perante esses “mitos” – que já estavam sendo construídos com alguns cânones e “clássicos” da bossa nova – ou valores musicais aceitos e dotados de prestígio para um público, principalmente estudantil e de intelectuais, que viria a ser consumidor da obra de Elis Regina. Nessa mesma entrevista, Elis Regina assumia que fazia uma “moderna música popular brasileira”, expressão preferida pois considerava a Bossa Nova um “movimento musical já superado”. Essa declaração, que sugere ruptura com o movimento, também pode ser entendida pelas desavenças pessoais com os antigos parceiros cariocas, pois ao mesmo tempo em que valorizava a “seriedade e o senso profissional” paulista, a sua crítica também atingia o “isolacionismo criado em torno de si pelos bossanovistas do Beco das Garrafas”47, onde ela começou quando da sua passagem pelo Rio de Janeiro. Entretanto, musicalmente, a sua interpretação trazia as influências dessa sua experiência e, como ponto em comum, o interesse pela “modernização” da música popular brasileira. Mas essa “modernização” ainda não passa pela referência a João Gilberto que, contudo, já aparece no encarte do CD O fino da bossa, v. 2. Trata-se de uma coletânea de textos de entrevistas concedidas por Elis em 1978 e 1979. Embora ainda reconhecesse a importância do vibrato e a influência de Ângela Maria, já aparece uma “espécie de simbiose, uma 46 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. 47 ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1965, p. 46. 20 ligação forte” com João Gilberto.48 Algumas considerações merecem ser feitas. Assim como existem os “mitos” de ruptura da bossa nova, consolidou-se um modelo interpretativo baseado no cool jazz como sendo o referencial associado ao gênero, enquanto naquele momento outras propostas estéticas também eram consideradas, tanto por seus autores como pelo público que as consumia, como bossa nova. E o embate a partir da interpretação de Elis Regina demonstra essas tensões. Tratavase da defesa de “modernidade” e sua incorporação à música popular brasileira. Os que criticavam o hot-jazz como uma “cópia”, mera assimilação, aceitavam o cool jazz como uma leitura inovadora. O discurso da modernidade também estava presente na obra de Jair Rodrigues, apresentado, em seu disco O sorriso do Jair, lançado em 1966, como “a mais autêntica afirmação da moderna música popular brasileira”.49 Após o lançamento dos seus dois primeiros discos solo e de duas edições de Dois na Bossa, com Elis Regina, e a participação em O Fino da Bossa, Jair Rodrigues também posiciona-se – e é posicionado – no debate sobre a música popular brasileira. A autenticidade de sua obra vem da origem social, “legítimo filho do povo”, nascido em Igarapava, no interior de São Paulo. O novo disco trazia a canção vencedora do II Festival da TV Record, realizado em 1966, e que teve como vencedoras as canções A Banda, de Chico Buarque, defendida por Nara Leão, e Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, defendida por Jair Rodrigues. Assim, ao lado do “ídolo popular do samba cantado em todas as cadências e dolências” aparece também a valorização da infância em meio rural que legitima a atuação em Disparada e a regravação de um “clássico popular”, Chão de estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. A música moderna que Jair Rodrigues apresentava e defendia era um samba que mantinha o seu “conteúdo primitivo” e as suas “raízes”.50 E as raízes eram buscadas também na suas escutas anteriores, nas canções populares que ouvia em sua infância passada na fazenda Itaquerê, no município de Nova Europa. Dessa forma, Jair Rodrigues realizava um hibridismo das 48 Trecho presente no texto O Fino da Bossa por Elis Regina, presente no encarte do CD Elis Regina no Fino da Bossa, ao vivo, volume 2. Trata-se de uma compilação de entrevistas concedidas a Zuza Homem de Mello no “Programa do Zuza”, em 17 de maio de 1978, e no “Fino da Música”, em 8 de novembro de 1979. 49 Texto presente no encarte do LP O sorriso do Jair. 50 Texto presente no encarte do LP O sorriso do Jair. 21 formas populares com os gêneros “modernos”. As especificidades dessa relação entre a “tradição” e a “modernidade” na produção musical de Elis Regina e Jair Rodrigues serão discutidas no terceiro capítulo. Mas antes, propomos a discussão, no segundo capítulo, de um outro elemento que tensiona esse debate: o mercado fonográfico e a indústria cultural que estava em processo de expansão e que se consolidaria na década de 1970. 22 2 O MERCADO DE BENS SIMBÓLICOS NA DÉCADA DE 1960 Segundo Márcia Dias, o fim da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte marcam o processo de expansão da indústria cultural, que se consolidaria nos anos 1970.51 Por um lado, há uma grande fertilidade artística nesse período, com a emergência de movimentos musicais, como a bossa nova, a jovem guarda, o surgimento de uma “moderna música popular moderna”, o tropicalismo, além dos festivais de música. Por outro, o golpe militar de 1964 realiza transformações importantes na economia brasileira, que refletirão, também, na indústria do disco, fortalecendo o mercado de bens culturais, a partir de uma estratégia que visava à “integração nacional”. Dessa forma, são resolvidos problemas tecnológicos que viabilizam o desenvolvimento da indústria cultural no Brasil. As iniciativas do governo beneficiaram vários segmentos da indústria cultural, como a televisão, o setor de publicidade, a mídia impressa e todo o setor editorial (pela política de redução do custo do papel), o cinema e a indústria de discos. Ao mesmo tempo, com a instituição da censura, o regime militar estabelece um controle sobre a produção cultural destinada a esse mercado, tornando-se, repressor – com a adoção da censura prévia – e incentivador – por meio de iniciativas que visam ao desenvolvimento dos meios de comunicação – das atividades culturais, em um processo chamado de “modernização conservadora” por alguns autores, como Daniel Aarão Reis, para referir-se a um crescimento com repressão e censura, em um ambiente não democrático.52 O objetivo do Estado é a “integração nacional”, mas os benefícios serão percebidos, também, pelas empresas do setor de comunicações. Para Renato Ortiz, tanto para o Estado como para os empresários, essa promoção da “integração nacional” era benéfica, pois enquanto os “militares propõem a unificação política das consciências, os empresários sublinham o lado da integração do mercado”.53 51 DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000. 52 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 53 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 118. 23 Foi marcante a interação entre os vários meios de comunicação, com o desenvolvimento de um segmento ajudando o do outro, como a indústria fonográfica, que se beneficia do desenvolvimento do setor publicitário, por exemplo, da mesma forma que as mensagens publicitárias, veiculadas tanto no rádio como na televisão, também se utilizavam de canções de artistas reconhecidos. Há ainda a estratégia desenvolvida pela Rede Globo, já no início dos anos 1970, de criar uma gravadora, a Som Livre, para divulgar as trilhas sonoras de suas novelas. Segundo Eduardo Scoville, a relação da emissora com a música popular brasileira se daria pela trilha sonora de novelas, que promoveu alterações na forma como a música popular brasileira passou a ser comercializada, pois estabelecia um novo veículo para a promoção da música, a novela televisiva.54 A televisão torna-se um excelente veículo para a promoção dos artistas, pois ter uma canção na trilha sonora de uma novela era uma real possibilidade de sucesso para um artista. Assim como participar de eventos televisivos. Influenciada pelo rádio, pois muitos dos primeiros profissionais de televisão eram oriundos desse meio, a primeira emissora de televisão, a TV Tupi, no final de 1950, colocava no ar, em São Paulo, programas musicais de auditório como A Buzina do Chacrinha, enquanto a filial carioca, quatro meses depois estreava o Calouros em Desfile, apresentado por Ari Barroso. Em relação ao apresentador Abelardo Barbosa – o Chacrinha –, Tinhorão mostra que ele já sabia utilizar as possibilidades da imagem, criando uma “roupa estapafúrdia” e abusando de elementos visuais extravagantes, que reuniam em um mesmo figurino tanto o cocar de penas como um calção de lamê estilo balão.55 Realçamos esse aspecto, pois se o programa O Fino da Bossa marcou pelo seu sucesso, com dois apresentadores sabendo dispor dos recursos visuais que a imagem televisiva solicitava, também foram criticados por esses mesmos recursos. Elis, pela interpretação vocal e corporal, e Jair, por sua ingenuidade e espontaneidade deslumbradas que o fariam “cantar sentado na borda do palco e a plantar bananeiras diante das câmeras, em ímpetos circenses”.56 Com a intenção de “modernizar” Elis Regina, Ronaldo Bôscoli 54 SCOVILLE, Eduardo Henrique L. M. Na barriga da baleia: a Rede Globo de Televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970. Tese. UFPR. História, 2007. 294f. 55 TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., 1981, p. 170. 56 Ibidem, p. 180. 24 assumiria a direção de O Fino da Bossa, junto com Miele, e o programa ressurgiria como Elis 67 e um dos argumentos de Bôscoli seria a incompatibilidade de transformar a imagem e a carreira de Elis com um cantor que plantava bananeiras no palco.57 Desde o seu início, em 1953, a Rede Record estabeleceu uma programação voltada para a música. Porém, nessa década, o alcance da mídia televisiva ainda era bastante reduzido. Seria em meados da década seguinte que a Record garantiria a sua audiência com programas musicais de auditório, ao mesmo tempo em que a televisão ia conseguindo uma verba maior de publicidade, antes destinada às rádios e aos jornais. Em 1960, a emissora realizou o seu primeiro festival competitivo de música popular, denominado I Festa da Música Popular Brasileira, mas que acabou não sendo transmitido e não teve muita repercussão. Foi após o sucesso do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira promovido pela TV Excelsior, em 1965, que a TV Record promoveu o seu segundo festival, em 1966 – este, sim, com bastante repercussão58, além de colocar em sua grade de programação vários musicais. Entre maio e agosto de 1965, a TV Record lançou O Fino da Bossa, Bossaudade e Jovem Guarda, enquanto no ano seguinte, outros programas do gênero estreariam na emissora, como o Show em Si...Monal, cujo apresentador, o cantor Wilson Simonal, estava terminando o contrato do seu programa Spotlight, com a TV Tupi. Retomando o processo de interação anteriormente citado, podemos perceber outra evidência, agora entre meios de comunicação e empresários de outros setores da indústria, que é o investimento feito na carreira solo de Rita Lee, convidada para estrelar o lançamento da coleção de tecidos da Rhodia, em 1970. Nessa interação, tanto a empresa, pela divulgação dos seus produtos, como Rita Lee, pela construção da sua imagem perante o público, saíram ganhando. A empresa já vinha fazendo desfiles em que a música ocupava papel de destaque desde meados dos anos 1960 e patrocinando espetáculos, como o I Festival da TV Excelsior, de 1965. Porém, segundo Mello, a contrapartida buscada pela Rhodia era a interferência no evento, na escolha dos jurados. Para que o seu ganho fosse completo, a canção 57 ECHEVERRIA, Regina. Op. Cit. Ver capítulo 3, “A rainha da MPB”, p. 42-63. Sobre os festivais, ver MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2003. 58 25 vencedora deveria ser interpretada por algum artista que participasse dos shows promovidos pela Rhodia, que, nesse caso, era Wilson Simonal.59 Entretanto, apesar da interferência, a vencedora seria a canção Arrastão, interpretada por Elis Regina. É nesse contexto que ocorre a expansão do setor fonográfico, que cresce vinculado ao desenvolvimento dos outros meios de comunicação e também da indústria de bens de consumo duráveis, em especial os eletroeletrônicos, pois os fonogramas dependem dos aparelhos que permitam a sua reprodução. Entre 1965 e 1972, as vendas de discos tiveram um crescimento médio de 400%.60 Alguns autores consideram que foi a modernização da sociedade brasileira que levou à mudança na mentalidade empresarial. A visão tecnocrática e a concepção de um planejamento econômico, organizado em metas bem claras e definidas (como já havia ocorrido com Juscelino Kubitschek) levaria à reformulação das atividades gerenciais pela indústria brasileira.61 Para Napolitano, a indústria fonográfica começa um processo de racionalização industrial antes que a televisão.62 O desenvolvimento da indústria cultural e do mercado fonográfico trouxe novidades tecnológicas mais eficazes para a divulgação musical, como o surgimento do long-play (LP), de 12 polegadas e 33 1/3 rotações por minuto, que substituiu o antigo 78 rotações, em 1948. Entretanto, o LP ainda era muito caro até o início dos anos 1960, principalmente para as classes de menor poder aquisitivo, sendo bastante utilizado o lançamento de compactos simples e duplos, que, se obtivessem retorno, estimulavam o lançamento de um LP. Com a demanda criada pela bossa nova e o crescimento do mercado de bens simbólicos, o LP passa a ser produzido em maior escala e, com isso, foram criadas as condições para que se modificassem até mesmo as bases criativas da composição, pois o LP trazia uma nova relação do artista com o disco, pois permitia um trabalho de autor, uma concepção total do disco, inviável no compacto simples, de 2 músicas, ou no compacto duplo, de 4. Além disso, barateava os custos de produção, já que cada LP equivalia a 6 compactos simples e a 3 duplos, permitindo que fossem reduzidos os custos na produção de discos e, assim, logicamente, 59 MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p. 66. DIAS, M. T. Op. Cit., p. 54. 61 ORTIZ, Renato. Op. Cit., p. 134. 62 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 85-6. 60 26 auferidos maiores lucros, aspecto sumamente importante para a lógica capitalista na qual operava uma empresa fonográfica. Para Napolitano, o LP representou a “personalização e performance musical, reforçada pela bossa nova, e ligada à necessidade de rotular as músicas na forma de ‘movimentos culturais’, visando a uma realização mais segura com o público consumidor”.63 Para o autor, os rótulos anteriores que definiam os gêneros das composições são substituídos por identificações a artistas conhecidos ou projetos estéticos dotados de legitimidade e reconhecimento perante a audiência. Enquanto a indústria do disco caminhava a passos largos para uma nova racionalidade produtiva, as emissoras de televisão, nos anos 1960, ainda não haviam descoberto uma forma satisfatória de ocupar os seus espaços publicitários para obter maiores lucros. A primeira a buscar a racionalização do uso do tempo foi a TV Excelsior, cuja programação passa a obedecer a determinados horários, sem atrasos, com programas estruturados ao longo do dia, visando a públicos específicos. A racionalização atinge também o tempo dos comerciais e a “Excelsior é a primeira emissora de televisão a conceber uma identidade entre tempo e espaço comercial.” Da mesma forma que antes era possível comprar um espaço publicitário no jornal, era possível obter um “espaço de tempo” no vídeo, “tempo sem conteúdo, vazio, abstrato, portanto mensurável e comercializável”.64 Contudo, a experiência da Excelsior era uma exceção em relação a outras emissoras, como a Rede Record, que produziu os festivais de música de sucesso entre 1965 e 1967 e vários programas musicais televisivos. Ainda prevalecia o horário “cheio”, ou seja, o programa em si, patrocinado por alguma empresa ligada, principalmente, às indústrias de bens não-duráveis. Era um tipo de patrocínio que remetia aos padrões radiofônicos. Assim, o sucesso obtido pelos festivais e musicais transmitidos pelas emissoras de televisão beneficiou economicamente mais a indústria fonográfica, que já estava bastante estruturada, do que as próprias emissoras. Por outro lado, argumenta Napolitano, foi justamente a ausência de rigidez nos horários e uma forma quase “artesanal” de produzir os programas que garantiram a sua espontaneidade e o clima de festa de auditório. A Rede Globo iria 63 64 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 83. ORTIZ, Renato. Op. Cit., p. 137. 27 introduzir esse controle rígido de tempo, mas não obteria o mesmo sucesso na realização dos festivais e musicais.65 A relação da música com o mercado se definia, também, pelas estratégias de divulgação dos artistas e de manutenção do sucesso. Os publicitários João Leão, Sergio Penna Kehl, Décio Fischetti e Horácio Berlinck (um dos produtores de O Fino da Bossa), junto com o empresário Roberto Colossi, que gerenciava a carreira de vários artistas, inventaram o boneco Mug. Era um personagem de pano preto e olhos esbugalhados, redondo, sem pescoço, e que fez muito sucesso no Natal de 1966. Era vendido como um “amuleto” para o ano seguinte. Embora o boneco tenha sido utilizado por vários artistas, como Chico Buarque, foi Wilson Simonal quem mais aproveitou essa estratégia de marketing. Apareceu com o boneco na capa do seu disco Vou deixar cair..., lançado em 1966, compôs o Samba do Mug e até batizou o seu novo show, Mug...nífico Simonal, que estreou em fevereiro de 1967.66 O boneco Mug era para fazer concorrência à marca Calhambeque, criada devido ao sucesso do programa Jovem Guarda. Segundo Adriana Mattos de Oliveira, os publicitários da agência Magaldi, Maia & Prosperi, criadores do programa, rapidamente, lançaram uma grife, inspirada pelo sucesso homônimo de Roberto Carlos, com itens de vestuário, bonecos, calçados, chaveiros, bolsas e artigos escolares.67 Houve uma forte influência da mídia televisiva na divulgação não só da obra dos artistas da jovem guarda, como também sobre o comportamento dos jovens. Significativa foi a influência desses artistas sobre as roupas e os cabelos e a repercussão, com diretores de escola proibindo os cabeludos de assistirem às aulas e com a associação deles à delinquência e à falta de higiene.68 O programa Jovem Guarda reuniu artistas roqueiros, inspirados nos Beatles e em outras vertentes do rock, além de cantores de baladas românticas que faziam enorme sucesso também no Brasil. Não era uma concorrência direta a O Fino da Bossa, já que era transmitido em horário diferente, mas o sucesso alcançado pelos artistas do Jovem Guarda, também no mercado fonográfico e a repercussão social 65 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 86. Texto do jornalista Ricardo Alexandre, autor da biografia Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal, presente no encarte da coleção Wilson Simonal na Odeon (1961-1971), lançada pela EMI MUSIC. 67 OLIVEIRA, Adriana Mattos de. Op. Cit. 68 SER ou não ser cabeludo. O Cruzeiro, 13 nov. 1965, p. 120-1. 66 28 que tiveram suscitou diversas discussões sobre a música popular brasileira. Se num primeiro momento esses novos roqueiros e “cabeludos” eram tidos como transgressores, com o tempo passarão a ser aceitos e incorporados socialmente. Se o gênero atraía os jovens, então o melhor a fazer era aceitá-lo para chamar os jovens para outras iniciativas. Uma dessas iniciativas foi o concerto realizado pelo maestro Diogo Pacheco com a sua Orquestra de Câmera, o “Yé-yé-yé em estilo clássico”, em São Paulo, com patrocínio da Sociedade de Cultura Artística. As obras de Bach, Mozart e Beethoven eram entremeadas por trechos falados de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderlea, que comparavam os clássicos com os novos. Tenores e sopranos interpretavam também sucessos da jovem guarda. Até apareceu uma paródia de Festa de Arromba, sucesso de Erasmo Carlos, com trechos como “Ravel de cabeleira não podia tocar / Enquanto a George Sand não parasse de dançar”. A intenção do maestro era “atrair a atenção de uma grande parte da juventude para a música de arte”.69 O mesmo objetivo teve a Igreja Católica ao realizar uma missa ao som do gênero, em Belo Horizonte, em um “movimento de aproximação do clero com a juventude”. Os hinos sacros eram executados pelo conjunto Os Turbulentos e Roberto Carlos, recebido por D. Agnelo Rossi, colocava “sua música à disposição da Igreja para campanhas em benefícios”. Para o padre idealizador do projeto, não inédito, a Igreja não deveria “voltar as costas para o yé-yé-yé, que é um exemplo da realidade que estamos vivendo”.70 Dessa forma, podemos entender que o sucesso da música identificada ao programa Jovem Guarda e a sua repercussão extrapolavam aspectos estéticos apenas. A influência que exercia sobre os jovens e os valores políticos e culturais que expressavam – ou que eram apropriados pelos meios de comunicação e outras instituições – pode ajudar a ampliar a compreensão do debate sobre a música popular brasileira que se estabelece tanto entre artistas que buscavam conscientização por meio de suas obras quanto por aqueles que defendem uma produção estética mais “refinada” e “elaborada”, no qual o chamado iê-iê-iê era considerado uma música “inferior”. 69 70 CONCERTO de arromba. O Cruzeiro, 2 jun. 1966, p. 112. A PÁSCOA da Jovem Guarda. O Cruzeiro, 23 ago. 1966, p. 18. 29 Pela importância do fortalecimento da indústria cultural e as suas implicações sobre o processo criativo, a relação do artista com o mercado também foi um dos temas que suscitou debates entre alguns artistas e intelectuais em meados dos anos 1960. Com o sucesso obtido pela bossa nova perante o público jovem de classe média, no final dos anos 1950, as gravadoras Philips e Odeon passaram a se interessar pelos novos artistas. Mas nesse processo crescente de comercialização e expansão nacional da bossa nova e em decorrência também da expansão internacional com o concerto Bossa Nova at Carnegie Hall, em Nova York, em 21 de novembro de 1962, o gênero passa a receber críticas. Se por um lado abriam-se perspectivas de trabalho para os músicos brasileiros, por outro, a bossa nova era acusada de se descaracterizar como música popular brasileira, tornando-se cada vez mais “jazzificada”.71 Essa discussão mostra que o mercado tornava-se um dado importante para a produção musical, a ponto de considerá-lo deturpador do processo criativo. Entretanto, essa crítica já era realizada por Tinhorão, para quem a bossa nova sempre havia sido um “gênero estrangeiro”. Embora reconhecesse que a influência estrangeira esteve presente na música popular brasileira em vários momentos, como nos sambas orquestrados, o samba criado no Estácio no início dos anos 1930 e cultivado pelas escolas de samba ainda guardariam suas feições populares tipicamente cariocas.72 Assim, a discussão mostrava uma divergência entre os participantes e entusiastas do movimento da bossa nova, explicitava a sua heterogeneidade, e continha também os que se posicionavam contrários ao gêneromovimento, além daqueles que se inseriram no debate em meados dos anos 1960, como Jair Rodrigues e Elis Regina, para quem a bossa nova será uma referência posterior aos seus primeiros discos. O debate sobre a música popular brasileira em meados dos anos 1960 colocará em questão o processo criativo e sua relação com o mercado, que poderia deformá-lo, mas também ampliar o seu alcance; a possibilidade de realização de uma obra com discurso social e crítico; a sofisticação e banalização estéticas. 71 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 72 TINHORÃO, José Ramos. O. Cit., 1966, p. 37. 30 3 TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM O FINO DA BOSSA Após o sucesso em São Paulo obtido com a vitória no II Festival da Record, Elis Regina realizou uma turnê no Peru, acompanhada do Zimbo Trio, composto pelo baterista Rubinho, o contrabaixista Luís Chaves e o pianista Amilton Godói. Após o primeiro contato com o conjunto, este seria eleito, por Elis Regina, o “seu” conjunto favorito e integraria O Fino da Bossa. Na estreia do programa, os convidados indicavam que o samba e seus intérpretes já consagrados seriam uma presença constante, ao lado dos músicos e compositores da nova geração da bossa nova. Antes de interpretar o samba Formosa, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, com o cantor e compositor Ciro Monteiro, Elis Regina o apresenta como “nosso pai, nosso amigo, nosso poeta, o nosso melhor exemplo, ele é o nosso cantor, o nosso Ciro monteiro”. A reverência a ele indica a filiação a um samba mais próximo ao gênero que seria chamado de “raiz”, ou seja, sincopado e com a estrutura rítmica que mantém continuidade com a linha melódica, ao contrário do deslocamento da acentuação rítmica do samba, em um efeito de birritmia criado pelo violão de João Gilberto, que resultava em uma espécie de “violão gago”, em que a voz “parece” estar em “descompasso” com o ritmo. Entretanto, o samba que Ciro Monteiro interpreta sozinho, Zé não é João, foi composto em parceria com o jovem violonista bossa novista Baden Powell, outro convidado do programa. O acompanhamento percussivo com a caixinha de fósforos era a marca registrada de Ciro Monteiro e uma inspiração que ele buscara em Luiz Barbosa, que marcava o ritmo em seu chapéu de palha.73 Já a bossa nova de Baden Powell, que também interpreta sozinho Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, resultava de um expressionismo mais cadenciado, distante do intimismo interpretativo de João Gilberto. Dessa forma, tem-se um entrecruzamento de elementos estéticos oriundos da “tradição” do samba com a “modernidade” da bossa nova, que se completa com o dueto entre Elis Regina e Ciro Monteiro, agora acompanhados pelo violão de Baden Powell e pelo Zimbo Trio, com formação de baixo, piano e bateria, de clara influência 73 Intérprete contemporâneo de Mario Reis, que também possuía voz suave que valorizava a dicção da letra e não a empostação do bel canto bastante característica na época. Morreu jovem e deixou ouças gravações, realizadas no final dos anos 1920 e início dos anos 1930. 31 jazzística, para interpretar o samba Formosa. O hot-jazz do Zimbo Trio aliava-se à interpretação “quente”, expressiva e dionisíaca de Elis Regina. No segundo programa, o cruzamento de tradição e modernidade está novamente representado pelo samba Mulata assanhada, de Ataulfo Alves, que o interpreta em dueto com Elis Regina, também com o acompanhamento do Zimbo Trio. A canção é apresentada com paradas instrumentais e diálogos falados entre os dois intérpretes, dando um caráter descontraído que comenta a letra da canção. Com a sua técnica vocal e o seu conhecimento harmônico Elis Regina consegue utilizar a voz como mais um instrumento do arranjo, como um quarto músico do Zimbo Trio. A voz harmonizandose com os demais instrumentos era uma premissa básica do gênero bossa nova intimista, que repudiava o cantor solista, com destaque maior que os demais músicos. No caso de Elis e Zimbo Trio, tanto o instrumental como o vocal estão em um mesmo plano, porém virtuosístico e não intimista. A maneira como entoava a letra e os comentários que adicionava remetiam a um estilo mais próximo do teatro de revista e de uma forma mais teatral. Gêneros estrangeiros, como jazz, boleros e rumas influenciavam a música popular brasileira nos anos 1940 e 1950 e também foi alvo de críticas em seu tempo. O rádio populariza-se e surge uma crítica folclorizante que procura legitimar uma música popular “de raiz” contra a “popularesca” apresentada nos rádios. Alguns arranjos orquestrais dos anos 1940 e 1950 também recebem influência do hot-jazz e estavam bastante presentes no rádio brasileiro. Assim, a influência sobre a interpretação de Elis Regina pode ser considerada tanto pela sua convivência no Beco das Garrafas como pela sua escuta anterior, mediada pelas cantoras do rádio e pelas orquestras, em que o padrão vocal era “expressionista” e “dramático”. O Quinteto de Luiz Loy – inicialmente um trio, com Luiz Loy ao piano, Bandeira no baixo e Zinho na bateria, ao qual foram incorporados Papudinho no trumpete e Mazzola no sax-tenor e flauta – revezava-se com o Zimbo Trio no acompanhamento de O Fino da Bossa e também se caracterizava pela influência do hot-jazz. Com Lennie Dale, Elis Regina interpreta o Samba do avião, de Tom Jobim, abusando dos vibratos e da potência vocal e entremeando trechos falados, “Leninho, eu amo você”. Em clima festivo, o dueto inicia com risos e diálogos, com Elis avisando “mas tem gringo no samba”, em referência ao bailarino americano Lennie 32 Dale, e chamando para cantar, “s’imbora”, expressão bastante utilizada pelo cantor Wilson Simonal, que nessa época apresentava o musical Spotlight, na TV Tupi.74 Assim como já fizera com Arrastão, Elis aplicava o recurso da “desdobrada”, aprendido com Lennie Dale, comum em espetáculos na Broadway e que consistia em uma preparação rítmica com a bateria anunciando a entrada triunfal e empolgante na parte em que a melodia atingia o seu ponto mais agudo. O acompanhamento de Samba do avião segue a dinâmica – contrastante – dos cantores, que culmina com a linha melódica caminhando em sentido ascendente, atingindo o ápice – a nota mais aguda da canção – com os versos “água brilhando, olha a pista chegando / e vamos nós / aterrar...” O estilo musical da Broadway apoteótico é também evidente na conclusão da canção, após esses últimos versos, em que os dois repetem “imbora, Rio, Copacabana”, com a acentuação rítmica bem marcada pela bateria. A versão apresentada por Elis Regina e Lennie Dale é bastante diferente da bossa mostrada por Os Cariocas, importante conjunto identificado aos primeiros anos da bossa nova. A canção havia sido gravada, em 1962, no LP A Bossa dos Cariocas, no qual o conjunto vocal assumia a influência de Tom Jobim e João Gilberto no instrumental e na vocalização. Criado em 1942, o conjunto notabilizarase pelos arranjos vocais elaborados a 4 ou 5 vozes, buscando harmonias dissonantes em determinados momentos da linha melódica. Contudo, a interpretação aproximava-se mais do cool jazz. O ápice da canção, com o último verso “aterrar...”, era realizado pela elaboração harmônica e não pelo acréscimo de dinâmica, como na versão de Elis Regina e Lennie Dale. Eram dois modelos de interpretação vocal diferentes, um mais contido, intimista, e outro mais extrovertido, expressionista, que estavam presentes na busca de uma “música popular moderna”. O livro Balanço da bossa e outras bossas, de Augusto de Campos, lançado em 1968, reunia artigos publicados em jornais escritos por diferentes autores, com uma orientação comum: o interesse pela prática musical inovadora, pela busca da construção de algo “novo” na música, que rompesse com cânones já estabelecidos, 74 Os dois discos que lançou, em 1965, Wilson Simonal e S’imbora, tinham arranjos que seguiam e também transgrediam a bossa nova, dando-lhe um balanço rítmico, influenciado tanto pelo jazz como pelo soul e rock. Era o chamado “samba jovem”, desenvolvido por Jorge Ben desde o lançamento de Samba esquema novo, em 1963. 33 a partir de um referencial que valorizava certos procedimentos estéticos, afinados com a vanguarda artística europeia do século XX.75 Em sua análise sobre a bossa nova – publicada em O Correio Paulistano, entre 23 de outubro e 20 de novembro de 1960 –, o musicólogo Brasil Rocha Brito a compara com a música erudita de vanguarda e o cool jazz. A modernidade vinha dos efeitos anticontrastantes, “sem arroubos melodramáticos, sem demonstração de afetado virtuosismo, sem malabarismo”.76 Eram rejeitadas a teatralização e o canto operístico, referências para boa parte da produção musical mais popular, considerada uma “submúsica”, “puramente comercial”, e que era veiculada pelo rádio, principalmente nos anos anteriores à eclosão da bossa nova. Buscava-se um “canto isento de demagogia expressiva” 77 e que não se valesse de “recursos fáceis e extramusicais”.78 O canto extrovertido e dionisíaco estava presente na interpretação tanto de Elis Regina quanto de Jair Rodrigues – e de outros intérpretes da época, como Elza Soares, Wilson Simonal, etc. –, com a valorização de efeitos vocais, com notas sustentadas em vibrato, com preparação instrumental para atingi-las, dando um efeito ainda mais expressivo, que fazia o público envolver-se corporalmente e aplaudir e gritar efusivamente, como se percebe pelas gravações realizadas ao vivo. Se em Samba do avião aparece apenas a ênfase na busca do “moderno”, em outros momentos do programa continua o encontro com o samba “tradicional” e com compositores pertencentes à “outra geração”, como quando Elis anuncia Adoniran Barbosa. Ao comentar a parceria do compositor com Vinicius de Moraes, ela explicita a distinção entre a “música moderna” e a “música brasileira de todos os tempos”, da qual Vinicius seria um dos “maiores nomes”. É interessante perceber que essa distinção não marca uma ruptura, mas uma aproximação com os gêneros associados à tradição. Porém, na execução, na leitura desses sambas, aparece o “filtro” instrumental da bossa nova presente no acompanhamento do Zimbo Trio ou do Quinteto de Luiz Loy, ou ainda de um violão solo, como no caso do dueto com Adoniran Barbosa. 75 CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 14. 76 BRITO, Brasil Rocha. “Bossa Nova”. In: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 35. 77 Ibidem, p. 37. 78 Ibidem, p. 26. 34 Com o movimento da bossa nova o violão havia se tornado um instrumento prestigiado e com bastante sucesso entre os jovens que aspiravam a uma carreira de músico e duas escolas interpretativas tornaram-se significativas: o “impressionismo minimalista” de João Gilberto e o “expressionismo cadenciado” de Baden Powell. Como lembra Napolitano, não foi por acaso que o violão era utilizado como logotipo dos festivais da TV Record. Ele havia se tornado um “símbolo da nova musicalidade brasileira”79, e também de uma identidade moderna, após ter sido associado, anos 1920 e 1930, ao samba e ao morro e, por isso, também à marginalidade. A escola violonística de Baden Powell marcaria presença em O Fino da Bossa. No programa apresentado em 12 de julho de 1965, Elis anunciava o “encontro muito esperado, nunca sucedido”, e que se tratava “evidentemente de um encontro histórico”, entre Baden Powell e Rosinha de Valença. Era a valorização do violão virtuosístico e expressivo. Como dissemos, não se tratava de ruptura com o samba mais tradicional. Entretanto, eles eram lidos pelo “filtro” bossa novista. E essa “ruptura” também não se efetiva em outros espaços e mesmo no mercado fonográfico. Na efervescência musical de 1965, estreava o musical Rosa de Ouro – também transformado em disco pela Odeon –, produzido pelo poeta e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho. Para Hermínio, tratava-se de “um desfile pelo passado do carnaval”.80 A cantora Araci Cortes é trazida de volta ao palco para interpretar Ai iôiô, que ela gravara em 1929 e que apresentava o nascente samba-canção. O disco (e o show) mostra as diversas vertentes do samba. Além de Ai iôiô, de Henrique Vogeler, Luiz Peixoto e Marques Porto, tinha o amaxixado Jura, de Sinhô, o sincopado Escurinho, de Geraldo Pereira, além de canções folclóricas de tradição africana, como Benguelê, Bate canela e Siá Maria Rebolo. Era uma valorização do chamado “samba de morro” e entre os intérpretes estavam Elton Medeiros, da Escola de Samba Unidos de Lucas, Jair do Cavaquinho, da Portela, Anescar, do Salgueiro, Nelson Sargento, da Mangueira, e Paulinho da Viola, portelense em início de carreira. O musical caracterizou-se por ter revelado a cantora Clementina de Jesus, identificada com as raízes africanas do samba. O sucesso do show rendeu várias 79 80 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 63. UMA ROSA de ouro para Araci Cortes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 mar. 1965, p. 19. 35 apresentações no Rio de Janeiro e São Paulo, com uma reedição, com repertório diferente, em 1967. Aqui, os sambas eram apresentados sem a intenção de modernidade, com acompanhamento percussivo característico dos sambas de morro. Um dos espaços que fomentava essa produção musical era o restaurante Zicartola – aberto em 1964 pelo compositor Cartola e sua esposa Zica, ambos pertencentes à escola de samba Mangueira –, que havia se tornado uma espécie de “quartel-general do samba” e um reduto para um encontro de sambistas, uma “turma do samba eterno, sem outra bossa além da voz autêntica do povo, linha tradicional do ritmo bem brasileiro”.81 Cartola não rejeitava a bossa nova, já que “no fundo é tudo samba”, mas, sim, o rock e o twist, gêneros que estavam em moda nas rádios brasileiras e influenciando vários artistas.82 Assim, anulavam-se as supostas diferenças iniciais para um encontro das várias tendências do samba. O Zicartola era frequentado pelos compositores de escolas de samba e por bossa novistas, como Nara Leão e Tom Jobim, que haviam se rendido ao “‘samba autêntico’, aquele que tem a pureza de tradição” e transformado a bossa nova em uma “bossa eterna”.83 Aos sambas de Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Cartola, entre outros, é associada a tradição, a pureza de um gênero autêntico, que pode ser entendido como aquele não contaminado pela música estrangeira – que poderia tanto ser o jazz, o bolero ou o rock –, mas também como uma manifestação das classes populares e por isso seria uma representação autêntica da música brasileira. Musicalmente, era esse o samba apresentado pelo musical Rosa de Ouro. Desde o seu surgimento, a bossa nova esteve envolvida em um debate que a colocava, conforme o posicionamento ideológico, ora como uma produção estética vanguardista, inovadora – que resulta num “samba moderno” por oposição ao “samba quadrado” – ora como uma manifestação escapista ou “entreguista”, de aceitação acrítica de elementos estrangeiros à música popular brasileira. Como vimos, o crítico José Ramos Tinhorão considerava o movimento uma mera cópia, uma assimilação do jazz, sem nenhuma relação com os ritmos populares brasileiros. 81 ZICARTOLA o quartel-general do samba. O Cruzeiro, 9 maio 1964, p. 94. SAMBA saiu por aí. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 dez. 1964, p. 47. 83 ZICARTOLA o quartel-general do samba. O Cruzeiro, 9 maio 1964, p. 95. 82 36 Musicalmente, a bossa nova continha um deslocamento do acento rítmico do samba que a diferenciava daqueles praticados nas quadras das escolas de samba e nos morros cariocas, além de incorporar, na harmonia e no arranjo, elementos musicais estrangeiros, tanto do jazz quanto da música erudita. Entretanto, muitos desses elementos que a bossa nova incorpora podem ser encontrados em canções anteriores ao movimento, o que não configura uma ruptura com os gêneros predecessores. A partir de 1966, será o rock – também chamado de iê-iê-iê – o alvo principal do discurso contra a internacionalização na música. Por outro lado, a bossa nova também era vista, por outros críticos, músicos e intelectuais, como uma possibilidade nacionalista de combater a crescente influência da música estrangeira no país. Nesse sentido, para Nelson Lins e Barros, ela corresponderia ao “grande surto desenvolvimentista, de caráter nacionalista, da década de 50”.84 Entretanto, a comercialização teria gerado a padronização e levado à utilização excessiva de padrões do jazz, principalmente após o sucesso obtido com o show realizado no Carnegie Hall, em Nova York, em 21 de novembro de 1962. Segundo Napolitano, o objetivo do show promovido pelo Itamaraty era consolidar a bossa nova no mercado internacional, pois clássicos do gênero já vinham sendo gravados por músicos dos Estados Unidos.85 Em 1962, Stan Getz e Charlie Byrd lançaram o LP Jazz Samba, com leituras de canções como Desafinado, de Newton Mendonça e Tom Jobim, e É luxo só, de Ari Barroso e Luiz Peixoto, o que demonstrava a gravação não apenas das canções bossa novistas, mas uma forma de executar a música popular brasileira a partir do jazz. A polêmica tem como centro a discussão sobre a internacionalização da bossa nova, se estaria ou não sendo assimilada pelo jazz e perdendo as suas referências estéticas nacionais. Podemos perceber os elementos desse debate pela repercussão que o gênero teve no exterior, em como era lido e recebido. O reconhecimento da bossa nova após o referido show recebe destaque na imprensa brasileira. Agora o gênero chegava também à França, rendendo a possibilidade de novos contratos fonográficos e também diversas reinterpretações e disputas pela sua criação. O disco de Sacha Distel, com composições no gênero bossa nova 84 BARROS, Nelson Lins e. “Música popular, novas tendências”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 1, mar. 1965, p. 232. 85 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 35. 37 recebeu o prêmio de “Melhor Disco Francês do ano, para dança”, e nas boates francesas a dança bossa nova já desbancava o twist. A bossa nova era relida de formas diferentes por vários músicos de jazz, como no LP Jazz Samba, de Getz e Byrd, mas também por outros, como Count Basie, Miles Davies, etc.86 O gênero ia se acelerando para tornar-se também dançável, em um movimento contrário à intenção original e, com essas novas interpretações, muitos outros artistas estrangeiros reivindicavam a paternidade da bossa nova, deixando a sua maternidade para os músicos brasileiros. O livro 1001 Discos para ouvir antes de morrer, lançado nos Estados Unidos e traduzido para o Brasil, seleciona o que 90 críticos de renome internacional consideram as mais importantes influências no meio musical. Alguns textos presentes nas críticas mostram a recepção e a memória construída sobre a música popular brasileira. Embora reconhecendo que a bossa nova já havia surgido antes do lançamento do disco, mostra que ele foi considerado responsável por ter “despertado a onda da bossa”. Seria o sucesso do disco e gravações de bossa nova do saxofonista Stan Getz com João Gilberto e a cantora Astrud Gilberto, no LP Getz/Gilberto, que transformariam a bossa nova em uma força comercial.87 Uma das faixas que impulsionou as vendas do disco foi The girl from the Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, interpretada pela voz intimista e sensual de Astrud Gilberto. Assim, a bossa nova fazia sucesso no exterior com letra vertida para o inglês. Já a crítica a este disco mostra Getz como um dos pais da bossa nova, paternidade reconhecida mesmo pelos “pioneiros”, como Baden Powell e Tom Jobim. Embora não sejam textos escritos no momento em que os discos foram lançados, pode-se perceber como foi construída uma memória de que a bossa nova teve uma paternidade também estrangeira. Se o guitarrista Charlie Byrd influenciou outros músicos após a volta de uma viagem à América do Sul e lançou um disco intitulado Jazz Samba, podemos entender que a polêmica sobre a bossa nova após o show no Carnegie Hall estava motivada por essa relação conflituosa com o jazz.88 Para alguns músicos, como Sergio Mendes – que construiria uma sólida carreira nos 86 SEGURA, Joaquim. BOSSA nova, doce pássaro de uma juventude vanguardista. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 jan. 1963, p. 14. 87 DIMERY, Robert (org.). 1001 discos para ouvir antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2007. 88 Ibidem, p. 57. 38 Estados Unidos – era uma oportunidade de inserção no mercado internacional. Para outros, como Carlos Lyra, era uma deturpação do gênero. A discussão sobre a bossa nova foge aos objetivos dessa monografia, mas o que propomos, com essa breve digressão, é que a recepção do gênero no exterior e a forma como esse sucesso era valorizado pela imprensa, ou seja, a aceitação no exterior mesmo que em outras bases da formulação original, podem ter suscitado as críticas internas que resultariam em transformações dentro da bossa nova. Assim, pode-se buscar entendê-la não só a partir do contexto brasileiro, da necessidade de politizá-la face aos problemas econômicos e à defesa das reformas de base no governo de João Goulart, mas também em seus elementos estéticos e identitários e dentro de um contexto, mais amplo, de sua repercussão internacional. Para os integrantes do Zimbo Trio, era o contrário: a música popular brasileira moderna influenciava o jazz. A música erudita estava na base dos dois gêneros e forneciam um modelo de leitura para a essência do samba. Para Amilton Godói tratava-se de uma evolução harmônica, já que “estavam aparecendo mais músicos com conhecimento da música mundial” e era no desenvolvimento da harmonia e da melodia que o samba transformava-se, modernizava-se. Para o contrabaixista Luís Chaves, a batida rítmica teria sido simplificada, o que teria permitido que os músicos estrangeiros compreendessem o samba, “com mil agogôs, tamborins, pandeiros, todos tocando juntos e fazendo improvisações a sua maneira.” A simplificação rítmica teria possibilitado a internacionalização da bossa nova. O samba de morro fornecia a essência – “o sentimento” – que seria elaborada pela harmonia e melodia do jazz. Passou-se a empregar “todos os princípios do morro, com uma maior purificação, um pouco mais de simplicidade, enfim, uma maior clareza.” Percebe-se, nessa defesa da bossa nova em sua relação com o jazz, a ideia de uma “evolução” que se dava, contudo, pela “simplificação” rítmica que visava a uma universalização do gênero. O sentido de modernidade era dado pela aproximação com uma música considerada mais elaborada, a “erudita”, e com mais prestígio internacional, o jazz.89 Mas enquanto a bossa nova conseguia uma maior aceitação no exterior, não tinha o mesmo reconhecimento no Brasil. Ou melhor, a bossa intimista não dispunha de um 89 PANORAMA da bossa nova. Coluna Música Popular. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 set. 1965, p. 21. 39 mercado brasileiro semelhante. Entretanto, seria a bossa nova realizada em O Fino da Bossa e que passaria a ser chamada de “música popular moderna” (MPM), que conseguiria unir os dois públicos. Mas a forma como se dava esse sucesso também seria questionada, pois essa bossa nova antagônica ao intimismo – como nas apresentações de O Fino da Bossa – era desvalorizada esteticamente. O impasse, para Nelson Lins e Barros, era: “Como se manter nacionalista e artisticamente boa? Como se manter artisticamente boa e penetrar nas massas?”90 Para Barros, a bossa nova intimista falhou como mercadoria porque era para ser ouvida mais do que para ser dançada – embora tenha sido transformada em dança nos Estados Unidos e na França, como já discutimos –, o contrário do que a juventude da época desejava. A solução então proposta era a aproximação dos músicos com o folclore e outras manifestações tradicionais, ou seja, um diálogo entre tradição e a modernidade, para que pudessem ser utilizados os vários recursos estéticos disponíveis e obtida uma maior inserção no mercado. Mas a modernidade aqui defendida não era a da jazzificação da bossa nova, mas a continuidade com os seus elementos intimistas e anticontrastantes. Estamos aqui apresentando a forma como o debate se estruturava, pois essa divisão era bastante artificial e resultante de uma posição mais ideológica do que estética, pois, em muitos casos, se reconhecia o cool jazz como uma influência legítima original que recriava o samba, enquanto o hot-jazz era mera cópia. Para Nelson Lins e Barros, além da aproximação com os gêneros tradicionais, era necessária também a politização da bossa nova, ou seja, a incorporação de temas de crítica social em lugar do antigo lirismo do amor, do sorriso e da flor. Nessa tentativa de traduzir a realidade social e buscar valores culturais “autênticos” e “nacionais”, aparecem o “morro” e o “sertão” como lugares por excelência para a representação do “povo brasileiro”. Dessa forma poderia surgir “uma música popular de maior nível cultural e artístico, onde os artistas se trocarão técnica e tradição, lirismo e epopéia, amor e protesto, forma e conteúdo”.91 90 BARROS, Nelson Lins e. “Música popular, novas tendências”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 1, mar. 1965, p. 234. 91 Ibidem, p. 237. 40 Embora essa discussão tenha sido fértil em meados dos anos 1960, período em que era transmitido O Fino da Bossa, essa experiência já vinha sido tentada por outros artistas, como Carlos Lyra92 e Sergio Ricardo, desde o início da década. Os dois compositores lançaram as bases musicais (e ideológicas) para o tipo de música que iria se desenvolver nos festivais dos anos 1960. Em Esse mundo é meu, canção presente no LP Um senhor talento, lançado em 1963, Sérgio Ricardo canta acompanhado apenas por um coro de escola de samba (caracterizado pelo registro agudo e pelos timbres “sujos” do “coral popular”, formado por vozes femininas) e por instrumentos de percussão que criavam um clima de terreiro que se mesclava a uma melodia pungente e sofisticada. Tradição e modernidade entrelaçando-se, com o samba passando pelo filtro da bossa nova. A letra afastava-se dos temas existenciais e líricos da bossa nova para comentar e denunciar a realidade, criticando a opressão e a desigualdade social, “fui escravo no reino / e sou escravo no mundo em que estou”. Elis Regina apresentou o samba em O Fino da Bossa, acompanhada pelo Zimbo Trio. A canção se inicia em andamento lento, no piano, em ritmo de valsa para o verso “esse mundo é meu”, repetido quatro vezes, para em seguida entrar a bateria criando um clima de terreiro pela introdução de elementos percussivos, para os versos “fui escravo no reino / e sou escravo no mundo em que estou / mas acorrentado ninguém pode amar”. Após uma breve pausa, o conjunto ataca com um arranjo jazzístico e dançante para a letra com referências a elementos da cultura africana, “Saravá Ogum / mandinga da gente continua / cadê o despacho pra acabar / santo guerreiro da floresta / Se você não vem eu mesmo vou brigar”. Nessas diferenças existentes entre as várias leituras realizadas para uma mesma canção, percebemos que há um projeto heterogêneo de modernidade sendo incorporado pelos artistas e um grau maior ou menor de elementos da tradição. O violão era um símbolo de modernidade mas não fazia parte de vários conjuntos, como o Zimbo Trio. 92 Miliandre Garcia discute o desenvolvimento desse modelo de canção ao discutir a obra de Carlos Lyra e sua relação com o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 41 No musical Rosa de Ouro, temos o samba remetendo a seus gêneros ancestrais africanos, ao folclore e a tradições populares, sem uma busca pela linguagem moderna. Alguns artistas envolvidos com a bossa nova aproximam-se das raízes populares, interpretando o samba a partir de uma referência moderna da bossa nova intimista e produzindo uma canção com temática social. Entretanto, canções emblemáticas do gênero também seriam relidas pela bossa nova influenciada pelo hot-jazz, como nas interpretações de Elis Regina. Mas assim como a bossa nova não provocou uma ruptura com a música popular brasileira no final dos anos 1950, ela também permaneceu com as suas mesmas características preservadas por músicos mesmo após a politização que nasce dentro dela. Entre a bossa nova que passa a ser considerada “nacionalista”, de que a cantora Nara Leão é, em determinado momento, um exemplo, podemos perceber que essa divisão sobre a assimilação pelo jazz é artificial, refletindo posições ideológicas mais do que estéticas e também uma disputa por prestígio e reconhecimento na música popular brasileira, uma estratégia que era também uma forma de delimitar um espaço no mercado fonográfico. Em seu primeiro LP, Nara, gravado em agosto de 1963 e lançado em 1964, os sambas são apresentados com um arranjo instrumental intimista. Entretanto, o disco seguinte, O canto livre de Nara Leão, gravado em março e abril de 1965, traz um novo acompanhamento, com os integrantes do Tamba Trio, Luís Eça ao piano, Bebeto no contrabaixo e Ohana na bateria. O seu “canto livre” propunha caminhos para a música popular e o desejo de levar às pessoas uma “compreensão atual da realidade brasileira”, mas era também uma liberdade para “se comunicar de modo mais franco e mais direto, cantando e discutindo, dialogando com o público”93, iniciativa que vinha do musical Opinão. Musicalmente, o arranjo instrumental não fica mais apenas na linha bastante intimista do disco anterior, aproximando-se da tendência da “música popular moderna” que também era seguida por Elis Regina, como se percebe no samba Nega Dina, de Zé Kéti. Se Nara Leão não dispunha da mesma técnica vocal potente de Elis, ela também procurava uma interpretação mais “expressiva”, como em Corisco, de Sergio Ricardo e Glauber Rocha, pois uma letra de crítica social, que 93 Texto do encarte do LP O canto livre de Nara, remasterizado em coleção com a obra completa de Nara Leão, lançada em CD pela gravadora Philips, em 2002. 42 pedia “te entrega, Corisco”, solicitava um tom menos intimista. Assim, as divisões que se percebem no debate não se manifestavam na produção musical. Além de sambas como Esse mundo é meu, de Sergio Ricardo, outras composições e espetáculos marcaram a tendência de aproximação da bossa nova intimista com as tradições do samba ou do sertão. Nesse mesmo ano de 1965, em que estreavam o show Rosa de Ouro, os musicais televisivos Bossaudade, O Fino da Bossa e Jovem Guarda, outros dois espetáculos conseguiam destaque, tanto pelo seu caráter político quanto pela busca de uma identidade nacional, simbolizada por valores associados às tradições culturais populares. Em 10 de dezembro de 1964 estreou Opinião – que permaneceria em cartaz com sucesso no ano seguinte – no qual eram colocados, em cena, dois cantores representando o “povo”, o compositor urbano de “samba de morro”, Zé Kéti, e o cantor e compositor nordestino, João do Vale, ao lado da representante carioca da classe média politizada, Nara Leão (posteriormente substituída por Maria Bethânia). Em 1º de maio de 1965, estreava “Arena Conta Zumbi”, com músicas de Edu Lobo e letras de Gianfrancesco Guarnieri. Essa música participante, que também viria a ser chamada de “canção de protesto”, era criticada tanto pelo músico Luiz Carlos Vinhas quanto por Tinhorão, embora por motivos distintos. Para este último, a “inautenticidade”, definida como a “preocupação consciente em assimilar e incorporar à produção musical ritmos, estilos e harmonias de músicas estrangeiras” era uma deturpação da música popular brasileira. Enquanto para Vinhas, a qualidade estética de uma canção era mais importante do que a sua autenticidade.94 O músico parecia reagir ao discurso que opunha “música participante e sem participação” ou os “rótulos recíprocos de alienados e de comunas”. Essa postura que privilegiava a qualidade estética era defendida por outros compositores, como Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, em sua canção A resposta, presente no LP O cantor e o compositor, de Marcos Valle, lançado em 1965. O título sugere a defesa em relação às cobranças realizadas pelos artistas da bossa nova politizada: “Se alguém disser que teu samba / não tem 94 LOBO, Edu; VINHAS, Luiz Carlos; TINHORÃO, José Ramos. Confronto: música popular brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 3, jul. 1965. Entrevistas concedidas a Henrique Coutinho, p. 312. 43 mais valor / porque ele é feito somente / de paz e de amor / não ligue não / que essa gente não sabe o que diz / não pode entender / quando um samba é feliz”. Tanto no plano musical como na letra, a canção é totalmente estruturada em elementos da bossa nova – arranjo, harmonia, forma de cantar – com uma temática lírica e intimista da – e sem nenhum questionamento – realidade social: “O samba pode ser feito / de céu e de mar / o samba bom é aquele / que o povo cantar / de fome basta o que o povo / na vida já tem / pra que lhe fazer / cantar isso também”. Por fim, na última parte da canção, é criticada a possibilidade de engajamento de um artista oriundo da classe média: “Mas é que é tempo de ser diferente / e essa gente não quer mais saber de amor / falar de terra na areia do Arpoador / quem pelo pobre na vida não faz um favor / falar do morro morando de frente pro mar / não vai fazer ninguém melhorar”. O espetáculo Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, contou com a participação de Nara Leão e Oduvaldo Vianna Filho e seguia a mesma proposta de crítica social do musical Opinião. O sucesso desse espetáculo – e de outros semelhantes – levou à realização do show Reação, que contava com os bossa novistas Marcos Valle e Chico Feitosa, com acompanhamento do conjunto 3D Trio. A canção Resposta foi composta especialmente para esse show e as críticas eram dirigidas aos adeptos da politização da bossa nova, como Nara Leão. Com apoio do jornalista Renato Sérgio e citando o crítico e compositor Sergio Bittencourt, a iniciativa mostra as diversas tendências musicais – e também políticas – presentes na música popular brasileira.95 Mas e como fica Jair Rodrigues, o parceiro de Elis Regina e também apresentador de O Fino da Bossa? Apesar do seu sucesso como intérprete, ele não estaria no centro do debate, pois as críticas e mesmo o reconhecimento pela realização de uma “música popular moderna” seriam dados à Elis Regina. Com o lançamento de seu primeiro disco, O samba como ele é, em 1964, Jair Rodrigues obteve algum destaque com a faixa bossa novista O morro não tem vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Mas foi o sucesso, durante os shows, do samba mais popular – de pouca elaboração poética, mas com apelo rítmico e corporal – Deixa isso pra lá, de Alberto Paz e Edson Menezes, que estimulou a gravação de um 95 CABRAL, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2001, p. 98-99. 44 segundo disco, ainda nesse mesmo ano. Na época considerado um samba “com letrinha simples, sem literatura, gingante como a própria natureza do brasileiro”96, hoje tem sido considerado por alguns pesquisadores como precursor do rap, pelo seu estilo falado.97 O samba estava presente nas discussões sobre a música popular brasileira e orientava, de maneiras diversas, a produção de vários artistas. Elis Regina propunha o seu estilo próprio, em Samba eu canto assim, em 1965. Enquanto Jorge Ben criava um Samba esquema novo, em 1963, Jair Rodrigues mostrava O samba como ele é, em 1964, e A nova dimensão do samba era apresentada por Wilson Simonal, em 1964. Como temos procurado mostrar, a definição dos gêneros não se dá apenas a partir de referenciais estéticos, com outros aspectos influenciando no posicionamento musical. Os significados dos gêneros são também construídos social e historicamente. Nesse sentido, é interessante perceber que enquanto a bossa nova não se apresenta como um “samba em bossa nova”, outros movimentos põem o próprio termo em evidência, como “samba esquema novo”. Para o produtor Armando Pittigliani, da Philips, o samba de Jorge Ben se apresenta dentro do “processo evolutivo por que passa a música popular brasileira”. Era uma outra forma de modernizá-la sem passar pela bossa nova e mantendo o seu caráter “autêntico”, com letras de “poesia pura e simples”. Vou de samba com você, que Jair Rodrigues gravou e cujo título nomeou o seu segundo disco, foi apresentada por Jorge Ben em seu primeiro disco, Samba esquema novo. A leitura de Jorge Ben para a composição de João Mello harmonizava o samba à batida da bossa nova e ao soul e rock, gerando o que seria conhecido por “samba jovem”. Jair Rodrigues mantinha o mesmo balanço mas sem o arranjo com o naipe de metais, seguindo o modelo da MPM que estava sendo gestada. A ênfase era dada ao elemento rítmico, mais que à letra, poeticamente mais simples e menos elaborada. O sucesso que tanto Jair Rodrigues quanto Jorge Bem vinham conseguindo emplacar mostra que a opção pelo encontro com o aspecto rítmico e dançante do samba conseguia os resultados que a bossa nova intimista não tinha atingido. Assim, Jair inseria-se na proposta de modernização da música popular brasileira por 96 DEIXE isso pra lá. O Cruzeiro, 28 nov. 1964, p. 56. Mas poderíamos lembrar também dos repentistas nordestinos que também entoavam as suas canções igualmente de forma falada. 97 45 outros caminhos, com a bossa nova de Berimbau, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, o samba sincopado de Geraldo Pereira, Você está sumindo, e o samba-rock Garota de bikíni, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. O iê-iê-iê – gênero novo marcado pela influência do rock – estava em franca ascensão, com os sucessos Parei na contramão, gravados por Roberto Carlos e Minha fama de mau, com Erasmo Carlos, ambas composições de Erasmo. Essas eram as bossas que Elis Regina e Jair Rodrigues traziam para O Fino da Bossa: o samba relido pela bossa nova jazzística com um flerte com o “samba jovem” de Jorge Ben e Wilson Simonal. Ambos participariam do programa. Enquanto Jorge Ben interpretava ao seu violão Agora ninguém chora mais, com Elis fazendo alguns contracantos vocais e Zinho (do Quinteto Luiz Loy) na bateria, Elis cantava, com o Quinteto de Luiz Loy, Mas que nada, com um andamento bem mais acelerado e dançante, mas com a mesma batida rítmica cadenciada, em 8 de novembro de 1965. Os metais bastante presentes nos arranjos eram valorizados pelo Quinteto. O texto do segundo disco de Jorge Bem, Sacundim Ben Samba, de 1964, define o seu “samba esquema novo”, no qual “as palavras ‘balançam’ ritmicamente em bem-feitas divisões melódicas”. E era esse “balanço”, o apelo à dança, que permitia uma maior popularização da moderna música popular “entre as camadas sociais menos intelectualizadas”, ou seja, ampliava o público desejado pela bossa nova. Mas essa “alteração” das propostas originais da primeira fase da bossa nova, entendida como sendo a de João Gilberto, renderia diversas críticas. Outro alvo das críticas recebidas por Elis Regina e Jair Rodrigues eram os pot-pourris, que se tornaram marcas inconfundíveis, presentes em todos os três discos da série Dois na bossa, lançados entre 1965 e 1967, e também em cada um dos três CDs com as remasterizações de O Fino da Bossa, que estamos utilizando como fonte para as nossas discussões sobre o programa. Como são vários, vamos nos ater ao apresentado em 4 de agosto de 1965, com alguns “clássicos” da bossa nova, todas de Tom Jobim: Insensatez (em parceria com Vinicius de Moraes), Corcovado, A felicidade (com Vinicius), Desafinado (com Newton Mendonça), Esse seu olhar, Só em teus braços, Samba do avião, Garota de Ipanema (com Vinicius) e Se todos fossem iguais a você. Escolhemos esse, em especial, por conter algumas características que se repetem em maior ou menor grau nos demais e por explicitar 46 o lado descontraído, o humor, a extroversão, antagônicos ao que propunham os seus compositores. O acompanhamento é do Zimbo Trio e começa com andamento levemente acelerado, sem um virtuosismo tão exacerbado, mas ainda com um apelo maior ao ritmo e à dança. O diálogo entre Jair e Elis provocava os risos na plateia. Significativa é a interpretação dada a Desafinado, quando Elis acentua a nota “desafinada” do verso “se você disser que eu desa (fi) no, amor”, em meio a aplausos da plateia, ao que Jair responde “não desafina”. Na sequência, Elis canta rindo “só privilegiados têm ouvido igual ao seu” e Jair responde “tão sujinho”. Em meio aos risos provocados, Elis continua a canção, e responde “mas tá limpinho o meu”. A total irreverência dos dois contraria totalmente os preceitos intimistas da bossa nova. Nos seis minutos desse pot-pourri estão presentes os elementos que, por um lado renderam sucesso ao programa e aos intérpretes, mas que também suscitaram diversas críticas. A extroversão e a teatralidade permaneciam mesmo quando os convidados eram expoentes da bossa nova intimista, como na interpretação de Telefone, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, ao lado de Os Cariocas. Enquanto o conjunto vocal se vale dos scats característicos do jazz, a interpretação de Elis Regina se vale também dos recursos que podem ser considerados “extramusicais”, na medida em que comenta a canção com recursos teatrais, de valorização do conteúdo poético da letra, como uma atriz talvez fizesse, não trabalhando apenas com os elementos “puramente” musicais de melodia, harmonia e ritmo. Significativo é o toque de telefone “téim” que Elis vai repetindo no final da canção – que fazia parte da canção e de outras interpretações –, incluindo um inocente “Alôô” após o fim do arranjo instrumental. Em 20 de dezembro de 1965, Elis apresentava o último programa do ano, antes de se retirar para dois meses de turnê pela Europa. O seu característico potpourri marca a despedida temporária. Nesses dois meses, o programa teria como atração fixa Wilson Simonal. Após a estreia em agosto, o programa Jovem Guarda começava a ampliar o seu sucesso e, ao chegar ao Brasil, Elis encontra um cenário diferente. A música jovem ocupa, durante o ano de 1966, um espaço cada vez maior na mídia, no mercado fonográfico, na televisão. O Prêmio Rádio Jornal do Brasil, 47 criado em 1961, institui uma nova categoria para a música jovem, “visto sua importância e repercussão no panorama musical do Brasil”, e os escolhidos foram Roberto Carlos e Erasmo Carlos. A popularidade do novo gênero suscita discussões entre os artistas das diversas vertentes da música popular moderna pela disputa do mercado. A comunicação com o público que o programa O Fino da Bossa havia conseguido ganha outras características nesse cenário de mudanças. Com Wilson Simonal e o Quinteto de Luiz Loy, Elis Regina daria nova leitura ao samba sincopado Falsa baiana, de Geraldo Pereira, em um encontro que ocorreu em 22 de maio de 1967, ou seja, quando novas questões eram colocadas para a música popular brasileira. Nesse momento, Simonal vinha construindo um novo projeto estético, que seria chamado de “pilantragem”, com um samba jovem, com referências do iê-iê-iê. Entretanto, o cantor também participaria de O Fino da Bossa com o seu estilo sendo incorporado ao programa, tanto esteticamente quanto pelas gírias, ou seja, pela comunicação e contato com o público, com Elis Regina, em suas habituais intervenções faladas durante as canções, dizendo “que tranquilidade”. Pela busca de um espaço no mercado musical, algumas diferenças eram “assimiladas”, embora o iê-iê-iê fosse rejeitado como movimento musical legítimo e de qualidade estética, como veremos a seguir. O samba-jovem também estava presente no disco O sorriso do Jair, lançado em 1966, como em Rapaz da moda, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, no qual a letra fazia uma série de referências aos valores da “modernidade”, pois para conquistar a garota, o eu-lírico da canção tinha que se “modernizar”, “formar um conjunto legal / fazer na guitarra, plim, plim”. Como uma paródia ao gênero iê-iê-iê – mas que incorporava musicalmente as suas referências estéticas – a letra dizia “iê-iê-iê vou cantar / iê-iê-iê vou dançar / e ela então vai dizer / que eu sou Tremendão”. A menção ao Tremendão era explicitamente dirigida a um dos líderes do Jovem Guarda, Erasmo Carlos. Havia a percepção, por parte de intelectuais de esquerda, de uma crise na música popular brasileira. Significativo desse momento é o artigo Que caminho seguir na música popular brasileira?, resultado de um debate promovido com nomes representativos da cultura brasileira naquele momento, como Caetano Veloso, 48 Nelson Lins e Barros e Ferreira Gullar, entre outros.98 E essa crise era dada pela emergência do iê-iê-iê, considerada, por alguns debatedores, uma música de qualidade inferior e “alienada” e “desligada da realidade”. As opiniões sobre a importância ou eficácia do gênero eram discordantes, pois, para Nelson Lins e Barros, ainda era melhor ter iê-iê-iê feito no Brasil, embora considerasse o gênero inferior à sua fonte de inspiração, a produção estrangeira dos Beatles.99 Observa-se, também, que o mercado era um dado significativo nas discussões e, em alguns casos, defendido como uma forma de atingir a comunicação com o público. Afinal, essa comunicação tinha sido alcançada pelos artistas da jovem guarda. A interpretação vocal e gestualidade de Elis Regina passam a ser questionadas. A oposição entre “contenção” e o “excesso”100 foi um dos elementos de discussão sobre a “crise” na música popular brasileira. Para Augusto de Campos, em artigo publicado no Correio da Manhã, de 30 de junho de 1966, em um primeiro momento, ela teria deixado a bossa nova mais extrovertida, o que era bom, mas o exagero levou aos famigerados pot-pourris, considerados de mau-gosto. O seu estilo teatral, excessivamente melodramático também é criticado. E a bossa nova é reafirmada pela interpretação vocal de Roberto Carlos, pela recusa do excessivo.101 Ao mesmo tempo em que ocorria a discussão entre intelectuais e alguns compositores, Elis Regina lançava o seu movimento para retomar o prestígio de O Fino da Bossa. Para ela, “não interessava que a música fosse de esquerda ou direita, mas que pudesse ser cantada pelo público”102, assumindo o seu programa como o quartel-general da luta pela moderna música popular. Elis nega os “intelectualismos” e propõe que a música seja cantada de forma a ser compreensível para o público. Em seu discurso, percebem-se as críticas às propostas de música participante sem relação com o público e ao mesmo tempo a ideia de que a música deva ter características reconhecíveis. O mercado era o alvo dessa iniciativa e, para isso, os artistas fizeram contrato com a mesma empresa do grupo que criou o 98 BARBOSA, Airton Lima. (coord.) Que caminho seguir na música popular brasileira? Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 6, p. 375-385, mai. 1966. 99 Ibidem, p. 381. 100 NAVES, Santuza Cambraia. Da bossa nova à tropicália: contenção e excesso na música popular. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, São Paulo, jun. 2000. 101 CAMPOS, Augusto de. “Da Jovem Guarda a João Gilberto”. In: _____. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 51-57. 102 ELIS pede passagem pra sambar. Jornal do Brasil, 24 ago. 1966, p. 40. 49 programa Jovem Guarda, a Magaldi-Maia Publicidade. E, como vimos, pela presença de Wilson Simonal e do samba-jovem marcado pela influência do rock em O Fino da Bossa, a ruptura entre esses estilos não se realizava totalmente no programa. Para Augusto de Campos, em artigo publicado no Correio da Manhã, em 14 de outubro de 1966, o “canto de protesto” – as canções de crítica social – teria sido um desenvolvimento natural, pois as letras da bossa nova estavam ficando banais e “sentimentais à base da fórmula amor-dor-flor”.103 Enquanto, para o autor, a pesquisa e invenção musical, no plano sintático, teriam diminuído, a incorporação de novas temáticas era considerado um avanço, no plano semântico. A crítica se dirigia tanto à concepção de que a bossa nova não podia ser compreendida pelo “povo” e que a música, então, deveria ser simplificada, quanto à busca de um nacionalismo “xenófobo”, que negasse a influência de culturas estrangeiras. O problema, então, estava na dramaticidade, na influência do modelo operístico de cantar. O que era valorizado pela bossa nova de João Gilberto era uma interpretação não marcadamente dionisíaca, com contrastes dinâmicos e arroubos sentimentais. Entretanto, também a bossa nova não era homogênea e um dos seus desdobramentos levou a esse tipo de interpretação, mais teatral, cuja representante mais destacada era Elis Regina. Entretanto, por esse aspecto, Augusto de Campos, em artigo escrito para o Correio da Manhã, em 30 de junho de 1966, considerava que a sua “interpretação rígida, enfática, de efeitos melodramáticos” não se relacionavam mais com a bossa nova, enquanto a jovem guarda, cujo nome mais destacado era Roberto Carlos, estava mais próxima da bossa nova e, consequentemente, da música brasileira, pois, para ele, a “análise de certas características musicais da JG (jovem guarda) nos faz remontar à inteireza e à precisão de JG (João Gilberto)”.104 Se alguns críticos anteriormente relacionadas à bossa nova começavam a realizar críticas positivas aos músicos da Jovem Guarda, cuja produção musical seria importante para o movimento do tropicalismo, os ataques a eles continuaria em 103 CAMPOS, Augusto de. “Boa palavra sobre a música popular”. In: _____. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 61. 104 CAMPOS, Augusto de. “Da Jovem Guarda a João Gilberto”. In: _____. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 57. 50 outras frentes, como pela Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), que, face ao sucesso desses artistas passaria a exigir que demonstrassem conhecimentos teóricos de música para tirarem a carteira profissional de música. Em resposta a Elis Regina, que teria dito que “a guerra está declarada. Os que estão do lado de lá que se cuidem”, seria lançado o “Manifesto do Estado Maior do iê-iê-iê”, no qual são apresentados alguns posicionamentos em relação à bossa nova, sua politização, e sua relação com o povo. Era uma música otimista e alegre: “Não falamos jamais, nas nossas canções, de tristeza, de dor de cotovelo, de desespero, de fome, de seca, de guerra. Somos sempre uma mensagem de alegria para todo o povo”.105 Se a matéria “Manifesto do Estado Maior do iê-iê-iê” foi destaque na capa da revista O Cruzeiro, na edição seguinte teria a “resposta”, com a capa mostrando “Chico + Elis + Vandré = água na fervura do iê-iê-iê”. Destacamos esse interesse da revista em fomentar a discussão, pois acreditamos que esse debate também tinha motivações mercadológicas, que eram incentivadas pelos meios de comunicação. Elis Regina estava lançando o programa que iria substituir O Fino da Bossa (nesse momento, já se chamava O Fino 67 e não contava mais com a apresentação de Jair Rodrigues, mas ainda era reconhecido como continuidade do programa anterior), que encerraria suas apresentações em 19 de junho de 1967. Em seu lugar entraria o Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira, que não teria mais um apresentador fixo. Segundo os artistas que participariam do novo programa, a intenção era unificar a música popular brasileira. Embora essa unificação não contasse com a participação dos integrantes da jovem guarda. Nessa reportagem, Caetano Veloso diria não rejeitar o iê-iê-iê – tema da discussão que permeia toda a matéria – mas que prefere a “música popular tradicional”.106 Alguns meses depois, ele e Gilberto Gil deflagrariam os primeiros acordes que seriam considerados os marcos inaugurais do tropicalismo, que teriam o iê-iê-iê como uma das influências estéticas. Entretanto, como podemos perceber, existem aproximações e formas de diálogo mesmo entre os movimentos e gêneros que se posicionam de forma antagônica, como os “outros” de uma identidade musical que estava sendo construída. Nesse sentido, o que se buscou foi mostrar como há vários discursos 105 106 PODEM vir quentes que nós estamos fervendo. O Cruzeiro, 5 ago. 1967, p. 8. QUEM te viu, quem te vê. O Cruzeiro, 12 ago. 1967, p. 133. 51 sobre “tradição” e “modernidade” que estão sendo propostos, muitas vezes de forma antagônica, mas que não se realizam plenamente na prática. Questões políticas, estéticas e identitárias concorrem para a construção desses discursos, tornando sua compreensão bastante complexa. 52 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nessa monografia, procuramos discutir como eram construídos os discursos sobre a incorporação de elementos da “tradição” e da “modernidade” nas apresentações do programa O Fino da Bossa. Entendendo, assim como Hobsbawm, que as “tradições” são, em grande medida, também inventadas e que os seus significados, assim como o de “modernidade” são historicamente construídos, procuramos perceber a especificidade desses discursos em um momento em que a música popular brasileira conhecia formas diferentes de elaboração estética – consideradas, em diversos momentos, por seus interlocutores, como antagônicas – e passava por uma série de questionamentos a respeito do seu lugar social. Existiam projetos de modernidade musical que convergiam e divergiam ao mesmo tempo, o que mostra que não só os elementos estéticos são importantes para a busca de legitimação de gêneros musicais. Algumas memórias construídas sobre a bossa nova valorizam um dos projetos que estavam sendo propostos e acabam atribuindo diferenciações e rupturas que não se concretizavam na prática. O objetivo não era ficar apenas restrito à produção dos discursos, mas à forma como se efetivavam – ou não – nas obras. Nesse sentido, pudemos perceber que eram construídos discursos de identidade musical que, no entanto, também eram permeados pelas mediações da indústria fonográfica, que colocavam novas questões para os artistas. Foram importantes tanto as intenções dos artistas, expressas em entrevistas e diversas declarações, quanto a crítica formulada às suas canções, bem como a análise das obras. Assim como os marcos de “ruptura” para a bossa nova podem ser questionados, outros gêneros não contemplados pela sua convenção continuam a ocupar espaços no mercado, no rádio, na preferência do público, embora perante a crítica musical passem a ser desprestigiados. Outras rupturas, como as existentes entre artistas e gêneros de propostas antagônicas também podem ser questionadas, pois vimos que havia uma continuidade e um diálogo entre muitas dessas produções. Dessa forma, podemos problematizar a memória que atribui o discurso de modernidade à música popular brasileira apenas pelo recorte da bossa nova, desconsiderando que outras propostas eram formuladas também com essa 53 intenção, embora voltadas para públicos diferentes. Assim, ampliar a discussão para as produções musicais não restritas ao que se convencionou chamar MPB permite ver um cenário musical mais amplo que se constituía naquele momento. A defesa da modernidade podia se dar por diferentes vertentes do jazz ou pelo rock. Procuramos enfatizar a recepção das obras por considerarmos que é no processo relacional, ou seja, na forma como uma canção é proposta e como é recebida que podemos entender os seus sentidos. Dentro dessa perspectiva, problematizar a aceitação que a bossa nova teve no exterior e a forma como era lida pode ajudar a compreender os debates que se travaram sobre o gênero e as transformações que teve também no Brasil. Não só o contexto nacional de propostas de Reformas de Base do governo de João Goulart propunha novas elaborações, mas também como o gênero era modificado internacionalmente. Assim, não se trata de valorizar só os discursos ou só a prática musical, mas a relação que se estabelece entre artista e público, pois entendemos que o músico dialoga com vários mediadores para produzir a sua obra. Não se trata de propor que as empresas fonográficas, que a crítica especializada ou que o público “consumidor” sejam “determinantes” na elaboração musical, mas de entender que “canção alguma é uma ilha voltada para dentro de si”107, mas que se constitui em diálogo com essas instâncias. 107 PARANHOS, Adalberto. “A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo”. ArtCultura, Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, n. 9, 2004, p. 26. 54 FONTES JORNAIS: ELIS pede passagem pra sambar. Jornal do Brasil, 24 ago. 1966, p. 40. PANORAMA da bossa nova. 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