EDUCAÇÃO, HOMEM E SOCIEDADE NA PROPOSTA CURRICULAR DE SANTA CATARINA: UMA CRÍTICA EXPLANATÓRIA PERES, Elisandra de Souza – UNESC – [email protected] ORTIGARA, Vidalcir – UNESC – [email protected] EIXO: Filosofia e Educação / n. 13 Agência Financiadora: CAPES Resumo Neste texto argumentamos que a clareza objetiva do dinamismo social requer um estudo teórico-ontológico da gênese dos conceitos de sociedade, de homem, de educação e de aprendizagem. A partir da explicitação de como esses conceitos são formulados na Proposta Curricular de Santa Catarina, os submetemos a uma análise de como manifestam suas formas histórico-concretas, percebendo como foram estruturados. A definição mais concreta desses conceitos consiste na sua articulação entre o universal e o particular, ou seja, o significado genérico que assumem e sua respectiva ação concreta. Somente numa perspectiva ontológica é possível compreender com clareza a totalidade dos conceitos indicados pela Proposta. Nesta perspectiva, perceberemos que, quanto aos conceitos de sociedade, de homem, de educação e de aprendizagem, estes não apresentam uma definição única. Estudados do ponto de vista ontológico e histórico contemplam um conjunto de questões articuladas e que somente nessa relação dinâmica torna-se possível compreender suas determinações na formação humana e o sentido e o significado que assumem no decorrer do desenvolvimento da história do ser social. Palavras Chaves: Educação e Ontologia. Sociedade. Homem. Proposta Curricular. As reflexões sobre a educação nas últimas décadas têm expressado um certo clima de discussões conflituosas e, às vezes, contraditórias. Nas ciências sociais e na filosofia tais discussões caracterizam-se pela denominada crise da razão. Segundo Moraes (2003, p. 157), a crise da razão provocou uma retração na teoria, caracterizada como uma “marcha ré intelectual”, influenciada pelas posições filosóficas do pósmodernismo, pós-estruturalismo e neopragmatismo. Este clima anuncia crises e reivindica mudanças, descarta e invalida teorias e anunciam novos paradigmas que prometem dar resposta aos desafios impostos para a formação de uma nova sociedade, de um novo homem e de um novo mundo. As propostas apresentadas pelos novos paradigmas, objetivando eliminar tais crises, conforme Lessa (2002, p. 44), buscam sempre “novas formas de relação capital-trabalho que atendam às exigências da reestruturação produtiva”. No campo específico da educação, Moraes (2003, p. 152) aponta que, neste debate, seu destino parece “articular- 2 se diretamente às demandas deste mercado insaciável e aos paradigmas propostos para a sociedade de ‘aprendentes’”. O paradigma pós-moderno, que tem suas origens no capitalismo contemporâneo, deixa seus reflexos em todas as esferas sociais. Na educação manifestase com as marcas de solipsismo, irracionalismo e fragmentação do conhecimento. Duarte (2004, p. 78-79) assevera que a fragmentação da realidade social contemporânea, comandada pelo processo de mundialização do capital, tem sua correspondência no pensamento pós-moderno, que rejeita qualquer possibilidade de captação do sentido da totalidade do real e da história. (...) em nome de romper com o cientificismo herdado de paradigmas ultrapassados ou em crise, adotam-se a descrição e a narrativa pseudoliterária de casos e memórias individuais, crônicas pobres e fragmentadas de um cotidiano pobre e fragmentado. O pós-modernismo tem sido objeto de estudo para muitos autores. Nos interessa aqui os debates sobre suas implicações para a educação. Duarte (2004, p. 77) apresenta algumas contribuições para essa questão. Afirma que um primeiro elemento a ser destacado, característico desse pensamento, “é o anúncio de uma crise da ciência, crise dos paradigmas e crise da razão”. Contrapõe-se ao pensamento moderno, caracterizando suas categorias gerais – universalidade, necessidade, objetividade, finalidade, contradição, ideologia, verdade – como mitos da razão. Suas bases fundamse nas categorias: subjetividade narcísica, fragmentação do tempo, diferença, alteridade, contingência, descontinuidade, o mercado da moda, o efêmero e o descartável. Neste contexto, os ideais capitalistas se consolidam em todas as esferas sociais e têm nas instituições escolares um significativo instrumento de reprodução de suas ideologias. A expressão concreta dessa perspectiva na educação pode ser destacada, entre outras, por: a) mudanças de paradigmas, indicando reformulação nas bases teórico-metodológicas que fundamentam as ações educativas; b) novas concepções de educação, de homem e de aprendizagem, condizentes ao novo modelo social a ser estabelecido; c) novos debates e objetivos, novos currículos e conteúdos. Em suma, é proclamada uma nova escola. As implicações deste ideário para a educação são destacadas por Duarte (2004, p. 1) ao evidenciar um revigoramento de concepções calcadas no lema “aprender a aprender”. Moraes (2007, p. 01), ao se indagar sobre o conhecimento no campo da educação, levanta uma denúncia: “o conhecimento e a ciência estão sob ameaça, notadamente as ciências humanas e sociais”. A autora afirma que tal contexto de 3 ceticismo epistemológico e relativismo ontológico compromete a capacidade das ciências superarem suas contradições tanto no plano explanatório como no enfrentamento de problemas práticos aos quais é chamada ao oferecer respostas. Isso ocorre pelo empobrecimento da atividade cognitiva, o que ajuda a constatar que “o sucesso da direita no terreno da filosofia da ciência e da sociedade não se deve apenas ao seu êxito em alcançar o domínio político; sob a aparência de um novo realismo, ela apropriou para si até mesmo o conceito de realidade e de realismo.” Contrária ao ceticismo e ao relativismo, a autora reafirma a importância da teoria pela possibilidade desta nos ajudar a compreender que o “pensamento único” representa interesses sócio-eonômicos e políticos precisos, disfarçados sob um espúrio apelo aos valores do individualismo predatório, conservador e consumista, e a criticar o mercado, demonstrando seu caráter incompatível com uma sociabilidade genuinamente humana. Do ponto de vista da Educação, ela pode contribuir para desnudar a lógica do discurso que, ao mesmo tempo em que afirma a sua centralidade, elabora a pragmática construção de um novo vocabulário que ressignifica conceitos, categorias e termos, de modo a torná-los condizentes com os paradigmas do realismo empírico que referencia as pesquisas, reformas e propostas para a educação brasileira e latino americana, para mencionar as que nos tocam de imediato. (MORAES, 2007, p. 2. Grifo nosso). Ao apresentar estas discussões que caracterizam os debates das ciências contemporâneas, gostaríamos de esclarecer que a centralidade deste estudo não está na crítica da “crise da razão moderna”. Porém, ressaltamos que estas reflexões constituem o pano de fundo para compreender o debate que estabelecemos sobre as propostas curriculares educacionais. Tal instigação tem suas raízes nas atuais discussões sobre os aspectos epistemológicos das ciências humanas e sociais e nas perspectivas teóricas e metodológicas que são abordadas no campo da educação. Nessa perspectiva, a intenção desse artigo reside na explanação críticoexplanatória das teorias que respaldam as proposta para a educação, especificamente, na análise da Proposta Curricular de Santa Catarina (PCSC). A Proposta apresenta-se em três documentos publicados em 1991, 1998 e 2005, afirmando-se como uma única proposição. Portanto, está em debate há quase vinte anos e se apresenta como diretriz curricular para a educação catarinense. Ressaltamos que seria pretensioso de nossa parte, e até incabível para os limites deste trabalho, dar conta de toda abrangência de uma reflexão sobre a problemática das conseqüências da teoria em torno das propostas curriculares de educação. Conscientes de nossas limitações e, igualmente, da relevância, mesmo que ambiciosa deste artigo, é que propomos evidenciar, nos eixos norteadores 4 dos documentos da PCSC, as implicações do marco teórico-filosófico adotado pela mesma – o materialismo histórico-dialético – na formulação dos conceitos de sociedade, educação, homem e aprendizagem. Queremos expor aqui nossa compreensão de como estes conceitos estão articulados na Proposta. Nossa hipótese é de que em seu discurso há um certo distanciamento ou mesmo uma ausência de relação entre o dever-ser da especificidade da educação que se propõe e suas reais possibilidades objetivas. Isto é, planeja-se um ideal abstrato a ser alcançado – em certa sociedade, um modelo de educação que forme o ser humano para sua transformação – descolado do contexto histórico-políticoeconômico em que estão inseridas tais proposições. Nossa premissa se apóia também na mesma lógica de Tonet (2005a, 203), quando debate em suas formulações que as pedagogias que se pretendem progressistas, geralmente apresentam dois problemas muito comuns em seus fundamentos, sendo eles: Primeiro: o caráter idealista, que se manifesta na construção de um ideal abstrato, que se expressa, no mais das vezes, sob a forma de um dever-ser sem fundamento no processo real. Exemplo disso são as afirmações do tipo: a educação emancipadora dever ser humanista, crítica, participativa, integral, etc; as relações entre educador e educando deve ser de tal ou qual natureza; o currículo, os programas, os métodos, etc. Nada mais enganoso. (...) Segundo: o imediatismo, problema dos mais sérios, que afeta a atividade de muitos educadores preocupados com a transformação da sociedade. A questão do imediatismo é espinhosa e complexa. Mais ainda, porque a paixão permeia todo o seu tratamento, tornando difícil uma abordagem objetiva, o que não quer dizer axiologicamente neutra. Para Tonet (2005a, p. 203-204), “a falta de uma sólida base metodológica de caráter histórico-ontológico” e “a ausência de desenvolvimento de uma teoria efetivamente iluminadora – que captura a trama do processo real e permite buscar as mediações adequadas para atingir determinado fim”, faz com que o caráter genérico e superficial destas elaborações teóricas sejam insuficientes para o conhecimento do processo social, não oportunizando ultrapassarem o nível da superficialidade. Para que não prevaleça, no campo das teorias progressistas e, por conseguinte, no conjunto das proposições curriculares, um certo nível de ceticismo e relativismo é preciso lançar mão do imediatismo que tem caracterizado as proposições educativas. Neste raciocínio, concordamos com Tonet (2005a, 206) ao ressaltar que “é preciso fazer o que se deve! Entendido, porém, este ‘o que se deve’ não em sentido moral e sim ontológico, vale dizer, significando aquilo que o processo real, traduzido pela boa teoria, prescreve que se faça tendo em vista a obtenção do fim previamente posto”. Dessa forma, se o propósito é uma formação humana integral – mediante a 5 emancipação humana –, se queremos formar uma sociedade justa, democrática, sem a excludência social, é necessário, conforme o autor, apropriar-se das questões ontometodológicas que permeiam este pôr teleológico. Retomando o objeto foco desse artigo, faremos, em dois momentos, nossa explanação crítica direcionada aos eixos norteadores da PCSC. Primeiro realizaremos uma breve apresentação dos conteúdos que fundamentam, no documento, os conceitos de sociedade, educação, homem e aprendizagem, abordando os fins propostos à luz da teoria que os alicerça, qual seja, o materialismo histórico-dialético. Em seguida, apresentaremos, como contribuição ao documento curricular, uma ampliação ao debate teórico em relação aos limites e possibilidades que constituem o seu conjunto de orientações conceituais, na perspectiva de uma articulação entre formação humana e educação. Salientamos que os conteúdos que compõem as disciplinas curriculares não constituem nosso foco de análise. Dessa forma, não é demasia explicitarmos, mais uma vez, que nos limitaremos aos eixos norteadores introdutórios que estabelecem os objetivos e fundamentos da PCSC. Para isso, julgamos necessário inicialmente apresentar o contexto histórico em que a Proposta Curricular foi elaborada, oportunizando a compreensão das determinações de sua formulação. A PCSC surge no processo de redemocratização política no Brasil num movimento de discussão educacional, mesmo de forma reprimida e clandestina, já existente no fim da ditadura militar (SANTA CATARINA, 1998). A formulação do documento iniciou-se pelos estudos do pensamento Histórico-cultural compreendidos como uma ligação entre a educação e a política, constituindo um caminho para a educação das classes populares na criação de uma nova hegemonia, que contemplasse seus interesses. Com as eleições para governo do Estado de 1986, muitos dos professores que participavam destes estudos vieram a ocupar cargos governamentais. Estes contribuíram com o movimento dos educadores que conclamavam por uma nova perspectiva curricular, desencadeando os debates entre 1988 e 1991 que culminaram na primeira edição da Proposta. A PCSC é um documento resultante do plano de ação da Secretaria de Estado e Educação (SEE), desenvolvido entre 1988 e 1991, e propõe as diretrizes básicas e fundamentais para o ensino do Estado. Este plano estabelecia quatro linhas mestras: 6 1) Superação das dificuldades de acesso à escola para garantir a escolarização básica para todos; 2) Garantir a permanência do aluno na escola através da melhoria qualitativa do ensino, reduzindo a evasão escolar, socializando o conhecimento e instrumentalizando o cidadão para a inserção no trabalho; 3) Descentralizar para assegurar a agilidade e eficiência administrativa; 4) Capacitar recursos humanos e promover a pesquisa e extensão necessárias às atuais exigências do processo de desenvolvimento. (SANTA CATARINA, 1990, p. 4). A PCSC idealizada para atender o segundo item, pois se entendia que a reorganização curricular era um dos “grandes desafios” da educação do Estado. O objetivo central do Documento aponta para a superação dos déficits de evasão escolar mediante a melhoria na qualidade de ensino. Tal objetivo justificaria a redefinição do papel da escola e de sua função social. As raízes do fenômeno da evasão escolar estavam associadas à má qualidade do ensino ministrado nas Unidades Escolares (UE), e os fracassos do processo ensino-aprendizagem eram avaliados como resultados da ausência de um plano de trabalho que refletisse a realidade de cada escola. Para tanto, tornava-se necessário orientar as UE à formulação de projetos pedagógicos em consonância com as grandes diretrizes do plano de ação. O documento ressalta que ter um plano de trabalho não significa juntar as partes, “mas sim, ter claro, primeiramente, a função social da Escola e, a partir deste discernimento, ter objetivado ‘conceitos’ que devam nortear toda a proposta, enquanto formulação teórica e concretização da prática” (SANTA CATARINA, 1990, p. 4). Dessa forma, a PCSC pretende ser “uma resposta constante aos reclamos da sociedade catarinense: melhoria da qualidade do ensino” (SANTA CATARINA, 1989, p. 01), um instrumento de superação da dicotomia entre interesses majoritários e minoritários pela democratização do ensino e um conjunto de orientações curriculares para contribuir com a escola pública catarinense. O Documento ainda ressalta que na medida em que as Unidades Escolares produzirem um Plano de Trabalho onde estejam claras as concepções de mundo, sociedade, homem e escola enquanto totalidade, o trabalho educacional e o ato educativo que ocorre em sala de aula, terá um novo curso, uma nova trajetória fundamentadas em condições filosóficas e metodológicas que darão substância à concretização das necessidades objetivas do processo educacional (SANTA CATARINA, 1991, p. 10. Grifos nossos) Cabe analisar em que perspectiva a Proposta apresenta seu aprofundamento nos aspectos filosóficos e históricos da educação que permitem às EU estabelecerem seus planos de trabalho com clareza dos conceitos por ela indicados como centrais para a concretização do processo educacional. 7 A versão de 2005 se apresenta como parte de uma única Proposta publicada em três versões. Tal condição nos permite centrar nossa análise nos conceitos indicados nesta versão, sem desconsiderar as abordagens conceituais realizadas nas anteriores. Conforme a versão da PCSC de 1991, são indicados como centrais as concepções de mundo, sociedade, homem e escola. A versão de 1998 enfatizada a intenção de aprofundar os fundamentos teórico-práticos dos conceitos de mundo, homem e de aprendizagem. A última versão, de 2005, aponta a necessidade de compreensão dos conceitos de sociedade, de homem, de educação e de aprendizagem para que a escola possa cumprir sua função social. O eixo norteador do Documento de 1991 expõe os conceitos da seguinte forma: Sendo o homem, enquanto homem, produto de um processo constante de contradições e transformações sobre as próprias contradições, a educação como inerente da sociedade, a qual o homem é produtor e produto dela, também passa pelo mesmo processo de contradições e transformações. Para a compreensão da totalidade deste dinamismo social, torna-se fundamental buscar a clareza objetiva de como isto se dá. Historicamente, tem-se concretizado a ação de homens que exercem suas funções sociais de forma a tornar excludente parte majoritária das populações. Por outro lado, observase também, ações do homem na tentativa de superar esta excludência. É aqui que se coloca o nosso grande desafio; o de nos colocar na caminhada que produzirá a não-excludência ou no segmento que promoverá a conservação deste quadro de marginalização. (SANTA CATARINA, 1991, p. 10. Grifos nossos). Evidenciamos nesta passagem como o documento da proposta estabelece as suas concepções de sociedade, homem e educação, inclusive estabelecendo de forma sintética as possíveis relações deste dinamismo social. É destacada a ação contraditória dos homens que, em suas funções socais, produzem tanto a excludência quanto a tentativa de sua superação. Diante de tal explanação, a Proposta Curricular estabelece como proposição educativa a compreensão de como se efetivam tais processos sociais, visando superar a dicotomia entre a reprodução da marginalização social e a superação da excludência da classe majoritária. Aponta que tanto a educação quanto a sociedade possuem em si todas as condições de superação desta dicotomia, ou seja, possibilidades efetivas para a transformação social. Tais possibilidades residem na democratização dos níveis da educação, melhorando a qualidade do ensino e dos conhecimentos e habilidades a serem apropriados pelos alunos, necessários para a sua participação e atuação no processo de transformação na sociedade. 8 Cabe evidenciar que, em relação ao desafio lançado pela PCSC à educação, a centralidade deste processo reside na ação do professor. Sua função reside em objetivarem os conceitos que “devam nortear toda a proposta, enquanto formulação teórica e concretização da prática. (...) sendo este o fundamento do qual o professor é o eixo e, em torno do qual, a melhoria da qualidade se processará.” (SANTA CATARINA, 1991, p. 11). É enfatizado que todo o trabalho pedagógico deverá estar voltado para os segmentos majoritários, sendo os projetos pedagógicos das UE orgânico, crítico e dinâmico. “Perpassará este projeto: que escola queremos? que homem socialmente situado? e que sociedade se quer produzir? Entendemos que sem estas definições e clareza conceitual, qualquer proposta curricular não surtirá a menor importância nas EU” (Idem). Em relação à segunda versão, seus eixos norteadores explicitam uma concepção de homem social e histórico, cabendo à educação decidir que homem quer formar, para constituir qual modelo de sociedade e, em conseqüência desses pressupostos, escolhe-se os conteúdos e os métodos de ensino. A superação da exclusão social é obtida pela socialização do conhecimento. O acesso ao conhecimento dominante pelas camadas populares, mediante a socialização da riqueza intelectual, é vista como caminho para a socialização da riqueza material. Nesta perspectiva, o professor é o mediador entre o conhecimento histórico e o aluno. A aprendizagem se dá na interação do sujeito com o social e com os objetos de conhecimento. Na última versão da PCSC foi possível identificar que a abordagem filosófica adotada no conjunto das orientações curriculares é o materialismo históricodialético, enfatizando que o ser humano é um ser histórico e social, resultado e produto social. Em relação ao eixo teórico-metodológico, é o enfoque histórico-cultural que fundamenta os princípios e pressupostos da aprendizagem. Ressalta que em relação à concepção de educação, ao assumir essa matriz teórica e metodológica e defender uma concepção curricular não neutra, a Escola assume uma posição político-pedagógica, bem determinada, definindo sua função social, qual seja a de garantir a todos o acesso aos conhecimentos historicamente legitimados como importantes, para que os seres humanos possam conviver em sociedade e usufruir suficientemente das riquezas materiais e espirituais socialmente produzidas. Assim, o desafio maior que se apresenta hoje para a escola é como materializar a ação educativa proposta teoricamente, de modo que cada estudante possa apropriar-se dos conceitos científicos e significativos que lhe possibilitem lidar bem com sua realidade sóciohistórica e acessar as riquezas materiais e espirituais socialmente produzidas. (SANTA CATARINA, 2005, p. 11). 9 Percebemos nos eixos norteadores desta edição, a indicação de que a educação cumpre seu papel na medida em que permite a interação e a construção individual dos conhecimentos pelos alunos, isto é, um processo aberto. São valorizados os conhecimentos fruto da realidade e da vivência cotidiana dos mesmos. Nessa perspectiva, o professor “assume um papel de líder e facilitador do processo interativo de ensino-aprendizagem” (SANTA CATARINA, 2005, p. 6). Apresentada a abordagem teórica que a PCSC contempla no conjunto de suas orientações curriculares, podemos refletir sobre as proposições explicitadas nos conteúdos dos conceitos referenciados. Conforme o documento, os educadores devem ter clareza objetiva de sua totalidade – conceitos de sociedade, educação, homem e aprendizagem –, condição indispensável para a educação engajar-se no caminho da superação da excludência das classes majoritárias e, consequentemente, a transformação social. Aponta essa clareza enquanto possibilidades objetivas em relação às proposições do desenvolvimento da formação humana integral – superação da dicotomia entre os interesses da classe minoritária e majoritária - e a transformação da sociedade. Expostas as proposições que norteiam os conceitos indicados pela Proposta Curricular, passamos à segunda parte de nosso trabalho, apresentando os limites e possibilidades das finalidades propostas por este documento, ampliando o debate teórico. Concordarmos com a necessidade de compreensão da totalidade do dinamismo social, mediante a clareza objetiva de como ocorrem tais contradições. No entanto, a Proposta não apresenta a natureza ou as raízes destes conflitos. Quando falamos da sua natureza ou das suas raízes questionamos quais processos e estruturas engendram a marginalização, as contradições e a excludência na sociedade. Salientamos que é necessário conhecer, a partir da formação humana, a relação dos conceitos investigados com o fenômeno da contradição. Uma educação que tenha como objetivo caminhar no sentido da não exclusão deverá oportunizar condições de compreensão da gênese e dos mecanismos desses processos. De acordo com a PCSC, o aprofundamento do entendimento de educação, tanto nos aspectos filosóficos, históricos, quanto nos específicos da área do conhecimento de cada professor, é um imperativo para fazer da educação, um processo do nosso tempo, para pessoas do nosso tempo, tendo em vista um futuro melhor do que a realidade que vivenciamos. (SANTA CATARINA,1991, p. 06). 10 A discussão conceitual em nível epistemológico – no âmbito histórico e filosófico – como realizado pelo documento e a abordagem superficial da teoria que a fundamenta, estabelece limites muito estreitos nas possibilidades de desenvolvimento de suas proposições. Argumentamos que a clareza objetiva desse dinamismo social requer um estudo teórico-ontológico como gênese dos conceitos de sociedade, de homem, de educação e de aprendizagem. Partindo desse estudo, podemos submetê-los a uma análise de como manifestam suas formas histórico-concretas, percebendo como foram estruturados, e refletir suas determinações no atual momento histórico. A definição mais concreta desses conceitos consiste na sua articulação entre o universal e o particular, ou seja, o significado genérico que assumem e sua respectiva ação concreta. Tonet (2005a, p. 51), ao realizar a discussão da relação entre a totalidade e a particularidade na perspectiva de uma teoria revolucionária à educação, apresenta a necessidade de se retomar a natureza dos fundamentos postos por Marx. Afirma que, para Marx, “a compreensão de qualquer momento da realidade social tem como pressuposto a sua articulação com a totalidade, cujo eixo dinâmico é a autoconstrução humana”. O conhecimento da origem, da natureza e das determinações do processo de formação do homem e, concomitantemente, das formas atuais de sociabilidade, é possível pela autoconstrução humana. Não devemos esquecer que esta ocorre mediante um percurso no qual se articulem dois momentos: o histórico e o teórico-ontológico. De acordo com os pressupostos do marco teórico-metodológico do materialismo histórico-dialético, são as forças materiais que determinam o homem e a história. Um estudo que tenha como objetivo elucidar a natureza humana na sua plenitude, não se limita ao conhecimento das características filogenéticas do homem, tampouco na análise das particularidades de sua consciência. Restringir-se ao estudo isolado desses elementos, resultaria numa análise unilateral e a-histórica da formação humana. Marx e Engels (1998) ressaltam que a história humana inicia com a existência de seres humanos vivos, neste caso, o homem. Um primeiro ponto a ser constatado é que a história humana, a sociabilidade, não se inicia no feudalismo ou no capitalismo, mas sim, a partir do momento predominante, qual seja, o momento em que o homem se torna homem. Vale reafirmar, que nossas premissas de discussão da formação humana e educação não se fundamentam em especulações ou recortes históricos, como se a história humana se constituísse de um amontoado de fragmentos, como no atomismo 11 metodológico. Acreditamos ser na compreensão da natureza da história humana e nas formas de produzir sua existência que reside a possibilidade de compreensão da especificidade da educação, ou seja, no processo de apropriação e objetivação (DUARTE, 1993). O conhecimento da realidade, para Marx e Engels, deve ter como ponto de partida os indivíduos concretos e suas ações e relações empiricamente verificáveis, não bases idealistas e especulativas. De acordo com Tonet (2005a, p. 38), as bases de Marx começam a ser lançadas quando ele “descobre que o trabalho é o fundamento ontológico do ser social. (...) é a partir do exame dessa categoria que a práxis aparece como categoria nuclear de toda a sua elaboração e o processo de autoconstrução humana se torna o fio condutor de sua construção teórica”. O autor ainda ressalta que, para Marx, “a raiz do homem é o próprio homem e o ato que funda o homem, o ato ontológico primário, é o ato de trabalho”. Saviani (2005), ao referir-se à gênese da educação, argumenta que a compreensão da sua natureza está vinculada à compreensão da natureza humana. No entanto, enfatiza que para conhecer a essência humana é necessário considerar o que diferencia esta dos demais fenômenos, dos demais seres. Segundo o autor, a resposta a essa questão reside nas formas como ambos os seres produzem sua existência, ou seja, como o homem e o animal garantem a sua sobrevivência no meio natural. A educação no contexto histórico atual, na sua forma institucionalizada, tem sua gênese fundada em uma necessidade inerente ao processo de produção e reprodução da sociabilidade do capital. As atividades humanas, devido a crescente complexificação da sociabilidade se apresentam cada vez mais exigentes em relação ao desempenho de aptidões e conhecimentos dos indivíduos. É neste contexto que se situa o papel da educação na formação humana. Este complexo oportuniza aos indivíduos a apropriação dos conteúdos históricos e culturalmente produzidos e, concomitantemente, o desenvolvimento das capacidades especificamente humanas. Sua efetivação pela prática pedagógica, tem um caráter fundamental na formação dos indivíduos: “ser a mediadora entre a vivência em-si, espontânea, da genericidade e a condução consciente da vida pela relação também consciente com o processo histórico de objetivação universal e livre do gênero humano, pela ascensão à genericidade para-si”. (DUARTE, 1993, p. 119-121). A sociedade, conforme apresentada pela PCSC, é resultado da ação dos homens – suas contradições e transformações – e a educação é um produto desta 12 sociedade que, em suma, os resultados dessas relações formam um dinamismo social. No entanto, cabe a nós buscarmos a clareza objetiva de como isso ocorre Pois, após a investigação do documento da proposta, concluímos: a) que esse dinamismo é histórico, b) que os homens produzem e transformam a sociedade e, c) que os homens produzem e são produtos da exclusão e de sua superação; porém sem que nela se esclareça como isso ocorre efetivamente. Para compreender melhor a totalidade deste dinamismo social faremos algumas pontuações. Conforme o modelo transformacional da atividade social, proposto por Bhaskar (1998, p. 10), existe um hiato ontológico entre sociedade e pessoas. A sociedade preexiste aos indivíduos e é uma condição necessária para sua atividade, ou seja, a sociedade “dever ser encarada como um conjunto de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos reproduzem ou transformam, a menos que eles assim o fizessem”. A ação humana é caracterizada pelo fenômeno da intencionalidade. Sua atividade consiste do trabalho sobre objetos dados, ou seja, que preexistem. Dessa forma, os indivíduos devem se apropriar dos instrumentos, cultura, valores e significações e habilidades desenvolvidas pela humanidade historicamente. Assim, se a sociedade preexiste aos indivíduos, esta não poderá ser produto da atividade dos seres humanos, conforme indicado pela PCSC. Estes reproduzem ou transformam a sociedade em virtude de sua atividade. Come afirma Bhaskar (1998, p. 8) “a sociedade está para os indivíduos, então, como algo que eles nunca fazem, mas que existe apenas em virtude de sua atividade”. Dessa forma, possuem uma dualidade tanto a sociedade (dualidade de estrutura) quanto a práxis humana (dualidade da práxis), isto é, A sociedade é tanto a condição (causa material) sempre presente como o resultado continuamente reproduzido da ação humana. E a práxis é tanto trabalho, produção consciente, como reprodução (normalmente inconsciente) das condições de produção, ou seja, a sociedade. A partir da apresentação desse modelo, poderíamos questionar, por exemplo, que tipo de “contato” ou “relação” as pessoas estabelecem com a sociedade? Como ocorre esse dinamismo social, como questiona a Proposta Curricular? Bhaskar (1998, p. 14) evidencia que existe “um ponto de contato” entre a ação humana e as estruturas sociais. Tal ponto, que vincula a ação humana à estrutura, é tanto duradouro quanto como imediatamente ocupado pelos indivíduos. Este sistema é o de “posições (lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos, etc.) ocupadas (preenchidas, assumidas, exercidas, etc.) pelos indivíduos e de práticas (atividades, etc.) nas quais, 13 em virtude de sua ocupação (...) os indivíduos se engajam”. Vale ressaltar que as relações incluem as relações interpessoais, mas não se reduzem ou consistem em interações. É o modelo práticas-posicionadas que estabelece este dinamismo social, que só ocorre relacionalmente. Nesta perspectiva, as possibilidades reais de compreender e, por conseguinte, transformar o mundo social, conforme Bhaskar (2005, p. 2), reside na identificação das “estruturas em funcionamento que geram os eventos ou discursos (...) Essas estruturas não são espontaneamente aparentes nos padrões de eventos observáveis; elas só podem ser identificadas mediante o trabalho teórico e prático das ciências sociais”. A clareza objetiva de como se processa o dinamismo social apresentado pela proposta, ou seja, a compreensão dos processos das contradições e relações na sociedade, caracterizados como fenômenos sociais – produtos de uma pluralidade de estruturas –, irá depender do conhecimento dessas estruturas. Retomando a idéia da autoconstrução humana defendida por Marx, como pressuposto para compreensão da totalidade da realidade, indicamos que os ideais de sociedade democrática, superação da dicotomia social (centralidade da educação nas classes majoritárias ou minoritárias), isto é, uma educação voltada para formação humana (emancipação dos sujeitos) e o fim das desigualdades sociais que perpetuam historicamente, devem levar em conta, em sua análise e critica, as contradições do modelo da sociedade burguesa. Uma sociedade alicerçada no ideal de acúmulo de capital e de produção estará no caminho oposto da educação que busca promover a formação humana integral. A realidade da sociedade capitalista é a formação para a reprodução do capital. Uma formação integral do ser humano, conforme assevera Tonet (2005b, p. 5), “é uma impossibilidade absoluta nessa forma de sociabilidade regida pelo capital. Uma formação realmente integral supõe a humanidade constituída sob a forma de uma autêntica comunidade humana, e esta pressupõe, necessariamente, a supressão do capital”. Nessa perspectiva, negamos a naturalização da sociabilidade do capital e afirmamos que o entendimento de que as estruturas sociais são passíveis de transformação. A PCSC, ao pretender ser revolucionária, produzir a melhoria da qualidade do ensino e se colocar no caminho da superação da excludência social, mantém seu discurso no nível ideal e abstrato, pois conforme Tonet (2005b, p. 8), um discurso sobre a formação humana integral “sem o questionamento das raízes da desigualdade social, 14 sem uma forte tomada de posição contra a lógica do capital, contribui, não importa se consciente ou inconscientemente, para a reprodução de uma forma de sociedade inteiramente contrária à proclamada”. Apresentadas as limitações acerca do discurso teórico da Proposta Curricular, ressaltamos que a teoria que a fundamenta pressupõe ações que objetivam ir além do modelo do capital. Dessa forma, é explicitada a gênese das superficialidades, contradições e distanciamentos que se apresentam às proposições das propostas educativas. A ausência do aprofundamento teórico, a contradição entre ser e dever-ser, delimitados por seus pressupostos norteadores em desacordo com a teoria na qual se fundamentam, traz conseqüências. Pois adotar uma teoria com uma perspectiva revolucionária implica compreender a clareza de seu horizonte, seus limites e possibilidades frente à realidade objetiva. Portanto, as conseqüências para a PCSC, em razão da teoria que a sustenta, é a sua caracterização como um documento superficial, devido à ausência de um aprofundamento teórico, o que pode acarretar um ceticismo, devido a não coerência com os pressupostos de seu marco teórico e, consequentemente, ineficaz, pois não fornece bases sólidas e não promove ações efetivas frente aos próprios desafios propostos. Salientamos que somente numa perspectiva ontológica é possível compreender com clareza a totalidade dos conceitos indicados pela Proposta. Nesta perspectiva, perceberemos que, quanto aos conceitos de sociedade, de homem, de educação e de aprendizagem, estes não apresentam uma definição única. Estudados do ponto de vista ontológico e histórico contemplam um conjunto de questões articuladas e que somente nessa relação dinâmica torna-se possível compreender suas determinações na formação humana e o sentido e o significado que assumem no decorrer do desenvolvimento da história do ser social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁCAS BHASKAR, Roy. Sociedades. London: Routledge. Tradução: Herrman Mathou e Thais Maia. Revisão: Bruno Moretti e Lílian Paes. Supervisão/Revisão Técnica: Mário Duayer. 1998. _______. Realismo Crítico, relações sociais e argumentos para o socialismo. Tradução: Astrid Baecker Avila. Revisão: Mario Duayer e Maria Célia Marcondes de Moraes. 2005 15 DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuição a uma teoria históricosocial de formação do indivíduo. 2. ed Campinas: Autores Associados, 1999. ______. 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