PAZ, Octavio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo

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OCTAVIO PAZ
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
OU O NOVO FESTIM DE ESOPO
Editora Perspectiva
1977
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
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Título do original
Lévi-Strauss o el Nuevo Festín de Esopo
© Octavio Paz
Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA
PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 – São Paulo – Brasil
Telefone:288-8388
1977
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
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SUMÁRIO
1. Uma Metáfora Geológica. Comércio Verbal e Comércio Sexual:
Valores,Signos, Mulheres.
2. Símbolos, Metáforas e Equações. A Posição e o Significado.Ásia,
América e Europa. Três Transparentes: O Arco-íris, o Veneno e a
Doninha. O Espírito:Algo queé Nada.
3. Intermédio Discordante. Defesa de uma Cinderela e outras
divagações.Um Triângulo Verbal:Mito, Épica e Poema
4. Qualidades e Conceitos: Pares e Parelhas, Elefantes e Tigres. A
Reta e o Círculo. Os Remorsos do Progresso. Ingestão, Conversão,
Expulsão.O Fim da Idadedo Ouro e o Começoda Escritura.
5. As Práticas e os Símbolos. O Sim ou o Não e o Mais ou Menos. O
Inconscientedo Homem,e o das Máquinas. Os Signos que se Destroem:
Transfigurações.Taxila
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1.
UMA METÁFORA GEOLÓGICA.
COMERCIO VERBAL E COMÉRCIO SEXUAL: VALORES,
SIGNOS, MULHERES.
Há cerca de quinze anos um comentário de Georges Bataille sobre
Les structures élémentaires de la parenté revelou-me a existência
de Lévi-Strauss. Comprei o livro, e após várias e infrutíferas tentativas,
abandonei sua leitura. Minha boa vontade de aficcionado da
antropologia e meu interessepelo tema (o tabu do incesto) se chocaram
com o caráter técnico da obra. No ano passado um artigo em The
Times Literary Supplement (Londres) voltou a despertar a minha
curiosidade. Li apaixonadamente Tristes tropiques, e a seguir, com
deslumbramento crescente, Anthropologie structurale, La pensée
sauvage , Le totémisme aujourd'hui e Le cru et le cuit. Este
último é um livro particularmente difícil: o leitor sofre uma espécie de
vertigem intelectual ao seguir o autor em sua sinuosa peregrinação
através da selva de mitos dos índios bororé e gê. Percorrer esselabirinto
é penoso, mas fascinante: muitos trechos desse “concerto” do
conhecimento me exaltaram, outros me iluminaram e alguns me
irritaram. Embora leia por prazer e sem tomar notas, a leitura de LéviStrauss me revelou tantas coisas e despertou em mim tais interrogações
que, quase sem perceber, fiz alguns apontamentos. Este texto é o
resultado de minha leitura.
Resumo de minhas impressões e meditações, não tem qualquer
pretensãocrítica.
Os escritos de Lévi-Strauss têm uma importância tríplice:
antropológica, filosófica e estética. Sobre o primeiro mal é necessário
dizer que os especialistas consideram fundamentais seus trabalhos sobre
o parentesco, os mitos e o pensamento selvagem. A etnografia e a
etnologia americanas lhe devemestudos notáveis; além disso, em quase
todas as suas obras há muitas observaçõesdispersas sobre problemas da
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pré-história e da história do nosso continente:a antiguidade do homem
no Novo Mundo, as relaçõesentrea Ásia e a América,a arte,a cozinha,
os mitos indo-americanos...
Lévi-Strauss desconfia da filosofia mas seus livros são um diálogo
permanente, quase sempre crítico, com o pensamento filosófico e
particularmentecom a fenomenologia.Por outro lado,sua concepçãoda
antropologia como parte de uma futura semiologia ou teoria geral dos
signos e suas reflexõessobreo pensamento(selvageme civilizado) são de
certo modo uma filosofia: seu tema central é o lugar do homem no
sistema da natureza. Em sentido mais reduzido, embora não menos
estimulante, sua obra de “moralista” tem também um interesse
filosófico: Lévi-Strauss continua a tradição de Rousseau e Diderot,
Montaigne e Montesquieu. Sua meditação sobre as sociedades nãoeuropéias se resolve em uma crítica das instituições ocidentais, e esta
reflexãoculmina na última partede Tristes tropiques por uma curiosa
profissão de fé,desta vez francamentefilosófica,emqueofereceao leitor
uma espécie de síntese entre os deveres do antropólogo, do pensador
marxista e a tradição budista. Entre as contribuições de Lévi-Strauss à
estética citarei os estudos sobre a arte indo-americana – um sobre o
dualismo representativo na Ásia e na América, outro em torno do tema
da serpente com o corpo repleto de peixes – e suas idéias brilhantes,
embora nem sempreconvincentes,sobre a música, a pintura e a poesia.
Pouco direi sobre o valor estético de sua obra. Sua prosa me faz pensar
na de três autores que talvez não sejam de sua predileção: Bergson,
Proust e Breton. Neles, como em Lévi-Strauss, o leitor se defronta com
uma linguagem que oscila continuamenteentre o concreto e o abstrato,
a intuição direta do objeto e a análise:um pensamento que vê as idéias
como formas sensíveis e as formas como signos intelectuais...A primeira
coisa que surpreendeé a variedadede uma obra que pretendeser apenas
antropológica;a segunda,a unidadedo pensamento.Esta unidadenão é
a da ciência, mas a da filosofia, embora se trate de uma filosofia
antifilosófica.
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Lévi-Strauss aludiu em diversas ocasiões às influências que
determinaram a direção de seu pensamento: a geologia, o marxismo e
Freud. Uma paisagem se apresenta como um quebra-cabeças: colinas,
rochedos, vales, árvores, barrancos. Essa desordem possui um sentido
oculto; não é uma justaposição de formas diferentes,mas a reunião em
um lugar de distintos tempos-espaços: as capas geológicas. Como a
linguagem, a paisagem é diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo: é a
história condensada das idades terrestrese é tambémum entrelaçado de
relações.Um cortevertical revela que o oculto,as capas invisíveis,e uma
“estrutura” que determina e dá sentido às mais superficiais. À
descoberta intuitiva da geologia se uniram, mais tarde, as lições do
marxismo (uma geologia da sociedade) e da psicanálise (uma geologia
psíquica). Esta tríplice lição pode ser resumida em uma frase: Marx,
Freud e a geologia lhe ensinaram a explicar o visívelpelo oculto.Isto é,a
buscar a relação entre o sensível e o racional. Não uma dissolução da
razão no inconsciente,mas uma busca da racionalidadedo inconsciente:
um super-racionalismo. Estas influências constituem, para continuar
usando a mesma metáfora, a geologia do seu pensamento: são
determinantes em um sentido geral. Não menos decisivas para a sua
formação foram a obra sociológica de Marcel Mauss e a lingüística
estrutural.
Já disse antes que os meus comentários não são de ordem
estritamente científica; examino as idéias de Lévi-Strauss com a
curiosidade,a paixão e a inquietudede um leitor quedesejacompreendêlas porque sabe que, como todas as grandes hipóteses da ciência, estão
destinadas a modificar nossa imagem do mundo e do homem. Assim,
não me proponho a situar seu pensamento dentro das modernas
tendências da antropologia, embora seja evidenteque,por mais original
que nos pareça,estepensamentofaz parte de uma tradição científica. O
próprio Lévi-Strauss, aliás, em sua Leçon inaugurale no Collège de
France (janeiro de 1960), assinalou suas dívidas para com a
antropologia anglo-americana e a sociologia francesa. Mais explícito
ainda, em vários capítulos da Anthropologie structurale e em muitas
passagens de Le totémisme aujourd’hui, revela e esclarece suas
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coincidências e discrepâncias com Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown.
Sobre isso vale a pena sublinhar que várias vezes recordou que os seus
primeiros trabalhos foram concebidos e elaborados em estreita união
com a antropologia anglo-americana. Não obstante,foram as idéias de
Mauss que o preparam para receber a lição da lingüística estrutural e
saltar de uma maneira mais total que os outros antropólogos do
funcionalismo ao estruturalismo. Durkheim já afirmara que os
fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos ou religiosos eram
“projeções da sociedade”: o todo explicava as partes. Mauss recolheu
esta idéia, mas advertiu que cada fenômeno possui características
próprias e que o “fato social total” de Durkheim era composto por uma
série de planos superpostos: cada fenômeno, sem perder sua
especificidade,alude aos outros fenômenos. Por tal razão, o que conta
não é a explicação global mas a relação entreos fenômenos:a sociedade
é uma totalidade porque é um sistema de relações. A totalidade social
não é uma substância nem um conceito mas “consiste finalmente no
circuito de relaçõesentretodos os planos”.
Em seu famoso ensaio sobre a dádiva, Mauss adverte que o
presente é recíproco e circular: as coisas que se intercambiam são
também fatos totais; ou, dito de outro modo: as coisas (utensílios,
produtos, riquezas) são veículos de relação. São valores e são signos. A
instituição do potlach – ou qualquer outra análoga – é um sistema de
relações: a dádiva recíproca assegura, ou melhor, realiza a relação.
Portanto, a cultura de uma sociedadenão e a soma de seus utensílios e
objetos; a sociedadeé um sistema total de relações que engloba tanto o
aspectomaterial quanto o jurídico,o religioso e o artístico.Lévi-Strauss
recolhea lição de Mauss e servindo-se do exemploda lingüística,concebe
a sociedadecomo um conjunto de signos: uma estrutura. Passa assim da
idéia da sociedadecomo uma totalidade de funções à de um sistema de
comunicações. É revelador que Georges Bataille (La part maudite)
tenha extraído conclusões diferentes do ensaio de Mauss. Para Bataille
não se trata tanto de reciprocidade,circulação e comunicação, mas de
choque e violência, poder sobre os outros e autodestruição: o potlach é
uma atividadeanáloga ao erotismoe ao jogo,sua essência não é distinta
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da do sacrifício. Bataille pretende desentranhar o conteúdo histórico e
psicológico do potlach; Lévi-Strauss considera-o como uma estrutura
atemporal, independentementede seu conteúdo. Sua posição o defronta
com o funcionalismo da antropologia saxônica, o historicismo e a
fenomenologia.
Mais adiante tratarei mais detidamente o tema da relação
polêmica entre o pensamento de Lévi-Strauss e o historicismo e a
fenomenologia. Todavia, é oportuno esboçar desde já suas afinidades e
diferenças com os pontos de vista de Malinowski e de Radcliffe-Brown.
Para o primeiro, “os fatos sociais não se reduzem a fragmentos
dispersos;o homemvive-os, realiza-os, e esta consciência subjetiva,tanto
como suas condições objetivas, é uma forma de sua realidade”.
Malinowski teve o grande mérito de mostrar experimentalmenteque as
idéias que uma sociedade tem de si mesma são parte inseparável da
própria sociedadee desta maneira revalorizou a noção de significado no
fato social;mas reduziu a significação dos fenômenossociais à categoria
de função.A idéia de relação,capital emMauss, resolve-se na função:as
coisas e as instituiçõessão signos por ser funções.Por sua vez,RadcliffeBrown introduziu a noção de estrutura no campo da antropologia. Só
queo grandesábio inglês pensava que“a estrutura é da ordemdos fatos:
algo dado na observação de cada sociedade particular...” A
originalidadede Lévi-Strauss reside em ver a estrutura não só como um
fenômeno resultante da associação dos homens mas como “um sistema
regido por uma coesão interna – e esta coesão, inacessível para o
observador de um sistema isolado, revela-se no estudo das
transformações, graças às quais se redescobrem propriedades similares
em sistemas diferentes na aparência” (Leçon inaugurale). Cada
sistema – formas de parentesco,mitologias, classificações etc. – é como
uma linguagem que pode ser traduzida à linguagem de outro sistema.
Para Radcliffe-Brown a estrutura “é a maneira durável que os grupos e
os indivíduos têm de se constituir e de se associar no interior de uma
sociedade”; portanto, cada estrutura é particular e intraduzível às
outras. Lévi-Strauss pensa que a estrutura é um sistema e que cada
sistema é regido por um código que permite,caso o antropólogo consiga
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decifrá-lo, sua tradução a outro sistema. Por último, diversamente de
Malinowski e de Radcliffe-Brown, para Lévi-Strauss as categorias
inconscientes, longe de serem irracionais ou simplesmente funcionais,
possuem uma racionalidade imanente, por assim dizê-lo. O código é
inconsciente – e racional. Nada mais natural, em conseqüência, que
visse no sistema fonológico da lingüística estrutural o modelo mais
acabado, transparente e universal dessa razão inconsciente subjacente
em todos os fenômenos sociais, trata-se de relações de parentesco ou de
fabulações míticas. Certo, não foi o primeiro a pensar que a lingüística
era o modelo da investigação antropológica. Só que, enquanto os
antropólogos anglo-americanos a consideraram como um ramo da
antropologia, Lévi-Strauss afirma que a antropologia é (ou será) um
ramo da lingüística. Ou seja: parte de uma futura ciência geral dos
signos.
Arriscando-me a repetir o que outros disseram muitas vezes (e
melhor do que eu), devo deter-me e esclarecer um pouco a relação
particular que une o pensamento de Lévi-Strauss com a lingüística.1
Como se sabe, o trânsito do funcionalismo ao estruturalismo se opera,
na lingüística. A idéia de que “cada item da linguagem – oração,
palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para encher uma
função, geralmente de comunicação” se superpõe outra: “nenhum
Uma das conseqüências mais grotescas do obscurantismo stalinista foi a introdução do adjetivo
pejorativo “formalista” nas discussões artísticas e literárias. Durante anos os críticos pseudomarxistas
marcaram com o selo infamantedesse vocábulo muitos poemas,quadros, novelas e obras musicais. Esta
acusação resultava ainda mais insensata empaíses como o nosso,emque ninguémsabia o quesignificava
realmente a palavra “formalismo”. Algo assim como se o Arcebispo de México, hipnotizado por um
brâmanede Benares,condenasseos nossos protestantesnão por heresia cristã mas por incorrer nos erros
de Buda. Entre os formalistas russos se encontram dois dos fundadores da lingüística estrutural: Nicolai
S. Trubetzskói e Roman Jakobson. Ambos abandonaram a União Soviética na década de vinte e
participaram decisivamentenos trabalhos da escola lingüística de Praga. O primeiro morreu em 1939,
vítima indireta dos nazistas; o segundo, também perseguido pelos camisas pardas, se refugiou nos
Estados Unidos e é hojeprofessor de Harvard. A história do formalismo russo está intimamenteligada à
do futurismo. Maiakóvski, Khliébnikov, Burliuk e outros poetas e pintores do grupo participaram das
discussões lingüísticas dos formalistas. O amigo íntimo de Maiakóvski, o crítico Ossip Brik, foi um dos
animadores da Sociedade de Estudos da Linguagem Poética (Opoiaz). Maiakóvski estava presente na
noite em que Jakobson leu seu ensaio sobre Khliébnikov e, segundo uma testemunha, “escutou
intensamenteos abstrusos raciocínios do jovemlingüista, nos quais examinava a prosódia dos futuristas
à luz dos conceitos derivados de Edmund Husserl e Ferdinand de Saussure,(VICTOR ERLICH, Russian
Formalism, 1965.
1
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elemento da linguagem pode ser valorizado se não é considerado em
relação com os outros elementos”.2 A noção de relação se converte no
fundamentoda teoria:a linguagemé um sistemade relações.Por sua vez
Ferdinand de Saussure já realizara uma distinção capital:o caráter dual
do signo, composto de um significante e de um significado, som e
sentido. Esta relação – ainda não inteiramente explicada – define o
campo próprio da lingüística: cada um dos elementos da linguagem,
inclusive os menores, “possuem dois aspectos: um, o significante, e
outro, o significado”. A análise deve levar em conta esta dualidade e
proceder do texto à frase e desta à palavra e ao morfema, a unidade
mínima dotada de significado. A investigação não se detêmnesteúltimo
porque a fundação da fonologia permitiu um passo decisivo: a análise
dos fonemas, unidades que, “apesar de não possuir significado próprio,
participam da significação”. A função significativa do fonema consiste
em que designa uma relação de alteridade ou oposição em relação aos
outros fonemas;embora o fonema careça de significado,sua posição no
interior do vocábulo e sua relação com os outros fonemas tornam
possível a significação. Todo o edifício da linguagemrepousa sobre esta
oposição binária. Os fonemas podem decompor-se em elementos
menores, que Jakobson chama de “feixe ou conjunto de partículas
diferenciais”.3 Como os átomos e suas partículas, o fonema é um
“campo de relações”:uma estrutura. Isso não é tudo: a fonologia revela
que os fenômenos lingüísticos obedecema uma estrutura inconsciente:
falamos sem saber que, cada vez que o fazemos, pomos em movimento
uma estrutura fonológica. Portanto, a fala é uma operação mental e
fisiológica que repousa sobre leis estritas e que, não obstante,escapam
ao domínio da consciência clara.
Saltam à vista as analogias -da lingüística, por um lado, com a
física, a genética e a teoria da informação;por outro, com a “psicologia
da forma”. Lévi-Strauss se propôs aplicar o método estrutural da
lingüística à antropologia. Nada mais legítimo – a linguagem não só é
um fenômeno social como constitui, simultaneamente,o fundamento de
2
3
JOSEF VACKEK, The Linguistìc School of Praga, 1966.
ROMAN JAKOBSON, Essais de Linguistique Générale, Paris, 1963.
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toda sociedadee a expressão social mais perfeita do homem.A posição
privilegiada da linguagem converte-a em um modelo de investigação
antropológica: “como os fonemas, os termos de parentesco são
elementos de significação; corno eles, não adquirem esta significação a
não ser com a condição de participar de um sistema; como os sistemas
fonológicos, os sistemas de parentesco são elaborações do espírito ao
nível do pensamento inconsciente; por fim, a repetição de formas de
parentesco e regras de matrimônio, em regiões distanciadas e entre
povos profundamente diferentes, nos faz pensar que, como no caso da
fonologia, os fenômenos visíveis são o produto do jogo de leis gerais
embora ocultas...Em uma ordemdistinta de realidades, os fenômenosde
parentesco são fenômenos do mesmo tipo dos lingüísticos”.4 Não se
trata, é claro, de transpor a análise lingüística à antropologia, mas de
traduzi-la em termos antropológicos. Entre as formas da tradução há
uma que Jakobson chama “transmutação”: interpretação de signos
lingüísticos por meio de um sistema de signos não-lingüísticos. Neste
caso a operação consiste,ao contrário, na interpretação de um sistema
de signos não-lingüísticos (por exemplo: as regras de parentesco) por
meio de signos lingüísticos. Não me estendereina descrição das formas,
sempre rigorosas e às vezes extremamente engenhosas, que assume a
interpretaçãode Lévi-Strauss.
Assinalo apenas que o seu método se funda mais em uma analogia
do que em uma identidade. Além disso, adianto uma observação: se a
linguagem– e com elea sociedadeinteira: ritos, arte,economia,religião
– é um sistema de signos, que significam os signos? Um autor muito
citado por Jakobson, o filósofo Charles Peirce, diz: “O sentido de um
símbolo é sua tradução em outro símbolo”. Ao contrário de Husserl, o
filósofo anglo-americano reduz o sentido a uma operação:um signo nos
remetea outro signo. Resposta circular e que se destrói a si mesma:se a
linguagemé um sistemade signos, um signo de signos, que significa este
signo de signos? Os lingüistas coincidem com a lógica matemática,
embora por motivos opostos, no horror à semântica. Jakobson tem
consciência desta carência: “Depois de haver anexado os sons da
4
CLAUDE LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale.
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palavra à lingüística e constituído a fonologia, devemos incorporar
agora as significações lingüísticas à ciência da linguagem”. Assim seja.
Enquanto isso, observo que esta concepção da linguagem termina em
uma disjuntiva:se só temsentido a linguagem,o universo não-lingüístico
carece de sentido e inclusive de realidade; ou então, tudo é linguagem,
desde os átomos e suas partículas até os astros. Nem Peirce nem a
lingüística nos dão elementos para afirmar a primeira ou a segunda
hipótese. Tríplice omissão: em um primeiro momento subtrai-se o
problema do nexo entre som e sentido, que não é simplesmenteo efeito
de uma convenção arbitrária como pensava Ferdinand de Saussure; em
seguida,exclui-se o tema da relação entrea realidadenão-lingüística e o
sentido, entre ser e significado; por último, omite-se a pergunta central:
o sentido da significação. Advirto que esta crítica não é inteiramente
aplicável a Lévi-Strauss. Correndo mais riscos que os lingüistas e os
partidários da lógica simbólica, o tema constante de suas meditações é
precisamente o das relações entre o universo do discurso e a realidade
não-verbal,o pensamentoe as coisas,a significaçãoe a não-significação.
Em seus estudos sobre o parentesco, Lévi-Strauss procede de
maneira contrária à maioria dos seus predecessores: não pretende
explicar a proibição do incesto a partir das regras de matrimônio, mas
serve-se da primeira para tornar mais inteligíveis as segundas. A
universalidade da proibição, quaisquer que sejam as modalidades que
adote neste ou naquele grupo humano, é análoga à universalidade da
linguagem, quaisquer que sejam, também, as características e a
diversidadedos idiomas e dialetos.Outra analogia: é uma proibição que
não apareceentreos animais – pelo que se podeinferir que não temuma
origem biológica ou instintiva – e que, não obstante, é uma complexa
estrutura inconscientecomo a linguagem. Enfim, todas as sociedades a
conhecem e a praticam, mas até agora – apesar de abundarem as
interpretações míticas, religiosas e filosóficas – não temos uma teoria
racional que explique sua origem e sua vigência. Lévi-Strauss rechaça,
com razão, todas as hipóteses que pretenderam explicar o enigma do
tabu do incesto,desdeas teorias finalistas e eugenéticas até a de Freud.
A propósito desteúltimo assinala que atribuir a origem da proibição ao
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desejopela mãe e ao assassinato do pai pelos filhos, é uma hipóteseque
revela as obsessões do homem moderno mas que não corresponde a
nenhuma realidadehistórica ou antropológica.É um “sonho simbólico”:
não é a origemmas a conseqüênciada proibição.
A regra não é puramentenegativa;não tendea suprimir as uniões,
mas a diferenciá-las: esta união não é lícita, mas aquela sim. A regra é
composta de um sim e de um não, oposição binária semelhante à das
estruturas lingüísticas elementares.É um crivo que orienta e distribui o
fluir das gerações.Cumpreassim uma função de alteridadee mediação–
diferenciar, selecionar e combinar – que converte as uniões sexuais em
um sistema de significações. É um artifício “pelo qual e no qual se
cumpreo trânsito da natureza à cultura”. A metamorfosedo som bruto
em fonema se reproduz na da sexualidade animal em sistema de
matrimônio;em ambos os casos a mutação se devea uma operação dual
(isto não, aquilo sim) que seleciona e combina – signos verbais e
mulheres. Do mesmo modo que os sons naturais reaparecem na
linguagemarticulada,mas já dotados de significação,a família biológica
reaparece na sociedade humana, mas já transformada. O “átomo” ou
elementomínimo de parentesconão é o biológico ou natural – pai, mãee
filho – mas está compostopor quatro termos:irmão e irmã,pai e filha. É
impossível seguir Lévi-Strauss em toda a sua exploração e por isso me
limito a citar uma de suas conclusões:“O caráter primitivo e irredutível
do elementode parentescoé uma conseqüência da proibição do incesto...
na sociedade humana um homem só pode obter uma mulher de outro
homem, que lhe entrega sua filha ou sua irmã”. A interdição não tem
outro objetofora o de permitir a circulação de mulheres,e nestesentido
é a contrapartida da obrigação de doar, estudada por Mauss.
A proibição é recíproca e graças a ela se estabelecea comunicação
entre os homens: “As regras de matrimônio e os sistemas de parentesco
são uma espécie de linguagem” – um conjunto de operações que
transmitemmensagens. A objeção de que as mulheres são valores e não
signos e as palavras signos e não valores,Lévi-Strauss respondeque,sem
dúvida, as segundas eram também valores (hipóteseque não me parece
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
descabida,se pensarmos na energia que ainda irradiam certas palavras);
no que diz respeito às mulheres: foram (e são) signos, elementos desse
sistema de significações que é o sistema de parentesco... Não sou
antropólogo e deveria calar-me. Aventuro, em todo caso, um tímido
comentário:a hipóteseexplica com grandeelegância e precisão as regras
de parentesco e de matrimônio pela proibição universal do incesto,mas,
como se explica a própria proibição, sua origem e sua universalidade?
Confesso que me custa aceitar que uma norma tão inflexível e na qual
não é infundado ver a fonte de toda a moral – foi o primeiro Não que o
homem opôs à natureza – seja apenas uma regra de trânsito, um
artifício destinado a facilitar o intercâmbio de mulheres. Além disso,
noto a ausência da descrição do fenômeno;Lévi-Strauss nos descrevea
operaçãodas regras,não aquilo queregulam:a atração e a repulsão pelo
sexo oposto, a visão do corpo como um entrelaçado de forças benéficas
ou nocivas, as rivalidades e as amizades,as considerações econômicas e
as religiosas,o terror e o apetitequedespertauma mulher ou um homem
de outro grupo social ou de outra raça, a família e o amor, o jogo
violento e complicado entre veneração e profanação, medo e desejo,
agressão e transgressão – todo esse território magnético, magia e
erotismo, que cobre a palavra incesto. Que significa este tabu que nada
nem ninguémexplica e que,embora pareça não ter justificação biológica
nem razão de ser, é a raiz de toda proibição? Qual é o fundamentodeste
Não universal? É verdadeque esteNão contémum Sim: a proibição não
apenas separa a sexualidadeanimal da sexualidadesocial mas, como na
linguagem,este Sim funda o homem,constitui a sociedade.A proibição
do incesto nos faz defrontar, noutro plano, com o próprio enigma da
linguagem: se a linguagem nos funda, nos dá sentido, qual é o sentido
destesentido? A linguagemnos dá a possibilidadede dizer, mas quequer
dizer dizer? A pergunta sobre o incesto é semelhante à do sentido da
significação. A resposta de Lévi-Strauss é singular: estamos diante de
uma operação inconsciente do espírito humano e que, em si mesma,
carecede sentido ou fundamento,mas não de utilidade:graças a ela – e
à linguagem,o trabalho e o mito – os homens são homens. A pergunta
sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta sobre a
significação do homem 'e esta na do espírito. Portanto temos que
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penetrar numa esfera em que o espírito opera com maior liberdade,pois
que não se defronta nem com os processos econômicos nem com as
realidadessexuais mas consigo mesmo.
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2.
SÍMBOLOS, METÁFORAS E EQUAÇÕES.
A POSIÇÃO E O SIGNIFICADO. ÁSIA, AMÉRICA E EUROPA.
TRÊS TRANSPARENTES: O ARCO-ÍRIS, O VENENO E A
DONINHA. O ESPÍRITO: ALGO QUE É NADA.
Diante do mito, Lévi-Strauss adota uma posição francamente
intelectualista e lamenta a preferência moderna pela vida afetiva,à qual
atribui poderes que não tem: “É um erro acreditar que idéias claras
podem nascer de emoções confusas”.5 Critica também a fenomenologia
da religião que trata de reduzir a “sentimentos informes e inefáveis”
fenômenosintelectuais só aparentementedistintos dos de nossa lógica.A
pretensa oposição entre pensamento lógico e pensamento mítico revela
apenas a nossa ignorância: sabemos ler um tratado de filosofia mas não
sabemos como devem ser lidos os mitos. Certo, temos uma clave – as
palavras de queestão feitos – mas seu significado se nos escapa porquea
linguagemocupa no mito um lugar semelhanteao do sistemafonológico
dentro da própria linguagem.Lévi-Strauss inicia sua demonstração com
esta idéia: a pluralidade de mitos, em todos os tempos e em todos os
espaços,não é menos notávelque a repetiçãoem todos os relatos míticos
de certos procedimentos. O mesmo sucede no universo do discurso: a
pluralidade de textos resulta da combinação de um número muito
reduzido de elementos lingüísticos permanentes.Portanto, a elaboração
mítica não obedecea leis distintas das lingüísticas:seleçãoe combinação
de signos verbais. A distinção entre língua e fala, proposta por
Ferdinand de Saussure, também é aplicável aos mitos. A primeira é
sincrônica e postula um tempo reversível; a segunda é diacrônica e seu
tempo é irreversível. Ou, como dizemos em espanhol Io dicho, dicho
está”. O mito é fala, seu tempo alude ao que passou e é um dizer
irrepetível; ao mesmo tempo, é idioma: uma estrutura que se atualiza
cada vez quevoltamosa contar a história.
5
A. M. HOCART, citado por Lévi-Strauss emLa structure des mythes.
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A comparação entre mito e linguagem conduz Lévi-Strauss a
buscar os elementos constitutivos do primeiro. Esses elementos não
podemser os fonemas,os morfemas ou os “semantemas”,pois se assim
fosse o mito seria um discurso como todos os outros. As unidades
constitutivas do mito são frases ou orações mínimas que, por sua
posição no contexto, descrevem uma relação importante entre os
diversos aspectos, incidentes e personagens do relato. Lévi-Strauss
propõe que chamemos a essas unidades de mitemas. Já que um mito é
um conto contado com palavras, como distinguir os mitemas das outras
unidades puramente lingüísticas? Os mitemas são “entrelaçados ou
feixes de relações mínimas” e operam em um nível superior ao
puramente lingüístico. No nível mais baixo, encontra-se a estrutura
fonológica; no segundo, a sintática, comum a todo discurso mítico
propriamente dito. A estrutura sintática está para a mítica como a
fonológica está para a sintática. Se a investigação consegue isolar os
mitemas como a fonologia o fez com os fonemas, poder-se-á dispor de
um. feixe de relações que formem uma estrutura. As combinações dos
mitemas devem produzir mitos com a mesma fatalidade e regularidade
com que os fonemas produzem sílabas, morfemas, palavras e textos. Os
mitemas são ao mesmotempo significativos (dentro da narrativa) e présignificativos (como elementos de um segundo discurso: o mito). Graças
aos mitemas, os mitos são fala e idioma,tempoirreversível(narrativa) e
reversível (estrutura), diacronia e sincronia. Novamente,com a ressalva
de expor mais completamente meus pontos de vista no final deste
trabalho, antecipo uma reflexão: se um mito é uma paralinguagem,sua
relação com a linguagem é inversa à do sistema de parentesco. Este
último é um sistema de significações que se serve de elementos nãolingüísticos; o mito opera com a linguagem como se esta fosse um
sistemapré-significativo:o que diz o mito não é o que dizemas palavras
do mito. O sistema de parentesco se decifra por meio de uma clave
superior: a linguagem;qual seria a clave paralingüística para decifrar o
sentido dos mitos? E essa clave seria traduzível a da linguagem? Em
suma, os mitos nos defrontam outra vez com o problema do sentido da
significação.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Em seu ensaio La structure des mythes, prelúdio a outros
trabalhos mais ambiciosos, Lévi-Strauss serve-se da história de Édipo
como pedra-de-toque de suas idéias. Não lhe interessa o conteúdo do
mito nem pretendeofereceruma nova interpretação,mas tenta,isto sim,
decifrar a sua estrutura: o Sistema de relações que o determina e que,
provavelmente,não é diverso do de todos os outros mitos. Busca uma lei
geral,formal e combinatória.Não sem franzir o cenho o de mais de um
antropólogo e muitos helenistas e psicólogos, recolheu o maior numero
possível de versões;em seguida,isolou as unidades mínimas,os mitemas,
que aparecem nessas variantes. Alguns criticaram este procedimento:
como podemser determinados objetivamenteos mitemas? A objeçãonão
tem valor se se recorda que uma das características dos mitos é a
recorrência de certos temas e motivos. Inclusive desta maneira podemse
reconstruir versões incompletas e ainda descobrir-se mitemas que, por
esta ou aquela razão, não aparecememnenhuma versão.Tal é o caso do
defeito físico de Édipo, que não figura nas variantes conhecidas. Uma
vez determinados os mitemas, Lévi-Strauss inscreveu-os em um cartão,
dispostos emcolunas horizontais e verticais.Cada mitemadesignava um
feixe de relações, isto é, era a expressão concreta de uma função de
relação.Reproduzo,muito simplificado,o quadro de Lévi-Strauss:
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
1
Édipo se casa com sua
mãe
Antígona enterra o
seu irmão
2
Édipo mata Laio, seu
pai
3
4
Édipo imola a Esfinge Édipo:pés inchados
Etéocles mata o seu
irmão
Se lemos da direita para a esquerda, contamos o mito; se de cima
para baixo, penetramos em sua estrutura. A primeira coluna
correspondeà idéia de relações de parentesco demasiado íntimas (entre
Édipo e sua mãe, Antígona e seu irmão); a segunda descreve uma
desvalorização dessas relações(Édipo assassina o seu pai, Eteócleso seu
irmão) ; a terceira se refere à destruição dos monstros; a quarta a uma
dificuldade para caminhar. A relação entre a primeira e a segunda
coluna é óbvia: une-as um duplo e contrário descomedimento:exagerar
ou minimizar as relações de parentesco. A relação entre Édipo e a
Esfinge reproduz a de Cadmos e o dragão: para fundar Tebas o herói
devematar o monstro. É uma relação entreo homeme a terra que alude
ao conflito entre a crença na origem terrestre de nossa espécie
(autoctonia) e o fato de que cada um de nós é filho de um homem e de
uma mulher. Em conseqüência, a terceira coluna é uma negação dessa
relação e reproduz, noutro nível, o tema da segunda coluna. Muitos
mitos representamos homensnascidos da terra como inválidos,coxos ou
de andar vacilante. Embora o significado do nome de Édipo não seja
claro, a análise confirma que, como os de seu pai e de seu avô (o
primeiro, coxo, e o segundo, surdo), alude a um defeito físico”.6
Portanto,a quarta coluna afirma o que nega a terceira e,novamenteem
outro nível, repete o tema da primeira. Portanto, a relação entre a
O nome de Édipo significa “pé inchado” ou “aqueleque conhecea resposta do enigma dos pés”? Como
se sabe,a Esfinge pergunta: Qual é a criatura que tem quatro pés ao amanhecer,dois ao meio-dia e três
ao crespúsculo? A resposta é: o homem.Parece-me que o enigma da Esfinge confirma a hipótesede LéviStrauss:o temadas colunas terceira e quarta é o da origemdo homem.
6
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
terceira coluna e a quarta é da mesma índole que a da primeira e da
segunda. Estamos diante de uma dupla parelha de contradições: a
primeira está para a segunda assim como a terceira está para a quarta.
Esta fórmula pode variar: a primeira é homóloga da quarta, a segunda
da terceira. Em termos morais: o parricídio se nega com o incesto; em
termos cosmológicos: negar a autoctonia (ser um homem de fato e de
direito) implica em matar o monstro da terra. O defeito se paga com o
excesso.O mito ofereceuma solução ao conflito por meio de um sistema
de símbolos que operam à maneira dos sistemas da lógica e da
matemática.
Ao encontrar a estrutura do mito de Édipo, Lévi-Strauss se torna
apto para aplicar as mesmas leis combinatórias a mitos de outras
civilizações. Boas assinalara que as adivinhações são um gênero quase
completamenteausente entre os índios da América do Norte. Há duas
exceções: os bufões ou palhaços cerimoniais dos pueblo – segundo os
mitos nascidos de um comércio sexual incestuoso – que divertem os
espectadores com adivinhanças; e certos mitos dos índios algonquines,
relativos a corujas que proferemenigmas,os quais, sob pena de morte,o
herói deve resolver.. A analogia com o mito de Édipo é dupla: por um
lado, entre o incesto e adivinhação; por outro, entre a esfinge e as
corujas. Portanto, há uma relação entre incesto e adivinhação: a
resposta a um enigma une dois termos inconciliáveis e o incesto a duas
pessoas tambéminconciliáveis. A operação mental em ambos os casos é
idêntica: unir dois termos contraditórios. Esta relação se reproduz em
outros mitos, só que de maneira inversa. Por exemplo,no mito do Grial.
No de Édipo, um monstro postula uma pergunta sem resposta; no mito
celta,há uma resposta sem pergunta. Com efeito,Perceval não se atreve
a perguntar o que é e para que serveo recipientemágico.Em um caso,o
mito apresenta uma personagem que abusa do comércio sexual ilícito e
que,ao mesmo tempo,possui tal sutileza de espírito que pode resolver a
adivinhação da esfinge;no outro,há uma personagemcasta e tímida que
não ousa formular a pergunta que dissipará o encantamento.Comércio
sexual ilícito = solução de um enigma que planteia a união de dois
termos contraditórios; abstinência sexual = incapacidade para
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
perguntar. O conflito entre a autoctonia e a origem real, sexual, dos
homens,exigeuma solução inversa. A existência da esfinge(autoctonia)
implica a desvalorização dos laços consangüíneos (parricídio) ; o
desaparecimento do monstro, o exagero dos mesmos laços (incesto).
Embora Lévi-Strauss se abstenha de estudar os mitos das civilizações
históricas (o mito de Édipo é antes uma ilustração de suas idéias do que
um estudo de mitologia grega), observo que a mesma lógica se
desenvolve no mito de Quetzalcoatl. Diversos investigadores dedicaram
notáveis estudos ao tema e mal se faz necessário recordar, por exemplo,
a brilhanteinterpretação de LauretteSejourné.Não obstante,o método
de Lévi-Strauss oferecea possibilidadede estudar o mito mais como uma
operação mental que como uma projeção histórica. Os elementos
históricos não desaparecem, mas ficam integrados nesse sistema de
transformações que abarca desde os sistemas de parentesco e as
instituições políticas até a mitologia e as práticas rituais. Advirto que o
estruturalismo não pretende explicar a história: o acontecimento, o
suceder, é um domínio que não toca; contudo, do ponto de vista da
antropologia, tal como a concebeLévi-Strauss, a história é apenas uma
das variantes da estrutura. O mito de Quetzalcoatl é um produto
histórico – seja ou não histórica a sua personagemcentral – na medida
em que é uma criação religiosa de uma sociedade secreta; ao mesmo
tempo,é uma operação mental sujeita à mesma lógica dos outros mitos
– sem excluir os mitos modernos,como o da Revolução. Apenas limitarme-ei aqui a assinalar certos traços e elementos significativos:
Tezcatlipoca, deus coxo e senhor de magos e feiticeiros, intimamente
associado ao mito dos sacrifícios humanos,tenta Quetzalcoatl e leva-o a
cometero duplo pecadode adultério e incesto(Quetzalcoatl se embebeda
e deita-se com sua irmã). Ao inverso do que ocorre com Édipo, salvador
de Tebas ao decifrar o enigma da esfinge, Quetzalcoatl é vítima do
engano do feiticeiro, e assim perde o seu reino e ocasiona a perda de
Tula. Os astecas, que se consideraram sempre os herdeiros da grandeza
de Tula, representaram outra vez o mito de Quetzalcoatl (quero dizer:
celebraram-no, viveram-no) no momentoda conquista espanhola,só que
ao inverso. Talvez o mito de Quetzalcoatl,caso se consiga decifrar a sua
estrutura, possa nos dar a chave dos mistérios da história antiga do
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
México: o fim das grandes teocracias e o princípio das culturas
históricas (a oposição entre Teotihuacán e Tula, poderia dizer-se, para
simplificar),e a atitudedos astecasdiantede Cortés.
Na segunda partede seu ensaio Léví-Strauss recorrea vários mitos
dos índios pueblo para ampliar a sua demonstração. Neles também se
manifesta uma oposição de termos inconciliáveis: autoctonia e
nascimentobiológico,mudança e permanência,vida e morte,agricultura
e caça, paz e guerra. Estas oposições nem sempre são evidentes,porque
às vezes os termos originais foram substituídos por outros. A
permutação de um termo por outro tem por objeto encontrar termos de
mediaçãoentreas oposições.A forma de operaçãodo pensamentomítico
não é distinta da de nossa lógica; difere no emprego dos símbolos,
porque em lugar de proposições,axiomas e signos abstratos serve-se de
heróis, deuses,animais e outros elementos do mundo natural e cultural.
É uma lógica concreta e não menos rigorosa que a dos matemáticos. A
posição dos termos de mediação é privilegiada. Por exemplo,a mudança
implica em morte para os índios pueblo; pela intervenção do mediador
agricultura se transforma em crescimento vital. Guerra, sinônimo de
morte, transforma-se em vida por obra de outra mediação: caça. A
oposição entre animais carnívoros e herbívoros se resolve em outra
mediação: a dos coiotes e auras que se alimentam de carne como os
primeiros mas que, como os herbívoros, não são caçadores. A mesma
operação de permutação rege a carreira dos deuses e dos heróis. A cada
oposição corresponde um mediador, de modo que a função dos messias
se esclarece:são encarnações de proposições lógicas que resolvem uma
contradição. Algo semelhante ocorre com os gêmeos divinos, os deuses
hermafroditas e uma estranha personagem, o palhaço mítico, que
aparece em muitos mitos e ritos. A penetração psicológica, neste caso,
não é menor que o rigor lógico: o riso, como se sabe, dissolve a
contradição em uma unidade convulsiva que nega os dois termos da
oposição. Entre esses palhaços míticos existe um, o Ash boy, que ocupa
na mitologia dos pueblo um lugar semelhante ao da Cinderela no
Ocidente:os dois são mediadores entre a obscuridade e luz, fealdade e
beleza,riqueza e pobreza,o mundo de baixo e o de cima. A relação entre
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
a Cinderela e o Ash boy adota a forma de inversão simétrica. Mais
adiante encontraremos de novo esta relação entre alguns mitos e lendas
européias e outros da América”.7
A ambigüidade do mediador se explica não tanto por motivos
psicológicos como por sua posição no interior da fórmula: é um termo
que permitedissolver ou transcendera oposição.Por tal razão um termo
positivo (deus, herói, monstro, animal, planta, astro) pode transformarse em um negativo: suas qualidades dependemde sua posição dentro do
mito.Nenhum elementopossui significação própria; a significação brota
do contexto:Édipo é “bom” ao imolar a Esfinge;é “mau”, ao casar com
sua mãe; é “débil” ao andar com dificuldade; “forte”, quando mata o
pai. Cada termo podeser substituído por outro, contanto que haja entre
elesuma relação necessária. Os mitos obedecemàs mesmas leis da lógica
simbólica; se se substitui os nomes próprios e os mitemas por signos
7
Valeria a pena analisar, desole esse ponto de vista, a mitologia do México antigo. As religiões
mesoameri canas são um imenso balé cósmico de transformações,uma grandiosa dança de disfarces em
que cada nome é uma data e. uma máscara, um feixe de atributos contraditórios. Por exemplo,
Quetzalcoatl. E um Messias, um mediador típico. Ao nível histórico é um mediador entre as culturas da
costa do Golfo do México e as do Altiplano, as grandes teocracias e os toltecas, o mundo náhuatl e o
maia; ao cosmológico,entrea terra (serpente)e o céu (pássaro), o ar (a máscara bocal de bico de pato) e
a água (caracol marinho) o mundo subterrâneoe o celeste(o planetaVénus); ao nível mágico-moral entre
o sacrifício e o auto-sacrifício, a penitência e o excesso, a continência e a luxúria, a embriaguez e a
sobriedade.É um mito de emergência (a origem do homem) e um mito de trânsito; é a imagemdo tempo,
a encarnação do movimento,seu fim e sua transfiguração (a auto-imolação pelo fogo e sua metamorfose
em planeta). Mito astronômico e herói cultural, é sobretudo uma cristalização da dualidade,a cifra dos
enigmas das relações entre esta e a unidade. Seu nome quer dizer “gêmeo preciosos, e seu duplo é
Xóolot”. Este último possui muitos nomes, figuras e atributos: cão, ser contrafeito (como Édipo), tigre,
divindade sexual, animal anfíbio (axólotl). Naturalmente haveria que pôr entre parênteses todas estas
relações,aproximar-se do mito com olhos mais inocentes e objetivos e, após recolher todas as variantes,
inscrever em um quadro todos os mitemas pertinentes. Ademais, o sentido da figura de Quetzacoatl só
resultaria inteligível o dia em que se a estudecomo parte de um sistema mítico mais vasto e que abarca
não só a Mesoamérica como o norte do continente e provavelmente também a América do Sul. A
pluralidade de sociedades que adotaram e modificaram o mito proíbe estudá-lo por meio do método
histórico. o único adequado,assim, seria o de Lévi-Strauss. Aponto, por ora, algo evidente:a história de
Quetzacoatl é na realidade um conjunto de histórias, uma família de mitos ou, mais exatamente, um
sistema. Seu tema é a mediação A situação do templo de Quetzacoatl em Tenochtitlán, entre os
consagrados a Tlaloc e a Huitzilopochtli, revela uma espéciede triângulo no qual a figura do primeiro,é
um ponto de união entre duas constelações míticas, uma associada às plantas e á água e outra
astronômica e guerreira. Esta dualidade, como observou Soustelle,corresponde também à estrutura da
sociedadeasteca e à situação peculiar destepovo no contexto das culturas do Altiplano: Huitzilopochtli
era o deus tribal asteca enquanto que Tlaloc representaum culto muito mais antigo. Recordarei,por fim,
que o Sumo Pontíficeentreos astecas ostentavao nomede Quetzacoatl e que,diz Sahagún, “eram dois os
sumo sacerdotes”.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
matemáticos, o mito e suas variantes, inclusive as mais contraditórios,
podem se condensar em uma fórmula... Ao concluir seu estudo, LéviStrauss afirma que o mito “tem por objeto oferecer um modelo lógico
para resolver uma contradição – algo irrealizável se a contradição é
real”. Observo, em conseqüência, uma diferença entre o pensar mítico e
o do homem moderno: no mito se desenvolve uma lógica que não se
defronta com a realidade e sua coerência é meramente formal; na
ciência, a teoria deve submeter-se à prova da experimentação; na
filosofia,o pensamentoé crítico.Aceito queo mito é uma lógica mas não
vejo como possa ser um saber. Por último, o método de Lévi-Strauss
proíbe uma análise do significado particular dos mitos: por um lado,
pensa que esses significados são contraditórios, arbitrários e, de certo
modo, insignificantes; por outro, afirma que o significado dos mitos se
desenvolvenuma região queestá mais alémda linguagem.
O sistema de simbolização se reproduz sem cessar. O mito
engendra mitos: oposições, permutações, mediações e novas oposições,
Cada solução é “ligeiramentedistinta” da anterior, de modo que o mito
“cresce como uma espiral”: a nova versão o modifica e, ao mesmo
tempo, o repete.Por isso a interpretação de Freud, independentemente
de seu valor psicológico, é mais uma versão do mito de Édipo. Poderia
acrescentar-se que o estudo de Lévi-Strauss constitui outra versão, já
não emtermos psicológicos,mas lingüísticos e de lógica simbólica.Este é
o tema,justamente,de Le cru et le cuit. Análise de cerca de duzentos
mitos sul-americanos, opera como um aparelho de transformações que
os engloba e os “traduz” em termos intelectuais. Esta tradução é uma
transmutação e daí que,como diz o seu autor, seja “um mito dos mitos
americanos”. Le cru et le cuit responde de certo modo a minha
pergunta acerca do significado dos mitos: à maneira dos símbolos de
Peirce, o sentido de um mito é outro mito. Cada mito desenvolveo seu
sentido em outro que,por sua vez,aludea outro, e assim sucessivamente
até que todas essas alusões e significados tecemum texto: um grupo ou
família de mitos. Esse texto alude a outro e mais outro; os textos
compõem um conjunto, não tanto um discurso mas um sistema em
movimento e perpétua metamorfose: uma linguagem. A mitologia dos
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
índios americanos é um sistemae essesistemaé um idioma. Outro tanto
pode dizer-se da mitologia indo-européia e da mongólica: cada uma
constitui um idioma. Por outro lado, o significado de um mito depende
de sua posição no grupo e daí que,para decifrá-lo, seja necessário ter em
conta o contexto em que aparece. O mito é uma frase de um discurso
circular e que muda constantemente de significado: repetição e
variação”.8
Esta maneira de pensar nos põe diante de conclusões vertiginosas.
O grupo social que elabora o mito, ignora o seu significado; aquele que
conta um mito não sabe o que diz, repeteo fragmento de um discurso,
recita uma estrofede um poemacujo princípio,fim e temadesconhece.O
mesmo ocorre com os seus ouvintes e com os ouvintes de outros mitos.
Ninguém sabe que esse relato é parte de um imenso poema:os mitos se
comunicamentresi por meio dos homens e sem que esteso saibam. Idéia
não muito distanciada da dos românticos alemãese dos surrealistas:não
é o poeta que se serveda linguageme sim esta que fala através do poeta.
Há uma diferença: o poeta tem consciência de ser um instrumento da
linguagem e não estou certo de que o homem do mito saiba que o é de
uma mitologia. (A discussão deste ponto e prematura: basta dizer, por
enquanto,que para Lévi-Strauss a distinção é supérflua, pois pensa que
a consciência é uma ilusão.) A situação descrita por Le cru et le cuit é
Ver os mitos como frases ou partes de um discurso quecompreenderia todos os mitos de uma civilização
é uma idéia desconcertante,mas tônica. Aplicada à literatura, por exemplo, nos revelaria uma imagem
distinta e talvez mais exata do que chamamos tradição. Em lugar de ser uma sucessão de nomes,obras e
tendências, a tradição se converteria em um sistema de relações significativas: uma linguagem.A poesia
de Góngora não seria unicamentealgo queestá depois de Garcilaso e antes de Rubon Dario, mas um texto
em relação dinâmica com outros textos; leríamos Góngora não como um texto isolado mas em seu
contexto:aquelas obras que o determiname aquelas que sua poesia determina.Se concebemosa poesia de
língua espanhola mais como um sistemaque como uma história, a significação das obras que a compõem
não dependetanto da cronologia nem de nosso ponto de. vista como das relaçõesdos textos entre si e do
próprio movimento do sistema. A significação de Quevedo não se esgota em sua obra nem na do
conceptismodo século XVII; o sentido de sua palavra,o encontrarmos mais plenamenteemalgum poema
de Vallejoembora,naturalmente,o que poeta peruano diz não seja idêntico ao que quis dizer Quevedo.O
sentido se transforma sem desaparecer:cada transmutação,ao mudá-lo, o prolonga. A relação entreuma
obra e outra não é meramente cronológica ou, antes, essa relação é variável e altera sem cessar a
cronologia:para ouvir o que dizemos poemas da última época de Juan Ramón Jiménez,é preciso ler uma
canção do século XIV (por exemplo: Aquel árbol que mueve la hoja... do Almirante Hurtado de
Mendonza). A idéia de Lévi-Strauss nos convida a ver a literatura espanhola não como um conjunto de
obras mas como uma só obra. Essa obra é um sistema,uma linguagem em movimento e em relação com
outros sistemas:as outras literaturas européias e sua descendênciaamericana.
8
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
análoga à dos executantes de uma sinfonia que estivessem
incomunicados e separados pelo tempo e pelo espaço:cada um tocaria o
seu fragmento como se fosse a obra completa. Nenhum deles poderia
escutar o concerto porque para ouvi-lo teria que estar fora do círculo,
longe da orquestra. No caso da mitologia americana esse concerto
começou há milênios e hoje umas poucas comunidades dispersas e
agonizantes repetem os últimos acordes. Os leitores de Le cru et le
cuit são os primeiros que escutam essa sinfonia e os primeiros que
sabem que a escutam. Mas, será que a ouvimos realmente? Escutamos
uma tradução ou, mais exatamente,uma transmutação:não o mito,mas
outro mito. Nisto consiste o paradoxo do livro de Lévi-Strauss e o
paradoxo do mito. A razão é a seguinte: embora a linguagem do mito,
diferentementeda poesia,sejafacilmentetraduzívela qualqueridioma,o
verdadeiro discurso mítico é, como a música, intraduzível. No mito,
conformejá disse,a linguagem articulada desempenha a mesma função
que o sistema fonológico no discurso comum: o mito serve-se das
palavras como nós, ao falarmos, nos servimos dos fonemas. Portanto, a
linguagem do mito, a história contada com palavras, é uma estrutura
inconsciente e pré-significativa sobre a qual se edifica o verdadeiro
discurso mítico. Por isso Lévi-Strauss afirma que há uma relação de
verdadeiro parentesco entre o mito e a música, e não entre aquele e a
poesia. A diferença desta última, o mito pode ser traduzido sem que
nada de apreciável se perca na tradução; à semelhança da primeira, o
discurso mítico constitui uma linguagem própria e intraduzível. A meu
ver esta analogia não é perfeita: se no mito há dois níveis, um
propriamente lingüístico e outro paralingüístico, na música não
encontramos o primeiro nível. Em troca, em seu primeiro nível mito e
poema estão construídos de palavras e no segundo os dois são objetos
verbais, um feito de mitemas e outro de metáforas e equivalências.
Voltarei a isto e examinarei ponto por ponto as razões que movemLéviStrauss a sustentar a singular identidadeentremúsica e mito.
Le cru et le cuit é apenas o começo de uma tarefa vastíssima:
determinar a sintaxe da mitologia do continente americano. LéviStrauss rechaça o método da re construção histórica não só por razões
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
de princípio – embora estas sejam fundamentais, como já se viu – mas
porque é impossível determinar os empréstimos que se fizeram umas às
outras as sociedades indo-americanas desde o fim do Pleistoceno até
nossos dias: a América foi uma “Idade Média sem Roma”. Sua
exploração repousa, em troca, sobre esta evidência: os povos que
elaboraram esses mitos “utilizam os recursos de uma dialética de
oposições e mediações dentro de uma comum concepção de mundo”. A
análise estrutural confirma assim as presunções da etnografia, da
arqueologia e da história sobrea unidadeda civilização americana.Não
é difícil inferir que esta investigação desembocará em uma empresa
ainda mais ambiciosa: uma vez determinada a sintaxe do sistema
mitológico americano, será preciso relacioná-la com a dos outros
'sistemas: o indo-europeu, o da Oceania, o da África e o dos povos
mongolóides da Ásia. Aventuro desde já uma hipótese, nada gratuita,
pois a obra de Lévi-Strauss nos ofereceindícios suficientespara postulála: entre o sistema indo-europeu e o americano a relação há de ser de
simetria inversa, tal como o mostra o Ash boy norte-americano e a
Cinderelaeuropéia.Este exemplonão é o único:as constelaçõesde Órion
e do Corvo cumpremfunções inversas embora simétricas entre os índios
do Brasil e os gregos. O mesmo sucede com o costume do charivari
(chocalhada) na Europa Ocidental e o ruído ritual com que os mesmos
índios brasileiros enfrentam os eclipses: em ambos os casos se trata de
uma resposta a uma desunião ou a uma união antinatural, sexual no
Mediterrâneoe astronômicana América do Sul.
A figura do triângulo é central no pensamentode Lévi-Strauss. Por
isto, embora seja temerário, não será ocioso perguntar-se se a velha
oposição entreOrientee Ocidente,o mundo indo-europeue o mongólico,
não se resolve em uma mediação americana anterior à chegada dos
europeus à nosso continente. O sistema mitológico americano poderia
ser o ponto de união, a mediação entre os dois sistemas míticos
contraditórios. Salto sobre uma fácil objeção – “o mundo americano é
parte da área mongolóide” – porque a antigüidade do homem na
América permite considerar as culturas índias como criações originais,
já que não autóctones. A relação entre a Índia e a América seria assim
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
de simetria inversa, não só no espaço como no tempo: o subcontinente
índio é o ponto de convergência real,histórico,entrea área mongolóidee
a indo-européia, do mesmo modo que o continente americano seria o
ponto de coincidência, não-histórico, entre ambas. Outra relação
contraditória: o sistema mitológico indo-europeu predomina na índia,
enquanto que a mitologia americana possui a mesma origem da
mongolóide.A mediação indo-ária carrega o acento no indo-europeu; a
americana, no mongolóide. No caso da América, as perspectivas desta
suposição são portentosas,já que os indo-americanos ignoraram de todo
os sistemas míticos das outras duas áreas. À maneira de Lévi-Strauss se
poderia dizer que as civilizações se comunicam entre si sem que aqueles
que as elaboram se dêemconta. A universalidadeda razão – uma razão
maior que a razão crítica – ficaria demonstrada pela ação de um
pensamentoqueainda há pouco chamamosde irracional ou pre-lógico.
Não sei se Lévi-Strauss aprovaria de todo esta interpretação de
seu pensamento.Eu mesmojulgo-a apressa da. Em Tristes tropiques e
noutras obras alude ao problema das relações entre Ásia e América e se
inclina por uma idéia cada vez mais popular entre os estudiosos: a
indubitáveis analogias entre certos traços da civilização americana, da
China e do sudesteda Ásia, só podem ser conseqüência de imigrações e
contatos culturais entre ambos os continentes. Lévi-Strauss vai mais
longe e aventura a existência de um triântico subártico que uniria a
Escandinávia e o Labrador com o norteda América e a estecom a China
e o sudesteasiático.Esta circunstância,diz, tornaria mais compreensível
o estreito “parentesco do ciclo do Graal com a mitologia dos índios da
América setentrional”: os celtas e a civilização escandinava subártica
teriam sido os transmissores.É estranho que apelepara a história a fim
de explicar estas analogias: toda a sua tentativa se dirige antes a ver
neste tipo de coincidência não a conseqüência da história mas de uma
operação do espírito humano. Seja como for, não creio traí-lo se afirmo
que a sua obra tenta resolver a heterogeneidade das histórias
particulares em uma estrutura atemporal. Às pretensões da história
universal, que inutilmentetenta reduzir a pluralidade das civilizações a
uma só direção ideal – ontem encarnada na Providência e hoje
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
desencarnada na idéia do progresso – opõeuma visão vivificante:não há
povos marginais e a pluralidade das culturas é ilusória porque é uma
pluralidadede metáforas quedizema mesmacoisa. Há um ponto emque
se cruzam todos os caminhos; este ponto não é a civilização ocidental e
sim o espírito humano que obedece,em todas as partes e em todos os
tempos,às mesmasleis.
Le cru et le cuit parte do exame de um mito dos índios Bororo
relativo à origem da tempestade e mostra sua conexão secreta com
outros mitos dos mesmos índios. Depois descobre os nexos deste grupo
de mitos com os das sociedadesvizinhas até explorar um sistemaimenso
que se estendeem um território não menos imenso. Reduz as relaçõesde
cada mito e de cada grupo de mitos a “esquemas de relações” que por
sua vez revelam afinidades ou isomorfismos com outros esquemas e
grupos de esquemas. Nasce assim “um corpo de múltiplas dimensões”
que, sem cessar, se transforma e que torna interminável sua tradução e
sua interpretação. Esta dificuldade não é demasiado grave: o propósito
de Lévi-Strauss não é tanto estudar todos os mitos americanos quanto
decifrar sua estrutura, isolar seus elementos e termos de relação,
descobrir a forma de operação do pensamentomítico. Por outro lado, se
o mito é um objetoemperpétuametamorfose,sua interpretaçãotambém
obedeceà mesma lei. O livro de Lévi-Strauss recolhe e repete,não sem
mudá-los, temas de seus livros anteriores e adianta motivos e
observaçõesque seus livros futuros elaborarão – nunca exatamente,mas
à maneira das variaçõesde um poema.Sua tentativa merecorda,noutro
nível, a de Mallarmé: tanto Un coup de dés como Le cru et le cuit
são aparatos de significações. Esta coincidência não é fortuita:
Mallarmé antecipa muitas tentativas modernas, tanto na esfera da
poesia,da pintura e da música como na do pensamento.Mallarméparte
do pensamento poético (selvagem) até o lógico e Lévi-Strauss do lógico
para o selvagem. A anexação da razão lógica pelos símbolos da poesia
coincide em um momento com a reconquista da lógica sensível pela
razão crítica.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Ao mostrar a relação entre os mitos Bororo e Gê, o antropólogo
francês descobre que todos eles têm como tema, nunca explícito, a
oposição entre o cru e o cozido, a natureza e a cultura. Os mitos do
jaguar e do porco selvagem, associados aos da origem da planta do
tabaco, aludem à descoberta do fogo e à cozedura dos alimentos. Por
meio do sistema de permutaçõesque descrevi acima de forma sumária e
grosseira, Lévi-Strauss passa em revista 187 mitos nos quais se repete
esta dialética de oposição, mediação e transformação. Um após outro,
em uma espécie de dança – poesia e matemática – se sucedem os
símbolos contraditórios: o contínuo e o descontínuo, a vida breve e a
imortalidade, a água e os ornamentos funerários, o fresco e o
corrompido,a terra e o céu,o aberto e o fechado – as aberturas do corpo
humano convertidas em um sistemasimbólico da ingestão e da dejeção–
a rocha e o lenho apodrecido, o canibalismo e o vegetarianismo, o
incesto e o parricídio, a caça e a agricultura, a fumaça e o trovão...Os
cinco sentidos se transformam em categorias lógicas e a esta chave da
sensibilidade se superpõeuma astronômica que se transforma em outra
construída da oposição entre ruído e silêncio, fala e canto. Todos esses
mitos são metáforas culinárias, mas por sua vez a cozinha é um mito,
uma metáfora da cultura.
Três símbolos me chamaram a atenção: o arco-íris, a doninha e o
veneno para a pesca. Os três são mediadores entre a natureza e a
cultura, o contínuo e o descontínuo,a vida e a morte,o cru e o podre.O
arco-íris significa o fim da chuva e a origem da enfermidade;de ambas
as maneiras é um mediador: no primeiro aspecto porque é um emblema
da conjunção benéfica entre céu e terra e no segundo porque encarna a
fatal transição entre a vida e a morte. O arco-íris é um homólogo da
doninha, animal lascivo e pestilento: um atributo a liga com a vida e
outro com a morte (putrefação). O timbó é um veneno que os índios
usam para pescar e assim é uma substância natural utilizada em uma
atividadecultural ambígua (pesca e caça são transformaçõesda guerra).
Nos três símbolos a ruptura ou descontinuidadeessencial entrenatureza
e cultura, cujo exemplo máximo e central é a cozinha, se adelgaça e se
atenua. Seu caráter equívoco não provém só do fato de serem
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
depositários de propriedades contraditórias, mas de que são categorias
lógicas difíceis de pensar: neles a dialética das oposiçõesestá a ponto de
se desvanecer. Por sua própria transparência são, diria, elementos
impensáveis – algo assim como o pensamentoque se pensa. Para recriar
a descontinuidade,o arco-íris se desagrega (origem do cromatismo,que
é uma forma atenuada da continuidadenatural); o veneno nega por sua
função a sua natureza (é uma substância mortífera que dá vida); e a
doninha se transforma,em certos mitos de exaltados e sinistros matizes
sexuais, de homólogo da doença e da “mulher fatal” em nutriz e
introdutora da agricultura. Não é estranho que em um momentode sua
exposição Lévi-Strauss associe o cromatismo do Tristão wagneriano
com o venenoe aos dois com infortúnio de Isolda,a doninha.
O verdadeiro tema de todos esses mitos é a oposição entre a
cultura e a natureza tal como se expressa na criação humana por
excelência: a cocção dos alimentos pelo fogo domesticado. Tema
prometéicode múltiplas ressonâncias:cisão entreos deusese os homens,
a vida contínua do cosmo e a vida breve dos humanos, mas também
mediação entrea vida e a morte,o céu e a água, as plantas e os animais.
Seria ocioso enumerar todas as ramificações desta oposição, pois
engloba todos os aspectos da vida humana. É um tema que nos conduz
ao centro da meditação de Lévi-Strauss: o lugar do homemna natureza.
A posição da cozinha como atividade que justamente separa e une o
mundo natural e o humano não é menos central que a proibição
universal do incesto. Ambas estão prefiguradas pela linguagem,que é o
que nos separa da natureza e o que nos une a ela e a nossos semelhantes.
A linguagem significa a distância entre o homem e as coisas tanto
quanto a vontade de anulá-la. A cozinha e o tabu do incesto são
homólogos da linguagem.A primeira é mediação entreo cru e o podre,o
mundo animal e o vegetal;o segundo entrea endogamia e a exogamia,a
promiscuidade dissoluta e o onanismo do uno. O modelo de ambos é a
palavra,ponteentreo grito e o silêncio,a não significação da natureza e
a insignificância dos homens. Os três são crivos que filtram o mundo
natural anônimo e o transmutam em nomes, signos e qualidades.
Transformam a torrente amorfa da vida em quantidade discriminada e
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
em famílias de símbolos.Nos três o tecido da rede(crivo) é composto de
uma substância impalpável: a morte. Lévi-Strauss quase não a cita.
Talvez o proíba o seu orgulhoso materialismo. Ademais, de certo ponto
de vista, a morte é apenas outra manifestação da imortal matéria
vigente. Mas, como não ver nessa necessidade de diferenciar entre
natureza e cultura para em seguida introduzir um termo de mediação
entreambas,o ecoe a obsessão de nos sabermosmortais?
A morteé a verdadeira diferença,a raia divisória entreo homeme
a corrente vital. O sentido último de todas essas metáforas é a morte.
Cozinha, tabu do inces to e linguagem são operações do espírito, mas o
espírito é uma operação da morte. Embora a necessidade de sobreviver
pela alimentação e pela procriação seja comuma todos os seres vivos, os
artifícios com que o homemenfrenta esta fatalidadeo convertemem um
ser à parte. Sentir-se e saber-se mortal é ser diferente: a morte nos
condena à cultura. Sem ela não haveria nem artes nem ofícios:
linguagem, cozinha e regras de parentesco são mediações entre a vida
imortal da natureza e a brevidade da existência humana. Aqui LéviStrauss coincide com Freud e, noutro extremo,com Hegel e com Marx.
Mais próximo dos dois últimos do que do primeiro, em um segundo
movimento o seu pensamento procura dissolver a dicotomia entre
cultura e natureza – não pelo trabalho, pela história ou pela revolução,
mas pelo conhecimentodas leis do espírito humano. O mediador entre a
vida breve e a imortalidade natural é o espírito: um aparelho
inconscientee coletivo, imortal e anônimo como as células. Por isto me
parece ser um homólogo do arco-íris, do veneno para pescar e da
doninha. Como esses três elementos vivazes e fúnebres, por sua origem
está do lado da natureza e por sua função e seus produtos do lado da
cultura. Nele se apaga quase completamente a oposição entre morte e
vida, a significação distinta do homem e a não significação infinita do
cosmo. Diante da morte o espírito é vida e diante desta, morte.Desde o
principio o entendimento humano esbarrou diante da impossibilidade
lógica de explicar o nada pelo ser ou o ser pelo nada. Talvez o espírito
seja o mediador.Na esfera da física se chega a conclusõessemelhantes;o
Professor John Wheeler, em uma recente reunião da Physical Society,
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
afirma que é impossível localizar um acontecimento no tempo ou no
espaço:antes e depois, aqui e ali são noções que carecemde sentido. Há
um ponto no qual “something is nothing and nothing is something”... O
tema do espírito e o do sentido da significação são gêmeos,mas antes de
abordá-los devo examinar as relações entre o mito, a música e um
hóspede não convidado a esse festim de Esopo que é a obra de LéviStrauss: a poesia.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
3.
INTERMÉDIO DISCORDANTE.
DEFESA DE UMA CINDERELA E OUTRAS DIVAGAÇõES. UM
TRIANGULO VERBAL: MITO, ÉPICA E POEMA.
Le cru e le cuit é um livro de antropologia que adota a forma de
um concerto. Não é a primeira vez que uma obra literária se serve de
termos e formas musicais,embora,de modo geral,tenhamsido os poetas
a se servirem da música e não os homens de ciência. Certo, desde
Apollinaire e Picasso a relação entrepoesia e pintura foi mais íntima do
que a entre poesia e música. Creio que agora a relação está a ponto de
mudar, tanto pela evolução da música contemporânea como pelo
renascimento da poesia oral. Ambas, música e poesia, encontrarão nos
novos meios de comunicação um terreno de união. Além disso, vários
poetas modernos – Mallarmé,Eliot e, entre nós, José Gorostiza – deram
às suas criações uma estrutura musical, enquanto outros – Valéry,
Pellicer,Garcia Lorca – acentuaram a relação entre poesia e dança. Por
sua vez os músicos e os dançarinos sempre viram nas formas poéticas
um modelo ou arquétipo de suas criações. O parentesco entre poesia,
música e dança é natural: as três são artes temporais. Lévi-Strauss
justifica a forma de seu livro pela índole da matéria que estuda e pela
própria natureza de seu método de interpretação: acredita que existe
uma verdadeira analogia; não, como seria de esperar, entre a poesia e o
mito,mas entreo mito e a música.E mais ainda:na esfera da análisedos
mitos se apresentam “problemas de construção para os quais a música
já inventou soluções”. Deixo de lado esta afirmação enigmática e me
limitarei a discutir as razões que o levam a postular uma relação
particular entreo pensamentomítico e o musical.
O fundamento de sua demonstração se condensa nesta frase:
“Música e mito são linguagens que transcendem, cada um à sua
maneira, o nível da linguagem articulada”. Esta afirmação provoca
imediatamente duas observações. Em primeiro lugar, a música não
transcende a linguagem articulada pela simples razão de que o seu
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
código ou clave – a gama musical – não é lingüística. Em um sentido
estrito a música não é linguagem,embora seja lícito chamá-la assim por
metáfora ou por extensão do termo.Como as outras artes não verbais,a
música é um sistema de comunicação análogo, e não idêntico, à
linguagem.Para transcender algo há que passar por esse algo e ir mais
além:a música não transcendea linguagemarticulada porquenão passa
por ela. A segunda observação: “como o mito, embora em direção
contrária, a poesia transcendea linguagem”.9 Graças à mobilidade dos
signos lingüísticos,as palavras explicam as palavras: toda frase diz algo
que podeser dito por outra frase,todo significado é um querer dizer que
pode ser dito de outra maneira. A “frase poética” – unidade rítmica
mínima do poema,cristalização das propriedadesfísicas e semânticas da
linguagem– nunca é um querer dizer: é um dizer irrevogávele final, em
que o sentido e som se fundem. O poema é inexplicável, exceto por si
mesmo. Por um lado, é uma totalidade indissociável e uma mudança
mínima altera toda a composição; por outro lado, é intraduzível: além
do poema há apenas ruído e silêncio, um sem-sentido ou uma semsignificação que as palavras não podem nomear. O poema aponta para
uma região a que aludemtambém,com a mesma obstinação e a mesma
impotência,os signos da música.Dialética entresom e silêncio,sentido e
não-sentido, os ritmos musicais e poéticos dizem algo que só eles podem
dizer, sem dizê-lo nunca de todo. Por isso, corno a música, o poema “é
uma linguagem inteligível e intraduzível”. Sublinho que não só é
intraduzível para as outras línguas como para o idioma em que está
escrito. A tradução de um poema é sempre a criação de outro poema;
não é uma reproduçãomas uma metáfora equivalentedo original.
Em suma, a poesia transcendea linguagemporque transmuta esse
conjunto de signos móveis e intercambiáveis que é a linguagem em um
dizer último. Tocada pela poesia, a linguagem é mais plenamente
linguagem e, simultaneamente,cessa de ser linguagem:é poema. Objeto
composto de palavras, o poema desembocaem uma região inacessível às
palavras: o sentido se dissolve,ser e sentido são o mesmo...Lévi-Strauss
Em El arco y la lira (1956) ocupei-me longamente do tema, assim com, das relações entre mito e
poema.Nesta passagem,e emoutras,repetireiàs vezestextualmente,o quedissenesselivro.
9
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
reconheceem parte o que eu disse:“Na linguagema primeira cifra nãosignificante (a fonológica) é meio e instrumento de significacão da
segunda; a dualidade se restabelece na poesia, que recobra o valor
virtual da significação da primeira para integrá-la na segunda...”
Admite que a poesia muda a linguagem mas pensa que, longe de
transcendê-la, se encerra assim mais totalmenteem suas malhas: desce
do sentido aos signos sensíveis, regressa da palavra ao fonema. Direi
somente que me parece um perverso paradoxo definir desta maneira a
atividadede Dante,Baudelaireou Coleridge.
Música e mito “requerem uma dimensão temporal para
manifestar-se”.Sua relação com o tempoé peculiar porqueo afirmamsó
para negá-lo. São diacrônicos e siri crônicos: o mito conta uma história
e, como o concerto, se desenvolve no tempo irreversível da audição; o
mito se repete,se reengendra,é tempo que volve sobre si mesmo – o que
passou está passando agora e voltará a passar – e a música “imobiliza o
tempo que transcorre... de modo que ao escutá-la acedemos a uma
espécie de imortalidade”. Numa obra anterior Lévi-Strauss já tinha
sublinhado a dualidade do mito, que corresponde à distinção entre
língua e fala, estrutura atemporal e tempo irreversível da elocução. A
analogia entre música e mito é perfeita,só que pode estender-se à dança
e, de novo, à poesia. As relações entre dança e música são tão estreitas
que me poupam toda explicação. No caso da poesia se reproduz a
dualidade sincrônica e diacrônica da linguagem, embora em um nível
mais elevado, já que a segunda clave ou cifra, a significativa, dá
condições para que o poeta construa um terceiro nível não sem
semelhanças com o da música e, está claro, com o que Lévi-Strauss
descreveem Le cru et le cuit. O tempo do poema é cronométrico e, do
mesmomodo,é outro tempoqueé a negação da sucessão.Na vida diária
dizemos: o que passou, passou; mas no poema aquilo que passou
regressa e encarna outra vez. O poeta, diz o centauro Ouiron a Fausto,
não está encadeado no tempo:fora do tempo Aquiles encontrou Helena.
Fora do tempo? Melhor dizer, no tempo original...Inclusive nos poemas
épicos e nas novelas históricas o tempo da narrativa escapa à sucessão.
O passado e o presente dos poetas não são os da história e os do
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
periodismo;não são aquilo que foi nem aquilo que passa, mas o que está
sendo, o que se está fazendo. Gesta, gestação: um tempo que se
reencarna e se re-engendra. E reencarna de duas maneiras: no momento
da criação e no da recriação, quando o leitor ou o ouvinte revive as
imagens e ritmos do poema e convoca esse tempo flutuante que
regressa...“Nem todos os mitos são poemas mas, nestesentido,todos os
poemas são mitos”. (El arco y la lira, p. 64.) Poemas e mitos
coincidemem transmutar o tempo em uma categoria temporal especial,
um passado sempre futuro e sempre disposto a ser presente, a
presentificar-se. Assim pois, as relaçõesda música com o tempo não são
essencialmentedistintas das da poesia e da dança. A razão é clara: são
três artes temporais que,para se realizar,devemnegar a temporalidade.
As artes visuais repetemesta relação dual, não com o tempo mas
com o espaço:um quadro é um espaço que nos remetea outro espaço.O
espaço pictórico anula o espaço real do quadro; é uma construção que
contém um espaço possuidor de propriedades análogas às do “tempo
congelado” da música e da poesia. Um quadro é um espaço em que
vemos outro espaço; um poema é um tempo que transparece outro
tempo,fluido e imóvel juntamente.A arquitetura, mais poderosa do que
a pintura e a escultura, altera ainda mais radicalmenteo espaço físico:
não só vemos um espaço que não é real como vivemos e morremos nesse
segundo espaço.A estupa10 é uma metáfora do monteMeru, mas é uma
metáfora encarnada ou, mais exatamente,petrificada:nós a tocamos e a
vemos como um verdadeiro monte.O teatro, a dança e o cinema – artes
temporais e espaciais, visuais e sonoras – combinam essa parelha de
dualidades:o palco e a tela são um espaço que cria outro espaço sobre o
qual desliza um tempo cromático que é reversível como o da poesia, da
música e do mito.
A música e o mito “operama partir de um duplo contínuo,externo
e interno”. O primeiro consiste, no caso do mito, em “uma série
teoricamenteilimitada de ocorrências históricas ou tidas por tais, dentre
10
Estupa ou Stupa, templo budístico indiano, construído de forma hemisférica, à semelhança de uma
cúpula. Templos de caráter funerário,as estupas ergueram-se na índia até por volta do século XII. (N. do
T.)
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
as quais cada sociedade extrai um número pertinente de
acontecimentos”; pelo que diz respeito à música, cada sistema musical
escolhe uma gama entre a série de sons fisicamente realizáveis. quase
desnecessário observar queo mesmoacontececom a dança:cada sistema
seleciona, dentro dos movimentos do corpo humano e mesmo dos
animais, alguns que constituem o seu vocabulário. A dança de Kerala
(katakali) serve-se de uma gama mímica, enquanto que na européia há
uma espécie de sintaxe do salto e da contorsão. Na poesia sânscrita se
louva a graça elefantina das bailarinas e no Ocidente o cisne e outras
aves são os modelos de comparação da dança. Na poesia o contínuo
sonoro da fala se reduz a alguns metros e é sabido que cada língua
prefereapenas um ou dois: o octossílaboe o hendecassílaboemespanhol,
alexandrino e eneassílabo em francês. Não é apenas isto: cada sistema
de versificação adota um método distinto para constituir o seu cânone
métrico:versificaçãoquantitativa na antigüidadegreco-romana,silábica
nas línguas românicas e acentuai nas germânicas. Como a clave sonora
é tambémsemântica, cada sistema é composto por uma série de regras
estritas que operamno nível semântico como a versificação no sonoro. A
arte de versificar é uma arte de dizer que não combina todos os
elementosda linguagem,mas um grupo reduzido.Enfim,mitos e poemas
se assemelham de tal modo que não só os primeiros empregam com
freqüência as formas métricas e os procedimentos retóricos da poesia
como a própria matéria dos mitos – “os acontecimentos” a que alude
Lévi-Strauss – são também matéria de poesia. Aristóteles chama mitos
aos argumentos ou histórias das tragédias. Ao escrever a Fábula de
Polifemo y Galatea, Góngora não só nos presenteou com um poema
que ocupa na poesia do século XVII o lugar que Un coup de dés ocupa
na do século XX, como nos ofereceuuma nova versão do mito do cíclope.
O “contínuo interno” reside no tempo psicofisiológico do ouvinte.
A longitude da narrativa, a recorrência dos temas, as surpresas,
paralelismos, associações e ruptu ras provocam no auditório reações de
ordem psíquica e fisiológica, respostas mentais e corporais: o interesse
do mito é “palpitante”. A música afeta de maneira ainda mais
acentuada nosso sistema visceral: carreira, salto, imobilidade,encontro,
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
desencontro, queda no vazio, subida ao cimo. Não sei se Lévi-Strauss
notou que todas estas sensações podem se reduzir a esta dualidade:
movimento e imobilidade.Estas duas palavras evocam a dança, que é a
verdadeira parelha da música. A dança nos convida a nos
transformarmos em música: pede-nos que a acompanhemos; e a música
nos convida a dançar: pede-nos que a encarnemos. O feitiço da música
provém de que o compositor “retira aquilo que o ouvinte espera ou lhe
dá algo que não esperava”. A palavra surpresa diz de maneira muito
imperfeita este sentimento de “espera enganada ou recompensada mais
além do previsto”. A mesma dialética entre o esperado e o inesperado se
desenvolve na poesia. É uma característica comum a todas as artes
temporais e que faz parte inclusiveda oratória: um jogo entreo antes,o
agora e o depois. Ao nível sonoro os ouvintes esperamuma rima ou uma
série de sons e se assombram de que o poeta resolva a seqüência de
forma imprevista. Nada me fez mais viva esta sensação do que escutar
uma recitação de poemas em urdu, uma língua que desconheço: o
auditório escutava com avidez e aprovava ou se desconcertava quando o
poeta lhe oferecia algo distinto do que aguardava. Etiemble diz que a
poesia é um exercício respiratório e muscular em que intervém tanto a
atividadedos pulmõescomo a da língua, dos dentese dos lábios. Claudel
e Whitman insistiram sobreo ritmo de inspiração e expiração do poema.
Todas estas sensações as reproduz o ouvinte e o leitor. Ora, como em
poesia “the sound must seem an echo of the sense”, esses exercícios
fisiológicos possuem um significado; repetição e variação, ruptura e
união são procedimentosquegeram reaçõesao mesmotempopsíquicas e
físicas. A dialética da surpresa, diz Jakobson, foi definida pelo poeta
Edgar Allan Poe,“o primeiro que valorizou, do ponto de vista métrico e
psicológico o prazer que gera o inesperado ao surgir do esperado, um e
outro impensáveissemo seu contrário”.
Na música e nos mitos há “uma inversão de relação entre emissor
e receptor, 'pois o segundo se descobre significado pela mensagem do
primeiro: a música vive em mim, eu me escuto através dela...O mito e a
obra musical são como um diretor de orquestra cujos ouvintes fossemos
silenciosos executantes”.Outra vez:poeta e leitor são momentos de uma
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
mesma operação; depois de escrito o poema, o poeta fica só e são os
outros, os leitores,os que se recriam a si mesmos ao recriar o poema.A
experiência da criação se reproduz em sentido inverso:agora o poemase
abre diante do leitor. Ao penetrar nessas galerias transparentes,
desprende-se de si mesmo e se interna no “outro ele mesmo”, até então
desconhecido. O poema nos abre ao mesmo tempo as portas da
estranheza e do reconhecimento:eu sou esse,eu estiveaqui, essemar me
conhece, eu te conheço, em teus pensamentos vejo a minha imagem
repetida mil vezes até a incandescência... O poema é um mecanismo
verbal queproduz significados só e graças a um leitor ou um ouvinteque
o coloca em movimento. O significado do poema não está no que quis
dizer o poeta mas no que diz o leitor por meio do poema.O leitor é este
“silencioso executante”de quefala Lévi-Strauss. É um fenômenocomum
a todas as artes: o homemse comunica consigo mesmo,se descobree se
inventa,por meio da obra de arte.
Se os mitos “não têm autor e existemapenas encarnados em uma
tradição”, o problema que a música apresenta é mais grave: tem um
autor mas ignoramos como se escrevem as obras musicais. “Não
sabemos nada das condições mentais da criação musical”: por que só
alguns secretam música e são inumeráveis os que a amam? Esta
circunstância e o fato de que “entre todas as linguagens só a musical
seja inteligível e intraduzível”, convertem o compositor “em um ser
semelhante aos deuses e a própria música no mistério supremo das
ciências humanas – um mistério que resiste às mesmas e que guarda as
chaves de seu progresso”. Lévi-Strauss chama os aficcionados da
pintura de “fanáticos”; este parágrafo é um exemplo de como o
fanatismo,agora musical,ajudado pela fatal tendência à eloqüência das
línguas latinas, pode extraviar os espíritos mais altos. O mistério da
criação musical não é mais recôndido nem mais tenebroso do que o
mistério da criação pictórica, poética ou matemática. Ainda não
sabemos porque alguns homens são Newton e outros Ticiano. O próprio
Freud disse que pouco ou nada sabia do processo psicológico da criação
artística. A diferençanumérica entreos criadores de obras musicais e os
aficcionados da música se repeteem todas as artes e ciências:nem todos
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
são Whitman, Darwin ou Velázquez,mas muitos compreendeme amam
as suas obras. Tampouco é exato que a música seja a única linguagem
“inteligívele intraduzível”.Já dissequeo mesmosucedecom a poesia e a
dança. Acrescento agora os exemplos da pintura e da escultura: como
traduzir a arte negra, a da antigüidade Greco-romana ou a japonesa?
Cada “tradução” é uma criação ou transmutação que se chama
cubismo, arte renascentista, impressionismo. Nenhuma obra de arte é
traduzívele todas são inteligíveis– se possuímos a chave.
Lévi-Strauss não faz uma distinção, a meu ver capital, entre clave
(código ou cifra) e obra. A clave da música é mais ampla do que a da
poesia, mas é menos do que a da pintura. O sistema musical europeu
repousa na gama de notas e é mais extenso do que o sistema poético
francês, baseado na estrutura fonológica dessa língua; contudo, basta
passar de fronteira musical e viver na China ou na índia para que a
música ocidental dixe de ser inteligível. A linguagem das artes visuais e
mais extensa – não mais universal – porque sua clave, como diz LéviStrauss, se “organiza no seio da experiência sensível”. A clave da
pintura – cores, linhas, volumes -- é mais sensível do que intelectual e,
portanto, é acessível a maior número de homens, independentementede
sua língua e de sua civilização. À medida que aumenta a perfeição e a
complexidade da clave, sua popularidade decresce. A clave das
matemáticas é menos extensa e mais perfeita do que a fala corrente.A
clave lingüística, pela mesma razão de perfeição e de complexidade, é
menos extensa do que a musical e assim sucessivamente até chegar à
dança,à pintura e à escultura.Dir-se-á quea música usa uma linguagem
própria “e que não é suscetível de nenhum uso geral”, enquanto que as
palavras do poeta não são distintas das do comerciante,do clérigo ou do
revolucionário. Repetimos: a música não é linguagem articulada,
característica que a une à pintura e às outras artes não-verbais. Neste
sentido, a linguagem das cores e das formas também é um domínio
exclusivo da pintura, embora sua clave seja menos elaborada e perfeita
que a da música.Portanto,a primeira distinção quese devefazer é entre
estruturas verbais e estruturas não-verbais. Por ser a linguagem o mais
perfeito dos sistemas de comunicação, as estruturas verbais são o
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
modelodas não-verbais. No universo propriamentelingüístico a poesia e
a matemática se encontram em situação de oposição simétrica: na
primeira, os significados são múltiplos e os signos inamovíveis; na
segunda, es signos são movíveis e o significado unívoco. É claro que a
música e as outras artes não-verbais participam desta característica da
poesia. A ambigüidadeé o signo distintivo da poesia e esta propriedade
poética converteemartes a música,a pintura e a escultura.
Se das claves se passa às obras, o juízo de Lévi-Strauss torna-se
ainda mais injusto. A universalidade de uma obra não depende de sua
clavemas de sua mensagem.Explico-me.Aceitarei por um momentoessa
infundada pretensão que vê na linguagem musical um sistema de
comunicação mais perfeito que o lingüístico: Debussy é mais perfeito e
universal do que Shakespeare,Goya ou os relevos de Baharut que, com
tanta razão, o sábio francês admira? Com uma clave“sensível” El Greto
cria uma obra espiritual e Mondrian uma pintura intelectual que se
limita com a geometria e a teoria binária da cibernética.Com uma clave
que, segundo Lévi-Strauss, deve pouco aos sons naturais, Stravinski
escreve a Sagração da Primavera, poema das forças e dos ritmos
naturais. A universalidadee o caráter das obras não dependeda clave e
sim desseimponderável,verdadeiro mistério,a que chamamos de arte ou
criação. A confusão entre clave e obra talvez explique os desdenhosos
juízos de Lévi-Strauss sobre a pintura abstrata, a música serial e a
concreta. Sobre esta última seria preciso dizer que,como a eletrônica,é
parte da busca de uma estrutura sonora inconsciente, ou seja, de
unidades concretas naturais. Essa tentativa recorda a “lógica concreta
das qualidades sensíveis” de La pensée sauvage . Aliás, em um dos
livros mais poéticos e estimulantesque li nos últimos anos (Silence) diz
John Cage: “A forma da música nova é diversa da antiga, mas possui
uma relação com as grandes formas do passado, a fuga e a sonata, do
mesmo modo que há uma relação entre estas duas últimas”. Em arte
toda ruptura é transmutação.
Páginas adiante, guiado pelo demônio da analogia, Lévi-Strauss
adverte na música as seis funções que os lingüistas atribuem às
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
mensagens verbais. Essas seis funções, repetimos, aparecemtambémna
dança e, está claro, nas outras artes. Embora música e dança não sejam
linguagemarticulada,são sistemasde comunicaçãomuito semelhantesà
linguagem e daí que sua mensagem seja o equivalente de uma das
funções lingüísticas: a função poética. Segundo Jakobson, esta função
não está centralizada no emissor, no receptor, no contato entre ambos,
no contexto da mensagem ou na clave,mas sobre a própria mensagem.
Assim, a função poética distingue os afrescos de Ajanta dos quadrinhos
dominicais:são arte não porquenos contam as vidas anteriores do Buda
– tarefa que os jatakas cumprem de sobra – mas porque são pintura.
Nessa mensagem visual aparecem outras funções – a emotiva, a
denotativa etc.– mas a mensagemé sobretudopictórica e pede-nos quea
recebamoscomo tal. Ora, o predomínio da função poética na poesia não
implica que em um poema não apareçam as outras funções; do mesmo
modo,uma mensagemverbal podeutilizar os recursos da função poética
sem que isto signifique que seja um poema. Exemplos: os anúncios
comerciais e, no outro extremo,os mitos. O mesmo livro de Lévi-Strauss
revela que os mitos são parte da função poética: os mitos são objetos
verbais que utilizam,portanto,uma clavelingüística;esta primeira clave
(que implica dois níveis: o fonológico e o significativo ou semântico)
serve ao pensamento mítica para elaborar uma segunda clave; por sua
vez,Le cru et le cuit ofereceuma terceira claveque permitetraduzir a
“lógica concreta” do mito em um sistema de símbolos e proposições
lógicas. Esta tradução é uma transmutação e tem mais de uma
semelhança com a tradução poética, tal como Valéry a definiu: com
meios diferentes produzir efeitos ou resultados semelhantes. Talvez se
pudessereplicar que a minha analogia esqueceuma diferença:enquanto
a tradução poética se faz de uma clavelingüística a outra, a tradução de
Lévi-Strauss implica na passagemde um sistema para outro sistema,da
narrativa mítica aos símbolos das matemáticas e às proposições da
ciência. Não creio: em ambos os casos a tradução é transmutação e em
ambos não abandonamos a esfera da linguagem – algo que não ocorre
com a música. Mitos e equações se traduzem como os poemas: cada
tradução é uma transformação. A transformação é possível porque
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
mitos, poemas e símbolos matemáticos e lógicos operam como sistemas
de equivalências.
A função poética (cito outra vez Jakobson) translada o princípio
da equivalência do eixo da seleção ao da combinação. A formulação de
toda mensagem verbal compreende duas operações: a seleção e a
combinação. Pela primeira, escolhemos a palavra mais adequada entre
um grupo de palavras: “Seja menino o tema da mensagem; o locutor
seleciona entre garoto, pequeno, rapazinho etc.; depois repete a
operação com o complemento: dorme, sonha, repousa, está quieto; em
seguida combina as duas seleções:o menino dorme.A seleção se realiza
sobre a base de semelhança ou dessemelhança,sinonímia ou antonímia,
enquanto que a combinação,a construção da seqüência,repousa sobrea
contigüidade”. A poesia transtorna essa ordem e “promove a
equivalência ao nível de procedimento constitutivo da seqüência”. A
equivalência opera em todos os níveis do poema:o sonoro (rima, metro,
acentos, aliterações etc.) e o semântico (metáforas e metonímias). A
metalinguagem também utiliza “seqüências de unidades equivalentes e
combina expressões sinônimas em frases-equações: A igual a A. Mas
entre poesia e metalinguagem há uma oposição diametral: na
metalinguagem utiliza-se a seqüência para construir uma equação; na
poesia, a equação serve para se construir uma seqüência”.11 O livro de
Lévi-Strauss é uma metalinguagem e, ao mesmo tempo, um mito de
mitos; pela primeira, serve-se dos mitemas para construir proposições
que são, de certo modo, equações; pela segunda, participa da função
poética, pois se serve das equações para elaborar seqüências. No caso
dos mitos queLévi-Strauss examina a ordemse inverte:secundariamente
são uma metalinguagem e primordialmente se inscrevem dentro da
função poética. Os mitos participam da poesia e da filosofia, sem ser
nemum nemoutro.
A noção de função poética permite estabelecer a conexão íntima
entre mito e poema.Se se observa a estrutura de um e de outro advertese imediatamente uma nova semelhança. Lévi-Strauss fez uma
11
ROMAN JAKOBSON, “Linguistic and Poetics”,In Style and Language, ediçãode T. Sebeok,1960.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
contribuição fundamental ao descobrir que as unidades mínimas de um
mito são maiores que as do discurso: frases ou orações que cristalizam
feixes de relações.No poema se encontra um equivalentedos mitemas: o
que chamei,a falta de melhor expressão,“frase poética”.A diferençada
prosa, a unidade desta frase,o que a constitui como tal e a converteem
imagem,não é (unicamente)o sentido, mas o ritmo. Ou seja:o poema é
compostode frases ou unidadesmínimas nas quais o som e o sentido são
uma e mesma coisa. São frases que se resolvem em outras frases em
virtude do princípio de equivalência a que Jakobson alude e que
convertem o poema em um universo de ecos e de analogias. Poemas e
mitos nos abremas portas do bosquedas semelhanças.
Procurarei agora assinalar a diferença entre mito e poema. Em
relação com os signos verbais o mito se acha em uma posição
eqüidistante da poesia e da matemática: como na primeira, seu
significado é plural; como na segunda, seus signos são mais facilmente
intercambiáveis que na poesia. Dentro da função poética,o poemalírico
se encontra emum extremo,e no oposto,o mito.Entre o poemalírico e o
mito há. um termo intermédio: a poesia épica. É sabido que a poesia
épica serve-se do mito como matéria-prima ou argumentoe a decadência
do gênero épico (ou melhor: sua metamorfose em romance) se deve ao
relativo ocaso dos mitos no Ocidente.Digo relativo porque nossos mitos
mudaram de forma e se chamam utopias políticas, tecnológicas,
eróticas. Esses mitos são a substância de nossos romances e dramas –
desde Don Juan, Fausto e Rastignac até Swan, Kyo, Nadja e Tim
Finnegan. Os empréstimos entre mito e épica são inumeráveis e quase
todos os recursos do primeiro são usados pela segunda e vice-versa. Em
suma, o mito se situa nas fronteiras da função poética, um pouco mais
além do romance, do poema épico, do conto, das lendas e de outras
formas mistas.
O mito não é poema,nem ciência, nem filosofia, embora coincida
com o primeiro por seus processos (função poética), com a segunda por
sua lógica e com a última por sua ambição de nos ofereceruma idéia do
universo. Assim pois, do mesmo modo que a épica traduz o mito a
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
equivalências fixas (metro e metáforas), a filosofia o traduz a conceitos
e a ciência a seqüências de proposições.O livro de Lévi-Stratíss é,por tal
razão,“um mito dos mitos americanos”,um poema,e,simultaneamente,
um livro de ciência...Confesso que não posso entender sua impaciência
diante da poesia e dos poetas. Certa vez ouvi José Caos dizer que a
soberbado filósofo é uma paixão contraditória,já queé conseqüência de
sua . visão total do universo e do exclusivismodessa visão. Certo:a visão
do filósofo é um todo emquefaltam muitas coisas. Lévi-Strauss se curou
dessa soberba com o antídoto da humildade do homem de ciência, mas
ainda lhe resta certo mal humor filosófico,diantedesseser estranho que
é a poesia. De minha parte dou-me conta de que dediquei demasiadas
páginas a este tema e reconheço, tardiamente, que também incorri no
pecado de fanatismo. Não obstante, direi algo mais: ao escrever essas
linhas escuto as primeiras notas de uma “raga” do norte da índia: não,
em nenhum momento Le cru et le cuit me fez pensar na música. O
prazer que me deu esse livro me evoca outras experiências: a leitura de
Ulysses e a das Soledades, a de Un coup de dés e a de A la
recherche du temps perdu.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
4.
QUALIDADES E CONCEITOS:
PARES E PARELHAS, ELEFANTES E TIGRES. A RETA E O
CÍRCULO. OS REMORSOS DO PROGRESSO. INGESTÃO,
CONVERSÃO, EXPULSÃO. O FIM DA IDADE DE OURO E O
COMEÇO DA ESCRITURA.
A obra de Lévi-Strauss estende um arco que urre duas paisagens
contrárias: a natureza e a cultura. Dentro da segunda se repete a
oposição: La pensée sauvage descreve o pensamento das sociedades
primitivas e o compara com o das históricas. Esclareço que o primeiro
não é o pensar dos selvagensmas uma conduta mental presenteemtodas
as sociedades e que nas nossas se manifesta principalmente nas
atividadesartísticas.Portanto,o adjetivohistórico não quer dizer que os
primitivos não tenham história; do mesmo modo que em nosso mundo o
pensamento selvagem ocupa um lugar marginal e quase subterrâneo, a
noção de história não ocupa, entre os primitivos, a hierarquia suprema
que lhe outorgamos. Esta repugnância em relação ao pensar histórico
não elimina o rigor, o realismo e a coerência do pensamento selvagem.
Mais uma vez, sua lógica não difere da nossa no que diz respeito à sua
forma de operação,embora o sejapelos objetose fins a quese aplicamos
seus raciocínios. Por exemplo, entre os primitivos os sistemas de
classificação compreendidos dentro do rótulo geral de taxionomia não
são mais exatos do que os de nossas ciências naturais e são mais ricos.
Um e outro, o herbolário australiano e o botânico europeu,introduzem
uma ordem na natureza, mas enquanto o primeiro tem em conta antes
de tudo as qualidades sensíveis da planta – odor, cor, forma, sabor – e
estabeleceuma relação de analogia entre essas qualidades e a de outros
elementos naturais e humanos, o homem de ciência mede e busca
relações de ordem morfológica e quantitativa entre os exemplares, as
famílias, os gêneros e as espécies. O primeiro tende a elaborar sistemas
totais e o segundo especializados. Tanto num como noutro caso trata-se
de relaçõesque se expressampor esta fórmula:isto é como aquilo ou isto
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
não é como aquilo. Já foi dito muitas vezesque o pensamentoselvagemé
irracional, global e qualitativo enquanto que o da ciência é exato,
conceituai e quantitativo. Esta oposição, tema constante das querelas
antropológicas no princípio do século, revelou-se ilusória. A química
moderna “reduz a variedade dos perfumes e sabores à combinação, em
proporções diferentes, de cinco elementos: carbono, hidrogênio,
oxigênio, enxofre e, azoto”. Surge assim um domínio até agora
inacessível à experimentação e investigação: esse mundo de
características oscilantesque só são perceptíveis e definíveis por meio do
conceito de revelação.O homemde ciência do passado media,observava
e classificava; o primitivo sente, classifica e combina; a ciência
contemporânea penetra, como o primitivo, no mundo das qualidades
sensíveis graças à noção de combinação, simetria e oposição. As
taxionomias dos primitivos não são místicas nem irracionais. Ao
contrário, seu método não difere do dos computers: são quadros de
relações
A magia é um sistema completo e não menos coerente consigo
mesmo que a ciência. A distinção entre ambas reside “na natureza dos
fenômenos a que uma e outra se aplicam”. Por sua vez, esta diferença é
resultado de outra: “as condições objetivas em que aparecem o
conhecimento mágico e o científico”. Este último explica que a ciência
obtenha melhores resultados que a magia. Se esta observação é exata (e
creio que é) a diferença entremagia e ciência seria, em primeiro lugar, a
precisão, a exatidão e a finura, não de nossos sentidos nem de nossa
razão, mas de nossos instrumentos, e em segundo lugar, as finalidades
distintas da magia e da ciência. No que diz respeito ao primeiro item,já
se verá que não é tão grande como se acredita a inferioridade técnica e
operatória do pensamento selvagem e que, suas conquistas não foram
menos importantes que as da ciência. A segunda observação nos coloca
diante de um problema de outra índole: a orientação contraditória das
sociedades.Mais adiante tratarei destetema capital; aqui direi somente
que a magia coloca problemas que a ciência ignora ou que, por
enquanto,preferenão tocar. Neste sentido pode parecer impaciente,e o
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
é,mas não o serão também,e com tão escassas esperanças de êxito como
ela,as religiõese as filosofias das sociedadeshistóricas?
Magia e ciência procedem por operações mentais análogas. Em
diversos capítulos brilhantes e árduos Lévi-Strauss analisa o sistema do
totemismo – cuja existência autônoma lhe pareceum erro de perspectiva
de seus predecessores – para pôr em relevo as características essenciais
desta “lógica concretadas qualidadessensíveis”.Em uma forma quenão
é essencialmente distinta da nossa o primitivo estabeleceuma relação
entre o sensível e o inteligível. O primeiro nos remete à categoria de
significantee o segundo à de significado:as qualidadessão signos que se
integram em sistemas significativos por meio de relações de oposição e
semelhança.Longe de estar submergido emum mundo obscuro de forças
irracionais, o primitivo vive em um universo de signos e mensagens.
Desse ponto de vista está mais próximo da cibernética que da teologia
medieval. Não obstante, há algo que nos separa deste mundo: a
afetividade. O selvagem se sente parte da natureza e afirma sua
fraternidade com as espécies animais. Em troca, após nos termos
acreditado filhos de deuses quiméricos, afirmamos a singularidade e a
exclusividadeda espéciehumana por ser a única quepossui uma história
e que o sabe. Mais sóbrios e mais sábios, os primitivos desconfiam da
história porque vêem nela o princípio da separação, o começo do exílio
do homemerranteno cosmos.
O pensamento selvagemparte da observação minuciosa das coisas
e classifica todas as qualidadesque lhe parecempertinentes;em seguida,
integra essas “categorias concretas” em um sistemade relações.O modo
de integração,já se sabe,é a oposição binária. O processo pode reduzirse a essas etapas: observar, distinguir e relacionar por pares. Estes
grupos de pares formam uma clave que depois se pode aplicar a outros
grupos de fenômenos. O princípio não é distinto do que inspira a
operação das máquinas pensantes da ciência contemporânea. Por
exemplo,o sistemade classificação totêmicoé uma claveque podeservir
para tornar inteligível o sistema de proibições alimentícias das castas.
Como se sabe, o regime de castas se apresentou sempre como uma
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
instituição radicalmentedistinta do totemismo; Lévi-Strauss coloca em
operação o sistema de transformações e mostra a conexão formal entre
um e outro regime, embora o primeiro seja característico da Índia e o
outro da Austrália. Esta conexão, mais uma vez, não é histórica: o
chamado totemismo e as castas são operações de uma estrutura mental
coletiva e inconsciente que procede por um método combinatório de
oposições e semelhanças. Castas e totemismo são expressões de um
modus operandi universal, embora as primeiras sejam parte de uma
sociedade histórica extraordinariamente complexa como é a hindu e o
segundo seja primitivo. O eixo desta lógica é a relação entre o sensível e
o inteligível, o particular e o universal, o concreto e o abstrato. Os
primitivos não “participam”,como acreditava Lévy-Bruhl; os primitivos
classificam e relacionam.Seu pensamento é analógico, traço que os une
não só aos poetas e artistas das sociedades históricas como também à
grande tradição dos herméticos da Antiguidade e da Idade Média – ou
seja: aos precursores da ciência moderna. A analogia é sistemática e se
apresenta “sob um duplo aspecto: sua corência e sua capacidade de
extensão, praticamente ilimitada”. Pela primeira, resiste à crítica do
grupo; pela segunda, o sistema pode englobar todos os fenômenos. É
uma lógica concreta porque para ela o sensível é significativo; é uma
lógica simbólica porque as categorias sensíveis estão em relação de
oposição ou de isomorfismo com outras categorias e assim podem
construir um sistemade equivalências formais entreos signos.
Sem negar sua exatidão, parece-me que divisão entre sociedades
que escolheramdefinir-se pela história e sociedadesque preferiram fazêlo pelos sistemas de classificação, esquece um grupo intermediário. A
idéia de um tempo cíclico não é exclusiva dos primitivos pois surge em
muitas civilizações que chamamos históricas. Inclusive poderia dizer-se
que só o Ocidentemoderno se identificou plena e freneticamentecom a
história, com evidente ignorância e desdém das idéias que as outras
civilizações se fizeram de si mesmas e da espécie humana. A visão do
tempo cíclico engloba o acontecer histórico como uma estrofe
subordinada do poemacircular queé o cosmos.É um compromisso entre
o sistema atemporal dos primitivos e a concepção de uma história
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
sucessiva e irrepetível.A China combinou sempreo sistemaatemporal,o
tempo cíclico e a historicidade.O modelo era um passado arquetípieo,o
tempo místico dos quatro imperadores; a realidade histórica era a
anedota de cada período,com seus sábios, seus soberanos,suas guerras,
seus poetas,seus santos e suas cortesãs Entre essesdois pólos,a extrema
imobilidade e a extrema mobilidade, a mediação era o movimento
circular da dualidade:yin e yang. Um pensamento emblemático,como o
chama Marcel Granet,que acentua a realidadedas forças impessoais ao
particularizá-las e dissolve a da história em mil anedotas coloridas e
transitórias. Na verdade, a China não conheceu a história, mas só os
anais. É uma civilização rica em narrativas históricas, mas os seus
historiadores não formularam nunca o que se chama uma filosofia da
história. Não a necessitavam,pois tinham uma filosofia da natureza. A
história chinesa é uma ilustração das leis cósmicas e portanto carecede
exemplaridade por si mesma. O modelo era atemporal: o princípio do
princípio. A civilização centreo-americana negou mais totalmente a
história. Do atiplano do México às terras tropicais da América Central
durantemais de dois mil anos, se sucederamvárias culturas e impérios e
nenhum deles teve consciência histórica. A América Central não teve
história mas mitos e, sobretudo, ritos. A queda de Tula, a penetração
tolteca em Yucatán, o desaparecimento das grandes teocracias e as
guerras e peregrinações dos astecas foram acontecimentos
transformados em ritos e vividos como ritos. Não se entenderá a
conquista do México pelos espanhóis se não se a contempla como a
viram e viveramos astecas:comoum grandioso rito final.
A atitude da Índia diante da história é ainda mais assombrosa.
Presumo que foi uma resposta ao fato que determinou a vida dos
homens e das instituições no sub continentedesde há mais de cinco mil
anos: a necessidade de coexistir com outros grupos humanos distintos
em um espaço não franqueável e que, embora pareça imenso, era e é
fatalmentelimitado. A Índia é uma gigantesca caldeira e aqueleque cai
dentro dela não sai nunca. Tenha sido esta a causa ou sejaoutra a razão
da aversão pela história, o certo é que nenhuma outra civilização sofreu
mais suas intrusões e nenhuma o negou com tal obstinação. Desde o
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
princípio a Índia se propôs abolir a história pela crítica do tempo, e a
pluralidade de sociedades e comunidades históricas pelo regime de
castas. A infinita mobilidade da história real se transforma em uma
fantasmagoria cintilante e vertiginosa na qual os homens e os deuses
giram até fundir-se em uma espécie de nebulosa atemporal; o mundo
matizado do acontecer desemboca ou, dizendo melhor, regressa a uma
região neutra e vazia, na qual o ser e o nada se reabsorvem.Budismo e
brahamanismo negam a história. Para os dois a mudança, longe de ser
uma manifestação positiva da energia, e o reino ilusório da
impermanência. Diante da heterogeneidade dos grupos étnicos – cada
um com uma língua, uma tradição,um sistemade parentescoe um culto
particulares – a civilização indiana adota uma solução contrária: não a
dissolução mas o reconhecimento de cada particularidade e sua
integração em um sistema mais amplo. A crítica do tempo e o regimede
castas são os dois pólos complementares e antagônicos do sistema
indiano.Por meio de ambos a Índia se propõea abolição da história.
O modelo do regime de castas não é histórico nem está fundado
unicamente na idéia da supremacia de um grupo sobre outro, embora
esta tenha sido uma de suas origens e a mais importante de suas
conseqüências. Seu modelo é a natureza: a diversidade das espécies
animais e vegetais e sua coexistência. Ao ver uma manada de elefantes
selvagens – o macho, as fêmeas e suas crias – em um desses wild life
sanctuaries que abundam neste país, disse-me o guia: “Os animais
vegetarianos como o elefantesão polígamos e os não-vegetarianos” (por
nada nesse mundo teria dito: carnívoros) “como o tigre, são
monógamos”. Esta crença na conexão entre o regime alimentar e o
sistema de parentesco dos animais lança mais luz sobre a teoria das
castas do que a leitura de um tratado. Tem razão Lévi-Strauss: a casta
não é um homólogo do totemismo, mas poderia dizer-se que é uma
mediação entre este último e a história. É uma maneira de integrar a
vida fluida em uma estrutura não temporal... A unidade mínima do
sistema social da Índia não é, como nas sociedades modernas, o
indivíduo, mas o grupo. Esta característica indica outra vez que seu
modelo não é a sociedade histórica, mas a sociedade natural, com as
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
suas ordens,espécies,famílias e raças. Os indivíduos são prisioneiros de
sua casta; prisioneiros e usufrutuários. Vida fetal, pois nada se parece
mais com a casta do que um ventre maternal. Talvez isto explique o
narcisismo hindu,* o amor de sua arte pelas curvas e de sua literatura
pelos labirintos, a feminilidadede seus deuses e a masculinidadede suas
deusas, sua concepção do templo como uma matriz e o que chamaria
Freud a perversidade infantil polimórfica dos jogos eróticos de suas
divindades e ainda de sua música. Pergunto-me se a noção psicológica
conhecida como “complexo de Édipo” é inteiramenteaplicável à Índia;
não é o desejo de regressar à mãe mas a impossibilidade de sair dela o
que,a meu ver, caracterizou o hindu. Foi sempreassim ou esta situação
e o resultado da agressão exterior que obrigou a civilização indiana a
dobrar-se sobre si mesma? Por desdém ou por medo, abstraído ou
contraído, o hindu tem sido insensível, à sedução dos países estranhos:
não buscou o desconhecido lá fora mas em si mesmo. Entre certas
castas, a proibição de viajar por mar era explícita e terminante. Não
obstante, no passado os hindus foram grandes marítimos e os
monumentos mais belos do período Pallava – um dos grandes presentes
da arteindiana à escultura mundial – encontram-se precisamenteemum
porto,Mallapuram,quehojeé uma aldeia de pescadores.
O indivíduo não pode sair de sua casta mas as castas podem
mudar de posição, ascender ou descer.12 A mobilidade social se realiza
por um canal duplo. Um, individual e ao alcance de todos, é a renúncia
ao mundo, a vida vagabunda de um monge budista e do sanayasi hindu
outro, coletivo,é o lento e imperceptívelmovimentodas castas,em torno
e em direção a esse centro vazio que e o coração do hinduísmo: a vida
contemplativa. Converter a sociedade histórica em urna sociedade
natural e a natureza em um jogo filosófico, em uma meditação do uno
sobre a irrealidadeda pluralidade,é uma tentativa grandiosa – talvez o
sonho mais ambicioso e coerente que o homem tenha sonhado. Mas a
história, como se se tratasse de uma vingança, encarniçou-se contra a
*
O autor usa, com freqüência, hindu, ao invés de indiano, embora o último seja o gentílico da Índia.
Mantém-se,contudo,o original. (N. do T.)
12
J. H. HUTTON. Caste in India, Londres,1963.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Índia. Várias vezesfoi invadida por povos que militavam sob a bandeira
do movimento e da transformação: primeiro os persas, os gregos, os
citas,os kuchanese os hunos brancos;mais tarde,os muçulmanos com o
seu Deus único e sua fraternidadede crentes;e por fim os europeus com
o seu progresso menos universal e sectário que a religião do Profeta.
Erosão da abstração intemporal pela mudança, queda do ser imóvel na
corrente reputada ilusória do tempo. Na esfera social as invasões não
modificaram o sistema de castas, mas o tornaram mais rígido. Para
defender-se melhor a civilização indiana recorreu à contração. Dois
universalismos – distintos mas igualmente exclusivos: o Islã e o
Cristianismo protestante – rodearam e desnaturalizaram um
particularismo universal. A experiência indiana, ademais, teria
fracassado mesmo sem as invasões: a história em sua forma mais crua,
isto é, a demografia, degenerou o sistema de coexistência em um dos
regimesmais injustos e inúteis da era moderna.
Este fracasso me faz refletir sobre a sorte de outra experiência,
diametralmente oposta à indiana, mas que trata de resolver o mesmo
problema.Refiro-me aos Esta dos Unidos. Esse país foi fundado por um
universalismo exclusivista: o puritanismo e sua conseqüência políticoideológica,a democracia anglo-saxônica.Uma vez purificado o território
de elementosestranhos – pelo extermínio e pela segregação da povoação
indígena -, os Estados Unidos se propuseram criar uma sociedade na
qual as particularidades nacionais européias, com exclusão das outras,
se fundissemem um melting-pot. O todo seria animado pela história em
sua expressão mais direta e agressiva:o progresso.Ou seja,ao contrário
da Índia, o projetoanglo-americano consisteemuma desvalorização dos
particularismos sociais e raciais (europeu) e em uma supervalorização
da mudança. Mas os particularismos não-europeus, o negro
especialmente,cresceram de tal modo (fora do melting-pot e dentro da
sociedade) que hoje tornam impossível toda tardia tentativa de fusão.
Portanto, o melting-pot deixou de ser o modelo histórico dos Estados
Unidos e essepaís está condenado à cisão ou à coexistência.Por sua vez
a valorização excessiva do progresso engendrou o seu descrédito diante
de um grupo numeroso, composto sobretudo por jovens e adolescentes.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Este último fato é decisivo.A revolta contra a abundância – emoposição
simétrica à dos países subdesenvolvidos, que é uma revolta contra a
pobreza – é uma rebelião contra a idéia de progresso. Não é acidental a
inclinação da juventudeanglo-americana pelas drogas. O país da ação e
bebidas fortes descobre de repente a sedução da contemplação e da
imobilidade.O bêbado não é contemplativo nem passivo, mas discursivo
e agressivo; o que ingere drogas escolhea imoralidadee a introspecção.
A bebedeira culmina no grito; a alucinação no silêncio. As drogas são
uma crítica da conversação,da ação e da mudança,dos grandes valores
do Ocidente e de seus herdeiros anglo-americanos. É prodigioso que a
crise dos fundamentosda sociedadeanglo-americana coincida com a sua
máxima expressão imperial. É um gigante que caminha cada vez mais
depressa sobreum fio cada vez mais delgado.13
A pluralidade de sociedades e civilizações provoca perplexidade.
Diante dela há duas atitudes contraditórias: o relativismo (esta
sociedade vale tanto quanto aquela) ou o exclusivismo (só há uma
sociedade valiosa – geralmente a nossa). A primeira logo nos paralisa
intelectual e moralmente:se o relativismo nos ajuda a compreender os
outros, também nos impede de os valorizarmos e nos proíbe de
transformá-los – a eles e à nossa própria sociedade.A segunda atitude
não é menos falsa: como julgar os outros e onde está o critério universal
13
Já escrito estelivro, chegou às minhas mãos o excelenteestudo que dedicou às castas da índia o Senhor
Louis Dumont (Homo hierarchicus, Paris, 1966). o antropólogo francês rechaça a explicação
historicista que aponto mas em compensação coincidecomigo, até certo ponto, ao ver como uma espécie
de oposição simétrica entreo sistemasocial hindu e o do Ocidentemoderno:no primeiro,o elemento– se
é que se podefalar de elemento– não é o indivíduo mas as castas e a sociedadeconcebida como relação,é
hierárquica; no segundo, o elemento é o indivíduo e a sociedade é igualitária. Dediquei um longo
comentário às idéias do Senhor Dumont emCorriente alterna (1967). No mesmolivro trato com maior
amplitudeo tema da oposição entrecomunicação e meditação,bebedeira e drogas. Direi aqui apenas que
as duas imagens mais significativas de nossa tradição são o Banqueteplatônico e a última Ceia de Cristo.
Ambos são símbolos da comu nicação e ainda da comunhão;nas duas, o vinho ocupa um lugar central. O
Oriente,pelo contrário, exaltou sobretudo o ermitão: o recluso Gautama, o iogue à sombra do banianes
ou na solidão de uma gruta. Pois bem,o alcoolismo é um exagero da comunicação;a ingestão de drogas,
sua negação. O primeiro se insere na tradição do Banquete (o diálogo filosófico) e da comunhão (o
mistério da eucaristia); as últimas, na tradição da contemplação solitária. Nos países do Ocidente, as
autoridades se preocupavam até pouco tempo com os perigos sociais do alcoolismo; hoje começam a se
alarmar com o uso, cada vez mais difundido,das substâncias alucinógenas.No primeiro caso, se trata de
um abuso; no das drogas, de uma dissidência. Não é este um sintoma de uma mudança de valores no
Ocidente,especialmentena nação mais adiantada e próspera:os Estados Unidos?
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
e eterno que poderia nos autorizar a decretar que esta sociedadeé boa e
aquela é má? Descendentede Montaigne e Rousseau, de Sahagún e de
Las Casas, a solução de Lévi-Strauss é a boa: respeitar os outros e
transformar os seus, compreender o estranho e criticar ó próprio. Esta
crítica culmina na idéia central queinspira nossa sociedade:o progresso.
A etnografia nasceu quase ao mesmo tempo que a idéia de historia
concebida como progresso ininterrompido; não é estranho que seja ao
mesmo tempo a conseqüência do progresso e a crítica do progresso. É
claro, Lévi-Strauss não o nega: situa em seu contexto histórico o mundo
do Ocidente moderno e assinala que não é uma lei histórica universal
nemum critério de valor aplicávela todas as sociedades.
Em geral o progresso se medepelo domínio sobre a natureza, isto
é, pela quantidade de energia de que dispomos. Se a ciência e a
tecnologia fossem o critério decisivo, uma civilização como a
mesoamericana, que não ultrapassou o Neolítico no que toca aos
utensílios, não mereceria sequer o nomede civilização. Não obstante,os
mesoamericanos não só nos deixaram uma arte, uma poesia e uma
cosmologia complexas e refinadas como realizaram proezas notáveis no
domínio da técnica, sobretudo na agricultura. No da ciência
descobriram o conceito do zero e elaboraram um calendário mais
perfeito,exato e racional que o dos europeus. Se da técnica passamos à
moral, a comparação seria ainda mais desvantajosa para nós: somos
mais sensíveis, mais honrados ou mais inteligentes que os selvagens?
Nossas artes são melhores que as dos egípcios ou dos chineses e nossos
filósofos são superiores a Platão ou a Nagarjuna? Vivemos mais anos
que um primitivo mas nossas guerras causam mais vítimas que as pestes
medievais.Embora a mortalidadeinfantil tenha diminuído,aumenta dia
a dia o número de indigentes – não nos países industriais mas nos que
chamamos por eufemismo subdesenvolvidos e que constituem a terça
parte da humanidade. Dir-se-á que tudo isto são lugares-comuns. São.
Tambéma idéia de progresso se tornou um lugar-comum.
O melhor e o pior que se pode dizer do progresso é que
transformou o mundo. A frase se pode inverter:o melhor e o pior que se
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
pode dizer das sociedades primitivas é que quase não mudaram o
mundo. Ambas as variantes necessitam de uma emenda: nem nós o
modificamos tanto quanto acreditamos, nem os primitivos o
modificaram tão pouco. As modificações foram internas e externas. No
interior, a aceleração técnica produziu transtornos, revoluções e
guerras; hoje ameaça a integridade psíquica e biológica da população.
No exterior, a sociedadeprogressista destruiu inumeráveis sociedades e
escravizou, humilhou e mutilou as sobreviventes. Certo, as mudanças
que introduziu são imensas, muitas vezes benéficas e sobretudo
inegáveis. Tambémsão inegáveis os seus desequilíbrios e os seus crimes.
Dizê-lo não implica nostalgia alguma pelo passado: toda sociedade é
contraditória e não há nenhuma que escape à crítica. Se a sociedade
progressista não é melhor que as outras sociedades, tampouco tem o
monopólio do mal. Os astecas,os assírios e os grandes impérios nômades
da Ásia Central não foram menos cruéis, orgulhosos e brutais do que
nós. No museudos monstros nosso lugar, destacado,não é o primeiro.
O progresso é nosso destino histórico;nada mais natural quenossa
crítica seja uma crítica do progresso. Estamos condenados a criticar o
progresso do mesmo modo que Platão e Aristófanes deviam criticar a
democracia ateniense,o budismo o ser imóvel do brahamanismo e Laotsé a virtudee a sabedoria confucianas. A crítica do progresso se chama
etnologia. Os estudos etnográficos nasceram no momento da expansão
do Ocidentee assumiram imediatamenteuma forma polêmica:defesa da
humanidade dos indígenas, obstinadamente negada por seus
“descobridores” e espoliadores, e crítica dos processos “civilizadores”
dos europeus.Não é um acaso que os espanhóis e portugueses,aos quais
corresponde a duvidosa glória de ter iniciado a conquista das novas
terras, tenham direito a uma glória mais certa: ser os fundadores da
etnografia. As descrições que os portugueses fizeram do sistema de
castas em Travancore e outras regiões do sul da Índia, as dos jesuítas
das civilizações da China e do Japão, e os textos dos espanhóis sobre as
instituições e costumes dos índios americanos, são os primeiros estudos
de etnografia e antropologia do mundo moderno. Em muitos casos,
como no de Sahagún, essemétodo foi tão rigoroso e objetivo como o dos
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
modernos antropólogos que hoje percorrem o mundo providos de
magnetofonese outros aparelhos.
Lévi-Strauss diz que a etnografia é a expressão dos “remorsos” do
Ocidente.Não sei se observou a origemcristã destesentimento.A crítica
dos excessos do progresso é uma crítica do poder e dos poderosos. O
cristianismo foi o primeiro que se atreveua criticar o poder e exaltar os
humildes. Nietzsche diz que o cristianismo, justamente por ser uma
moral do ressentimento,afinou nossa psicologia e inventou o exame de
consciência, essa operação que serve ao homem para julgar-se e
condenar-se. A introspecção é uma invenção cristã e termina sempre
com um juízo moral, não sobre os outros mas sobre si mesmo.O exame
de consciência consisteem pôr-se no lugar dos outros, ver-se na situação
do humilhado ou do vencido: o outro. É uma tentativa para nos
reconhecermos no outro e, assim, recuperarmos a nós mesmos. O
cristianismo descobriu o outro e ainda mais: descobriu que o eu só vive
em função do tu. A dialética cristã do exame de consciência é repetida
pela etnografia não na esfera individual, mas na social; reconhecer no
outro um ser humano e reconhecemosa nós mesmos não na semelhança
mas na diferença.Ademais,semo cristianismoa idéia retilíneado tempo
(a história) não haveria nascido. Devemos a essa religião do progresso
seus excessos e seus remorsos:a técnica,o imperialismoe a etnografia.
Há um aspecto central da dominação hispano-portuguesa que me
interessa destacar. A política ibérica no Novo Mundo reproduz ponto
por ponto a dos muçulmanos na Ásia Menor, Índia, no Norte da África
e na própria Espanha: a conversão, seja por bem,seja a sangue e fogo.
Embora pareça estranho, a evangelização da América foi uma empresa
de estilo e inspiração maometanos.O furor destruidor dos espanhóis tem
a mesma origem teológica que o dos muçulmanos. Ao contemplar no
norte da Índia as estátuas desfiguradas pelo Islã, recordei
imediatamenteas queimas de códices no México. A paixão construtora
de uns e outros não foi menos intensa que a sua raiva destruidora e
obedeceu à mesma razão religiosa. Os monumentos deixados pelos
muçulmanos na Índia não se parecemcom os que foram levantados na
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
América pelos espanhóis e portugueses, mas a sua significação é
análoga: primeiro o templo-fortaleza (igreja ou mesquita) e depois as
grandes obras civis e religiosas. A arquitetura obedece ao ritmo
histórico: ocupação, conversão e organização. Não se esqueça, que as
invasões dos muçulmanos no subcontinente indiano e a conquista da
América foram empresas que libertaram uma parte da povoação
indígena, oprimida pela outra: párias da Índia e, na América, povos
submetidos ao Inca e aos cruéis astecas.Conquista e liberação são parte
de um mesmo processo de conversão. Digo conversão porque os
muçulmanos e seus discípulos portugueses e espanhóis não se
propuseram recuperar o outro respeitando a sua outridade, como o
antropólogo:queriam convertê-lo, modificá-lo. A humanização consistia
em transformar o indígena infiel em irmão na fé. Os súditos de Babur e
os de seu contemporâneo Carlos V, qualquer que fosse a sua situação
social, pertenciam a uma mesma comunidade se a sua fé era a dos seus
senhores. Mesquita e igreja eram,sobre a terra, a prefiguração do mais
além: o lugar em que se anulam as diferenças de raça e hierarquia, o
lugar em que se suprime a alteridade. Os muçulmanos e os ibéricos
enfrentaram o problema da outridade* por meio da conversão; os
europeus cristãos, pelo extermínio ou pela exclusão. Exemplos: a
aniquilação dos aborígenesnos Estados Unidos e na Austrália. Na Índia,
onde era impossível fisicamente a eliminação dos nativos, tampouco
houve evangelização e a população cristã não chega hoje a dez milhões,
enquanto que são mais de cinqüenta os muçulmanos.14 Comparando-se
esses procedimentos com os dos astecas adverte-se uma diferença:nem a
conversão à maneira muçulmana e hispano-portuguesa,nemexclusão ou
extermínio à maneira moderna, mas divinização. Sangüinários e
filosóficos ao mesmo tempo, os astecas resolveram o problema da
outridade pelo sacrifício dos prisioneiros de guerra. A destruição física
*
O autor utiliza-se, alternativamente,do neologismo otredad e do termo consagrado alteridad. Mantevese a distinção.(N. do T.).
14
A matança dos índios na Argentina, Uruguai e Chile foi conseqüência de uma deliberada e irracional
imitação dos procedimentos anglo-americanos:identificou-se o progresso com o extermínio da população
indígena e com a imigração européia. O teórico principal desta doutrina foi Domingo Faustino
Sarmiento, um dos homens de bem oficiais da América Latina. O lema “governar é povoar” despovoou
essestrês países.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
era também uma transfiguração: a vítima alcançava a imortalidade
solar. , Conversão,exclusão,extermínio,ingestão ...
Para um chinês ou para um aborígeneaustraliano a função crítica
não oferecia a dificuldade teórica que apresenta para nós: o juízo
brotava da comparação entreo presentee o modeloatemporal,fosseeste
o passado místico do Imperador Amarelo ou a série de antepassados
animais divinizados. O mesmo pode dizer-se de todas as outras
civilizações:a idadede ouro era um termo de referência e não importava
que estivesse situada antes, depois ou fora da história. Era um modelo
imutável. Em ma sociedade que sem cessar se transforma, a idade de
ouro, o sistema ideal de referência, tambémmuda. Por tal razão, nossa
crítica é tambémpensamento utópico, busca de uma idade de ouro que
sem cessar se transforma. Nossa sociedadeideal muda continuamentee
não tem um lugar fixo nem no tempo nem no espaço;filha da crítica, se
cria, se destrói e se recria como o próprio progresso. Um permanente
voltar a começar: não um modelo mas um processo. Talvez por isto as
utopias modernas tendema apresentar-se como um regresso àquilo que
não muda: a natureza. A sedução do marxismo consiste em ser uma
filosofia da mudança quenos prometeuma futura idadede ouro quejá o
passado remoto, “o comunismo primitivo”,, ,continha em gérmen.
Combina assim o prestígio da modernidade com o do arcaísmo.
Condenadas à mudança, nossas utopias oscilam entre os paraísos
anteriores à história e as metrópoles de ferro e vidro da técnica, entre a
vida pré-natal do feto e um éden de robôs. E de ambas maneiras os
nossos paraísos são infernais: uns se resolvem' no tédio da natureza
incestuosa e outros no pesadelodas máquinas.
Talvez a verdadeira idade de ouro não esteja na natureza nem na
história, mas entreelas:nesseinstanteem,que,os homens fundam o seu
agrupamento com um pacto que,simultaneamente,os une entresi e une
o grupo com o mundo natural. O pensamentode Rousseau é uma fontee
Lévi-Strauss assinala que muitos dos descobrimentos da antropologia
contemporânea confirmam suas intuições. No entanto a imagem que o
filósofo genebrino se fazia da primeira idade não corresponde à
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
realidade pré-histórica: os caçadores do Paleolítico deixaram uma arte
extraordinária,mas aquela sociedadenão é certamenteum modeloideal.
Em compensação, Lévi-Strauss acredita que o período Neolítico –
precisamente antes da invenção da escritura, da metalurgia e do
nascimento da civilização urbana com as suas massas envilecidas e seus
monarcas e sacerdotes sangrentos – é o que mais se aproxima da nossa
idéia de uma idade de ouro. Os homens do Neolítico – segundo Gordon
Childe: provavelmenteas mulheres – inventaram as artes e ofícios que
são o fundamento de toda vida civilizada: a cerâmica, os tecidos, a
agricultura e a domesticação dos animais. Estas descobertas são
decisivas e talvez sejam superiores às realizadas nos últimos seis mil
anos de história. Confirma-se assim aquilo que apontei mais acima: o
pensamento selvagem não resulta inferior ao nosso nem pela finura de
seus métodos nem pela importância de suas descobertas. Outro ponto a
favor do Neolítico: nenhuma de suas invenções é nociva. Não se pode
dizer o mesmo das sociedades históricas. Sem pensar no ininterrupto
progresso na arte de matar, já se refletiu sobre a função ambivalenteda
escritura? Sua invenção coincide com o aparecimento dos grandes
impérios e com a construção de obras monumentais. Em uma passagem
impressionante Lévi-Strauss demonstra que a escritura foi propriedade
de uma minoria e que não serviu tanto para comunicar o saber como
para dominar e escravizar os homens.Não foi a letra,mas imprensa que
libertou os homens. Liberou-os da superstição da palavra escrita.
Acrescentarei que,na realidade,não foi a imprensa a libertadora,mas a
burguesia, que se serviu desta invenção para romper o monopólio do
saber sagrado e divulgar um pensamento crítico. A idéia de Marshall
McLuhan, que atribui à imprensa a transformação do Ocidente, é
infantil: não são as técnicas, mas a conjugação de homens e
instrumentosquetransformamuma sociedade.
Em outro ensaio ocupei-me da expressão escrita em relação com a
verbal: a escritura desnaturaliza o diálogo entre os homens.15 Embora o
leitor possa concordar ou discordar, falta-lhe o direito de interrogar o
15
Los signos en rotación, Buenos Aires, 1965, (Trad. bras.: Signos em Rotação, São Paulo,
Perspectiva,1972.)
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
autor e de ser escutado por este, Poesia, filosofia e política – as três
atividades nas quais a fala desenvolve todos os seus poderes – sofrem
uma espéciede mutilação. Se é verdadeque graças à escritura dispomos
de uma memória objetiva universal, também o é que ela acentuou a
passividade dos cidadãos. A escritura foi o saber sagrado de todas as
burocracias e hoje mesmo é comunicação unilateral: estimula nossa
capacidade receptiva e ao mesmo tempo neutraliza nossas reações,
paralisa nossa crítica, Interpõe entre nós e o que escreve – seja um
filósofo ou um déspota – uma distância, Contudo, não creio que os
nossos meios de comunicação oral, nos quais depositam tantas
esperanças McLuhan e outros, consigam reintroduzir o verdadeiro
diálogo entre os homens. A despeito de terem devolvido à palavra o seu
dinamismo verbal – algo que a poesia e a literatura contemporâneasnão
aproveitaram ainda de todo – rádio e televisão aumentam a distância
entre o que fala e o que ouve: convertem o primeiro em uma presença
todo poderosa e o segundo em uma sombra, São, como a escritura,
instrumentos de domínio. Se há um grão de verdade na visão do
Neolítico como uma idade feliz, essa verdadeconsiste não na justiça de
suas instituições, sobre as quais sabemos pouquíssimo, mas no caráter
pacífico de suas descobertas e,sobretudo,emqueessas comunidadesnão
conheceramoutra forma de relação quea pessoal de homema homem,O
verdadeiro fundamento de toda democracia e socialismo autêntico é, ou
deveria ser,a conversação:os homens frentea frente,Sobre isto devemos
a Lévi-Strauss páginas inesquecíveis, como naquelas em que descobre o
bem fundado da adivinhação de Rousseau: a origem da autoridade,nas
sociedades mais simples, não é a coerção dos poderosos mas o mútuo
consentimento,Impulsionado pelo seu entusiasmo,Lévi-Strauss chega a
dizer que a “idade de ouro está em nós”, Frase maravilhosa, mas
ambígua, Refere-se a um estado interior e pessoal ou à possibilidade de
regressar com os novos meios técnicos a uma espéciede idadede ouro da
era industrial? Temo que, no segundo sentido, esta idéia seja utópica:
nunca estivemos mais longe da comunicação entre pessoa e pessoa, A
alienação,se é que ainda guarda sentido essa palavra manuseada,não é
unicamente conseqüência dos sistemas sociais, sejam capitalistas ou
socialistas, mas da índole mesma da técnica: os novos meios de
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
comunicação acentuam, fortalecem a incomunicação. Deformam os
interlocutores: magnificam a autoridade, a tornam inacessível – uma
divindade que fala mas não escuta – e assim nos roubam o direito e o
prazer da réplica,Suprimemo diálogo.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
5.
AS PRÁTICAS E OS SÍMBOLOS.
O SIM OU O NÃO E O MAIS OU MENOS. O INCONSCIENTE
DO HOMEM E O DAS MAQUINAS. OS SIGNOS OUE SE
DESTROEM: TRANSFIGURAÇÕES. TAXILA.
Lévi-Strauss declarou sempre que é um discípulo de Marx
(discípulo, não repetidor). Materialista e determinista, pensa que as
instituiçõese as idéias que a sociedadese faz de si mesma são o produto
de uma estrutura inferior inconsciente. Tampouco é insensível ao
programa histórico de Marx e, se não me equivoco, acredita que o
socialismo é (ou pode ser?) a próxima etapa da história do Ocidente e
talvez do mundo inteiro. Se concebe a sociedade como um sistema de
comunicações, é natural que a propriedade privada lhe pareça um
obstáculo à comunicação: “na linguagem”, diz Jakobson, “não há
propriedade privada: tudo está socializado”... Dito isto, não vejo como
se lhe poderia chamar de marxista semforçar o termo.Por exemplo,não
estou certo de que compartilhe a teoria que vê na cultura um simples
reflexo das relações materiais. Certo, diz aceitar sem dificuldade a
primazia da estrutura econômica sobre as outras e em La pensée
sauvage afirma que estas últimas são realmente superestruturas;
acrescenta inclusive que os seus estudos poderiam chamar-se “teoria
geral das superestruturas”. Não obstante, limita a validez do
determinismo econômico às sociedades históricas; quanto às não
históricas, assegura que os laços consangüíneos desempenham nelas a
função decisiva do modo de produção econômica nas históricas. Apóia a
sua afirmação em algumas opiniões de Engels em carta a Marx. Não
pretendo pugnar em um ponto difícil e, de todos os modos, marginal,
mas contes-so que a sua idéia das relaçõesentrea práxis e o pensamento
meparecemuito distanciada da concepçãomarxista.
Em La pensée sauvage distingue entre “práticas” e práxis; o
estudo das primeiras, distintivas dos gêneros de vidas e formas de
civilização, é o domínio da etnologia e o da segunda, da história. As
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
práticas seriam superestruturas. Entre a práxis e as “práticas” há um
mediador:“o esquemaconceituai,pelo qual uma matéria e uma forma se
realizam como estruturas ao mesmo tempo empíricas e inteligíveis”. A
meu modo de ver esta idéia elimina a noção de práxis ou, pelo menos,lhe
dá um sentido distinto daqueledo marxismo. A relação imediata e ativa
do homem com as coisas e com os outros homens é indistinguível,
segundo Marx, do pensamento: “as controvérsias sobre a realidade e a
não realidade do pensamento, separado da prática, pertencem ao
domínio da escolástica”. (Teses sobre Feuerbach). Práxis e
pensamento não são entidades distintas e ambos são inseparáveis das
leis objetivas da realidadesocial: o modo de produção. Marx se opõe ao
antigo materialismo. diz Kostas Papaioannou, porque este ignora a
história. Para Marx a natureza é histórica, de modo que o seu
materialismo é uma concepção histórica da matéria. O antigo
materialismo “afirmava a prioridade da natureza exterior, mas uma
natureza objetiva, independente do sujeito, não existe”. O mundo
sensível não é um mundo de objetos: é o mundo da práxis, isto é, da
matéria modelada e transformada pela atividade humana. A função da
práxis é “modificar historicamentea natureza”.
Se o marxismo é uma concepção histórica da natureza, tambémé
uma concepção materialista da história: a práxis, “o processo vital
real”,é o ser do homem,e sua consciência é simplesmenteo reflexodessa
matéria que a práxis tornou histórica. A consciência e o pensamento
humano são produtos não da natureza mas da natureza histórica ou
seja, da sociedade e seu modo de produção. Nem a natureza nem o
pensamento isolado definem o homem, mas sim a atividade prática, o
trabalho: a história. Lévi-Strauss diz, no fim de La pensée sauvage,
que a práxis só pode conceber-se com a condição de que exista antes o
pensamento,sob a “forma de uma estrutura objetiva do psiquismo e do
cérebro”. O espírito é algo dado e constituído desde o princípio. É uma
realidadeinsensívelà ação da história e dos modos de produção porqueé
um objeto físico-químico, um aparelho que combina as chamadas e
respostas das células cerebrais diante dos estímulos exteriores. Na
práxis o espírito repetea mesma operação que no momento de elaborar
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
as práticas:separa,combina e emite.O espírito transforma o sensívelem
signos. Na concepçãode Marx advirto a primazia do histórico:modo de
produção social; na de Lévi-Strauss, a do químico-biológico: modo de
operação natural. Para Marx a consciência muda com a história; para
Lévi-Strauss o espírito humano não muda:seu reino não é o da história,
mas o da natureza.
Dessa perspectiva pode entender-se melhor sua polêmica com
Sartre e o equívoco que os une e separa. Para Sartre a oposição entre
razão analítica e razão dialética é real porque é histórica; quero dizer:
cada uma delas corresponde a uma história e a um modo de produção
distinto ou, mais exatamente,a etapas distintas de uma mesma história.
A razão dialética nega a razão analítica e assim a engloba e a
transcende.Não é a razão em movimento,como pretendeLévi-Strauss,
mas o movimento da razão. Esse movimento a transforma e a converte
efetivamenteem outra razão: aquilo que diz a razão analítica o entende
a dialética enquanto que esta última fala em uma linguagem
incompreensível para aquela. A razão dialética situa a analítica dentro
do seu contextohistórico e,ao relativizá-la, integra-a emseu movimento.
Em troca, a razão analítica é incompetentepara julgar a dialética... O
defeito da posição de Sartre é o de toda dialética logo que cessa de
repousar sobre um fundamento. É certo que a razão dialética pode
compreender e julgar a analítica e que esta é incompetente para
compreendê-la e julgá-la mas, a razão dialética se compreendee se pode
julgar a si mesma? A razão dialética é uma ilustração do paradoxo do
movimento:a terra se moveem torno de um sol que pareceimóvele que,
para os fins do movimento terrestre, efetivamenteo está. Sendo assim,
falta à dialética, desde Hegel, um sol: se a dialética é o movimento do
espírito, há um ponto de referência graças ao qual o movimento é
movimento. O fundamento da dialética é não-dialético pois de outro
modo não haveria movimento, não haveria dialética. Marx nunca
explicou com clareza as relações entre o seu método e a dialética de
Hegel,embora o tenha prometido em várias páginas. Portanto,nos falta
o ponto de referência entrea dialética e a matéria. Engels quis remediar
esta omissão, com as suas investigações sobre a dialética da natureza,
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
hoje inaceitáveis para a ciência, como já o demonstrou, entre outros, o
próprio Sartre.16 A dialética materialista carece de fundamento e não
possui um sistema de referência que permita compreendê-la e,
literalmente,medi-la. A ciência contemporâneaadmiteque o observador
altera o fenômeno mas sabe que o altera e pode calcular essa alteração.
Se não fosse assim, não haveria observação nem determinação do
fenômeno. Em verdade, desapareceria a própria noção de fenômeno
objetivo. Poderia replicar-se que o ponto de referência do marxismo é o
salto dialético: graças à negação podemos compreender a afirmação.
Seria uma operação “progressivo-regressiva”, para empregar o
vocabulário de Sartre: a razão dialética compreendea analítica e assim
a salva. Observo que a salva só para dissolvê-la, do mesmo modo que a
negação ilumina a afirmação só para apagá-la melhor. Se a dialética
pretende encontrar seu fundamento não antes mas depois do salto,
tropeça com esta dificuldade:esse depois se transforma imediatamente
em um antes.A dialética nos parecia um movimentoe agora se converte
em um frenesi imóvel.Em suma, a crítica de Sartre é uma arma de dois
gumes: resolve a contradição entre matéria e dialética em benefício da
segunda. O materialismo cessa de ser um materialismo e a dialética se
converteem uma alma penada em busca de seu corpo, em busca de seu
fundamento.
Lévi-Strauss assinala que Sartre convertea história em um refúgio
da transcendência e que, portanto, é culpável do delito de idealismo.
Talvez esteja certo, mas com uma ressalva: seria uma transcendência
que se destrói a si mesma porque cada vez que se transcende,se anula.
Por sua vez Sartre está certo quando diz que a dialética transcende a
razão analítica. O que ocorre é que, ao transcendê-la, ela própria se
anula como razão. Para restaurar sua dignidade racional, a dialética
deveria realizar uma operação incompatível com a sua natureza:
comparecer diante do juízo da razão analítica. Algo impossível porque,
como se viu, a razão analítica não compreendea linguagemda dialética:
carecede dimensão histórica tal como a dialética carecede fundamento.
Veja-se a nota de Maximilien Rubel ao posfácio de Marx à segunda edição alemã de O capital
(Oeuvres de Karl Marx, primeiro volume, coleção de La Pléiade). Também o ensaio de Kostas
Papaioannou:“Le mythede la dialectique”(Contrat social, númerode set-out. 1963).
16
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Ademais, a pergunta sobre o fundamento ou razão suficiente também
alcança a razão de Lévi-Strauss: qual é a razão das operações físicoquímicas do cérebro? Esta interrogação repeteemoutro nível a pergunta
do começo:qual é o significado de significar? Em um e outro extremodo
sistema de Lévi-Strauss surge o fantasma da filosofia. Pretendendo
ainda voltar a isto, direi que o equívoco entre Lévi-Strauss e Sartre
consiste em que ambos alteram a noção marxista de práxis: o primeiro
em benefício de uma natureza exterior à história e o segundo no de uma
dialética puramente histórica. Para Lévi-Strauss a história é uma
categoria da razão; para Sartre a razão é uma categoria histórica.
Sartre é um historicista puro e sua concepção recorda o racio-vitalismo
de Ortega y Gasset,com a diferença de que não são as gerações mas as
classes que encarnam o movimentohistórico. Lévi-Strauss é tambémum
materialista puro e seu pensamento prolonga o materialismo do século
XVIII, com a ,diferençade que para elea matéria não é uma substância
mas uma relação.Este traço o convertenão emum pensador da primeira
metade do nosso século, como Sartre, mas da segunda: a que agora
começa.
Mais pertinente que a crítica marxista é a do antropólogo inglês
Edmund Leach.17 Aqui descemos da escolástica à terra firme do senso
comum.Leach começapor assinalar que a importância da obra de LéviStrauss reside em que se propõe a explicar “o conteúdo não-verbal da
cultura como um sistema de comunicações;portanto,aplica à sociedade
humana os princípios de uma teoria geral da comunicação”. Ou seja: a
estrutura binária da fonologia e dos cérebros eletrônicos que compõe
mensagens pela combinação de pulsações negativas e positivas. A
distinção binária é um “instrumento analítico de primeira ordem mas
apresenta certas desvantagens. Uma delas é que tende a subestimar
arbitrariamente os problemas relativos aos valores”. Estes últimos
podemser abordados com maior probabilidadede êxito pelos analogical
computers. Enquanto-queestesmecanismos respondemàs perguntas em
termos de mais e menos, as máquinas que usam o sistema binário
respondem unicamente com um sim ou um não. Leach ilustra a sua
17
Telsar and lhe aborígines or La pensée sauvage (1964).
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
observaçãocom o sistemade classificação totêmicatal como foi definido
por Lévi-Strauss. Segundo o antropólogo francês, os aborígines não
escolhem esta ou aquela espécie animal como totem pela sua utilidade,
mas por suas qualidades e peculiaridades, isto é, por serem mais
facilmente definíveis – por sua aptidão para formar parelhas
conceptuais. Os funcionalistas britânicos afirmam que as espécies se
convertem em totem por sua utilidade por exemplo: por serem
comestíveis.Lévi-Strauss sustenta que são categorias de classificação:se
convertem em totem por serem pensáveis e não por serem comestíveis.
Embora a sua solução seja mais universal e simples que a primeira –
sobretudo se se aceita que o totemismo não é uma instituição isolada
mas um aspecto de um sistema geral de coordenação do universo e da
sociedade – oferece um inconveniente. A teoria britânica é crua e
ingênua: o animal é sagrado por sua função benéfica ou nociva; a de
Lévi-Strauss nos mostra a razão formal das classificaçõestotêmicas mas
não toca em algo essencial:por que são sagradas, as espéciestotêmicas?
A mesma observação pode se aplicar ao tabu alimentício ou ao sexual.
Não basta dizer que os europeus não comem carne de cachorro e os
muçulmanos de porco; o primeiro tabu é implícito e o segundo é
explícito. Esta diferença, segundo Leach, não pode ser explicada pelo
método binário. Em suma, Lévi-Strauss “nos mostra a lógica das
categorias religiosas e ao mesmo tempo ignora precisamente aqueles
aspectos do fenômeno que são especificamente religiosos”. Creio que
Leach temrazão mas assinalo que a sua aguda crítica evoca,sem propôlo, um interlocutor que ele e Lévi-Strauss expulsaram do simpósio
antropológico:a fenomenologia da religião.
Leach não toca os fundamentos do método de Lévi-Strauss:
simplesmentepropõe substituir em certos casos a analogia binária por
outra mais refinada. Por minha par te, pergunto-me se é válido o
princípio básico: é um modelo universal a teoria geral da comunicação?
A primeira vista a resposta deve ser afirmativa, ao menos na esfera da
matéria viva, tal como mostrou a genética contemporânea. Não
obstante,é legítimo presumir que, como ocorreu sempre na história da
ciência, cedo ou tarde aparecerá uma diferença que torne inoperante o
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
modelo. Tenho outra dúvida: as máquinas pensam mas não sabem que
pensam;no dia emquecheguema sabê-lo, continuarão sendo máquinas?
Dir-me-ão que todos os homens,pelo único fato de falar, pensam,e, não
obstante, só muito poucos e em ocasiões contadas se dão conta de que
realizam uma operação mental cada vez que pronunciam uma palavra.
Replico que basta que um só homemse dê conta de que pensa para que
tudo mude:o quedistingueo pensamentode toda outra operação mental
é a sua capacidade de saber-se pensamento. Mal escrevo esta frase
advirto nela certa inconsistência; minha idéia pressupõe algo que não
provei e que não é fácil provar: um eu, uma consciência. Se o
pensamento é o que se dá conta de que pensa – e não poderia ser de
outro modo – estamos diante de uma propriedadegeral do pensamento;
portanto, se as máquinas pensam, um dia saberão que pensam. A
consciência é ilusória e consiste em uma simples operação.18 Reflito e
arrisco outro comentário: a razão das máquinas é inflexível, infalível e
irrebatível enquanto a nossa está sujeita a fraquezas, extravios e
delírios. Como dizia Zamiatine: o homem é um enfermo e sua
enfermidade se chama fantasia: “cada volta de um êmbolo é um
imaculado silogismo, mas quem já viu uma roldana revirar-se na cama
18
A concepção de Lévi-Strauss recorda, por um lado, Hume; por outro, Buda. A semelhança com o
budismo é extraordinária: “In Budism thereis not percipient apart from perception,no conscious subject
behind consciousness... The term subject must be understood no mean not the selfsame permanent
conscious subject but merely a transitory state of consciousness. The object of Abhidhamma is to show
that thereis not soul or ego apart from the states of counsciousness;but that each seemingly simplestate
is in reality a highly complexcompound,constantly changing and giving rise to new combinations” (S. Z.
Aung em sua Introdução a Abhidhammattha-Sangha, Pali Text Society. 1963). Apesar da
semelhança entre o pensamento budista e o de Lévi-Strauss, este último não aceita nem a renúncia
ascética (parece-lhe egoísta) nem muito menos essa realidade indizível e indefinível, exceto em termos
negativos, que chamamos Nirvana. Deve sentir-se mais longe ainda, suponho, dos pontos de vista do
budismo Mahayana. Certo, a idéia de que todos os elementos (dharmas) são interdependentes não é
distinta de sua concepçãoe tampouco o é ver neles simples nomes vazios de substância;em compensação,
deduzir desse relativismo um absoluto de certo modo inefável, deve provocar-lhe certa repugnância
intelectual. O paradoxo do budismo não consiste em ser uma filosofia religiosa mas em ser uma religião
filosófica:reduz a realidadea um fluir de signos e nomes mas afirma que a sabedoria e a santidade(uma
só e mesma coisa) reside no desaparecimento dos signos. “Os signos do Tathagatta”, diz o sutra
Vagrakkhedika,“são os não-signos”. Direi, por último,quenão é acidental a semelhançaentreo budismo
e o pensamento de Lévi-Strauss: é mais uma prova de que o Ocidente, por seus próprios meios e pela
própria lógica de sua história, chega agora a conclusões fundamentalmente idênticas às que haviam
chegado Buda e seus discípulos. O pensamento humano é uno e devemos a Lévi-Strauss – entre outras
muitas coisas – haver demonstrado que a razão do primitivo ou a do oriental não é menos rigorosa do
quea nossa.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
noites inteiras ou cismar durante as horas de repouso?” Atribuo esta
diferença ao fato de que temos inconscientes distintos: falta algo às
máquinas ou sobra algo emnós. Ou isto tambémé uma ilusão?
Lévi-Strauss introduz uma distinção singular entre o conscientee
o inconsciente.Este último é um depósito de imagens e recordações,“um
aspecto da memória” – algo assim como um arquivo imenso,
desordenado e repleto.O consciente,ao contrário, “sempre está vazio”;
recebe as “pulsões”, emoções, representações e outros estímulos
exteriores e os organiza e transforma “como o estômago aos alimentos
que o atravessam”.Embora Freud pensasseque um dia os progressos da
química tornariam desnecessário o longo tratamento psicanalítico, sua
concepção do inconsciente se opõe totalmente a de Lévi-Strauss: os
processos químicos, inconscientese subconscientes,possuempara Freud
uma finalidade. Esta finalidaderecebevários nomes:desejo,princípio de
prazer, Eros, Tânato, etc. Muitos sublinharam o parentesco deste
inconsciente psicológico com as estruturas econômicas de Marx,
tambéminconscientese,portanto,tendo uma direção.O inconscientee a
história são forças em marcha e que caminham independemente da
vontade dos homens. Longe de ser mecanismos vazios que transformam
em signos aquilo que recebemdo exterior, são realidades plenas que sem
cessar mudam o homem e se transformam a si mesmas. A matéria viva
de Freud aspira ao nirvana da matéria inerte;quer repousar na unidade
mas está condenada a mover-se e a dividir-se, a desejar e a odiar as
formas que engendra.O homemhistórico de Hegel e Marx quer suprimir
sua alteridade,ser uno outra vez com os outros e com a natureza, mas
está condenado a transformar-se continuamente e transformar o
mundo. Em um livro brilhante (Eros e Tânato), Norman O. Brown
revelou que a energia da história pode chamar-se também Eros
reprimido e sublimado. A dialética histórica, seja a de Hegel ou a de
Marx, se reproduz na teoria de Freud: afirmação e negação são
conceitos que correspondem aos de libido e repressão, prazer e morte,
atividadee nirvana.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
O materialismo de Freud e o de Marx não suprimem a idéia de
finalidade:situam-na em um nível mais profundo que o da consciência e
assim a fortificam. Alheia à consciência, esta finalidade é efetivamente
uma força irrebatível. Ao mesmo tempo, Marx e Freud oferecem uma
solução: mal o homem se dá conta das forças que o movem,está apto,
senão a ser livre,pelo menos para estabeleceruma certa harmonia entre
o que é realmentee o que pensa ser. Esta consciência é um saber ativo:
para Marx, prometéico e heróico, é a atividade social, a práxis
conscientede si mesma, que transformam o homem e o mundo; para o
pessimista Freud é o equilíbrio, continuamente rompido, entre desejo e
repressão. Assim pois a diferença entre estas duas concepções do
inconsciente e a de Lévi-Strauss reside em que, no primeiro caso, o
homem acede ao conhecimento de um inconsciente ativo e senhor de
uma finalidade, enquanto que, no segundo, contempla um mecanismo
que não conhece outra atividade senão a repetição e que carece de
finalidade.É um saberdo vazio.
Em seu comentário a Les structures élémentaires de la
parente, citado no princípio destas páginas,GeorgesBataillelamentava
que Lévi-Strauss mal tocasse no tema da relação entre o intercâmbio de
mulheres e o erotismo.A dualidadeproibição e doação aparecetambém
neste último: é uma espécie de oscilação entre horror e atração que se
resolve sempre em violência, seja interior (renúncia) ou exterior
(agressão). O jogo passional constitui o específico do fenômeno embora
outras circunstâncias – econômicas, religiosas, políticas, mágicas –
concorram também para determiná-lo. Em outras palavras, Bataille
pedia que o tabu do incesto e sua contrapartida,as regras do parentesco
e do matrimônio, se explicassem não só como uma forma de doação,
uma expressão particular da teoria da circulação de bens e signos, mas
por aquilo que os distingue dos outros sistemas de comunicação. Direi
mais: o erotismo é comunicação mas os seus elementos específicos, à
parte o fato de que o isolam e o opõemàs outras formas de intercâmbio,
anulam a própria noção de comunicação. Por exemplo, dizer que o
matrimônio é uma relação entre signos que designam nomes (classes e
linhagens) e valores (prestações, filhos, etc.), é omitir aquilo que o
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
caracteriza: ser uma mediação entre renúncia e promiscuidadee, assim,
criar um âmbito fechado e legítimo em que se pode desenvolver o jogo
erótico.Pois bem,se as mulheressão signos portadores de nomes e bens,
deve acrescentar-se que são signos passionais. A dialética própria do
prazer – dom e possessão, desejo e gasto vital – confere a esses signos
um sentido contraditório: são a família, a ordem, a continuidade e são
também o único, o extravio, o instante erótico que rompe a
continuidade.Os signos eróticos destroema significação – queimam-na
e transfiguram-na: o sentido regressa ao ser. E do mesmomodo o abraço
carnal,ao realizar a comunicação,a anula. Como na poesia e na música,
os signos já não significam:são. O erotismotranscendea comunicação.
Bataille assinala que a proibição do incesto tambémestá ligada a
outras duas negações pelas quais o homem se opõe à sua animalidade
original: o trabalho e a cons ciência da morte. Ambas nos colocam
diante de um mundo que Lévi-Strauss prefere ignorar: a história. O
homemfaz e ao fazer se desfaz,morre– e o sabe.Pergunto-me:o homem
é uma operação ou uma paixão, um signo ou uma história? Esta
pergunta pode repetir-se, segundo se viu, diante dos outros estudos de
Lévi-Strauss sobre os mitos e o pensamento selvagem. Com
extraordinária penetração descobriu a lógica que os rege e revelou que,
longe de ser confusas aberraçõespsíquicas ou manifestaçõesde ilusórios
arquétipos, são sistemas coerentes e não menos rigorosos que os da
ciência. Em compensação, omite a descrição do conteúdo concreto e
específico. Tampouco se interessa pelo significado particular desses
mitos e símbolos dentro do grupo que os elabora. Convertido em uma
simples combinação, o fenômeno se evapora e a história se reduz a um
discurso incoerentee a uma gesta fantasmal.Não faltará quemmediga:
um homem de ciência não tem porque extraviar-se nos labirintos da
fenomenologia e da história. Penso o contrário. A obra de Lévi-Strauss
nos apaixona porque interrompe o duplo e interminável monólogo da
fenomenologia e da história. Essa interrupção é, ao mesmo tempo,
histórica e filosófica:a negação da história é uma resposta à história e a
filosofia reaparececomocrítica do sentido – como crítica da razão.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Ricoeur encontrou uma surpreendentesemelhança entre o sistema
de Kant e o de Lévi-Strauss: ao modo do primeiro, este postula um
entendimento universal regido por leis e categorias invariáveis.19 A
diferença seria que o do antropólogo francês é um entendimento sem
sujeito transcendental. Lévi-Strauss aceita o bem fundado da
comparação e,semnegá-la, assinala os seus limites:o etnólogo não parte
da hipótese de uma razão universal mas da observação de sociedades
particulares e pouco a pouco, pela classificação e comparação de cada
elemento distintivo, desenha as linhas de “uma estrutura anatômica
geral”.O resultado é uma imagemda forma da razão e uma descrição de
seu funcionamento. A semelhança que Ricoeur assinala não nos deve
fazer esquecer uma diferença não menos decisiva: Kant se propôs
descobrir os limites do entendimento; Lévi-Strauss dissolve o
entendimento na natureza. Para Kant há um sujeito e um objeto;LéviStrauss apaga esta distinção.Em lugar do sujeitopostula um “nós” feito
de 'particularidadesque se opõee combinam.O sujeito se via a si mesmo
e os juízos do entendimento universal eram os seus. O “nós” não pode
ser visto: não tem um si mesmo, sua intimidade é exterioridade. Seus
juízos não são seus: é o veículo de um juízo. É a estranheza em pessoa.
Nem sequer pode saber-se uma coisa entre as coisas: é uma
transparência através da qual uma coisa,o espírito,contemplaas outras
coisas e se deixa contemplar por elas. Ao abolir o sujeito, Lévi-Strauss
destrói o diálogo da consciência consigo mesma e o diálogo do sujeito
com o objeto.
A história do pensamentodo Ocidentefoi a das relaçõesentreo ser
e o sentido,o sujeito e o objeto,o homeme a natureza. Desde Descartes
o diálogo se alterou por uma espécie de exageração do sujeito. Esta
exageração culminou na fenomenologia de Husserl e na lógica de
Wittgenstein. O diálogo da filosofia com o mundo se converteu no
monólogo intermináveldo sujeito.O mundo emudeceu.O crescimentodo
19
Observo,de passagem,que Martin Heidegger,em O ser e o tempo se propôs algo semelhante,só que
não na esfera do entendimentomas na da temporalidade.Por isso se opôs, com razão, a que se confunda
o seu pensamento com o existencialismo. O formalismo de Lévi-Strauss proíbe-me de comparar suas
concepçõescom as de Heidegger;mas não com o antigo nominalismo:emseu sistemao universo se resolve
emsignos,nomes.Valeria a pena explorar mais estas afinidades.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
sujeito às expensas do mundo não se limita à corrente idealista: a
natureza histórica de Marx e a natureza “domesticada” da ciência
experimental e da tecnologia também ostentam a marca da
subjetividade. Lévi-Strauss rompe brutalmente com esta situação e
inverte os termos: agora é a natureza que fala consigo mesma, através
do homeme sem que estese dê conta. Não é o homemmas o mundo que
não- pode sair de si mesmo. Se não fosse forçar demais a linguagem,
diria que o entendimento universal de Lévi-Strauss é um objeto
transcendental.O “homememsi” nemsequeré inacessível:é uma ilusão,
a cifra momentâneade uma operação.Um signo de troca,como os bens,
as palavras e as mulheres.
Por meio de reduçõessucessivas e rigorosas, Lévi-Strauss percorre
o caminho da filosofia moderna só que em sentido inverso e para chegar
a conclusõessimetricamenteopostas.Em um primeiro movimento,reduz
a pluralidadedas sociedadese histórias a uma dicotomia que as engloba
e as dissolve: pensamento selvagem e pensamento domesticado. Em
seguida, descobre que esta oposição é parte de outra oposição
fundamental: natureza e cultura. Em um terceiro momento, revela a
identidade entre as duas últimas: os produtos da cultura – mitos,
instituições,linguagem – não são essencialmentedistintos dos produtos
naturais nem obedecem a leis diferentes das que regem os seus
homólogos, as células. Tudo é matéria viva, que se transforma. A
própria matéria se evapora: é uma operação, uma relação. A cultura é
uma metáfora do espírito humano e estenão é senão uma metáfora das
células e de suas reaçõesquímicas que,por sua vez,são outra metáfora.
Saímos da natureza e a ela retornamos. Só que agora é uma selva de
símbolos: as árvores reais e as feras, os insetos e os pássaros se
transformam em equações.Pode ver-se agora com maior clareza em que
consiste a oposição de Lévi-Strauss à dicotomia entre história e
estrutura, pensamento selvagem e domesticado. Não é que lhe pareça
falsa mas que, por mais decisiva que seja para nós, não é realmente
essencial. Certo, o acontecerhistórico é “poderoso – mas unânime”:seu
reino é a contingência.Cada acontecimentoé único e nessesentido não é
o estruturalismo,mas a história, quempode,até certo ponto, explicá-lo.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
Ao mesmo tempo,todos os acontecimentos estão regidos pela estrutura,
isto é,por uma razão universal inconsciente.Esta última é idêntica entre
os selvagens e os civilizados: pensamos distintas coisas da mesma
maneira. A estrutura não é histórica: é natural e nela reside a
verdadeira natureza humana. É um retorno a Rousseau, só que a um
Rousseau que tivessepassado pela Academia platônica.Para Rousseau o
homemnatural era o homempassional; para Lévi-Strauss as paixões e a
sensibilidade são tambémrelações e não escapam à razão e ao número,
às matemáticas.A natureza humana, já que não uma essência nem uma
idéia, é um concerto,uma harmonia,uma proporção.
Em um mundo de símbolos, que simbolizam os símbolos? Não ao
homem, pois, se não há sujeito, o homem não é nem o ser significado
nem o ser significante.O homemé, apenas, um momento na mensagem
que a natureza emite e recebe. A natureza, por sua vez, não é uma
substância nem uma coisa: é uma mensagem.Que diz essa mensagem? A
pergunta que me fiz ao começar e que reapareceu algumas vezes ao
longo destas páginas, retorna e se convertena pergunta final: que diz o
pensamento,qual é o sentido da significação? A natureza é estrutura e a
estrutura emite significados; portanto, não é possível suprimir a
pergunta sobre o significado. A filosofia, sob a máscara da semântica,
intervémem uma conversação a qual ninguém a convidou, mas que sem
ela careceria de sentido. Para que uma mensagem seja compreendida é
indispensável que o receptor conheça a clave utilizada pelo emissor. Os
homens tinham a presunção,no duplo sentido da palavra, de conhecera
clave,ao menos pela metade.Outros pensaram que a clavenão existia. O
fundamento da pretensão dos primeiros consistia em crer que o homem
era o receptordas mensagens que lhe dirigia Deus, o cosmos,à natureza
ou a Idéia. Os segundos afirmavam que o homem era o emissor. Kant
debilitou a primeira crença e mostrou que uma região da realidade era
intocável, inacessível. Sua crítica minou os sistemas metafísicos
tradicionais e fortificou a posição dos partidários da segunda hipótese.
Por meio da operação da dialética, Hegel transformou a inacessível
“coisa em si” em conceito; Marx deu o segundo passo e converteu o
“conceito” em “natureza histórica”; Engels chegou a pensar que “a
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
práxis, particularmente a experimentação e a indústria”, tinham
acabado para sempre com a “coisa em si”, à qual chamou de
“extravagância filosófica”. O fim da “coisa em si”, proclamado por
Hegel e seus discípulos materialistas, foi uma subversão das posições no
antigo diálogo que sustentam o homem e o cosmos: agora seria este o
emissor e a natureza escutaria. A ininteligibilidade da natureza se
transformou, pela negação criadora do conceito e da práxis, em
significação histórica. O homem humaniza o cosmos, isto é, lhe dá
sentido: converte-o em uma linguagem. A pergunta sobre o sentido do
sentido o marxismo respondedesta maneira: todo sentido é histórico. A
história dissolve o ser no sentido. A resposta de Lévi-Strauss a esta
afirmação poderia chamar-se: meditação nas ruínas de Taxila ou o
marxismo corrigido pelo budismo.
Talvez o capítulo mais belo deste livro que se chama Tristes
tropiques seja o último. O pensamento alcança nessas poucas páginas
uma densidadee uma transparência que fariam pensar nas construções
do cristal de rocha, não fosse o caso de estar animado por uma
palpitação quenão recorda tanto a imobilidademineral como a vibração
das ondas da luz. Uma geometria de resplendores que adota a forma
fascinante da espiral. É o caracol marinho, símbolo do vento e da
palavra, signo do movimento entre os antigos mexicanos: cada passo é
simultaneamente uma volta ao ponto de partida e um avançar para o
desconhecido. Aquilo que abandonamos ao principio nos espera,
transfigurado,ao final. Mudança e identidadesão metáforas do Mesmo:
se repete e nunca é o mesma. O etnógrafo regressa do Novo ao Velho
Mundo e i na antiga terra de Gándara une os dois extremos de sua
exploração: na selva brasileira viu como se constitui urra sociedade;em
Taxila contempla os restos de uma civilização que se concebeu a si
mesma como um sentido que se anula. No primeiro caso foi testemunho
do nascimento do sentido; no segundo, de sua negação. Duplo regresso:
o etnólogo volta das sociedades sem história à história presente; o
intelectual europeu regressa a um pensamento que nasceu há dois mil e
quinhentos anos e descobreque nesse começojá estava inscrito o fim. O
tempo tambémé uma metáfora e seu transcorrer é tão ilusório como os
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
nossos esforços para detê-lo: nem transcorre nem se detém. Nossa
própria imortalidade é ilusória: cada homem que morre assegura a
sobrevivência da espécie, cada espécie que se extingue confirma a
perduração de um movimento que se despenha incansavelmente para
uma imobilidadesempreiminentee sempreinalcançável.
Taxila não é só uma assembléia de civilizações mas de deuses: os
antigos cultos de fertilidadee Zoroastro,Apolo e a GrandeDeusa, Shiva
e o deus sem rosto do Islã. Entre todas essas divindades, a figura de
Buda, esse homemque renunciou a ser Deus e que,pela mesma decisão,
renunciou a ser homem.Assim venceu,ao mesmo tempo,a tentação da
eternidade e a não menos insidiosa da história. Lévi-Strauss assinala a
ausência de monumentos cristãos em Taxila. Não sei se está certo ao
pensar que o Islã impediu o encontro entre o budismo e o cristianismo
mas não se equivoca ao dizer que esse encontro teria dissipado o feitiço
terrível que enlouqueceuo Ocidente:sua carreira frenética em busca do
poder e a autodestruição. O budismo é a malha que falta na cadeia de
nossa história. É o primeiro nó e o último: o nó que, ao se desfazer,
desfaz a cadeia.A afirmação do sentido histórico culmina fatalmenteem
uma negação do sentido: “entre a crítica marxista que libera o homem
de suas primeiras cadeias e a crítica budista que consuma a sua
liberação,não há oposição nem contradição”. Um duplo movimentoque
une o princípio com o fim: aquilo que nos propôs o Buda ao começo de
nossa história talvez só é realizável ao terminar: unicamente o homem
livre do fardo da necessidadehistórica e da tirania da autoridadepoderá
contemplar sem medo a sua própria ninharia. A história do pensamento
e a ciência do Ocidente foram apenas uma série de “demonstrações
suplementares da conclusão a que quiséramos escapar”: a distinção
entreo sentido e a ausência de sentido é ilusória.
Disse ao princípio que a resposta de Peirce à pergunta sobre o
sentido era circular: o significado da significação é significar. Como no
caso do marxismo, Lévi-Strauss não nega nem contradiz a resposta de
Peirce; recolhe-a e, fiel ao movimento da espiral, enfrenta-a consigo
mesma: sentido e não-sentido são o mesmo. Esta afirmação é uma
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
repetição da antiga palavra do Iluminado e, simultaneamente, é uma
palavra distinta e que só um homemdo século XX poderia proferir. É a
verdadedo princípio,transfigurada por nossa história e que unicamente
diante de nós se revela: o sentido é uma operação, uma relação.
Combinação de chamadas e respostas psico-químicas ou de dharmas
impermanentes e insubstanciais, o eu não existe. Existe um nós e seu
existir é apenas um pestanejo, uma combinação de elementos que
tampouco têm existência própria. Cada homem e cada sociedade estão
condenados a “perfurar o muro da necessidade” e a cumprir o duro
dever da história, sabendo que cada movimento de liberação os encerra
ainda mais em sua prisão. Não há saída, não há outra margem? A
“idade de ouro está em nós” e é momentânea: esse instante
incomensurável em que – quaisquer que sejam nossas crenças, nossa
civilização e a época em que vivemos – nos sentimos não como um eu
isolado nem como um nós extraviado no labirinto dos séculos mas como
uma parte do todo, uma palpitação na respiração universal – fora do
tempo,fora da história, imersos na luz imóvel de um mineral, no aroma
branco de uma magnólia, no abismo encarnado e quase negro de uma
amapola,no olhar, “grávido de paciência,serenidadee perdão recíproco
que, às vezes, trocamos com um gato”. Lévi-Strauss chama a esses
instantes: despreendimento. Eu acrescentaria que são também um desconhecimento: dissolução do sentido no ser,embora saibamos queo ser é
idênticoa nada.
O Ocidentenos ensina que o ser se dissolve no sentido e o Oriente
que o sentido se dissolveem algo que não é nem ser nem não ser: em um
O Mesmo quenenhuma linguagemdesigna excetoa do silêncio.Pois nós,
os homens, estamos feitos de tal modo que o silêncio também é
linguagempara nós. A palavra do Buda tem sentido,embora afirme que
nada o tem, porque aponta para o silêncio: se quisermos saber o que
realmente disse devemos interrogar o seu silêncio. Pois bem, a
interpretação do que não disse o Buda é o eixo da grande controvérsia
que divide as escolas desde o princípio. A tradição conta que o
Iluminado não respondeu a dez perguntas: o mundo é eterno ou não?, o
mundo é infinito ou não?, corpo e alma são o mesmoou são diferentes?,
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
o Tathagatta viverá depois de sua morteou não, ou ambas as coisas, ou
nenhuma das duas? Para alguns essas perguntas não podiam ser
respondidas; para outros, Gautama não soube como responder; e para
outros,preferiu não responder.K. N. Jayatileketraduz as interpretações
das escolas em termos modernos.20 Se o Buda não conhecia as respostas,
foi um cético ou um agnóstico ingênuo; se preferiu calar porque
respondê-las poderia desviar os ouvintes da verdadeira via, foi um
reformador pragmático;se calou porque não havia resposta possível,foi
um racionalista agnóstico (as perguntas estão mais além dos limites da
razão) ou um positivista lógico (as perguntas carecem de sentido e,
portanto,de resposta). O jovemprofessor singalês se inclina pela última
solução.A despeitode que a tradição histórica pareça contradizê-lo, sua
hipótese me parece plausível se se recorda o caráter extremamente
intelectualista do budismo, fundado em uma teoria combinatória do
mundo e do ego que prefigura a lógica contemporânea. Por esta
interpretação, não muito distanciada da posição de Lévi-Strauss,
esquece outra possibilidade: o silêncio, em si mesmo, é uma resposta.
Essa foi a interpretação da tendência Madhyamika e de Nagarjuna e
seus discípulos. Há dois silêncios: um, antes da palavra, é um querer
dizer;outro,depois da palavra,é um saber quenão se podedizer a única
coisa que valeria a pena dizer-se. O Buda disse tudo que se pode dizer
com as palavras: os erros e os acertos da razão, a verdade e a mentira
dos sentidos, a fulguração e o vazio do instante, a liberdade e a
escravidão do niilismo. Palavra plena de razões que se anulam e de
sensaçõesquese entredevoram.Mas seu silêncio diz algo distinto.
A essência da palavra é a relação e daí que seja a cifra, a
encarnação momentâneade tudo que é relativo. Toda palavra engendra
uma palavra que a contradiz, toda palavra é relação entreuma negação
e uma afirmação. Relação é atar alteridades, não resolução de
contradições.Por isso a linguagemé o reino da dialética que sem cessar
se destrói e renasce só para morrer. A linguagem é dialética, operação,
comunicação. Se o silêncio do Buda fosse a expressão deste relativismo
não seria silêncio mas palavra. Não é assim:com o seu silêncio cessamo
20
Early Budhist Theory of Knowledge, Londres,1963.
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
movimento,a operação,a dialética,a palavra. Ao mesmotempo,não é a
negação da dialética nem do movimento: o silêncio do Buda é a
resolução da linguagem. Saímos do silêncio e voltamos ao silêncio: à
palavra que deixou de ser palavra. O que diz o silêncio do Buda não é
negação nem afirmação.Diz outra coisa, aludea um mais alémque está
aqui. Diz Sunyata: tudo está vazio porquetudo está pleno,a palavra não
é dizer porque o único dizer é o silêncio. Não um niilismo mas um
relativismoquese destrói e vai mais alémde si mesmo.O movimentonão
se resolve em imobilidade: é imobilidade; a imobilidade, movimento. A
negação do mundo implica uma volta ao mundo, o ascetismo é um
regresso aos sentidos,Samsara é Nirvana, a realidadeé a cifra adorável
e terrível da irrealidade,o instantenão é a refutação,mas a encarnação
da eternidade,o corpo é uma janelapara o infinito:é o próprio infinito.
Já notamos que os sentidos são ao mesmo tempo os emissores e os
receptores de todo sentido? Reduzir o mundo à significação é tão
absurdo como reduzi-lo aos sentidos.Plenitudedos sentidos:aí o sentido
se desvanecepara, um instante depois, contemplar como a sensação se
dispersa. Vibração, ondas, chamadas e respostas: silêncio. Não o saber
do vazio: um saber vazio. O silêncio do Buda não é um conhecimento
mas o que está depois do conhecimento: uma sabedoria. Um
desconhecimento.Um estar solto e,assim,resolvido.* A quietudeé dança
e a solidão do asceta é idêntica, no centro da espiral imóvel,ao abraço
dos pares enamorados do santuário de Karli. Saber que sabe nada e que
culmina em uma poética e em uma erótica. Ato instantâneo,forma que
se desagrega,palavra quese evapora:a artede dançar sobreo abismo.
*
No original,jogo verbal entresueltoe resuelto, impossívelde ser reproduzido emportuguês.(N. do T.).
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Octavio Paz – Claude Lévi-Strauss ou o Festim de Esopo
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