Introdução O grande problema ao qual atêm-se este trabalho é referente à pergunta metafísica: Qual a relação da pessoa de Cristo, e/ou o Jesus Histórico, com o Ser de Deus na segunda metade do século XIX na cristologia do teólogo luterano Gottfried Thomasius? De onde surgem outras questões relacionadas. Como conciliar uma natureza humana e uma natureza divina em um único ser? Tanto Thomasius como Dorner afirmam que estas naturezas estão unidas e de tal união a salvação é completamente dependente. Como explicar a união do divino com o humano? Como tal síntese se torna possível? Thomasius procura defender o dogma metafísico da encarnação com a teoria do esvaziamento (quenosis), onde o Logos préexistente abre mão dos atributos metafísicos da divindade (ou aqueles que o relacionam com a criação), no entanto, os atributos morais permanecem. Mas para que os atributos morais de Deus se tornem completamente encarnados em um homem, este homem teria estes mesmos atributos na medida em que a divindade os possui, ou seja, em uma medida infinita. Como um homem (finito) teria tais qualidades que devem ser infinitas? No processo dialético proposto por Thomasius é possível afirmar que a síntese do Logos esvaziado seja uma união de Deus e homem? Ou o Cristo dele é algo completamente diferente tanto da divindade quanto da humanidade (Thomasius desejava explicar Calcedônia de modo compreensivo no século XIX, não negá-la)? O escopo desta pesquisa consiste em levantar elementos no decorrer da história do dogma (principalmente nos período relacionados aos Concílios de Nicéia e Calcedônia) pautados nos temas: síntese entre Deus e homem e cristologia da encarnação do Logos. Com o intuito de compreender as vias de pensamento da teoria da cristologia quenótica proposta por Thomasius, o colocaremos diante da crítica feita por Dorner, de modo que seja possível após exposição desta teoria aos questionamentos no seu próprio contexto histórico levantar questões pertinentes na atualidade. A pretensão do tema proposto é estudar um período profícuo em termos de sistemas teológicos, herdeiros diretos dos dois grandes pensadores Hegel e Schleiermacher, que segundo Tillich afirma, produziram a grande síntese filosófica e teológica, respectivamente. Admitiremos como possibilidades de resposta, quanto ao paradoxo da encarnação, as interpretações de Calcedônia conforme foram propostas por John Hick e Roger Haight. 9 A motivação de Thomasius era produzir uma síntese entre o conceito das duas naturezas expresso pelo Concílio de Calcedônia e o pensamento moderno do século XIX, de modo que a síntese que Hegel tanto insistia em manter entre Deus e Humanidade fosse observada sem o distanciar-se da ortodoxia luterana. A resposta foi o auto-esvaziamento do Logos divino. Segundo Thomasius a idéia cent ral da teoria quenótica diz respeito ao abandono dos atributos divinos (onipotência, onisciência e onipresença) quando da encarnação do Logos divino vivendo uma vida segundo os limites da humanidade. Seu interesse era combinar a fé na divindade de Jesus Cristo com a sua vida plenamente humana, ou, a vida de um homem pleno. Esta é a forma como Thomasius tentava interpretar e atualizar o conceito de duas naturezas em Cristo formulado pelo Concílio de Calcedônia. Thomasius tomara uma posição contrária à de Dorner que falava de uma encarnação gradual: Jesus começou o início de sua vida como mero homem, e ao final dela era Deus. Para Dorner, principal representante da teologia da mediação, Deus e homem se parecem e existe na natureza essencial de Deus a necessidade e o impulso de comunicar-se com a humanidade. Desta forma a encarnação foi um evento histórico necessário independente do dogma da queda de Adão. Cristo possibilitou uma nova humanidade com a capacidade de receptividade do divino melhorada. No entanto, a encarnação não ocorre de súbito, mas sim de forma gradual; a cada estágio a capacidade receptiva do divino em Jesus Cristo era aumentada gradativamente, encontrando seu ápice na ressurreição. A justificativa para a produção deste trabalho se dá pelas seguintes razões categorizadas a seguir: a) Contribuição Histórica: a teoria quenótica criada por Gottfried Thomasius surge em um contexto de novas descobertas intelectuais, superação e desenvolvimento do pensamento humano, a modernidade. O pensamento teológico sofre uma maturação através da influência de Hegel e Schleiermacher, tais mudanças são observadas até o século XXI. b) Contribuição Acadêmica: em meio a embates o pensamento teológico desenvolveu-se por toda a história da igreja, neste período não é diferente. Thomasius foi o primeiro na história do pensamento cristão a propor o esvaziamento do Logos como possibilidade de explicação das duas naturezas em Cristo, criando assim a teologia quenótica que viria a desenvolver-se nos anos 10 seguintes em diversas propostas. Contrário a Thomasius surge Dorner com a encarnação gradual, possibilitando assim a ambas as posições a lapidação de seus argumentos. Tencionamos uma pesquisa de base, que ofereça dados elementares, que se possível, darão suporte para a realização de estudos mais aprofundados sobre o tema posteriormente. Também o intento desta pesquisa objetiva descrever as características do objeto de estudo, ou seja, a teoria da Cristologia Quenótica apresentada por Thomasius. A pesquisa está interessada no porquê e nas fontes da teoria quenótica. Pretende identificar os fatores que contrib uíram para ocorrência e o desenvolvimento deste fenômeno teológico-histórico quanto a uma possibilidade de explicação do mistério da encarnação. Buscam-se aqui as fontes, as razões de tal proposição teórica. Também temos em mente outros objetivos mais específicos e diretos, a seguir: 1. Levantar elementos no decorrer da história do dogma (séculos IV, V e XIX) pautados nos temas: síntese entre Deus e homem e cristologia da encarnação do Logos; 2. Compreender as vias de pensamento da teoria da cristologia quenótica proposta por Thomasius, submentendo-o à crítica feita por Dorner em sua proposta de encarnação gradual; 3. Expor esta teoria aos questionamentos no seu próprio cont exto histórico; 4. Levantar questões pertinentes na atualidade; 5. Estudar um período profícuo em termos de sistemas teológicos, herdeiros diretos dos dois grandes pensadores Hegel e Schleiermacher. Esta será uma pesquisa histórico-qualitativa com fundamentação discursiva. Para conduzir a efeito a aludida pesquisa como parte deste processo, procederemos a um estudo da história que permeia o nascimento da teoria quenótica e os desenvolvimentos teológicos e filosóficos relacionados, não deixando de perceber o tempo, o lugar, as contingências e circunstâncias em que o pensamento forma-se. Também estudaremos documentos produzidos pelos agentes formadores do pensamento neste momento histórico, ou seja, Gottfried Thomasius e August Dorner que por sua fez foram compilados por Claude Welch na obra God and Incarnation in Mid-Nineteenth Century German Theology. O escopo da pesquisa se constitui eminentemente de pesquisa teórica, um levantamento bibliográfico referente ao desenvolvimento e/ou conceitos da cristologia quenótica na história do dogma, mesmo quando esta cristologia possui apenas conceitos embrionários, numa tentativa de 11 fazer um levantamento conceitual de interpretações acerca da encarnação. Procurando ater-nos aos textos clássicos, ou seja, obras primárias quando possível. Quanto aos escritos de Thomasius e Dorner concentramo-nos na compilação de Claude Welch, o uso desta obra se dá pela dificuldade em ter acesso a obras alemãs do século XIX, as quais estão disponíveis apenas em antiquários europeus, o que inviabiliza no momento o uso destas fontes primárias. Para um parâmetro da possibilidade de uma cristologia quenótica na atualidade e de interpretação de Calcedônia utilizaremos propostas atuais, conforme já sugerimos, como Roger Haight e John Hick. Executaremos neste trabalho a análise e a exposição do pensamento de Gottfried Thomasius procurando a objetividade na exposição sem perder a fidelidade ao pensamento do autor. No capítulo central nos concentraremos primordialmente ao texto do autor pela via da compilação feita por Claude Welch. Iremos associar ao pensamento de Thomasius, precisamente quanto à abordagem nas categorias psicológicas, a elaboração e superação cristológica produzida por Jacques Dupuis quanto a esta questão específica. Apesar de nos concentrarmos mais detidamente em expor a teoria quenótica de Thomasius, contudo, não nos olvidaremos a elaborações cristológicas de teólogos contemporâneos. Procuraremos relacionar a teoria de Thomasius com o principal teólogo divergente de sua posição, com o intuito de observar como as relações dialéticas se deram entre eles. E também como estas moldaram a estrutura da teoria que é por hora nosso objeto de estudo. Em um primeiro momento, o capítulo inicial, nós desejamos situar Thomasius dentro do seu contexto. Pois entendemos que as formulações teológicas não surgem no vácuo. São sim, resultado de inúmeros fatores que por vezes não temos a capacidade de adentrarmos numa completa compreensão das relações envolvidas devido à distância do objeto em estudo. Portanto, sustento que para a compreensão das assertivas conforme propostas por Thomasius é necessário situá-lo no seu contexto influenciador direto e também relacioná-lo quanto às suas fontes. Partindo da idéia de que estudamos o passado para compreender o presente. Não poderíamos deixar a teoria quenótica pressa nas grades do passado, sem analisarmos e expormos os seus desenvolvimentos posteriores. Fazemos isto para enxergarmos as reações, as críticas, as relações e as superações que fazem a teologia uma matéria dinâmica. Assim procedendo, nós iremos compreender as propostas quenóticas que são esboçadas no presente. Bem como, também 12 poderemos enxergar à diante, ou seja, poderemos ver as possibilidades futuras do desenvolvimento da cristologia. Adotamos a grafia aportuguesada para o termo grego kenosis, e também para os seus correlatos diretos. Ou seja, usaremos as palavras: quênosis, quenótico, quenótica, quenoticismo. Apesar de que nas diversas publicações em português são utilizadas grafias inúmeras para o termo grego quando este surge em discussão. Optamos pelo uso do português. Vejamos em um breve resumo como pretendemos atingir o objetivo que nos propomos neste trabalho: O capítulo primeiro foi construído de modo a estabelecer a contextualização necessária para a compreensão da teoria quenótica de Thomasius. As bases, influências e pressupostos de Thomasius são apresentados. Na primeira parte deste capítulo nos concentramos em analisar um dos concílios mais importantes da era cristã, o Concílio de Calcedônia. Mas também dedicamos esforços para compreendermos o resultado deste concílio: a Fórmula de Calcedônia, em suas relações cristológicas anteriores. A Definição de Calcedônia é o ponto de partida utilizado por Thomasius para construir sua cristologia, não desejava ele sair dos limites estabelecidos neste concílio. Na segunda parte deste capítulo, nos dedicamos em expor rapidamente aspectos da cristologia de Hegel e Schleiermacher que foram altamente motivadores para Thomasius. As propostas, questões e dificuldades cristológicas levantadas por estes autores, nortearam a proposta quenótica de Thomasius como resposta satisfatória diante da ortodoxia luterana e do pensamento moderno. Já no segundo capítulo encontramos o ponto central deste trabalho. O nosso objeto de estudo propriamente dito está neste ponto. Primeiramente expomos um esboço da cristologia de Isaak August Dorner, principal crítico do quenoticismo na segunda metade do século XIX, portanto, contemporâneo de Thomasius. A importância de Dorner não consiste somente na contemporaneidade com Thomasius, mas também por ter sido um dos proficientes teólogos do período em exame. A seguir, de modo sucinto explicamos a fonte que utilizamos para analisar o pensamento cristológico de Thomasius. Isto ocorre devido às diversas dificuldades que tivemos de ter acesso ás obras originais do autor, mas também existem problemas relacionados à compreensão destas obras em um alemão de mais de 150 anos atrás. A seguir, nos dedicamos a conhecer melhor o autor, nosso objeto de estudo. Afinal de contas as obras, sejam teológicas ou literárias, são fruto do trabalho de pessoas que estiveram condicionadas aos seus respectivos ambientes e também às 13 funções que desempenharam no decurso de suas vidas. Por fim, neste capítulo, encontramos o núcleo central deste trabalho: a exposição da teoria quenótica conforme foi proposta por Gottfried Thomasius na Alemanha na segunda metade do século XIX. Procuramos expor o seu pensamento seguindo as suas próprias estruturas de argumentação, de modo seqüencial como vão surgindo à medida que desenvolve sua teoria quenótica. Para tanto, nós iremos apresentar as principais partes do projeto cristológico de Thomasius que estão relacionadas com a encarnação do Logos, ou como ele preferia, com o auto-esvaziamento do Logos. Estas partes principais são as seguintes: a base da encarnação, a possibilidade da encarnação, o ato da encarnação, a encarnação como apropriação da natureza humana, a encarnação como auto-limitação do Filho de Deus, a pessoa do Deus-homem e a resposta de Thomasius a Dorner em defesa do quenoticismo. Enfim, estas são as partes constituintes do processo de expor e analisar a teoria quenótica de Gottfried Thomasius. No capítulo final nos concentraremos em apresentar os diversos modos ou vias que a cristolo gia quenótica tomou após a sua forma inicial encontrada em Thomasius. Na primeira parte mostraremos o pensamento quenótico de alguns teólogos posteriores ao quenoticismo inicial, quatro teólogos ao todo. Portanto, estaremos longe de pontuar completamente a influência da cristologia quenótica em toda a sua amplitude de ação. Desejamos mostrar apenas os principais expoentes desta possibilidade teológica de resposta ao problema da doutrina da encarnação do Logos. Assim, mostraremos o quenoticismo dos seguintes teólogos: J.H.A. Ebrard, W.H.C.F. Gess, H.L. Martensen e C. Gore. A seguir apresentaremos a proposta atual de John Hick. Segundo ele a doutrina tradicional da encarnação do Logos não precisa ser descartada, apenas deve-se utilizar uma chave hermenêutica diferente, propõe a metáfora. A linguagem metafórica é a linguagem teológica por excelência. Por fim, mostraremos a tese de Roger Haight, Jesus como símbolo de Deus. A inovação está numa possibilidade de entendimento da formulação cristológica de Calcedônia pelo veio do simbólico. Para ele, Jesus é o símbolo concreto que medeia a presença de Deus à humanidade. Assim seguiremos em nossa empreitada. 14 1 – Introdução à Cristologia Quenótica Neste primeiro momento é necessária uma exposição dos movimentos teológicos e dos principais pensadores que direta ou indiretamente foram influenciadores do conteúdo, método e pressupostos teológicos de Thomasius. São estes: o Concílio de Calcedônia, já que Thomasius pretende expressar a doutrina das duas naturezas de Cristo, mormente desejando uma atualização deste dogma dentro do seu contexto teológico; depois temos Hegel, de quem Thomasius toma emprestado seu método da dialética, aplicando-o na tentativa de responder à sociedade moderna acerca da encarnação; por fim temos Schleiermacher, influenciador direto do método, conteúdo e formulação usados por Thomasius na construção de sua teologia quenótica, principalmente se utilizando do Cristo conforme expresso pelo “Pai da Teologia Moderna”. 1.1 – Concílio de Calcedônia As partes envolvidas na disputa ocorrida no Concílio de Calcedônia eram concordes em um ponto, a saber, a doutrina da Trindade. A divergência dizia respeito à natureza de Jesus Cristo, discutiam a cerca da terminologia apropriada para descrever a pessoa e a existência de Jesus. O cerne deste embate era sobre a salvação. A posição corrente era que Jesus para ser salvador e trazer a efeito a salvação, deveria ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Se a doutrina cristológica fosse expressa sem a defesa das duas naturezas, a capacidade de Jesus Cristo para salvar, estava sendo subvertida. Benedito Ferraro diz que, “O que está em jogo neste concílio é a distinção entre a natureza divina e a natureza humana de Jesus Cristo.” 1 Para levar a efeito tal propósito o Concílio de Calcedônia retoma as definições anteriormente construídas. Desta feita é necessário revermos alguns conceitos, escolas e momentos históricos que influenciaram diretamente na composição deste Concílio. A cristologia de Antioquia ao enfatizar a humanidade expressava Cristo como exemplo humano e não como salvador divino, “Antioquia dava importância ao estudo de documentos, que continham a vida de Jesus segundo consta nos evangelhos e que, portanto, apreciava a sua humanidade”2 . Já a cristologia de Alexandria descrevia a Jesus Cristo como o 1 2 Benedito Ferraro, Encarnação: questão de gênero?, p. 32. Kenneth Scott Latourette, Historia del Cristianismo, p. 219. 15 salvador divino, o Logos de Deus e não como pessoa humana, “Alexandria, interpretava as Escrituras alegoricamente, reduzia ao mínimo o histórico e, portanto reduzia também a parte humana de Jesus, e dava grande peso a sua divindade”3 . No entanto, seria necessário a ele, possuir as naturezas divina e humana que o tornariam apto a realizar a salvação através da mediação das duas naturezas. Alguns pensadores e personagens diretamente relacionados aos acontecimentos se destacam neste período quanto ao tema, mormente em questão, veremos sucintamente alguns deles. Cirilo de Alexandria (†444), patriarca desta cidade de 412 a 444, defendia a fórmula de uma natureza depois da união, e essa natureza única de Cristo era mais divina que humana. Cirilo também “afirmou uma “união hipostática” em que a humanidade e a divindade de Cristo eram vistas como duas naturezas distintas e inseparáveis. Ocorreu alguma confusão porque ele usava physis para referir-se ao Logos divino, mas não à humanidade de Cristo. Falava de “uma natureza de Deus, o Verbo encarnado”, que era uma frase apolinariana. Tal ênfase e tais formulações abriram caminho para a posição monofisita que veio a predominar na teologia alexandrina depois da sua morte.”4 Historicamente falando, a única conclusão sobre a cristologia de Cirilo é que ela é ambígua. Mesmo assim, Cirilo contribuiu grandemente com o desenvolvimento do pensamento cristão, precisamente em matéria de cristologia quando lançou as bases para a doutrina da união hipostática. Olson diz que a união hipostática “... tornou-se o alicerce da Grande Igreja na explicação e interpretação do mistério da encarnação de Deus em Cristo. Em poucas palavras, ela significa que o sujeito da vida de Jesus Cristo era o Filho de Deus que assumiu a natureza e existência humana, sem deixar de ser verdadeiramente divino. Por outras palavras, segundo Cirilo, não havia nenhum sujeito pessoal humano na encarnação. A hypostasis (subsistência pessoal) de Jesus Cristo era o eterno Filho de Deus que condescendeu em assumir a carne humana através de Maria. Segundo o argumento de Cirilo, Maria deu à luz a Deus em carne. Essa é a essência da encarnação.”5 Cirilo admitia que Jesus possuía uma alma humana e reconhecia a psicologia humana de Jesus, argumentava ele, que Jesus cresceu em graça e sabedoria e não somente fisicamente, mas os seus sofrimentos estão associados à sua alma, também exemplo de sua obediência humana. Todavia, cautelosamente para não assemelhar-se a Nestório (divisão de 3 Kenneth Scott Latourette, p. 219. L.G. Whitlock in Walter A. Elwell (ed.), Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, vol. I, p. 282. 5 Roger Olson, História da Teologia Cristã, p. 222. 4 16 pessoas), enfatizou a unidade da pessoa em Jesus Cristo, onde apenas o Logos divino é verdadeiramente ativo. Diante destas idéias a implicação é que Cristo não possuía uma autoconsciência humana (ou centro de consciência humano ), e se porventura esta existisse, estava inativa. Para Cirilo a personalidade de Jesus Cristo era formada pelo Logos divino (a própria personalidade), explicada pelo uso do termo anhypostasia (uma humanidade impessoal), ou seja, o homem Jesus não possuía existência pessoal à parte do Logos. Cirilo expressava a encarnação da seguinte forma: “Deus, o Logos, não entrou em um homem, mas ele ‘verdadeiramente’ tornou-se homem sem deixar de ser Deus.”6 Para ele a união hipostática era algo tão forte que após esta havia uma só natureza. Expressar as idéias de divindade e humanidade de Cristo se constituía de um simples aspecto conceitual de se falar das duas naturezas, no entanto, dizia ele que a união ocorrida após a encarnação produziu uma só natureza e uma só pessoa. Desembocava agora, naturalmente, no seu conceito de communicatio idiomatum, a única pessoa Jesus Cristo era tanto divino, como humano, uma única pessoa com dois modos de ser (o divino e o humano). Nestório provavelmente nasceu em Antioquia no final do século IV e morreu no exílio em um deserto na África do Norte († 451). Foi aluno e discípulo do mais importante teólogo antioqueno Teodoro de Mopsuéstia. Foi consagrado bispo de Constantinopla em 428 pelo imperador Teodósio II (favorável ao pensamento teológico da escola antioquena e, por conseguinte contrário a Alexandria). Como bispo da cidade mais importante do Império, também foi considerado patriarca da região e papa do Oriente. Neste período, por causa da posição adotada por Teodósio II e Nestório o partido teológico alexandrino sofre grande perseguição por parte destes. Esta perseguição era provocada pela defesa das idéias de Apolinário sobre a pessoa de Cristo, ou seja, uma única natureza após a encarnação. Nestório criticava o uso do termo Theotokos, dizendo não ser próprio chamar Maria de “portadora de Deus”, cerne do problema dizia respeito à confusão entre as duas diferentes naturezas de Cristo, ou seja, a natureza divina não pode nascer e embora a natureza humana de Cristo tenha nascido de Maria, a sua natureza divina não, portanto, segundo Nestório, o termo correto para se atribuir a Maria é Christotokos (“portadora de Cristo”). “A cristologia de Nestório pode ser mais bem considerada como uma tentativa de levar a cristologia de Teodoro de Mopsuéstia a uma conclusão lógica. (...) Nestório procurou elaborar uma maneira de explicar a verdadeira humanidade de Jesus e sua verdadeira divindade que preservasse a integralidade 6 Aloys Grillmeier, Christ in Christian tradition, vol. 1 – From the beginnings to the Council of Chalcedon, p. 462 Apud Roger Olson p. 223. 17 natural das duas realidades na sua pessoa. Não podia conceber uma natureza (physis) humana sem uma pessoa (prosopon) ligada a ela. Um axioma básico do pensamento de Nestório era que a verdadeira humanidade não pode existir de modo algum sem uma pessoa humana individual que seja o centro da natureza humana. Prosopon (pessoa) e physis (natureza) estão juntos, tanto na humanidade como na divindade.”7 Assim sendo, a implicação a que logicamente chegamos diante da tese de Nestório é que Jesus Cristo é duas pessoas. Nestório expressa o seu conceito de encarnação do Logos como uma mútua habitação das duas pessoas, uma na outra, que sejam o eterno Filho de Deus e o ser humano Jesus, formando a pessoa composta Jesus Cristo. Para ele Deus uniu a pessoa divina com a natureza humana, sem, contudo negar (modificar e/ou alterar) as duas pessoas (divina e humana) que correspondem respectivamente a cada uma das naturezas unidas em Jesus Cristo. A grande tarefa de Nestório era explicar como duas pessoas podem ser uma única, ou seja, explicar a união do divino e do humano em Jesus Cristo. Como solução a esta questão cunhou o termo synapheia (conjunção) com o intuito de expressar a “conjunção” da natureza-pessoa divina com a natureza-pessoa humana em Jesus Cristo (o Logos divino e o homem Jesus). Para Nestório este conceito de conjunção possibilitava expressar Jesus Cristo como verdadeiramente Deus e ainda verdadeiramente humano sem contudo haver mistura entre as duas pessoas (claramente contrário ao conceito de “communicatio idiomatum” de Cirilo). A pessoa humana agia conforme a natureza humana e a pessoa divina conforme a natureza divina. Embora fazendo esta distinção, Nestório dizia que as atividades eram realizadas conjuntamente. Finalmente, a despeito de sua tentativa de explicar a sua tese da conjunção (duas pessoas que equivaliam a uma única), a implicação da qual nunca se desvencilhou foi que seu Cristo era dois indivíduos, onde o Logos não entrou verdadeiramente na existência humana, mas apenas em uma associação com o homem. 8 Eutiques (378-455) era um monge que vivia em Constantinopla. Apoiava Alexandria; após a morte de Cirilo seguiu Dióscoro quanto à natureza única de Cristo. “Embora seja difícil averiguar exatamente qual era o ensino de Eutiques a respeito de Cristo, não há dúvida de que foi um passo além da linguagem de Cirilo e, sobre o processo de encarnação, afirmou que se tratava de “duas naturezas antes da união (de Deus com a humanidade), mas uma só natureza depois ou como resultado da união”.”9 Negou a humanidade de Cristo ao afirmar que não era consubstancial com o homem. Dizia ele que por causa da encarnação, o corpo de 7 Roger Olson, p. 219. Vd. Roger Olson, p. 215-222. 9 Roger Olson, 231. Cp. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 110. 8 18 Cristo havia sido deificado a tal ponto que não era consubstancial com o homem (humanidade). “Segundo a teologia de Eutiques, a realidade humana de Jesus não fazia diferença ao Logos e até mesmo era absorvida na união da encarnação.”10 Eutiques acreditava que Cristo não possuía uma personalidade humana, uma existência humana individual e nem mesmo uma natureza humana como a nossa. Estas idéias indicam algo bem próximo do apolinarismo e do docetismo radical. “Ele ensinava que, desde o momento da concepção em Maria, Jesus Cristo era um ser híbrido entre a humanidade e a divindade – uma única natureza divina-humana –, que juntava e misturava as duas naturezas de tal maneira que a natureza humana era subjugada e absorvida pela divina.”11 Segundo Bettenson: “Em 433, elaborou-se um credo de união para conciliar os princípios alexandrinos com os princípios antioquianos. Admitiu-se o termo Theotókos e a palavra ‘união’ substituiu ‘conjunção’. Na realidade, ninguém ficou satisfeito. Os alexandrinos, inquietos pelo que lhes parecia insistência excessiva na distinção das duas naturezas, estavam prontos, nem bem desaparecido Cirilo, para defender o alexandrinismo extremista de Eutiques, monge de Constantinopla, cujo antinestorianismo não se baseava numa teologia suficientemente esclarecida. Eutiques, em novembro de 448, foi convocado pelo Sínodo de Constantinopla para responder à acusação de heresia.”12 Quando da realização do Sínodo de Constantinopla em 448, Dióscoro manipulou este sínodo para condenar Eutiques, na verdade ele era favorável ao monge de Constantinopla, desejava apenas tirar proveito próprio da situação. Vejamos Olson: “O motivo de ter causado a condenação de Eutiques era oferecer ao monge de Constantinopla refúgio e comunhão com Alexandria e depois usar sua condenação e subseqüente comunhão para forçar uma confrontação com os líderes de Antioquia e até mesmo com o próprio patriarca de Constantinopla.”13 Sobre Dióscoro, Gonzalez afirma que ele: ... foi muito além de seu predecessor tanto em seu zelo pelo que ele cria ser ortodoxia, quanto em sua disposição de usar todos os meios disponíveis para alcançar a vitória final de sua própria causa. Ele via a fórmula conciliatória de 433 como uma vitória da heresia sobre a verdadeira fé e como uma humilhação da antiga diocese de Alexandria, que deveria gozar de primazia no Oriente. 10 Roger Olson, p. 232. Roger Olson, 232. 12 Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 96. 13 Roger Olson, 233. 11 19 Quando Dióscoro sucedeu Cirilo, as circunstâncias pareciam estar arranjadas do modo ideal para a execução do projeto de destruir, de uma vez por todas, a cristologia antioquiana, e assim humilhar a sé de Antioquia . (...) As condições políticas também favoreciam Dióscoro, pois Teodósio II, muito velho e fraco para governar, praticamente colocou os afazeres do estado nas mãos de seu alto-oficial Crisáfio, que ficaria facilmente tentado pelo ouro alexandrino. Finalmente, Dióscoro tinha o apoio de uma hoste de monges espalhados por todo o Oriente – e até mesmo em Antioquia – que estavam implorando por uma oportunidade de defender a verdadeira fé contra os hereges. 14 Eutiques trabalhou grandemente durante o período entre o Sínodo em Constantinopla (448) e o Concílio dos Ladrões em Éfeso em 449, procur ando obter a ajuda de Leão (440461), bispo de Roma. Dióscoro usava as riquezas de Alexandria para atrair o imperador para o seu lado. “Por trás de Êutiques e Dióscoro está uma grande parte do movimento monástico e da piedade popular, que tendem irresistivelmente para a cristologia monofisita, que parece garantir melhor a divinização de Cristo e do homem.”15 Flaviano, patriarca de Constantinopla, foi obrigado a dar apoio ao Sínodo que condenou Eutiques. Já no Concílio Ecumênico em Éfeso em 449, ou o assim chamado Sínodo dos Ladrões, o eutiquianismo foi aprovado pelo uso da força por Dióscoro e Teodoreto de Ciro (393-466) (principal representante de Antioquia) e os nestorianos (seguidores das idéias de Nestório foram condenados e depostos de suas funções eclesiásticas). Flaviano de Constantinopla levou ao Sínodo um documento do bispo de Roma, Leão, contra Eutiques, mais conhecido como Tomo de Leão 16 . Flaviano até que tentou ler o documento no Sínodo, mas foi espancado pelos monges egípcios que Dióscoro trouxe, fato que levou Flaviano à morte mais tarde. Alexandria estava com a vitória. O imperador Teodósio II apoiou o Concílio. Eutiques triunfou. Esclarecedor é o relato do historiador católico Franco Pierini quanto a este fato ocorrido: Leão I, enviada a carta dogmática ao patriarca Flaviano, aceita a iniciativa do imperador Teodósio II de reunir um novo concílio ecumênico em Éfeso, fazendo-se representar pelo bispo Júlio, pelo presbítero Renato e pelo diácono Hilaro. Em Éfeso, porém, em agosto de 449, o patriarca alexandrino Dióscoro consegue impor a própria vontade aos 135 bispos presentes, recorrendo à violência através de monges fanáticos e com a ajuda das tropas imperiais: frente aos constrangidos 14 Justo L. Gonzalez, Uma História do Pensamento Cristão, vol. I, p. 356. Franco Pierini, A Idade Antiga, p. 201. 16 “O conteúdo desta carta pode ser assim resumido: Cristo é Deus e homem, nascido de Maria, tendo a virgindade dela sido preservada. As duas substâncias seguem sendo o que elas eram, mas combinadas em uma só pessoa.” Reinhold Seeberg, History of Doctrines, vol. I – history of doctrines in the ancient church, p. 270. 15 20 legados pontifícios, reabilita Êutiques, depõe os principais bispos adversários, como Teodoreto de Ciro, Domno de Antioquia, Eusébio de Doriléia, Ibas de Edessa, enquanto o patriarca Flaviano é gravemente ferido, tanto que morre três dias depois. Os legados de Leão I, fugindo de Éfeso, levam ao papa os apelos de Flaviano, de Eusébio e de Teodoreto; todavia, as disposições tomadas naquele que passou para a história como “latrocinium ephesinum” permanecem em vigor até que Teodósio II, totalmente submisso ao protetor de Êutiques, Crisáfio, desaparece da cena, morrendo no dia 28 de julho de 450. 17 Após o encerramento do Sínodo, o bispo Leão enviou uma carta ao imperador Teodósio II exigindo a reparação dos erros, ou seja, que Eutiques fosse condenado, Teodoreto de Ciro voltasse a ocupar o cargo de líder da Igreja de Antioquia e que os assassinos de Flaviano fossem punidos. O imperador negou completamente os pedidos feitos. Em 28 de julho de 450 Teodósio, literalmente veio a cair do cavalo e morrer. Pulquéria, sua irmã, assumiu o Império ao lado de Marciano e convocaram um novo Concílio com o propósito de revogar o Sínodo dos Ladrões, que se realizou em Calcedônia (451). Concílio e Definição de Calcedônia Iniciou em 8 de outubro de 451, havia vários bispos e oficiais de estado do mais alto escalão, e juntamente o casal imperial, Pulquéria e Marciano. Quanto a este assunto específico referente ao número de participantes, onde não há consenso entre os historiadores, é deveras importante a conclusão de Lorenzo Perrone: “... o concílio mais freqüentado da antiguidade (...) A respeito do número efetivo de participantes não reina unanimidade entre os historiadores, e as próprias fontes contemporâneas dão indicações discordantes. Enquanto Leão fala de “quase 600” participantes (...) e seu legado Lucêncio (...) confirma tal cifra, o relatório do concílio enviado a Leão a abaixa para 520. Por sua vez, a lista das assinaturas apostas à definição de fé traz cerca de 450 nomes (...). A cifra de 630 parece ter valor simbólico, em relação aos 318 padres de Nicéia. Dos tradicionais 600 se chega hoje a cerca de 350 membros, a partir das listas dos participantes das sessões. Os nomes a mais devem ter sido acrescentados em segundo tempo.”18 À frente continua: “Embora com participação tão ampla, o concílio continuava sendo assembléia composta quase que exclusivamente por bispos do Oriente. À parte os legados romanos – os bispos Pascasino de Lilibeu (Marselha) e Lucêncio de Áscoli, o padre romano Bonifácio e o representante do papa em Constantinopla, 17 Franco Pierini, p. 204. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451) – Os quatro primeiros concílios ecumênicos: instituições, doutrinas, processos de recepção in Giuseppe Alberigo (org.), História dos Concílios Ecumênicos, p. 93. 18 21 o bispo Juliano de Cós –, havia apenas dois bispos norte-africanos, refugiados após as invasões vândalas.”19 Leão não esteve presente por não agradar-se do fato do Concílio ter se realizado no Oriente e não no Ocidente como era do seu desejo. No Concílio havia dois partidos distintos e contrários: os seguidores de Leão e antioquenos de um lado contra Dióscoro e seus seguidores (eutiquianos) do outro. A despeito das questões políticas envolvidas, Perrone, sobre os concílios ecumênicos de um modo geral, mostra três características importantes: “A concentração primária na formulação de ‘profissões de fé’ (oroi). Profissões que nascem da vital necessidade de ‘prestar contas da fé’, ainda que em larga medida condicionadas pelo confronto com as correntes heréticas. Às profissões acrescentam-se disposições disciplinares para a vida interna das comunidades (cânones). Em segundo lugar, a participação nos trabalhos conciliares é ‘aberta’ tanto a teólogos quanto a leigos, embora sendo essencial (mas não exclusiva) a intervenção de bispos e, aos poucos, tornando-se conditio sine qua non o envolvimento dos cinco patriarcas apostólicos (pentarquia). Constitui também um fator bastante destacado a participação de representantes dos ambientes monásticos, dado seu crescente prestígio espiritual e social.”20 À frente Perrone expressa a importância deste concílio juntamente com os três anteriores dizendo que, “dentre os sete concílios da antiguidade cristã, ainda hoje tidos como ecumênicos pela maioria das igrejas, destacam-se pela autoridade doutrinária e importância histórica os quatro primeiros, de Nicéia (325) a Calcedônia (451). O primado a eles concedido deriva sobretudo do fato de que formularam os dogmas fundamentais do cristianismo, relativamente à Trindade (com Nicéia e Constantinopla II) e à Encarnação (com Éfeso e Calcedônia). Por isso, já Gregório Magno (Ep. 125) os via, junto com os evangelhos, como a pedra quadrangular colocada como fundamento do edifício da fé.”21 O concílio de calcedônia foi convocado em 451 para desfazer as decisões tomadas em Éfeso, no assim chamado “Sínodo dos Ladrões”, após este uma carta do papa Leão tomou proeminência. A carta do papa Leão serviu como base para o Concílio de Calcedônia. A carta não foi expressamente aprovada, mas o Concílio decidiu escrever uma nova fórmula, no entanto, manteve seu teor claramente de linha ocidental. O relato de Olson é deve ras esclarecedor quanto às decisões tomadas neste Concílio, bem como à forma como procederam os delegados, vejamos: 19 Lorenzo Perrone, p. 93. Lorenzo Perrone, p. 5-6. 21 Lorenzo Perrone, p. 13. 20 22 Um dos primeiros eventos da primeira sessão do Concílio foi a entrada de Teodoreto de Ciro, que tinha sido condenado, deposto e quase queimado pelo Sínodo dos Ladrões. Houve o princípio de um tumulto, mas a imperatriz e seu guardas impuseram a ordem entre os bispos e Teodoreto foi conduzido a um assento de honra. Depois, as atas do Sínodo dos Ladrões em Éfeso foram lidas em voz alta e debatidas. Paulatinamente, os partidários de Dióscoro abandonaram-no e ao Sínodo dos Ladrões e expressaram remorso pela participação na perseguição de Teodoreto e na morte de Flaviano. Somente Dióscoro sustentou, em atitude de desafio, a validez do que havia acontecido em Éfeso em 449 e defendeu suas ações. Ao cair da noite, os bispo votaram em favor de depor Dióscoro do seu cargo de patriarca de Alexandria e de exilá -lo, junto com os líderes do infame Sínodo de Éfeso. A imperatriz e o imperador ratif icaram a decisão. Dióscoro foi imediatamente exilado para o deserto. 22 Os bispos reunidos no Concílio de Calcedônia decidiram que a assim chamada, Fórmula de Calcedônia, ou apenas Definição de Calcedônia, fosse apenas uma interpretação e elaboração do Credo de Nicéia (381) e não um novo credo que estava sendo redigido. A maioria dos bispos presentes não desejava a formulação de um novo credo, apenas queriam a confirmação (ou reafirmação) do Concílio de Nicéia (fé nicena ou credo niceno); e o reconhecimento do valor obrigatório das Cartas Dogmáticas de Cirilo e do Tomo de Leão (papa). Nestório e Eutiques foram condenados. O Concílio de Calcedônia fora claramente contrário ao posicionamento teológico dos alexandrinos. A Fórmula de Calcedônia assinada por todos os bispos era constituída, primeiro, de um preâmbulo e da afirmação solene do Credo de Nicéia como o padrão da ortodoxia, “colocando a seu lado o Credo do Concílio de Constantinopla (...) como refutação das heresias que surgiram depois de Nicéia.”23 Segundo, reconheceu as Cartas de Cirilo e o Tomo de Leão como interpretação correta do credo e confirmação da fé verdadeira, e por serem contrários ao nestorianismo e ao eutiquianismo. Terceiro, apresentou uma confissão de fé formal. A fórmula redigida pelo Concílio de Calcedônia rejeitava o pensamento tanto de Nestório quanto de Eutiques, ou seja, o diofisitismo extremado e o monofisitismo radical, respectivamente. O Concílio de Calcedônia condenou os que advogavam a existência de “dois filhos” e também aqueles que defendiam duas naturezas de Cristo antes da união e apenas uma após a união. Nestório foi condenado. Como bem diz Hägglund: “A decisão de Calcedônia é o resultado final das várias controvérsias surgidas, e constitui o resumo 22 23 Roger Olson, p. 235-236. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã, p. 256. 23 confessional dos desenvolvimentos teológicos que floresceu na esfera cristológica.”24 Calcedônia combinou as posições da Alexandria e Antioquia (alexandrina e antiquena). As idéias de Cirilo foram reconhecidas como ortodoxas. O alvo era reunir as posições orientais e ocidentais em torno de decisões e questões dogmáticas. “As idéias de Roma, Alexandria e Antioquia foram combinadas numa formulação doutrinária comum e ortodoxa.”25 A Definição de Calcedônia é concorde com o Tomo de Leão e favorável ao pensamento de Tertuliano (160-depois de 220). O Concílio encerrou-se em 7 de fevereiro de 452. A Definição de Calcedônia expressa a doutrina da união hipostática com apenas poucas alterações em relação ao modo como fora elaborada por Cirilo, como por exemplo, a communicatio idiomatum não é mencionada, mesmo tendo sido utilizada por Leão no seu Tomo. A conclusão de Olson é própria: “A Definição de Calcedônia talvez soe esotérica ou extremamente abstrata ou filosófica, mas na realidade é simplesmente uma tentativa de expressar e proteger o mistério da encarnação de qualquer distorção.”26 A posição de Olson é corroborada por Relton: “Pode-se reconhecer que a Definição não é uma explicação do mistério da encarnação. O próprio fato de ela não conseguir solucionar o insolúvel é sua melhor recomendação para nossa cuidadosa consideração. Os que elaboraram a Definição não se preocuparam tanto em formular uma teoria como em salvaguardar a verdade de duas soluções propostas com caráter errôneo e em preservar para nós a verdade oculta sob esses dois erros.”27 A Fórmula de Calcedônia foi, em linhas gerais, uma tentativa de conciliar dois extremos teológicos em matéria de cristologia e de preservar o mistério da encarnação. Ferraro nos diz “que estamos diante de uma clara intencionalidade: afirmar o que é humano em Jesus e que este humano é absorvido pela divindade, mantendo-se a alteridade da humanidade na mesma pessoa. (...) Podemos dizer que o concílio de Calcedônia teria sido um passo adiante na afirmação da plena humanidade de Jesus e, levando-se em conta a evolução da psicologia e filosofia no tocante à compreensão da pessoa humana, podemos afirmar, sem 24 Bengt Hägglund, História da Teologia, p. 83. Bengt Hägglund, p. 84. 26 Roger Olson, p. 238. 27 H. Maurice Relton, A Study in Christology: the problem of the relation of the two natures in the person of Christ, p. 36, apud, Roger Olson, p. 238. 25 24 negar a intencionalidade de Calcedônia, que Jesus é também uma pessoa humana.”28 Afirma a verdadeira humanidade de Cristo e suas duas naturezas (segundo a teologia de Antioquia), no entanto, também declara que as duas naturezas não devem ser divididas ou separadas e que são pertencentes a uma só pessoa. Calcedônia afirma que as duas naturezas de Jesus Cristo não devem ser misturadas, tão pouco foram alteradas por meio da união hipostática no Logos (concepção contrária à cristologia alexandrina). Vejamos uma vez mais o que Olson diz: A verdadeira essência da Definição de Calcedônia é conhecida como os quatro limites de Calcedônia – “sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”. Essas quatro expressões são “limites” em torno do mistério da união hipostática – as duas naturezas plenas e completas de Cristo numa só pessoa. “Sem confusão, sem mudança” protegem o mistério da heresia do eutiquismo e do monofisismo, que tentam preservar a unidade da pessoa ao criar um híbrido, tertium quid (um terceiro algo), com a divindade e a humanidade. “Sem divisão, sem separação” protegem o mistério da heresia do nestorianismo, que procura enfatizar a distinção entre a humanidade e a divindade dividindo-as em duas pessoas diferentes. A Definição está dizendo: contanto que não ultrapasse nenhum desses limites, você pode expressar de várias maneiras diferentes o mistério da encarnação. Tudo o que ela realmente faz é expressar e proteger um mistério. E não explica coisa nenhuma.29 Ferraro levanta uma outra questão deveras importante: O concílio de Calcedônia nos coloca uma questão de fundo: Como, então, conhecer a natureza divina? A natureza humana conhecemos pela história humana de Jesus, ou seja, pela sua vida, prática e inserção na história. Em relação à natureza divina, a lógica do concílio de Calcedônia é que são esses mesmos atributos que nos permitem conhecer a natureza divina e não o caminho inverso. À pergunto “como é Deus?” nós a saberemos responder seguindo a história de Jesus. Não é que tenhamos dois caminhos para conhecer a natureza divina: um conhecendo-a diretamente e outro conhecendo-a por meio de Jesus. Só temos um caminho: por meio de Jesus é que conhecemos quem é e o que é Deus.30 Cirilo e Leão foram os principais influenciadores da Fórmula de Calcedônia, e, por sua vez, sofreram influencia direta de Atanásio e Tertuliano respectivamente. 28 Benedito Ferraro, p. 33, 34. Roger Olson, p. 238-239. 30 Benedito Ferraro, p. 35. 29 25 Observemos a relação das sentenças da fórmula de Calcedônia com os pontos de vista anteriores e também com as diferentes controvérsias, a anterior apresentação das controvérsias nos dá o contexto necessário ao entendimento, desta forma podemos discorrer como Calcedônia solucionou tais problemas (ou pelo menos tentou) e condenou os “hereges”. 31 Antes, é de grande proveito observar Maraschin falar sobre os paradigmas norteadores da linguagem que servem como parâmetros no entendimento dos Concílios dos primeiros séculos, que seguindo Lindbeeck, afirma : Poderíamos concluir que os antigos teólogos da Igreja chegaram à afirmação de três princípios reguladores da linguagem a respeito de Deus. Havia, em primeiro lugar, o princípio monoteísta que significava mais ou menos o seguinte: qualquer coisa que dissermos a respeito de Deus não pode contradizer a afirmação de sua unidade. Em segundo lugar, havia o princípio da especificidade histórica: Jesus era uma pessoa histórica, um homem verdadeiro. O terceiro princípio era o cristológico. Esse princípio significava a aceitação da pessoa humana de Jesus como a mais perfeita pista para se perceber, em termos humanos, a presença de Deus na história. Ele revelava a experiência humana de Deus. Segundo Lindbeck, esses três princípios estiveram por detrás de todo o desenvolvimento dos primeiros quatro séculos da história da Igreja e das doutrinas. O longo capítulo da condenação das heresias cristológicas era, no fundo, a condenação das tentativas de relacionar os três princípios expostos. Pareceu à Igreja que a linguagem de grupos representativos de teólogos docetas, gnósticos, sabelianistas, arianos, nestorianos, entre outros, transgredia os limites desejáveis estabelecidos nos três critérios discutidos há pouco. Isso não significa que a linguagem do Credo tenha sido infalível. Apenas quer dizer que a formulação adotada parecia “menos dissonante” do que as outras em face dos três princípios. Essa formulação do Credo, mais tarde reafirmada em Calcedônia, tornou-se paradigmática para a posterior discussão teológica. Não pretendeu ser uma espécie de fechamento dos debates. Na verdade, o que os teólogos sempre buscaram e ainda buscam são formulações da mesma doutrina, mais adequadas aos tempos em que vivem. 32 A Definição de Calcedônia 33 Passemos agora a uma breve exposição das afirmações existentes na Fórmula de Calcedônia. 31 Cp. Bengt Hägglund, p. 83. Jaci Maraschin, O Espelho e a Transparência – O Credo Niceno-Constantinopolitano e a teologia latinoamericana, 1989, p. 98-99. 33 Henry Bettenson, p. 101. 32 26 Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho. Contra Nestório, que distinguia a tal ponto entre as duas naturezas (divina e humana) que defend ia a tese de que existiam duas pessoas distintas. A identidade de Deus na forma de Pai – no sentido assumido pela palavra no uso cristão – é vista na maneira como Jesus revelava Deus em termos de Pai só se mostrar com seu Filho absolutamente devotado.” 34 “Embora a linguagem do Credo possa parecer estranha ao começar suas afirmações sobre Jesus Cristo com a idéia do Filho pré-existente, dá-nos uma contribuição importante: a realidade humana de Jesus em relação com Deus Pai só pode ser entendida enquanto manifestação do Deus eterno. A eternidade não se aplica apenas ao Deus referido por Jesus, mas também ao Filho que dessa maneira se relaciona com o Pai. 35 A Confissão da Fé Apostólica expressa a importância soteriológica da afirmação de que Jesus Cristo é Filho de Deus da seguinte forma: ... o Filho de Deus estava com Deus desde a eternidade, foi o próprio Deus que veio no Filho no meio do povo e continua, por meio do poder do Espírito Santo, a se fazer presente a atuante nesse mesmo povo. Assim, a nossa confiança na vida e na morte não repousa num ser humano abençoado e utilizado por Deus, mas no Filho de Deus de eternidade em eternidade. 36 Nosso Senhor Jesus Cristo. Segundo A Confissão da Fé Apostólica, o senhorio de Jesus Cristo como afirmado pelo Credo Niceno-Constantinopolitano está fundamentado na “sua ressurreição dentre os mortos pelo próprio poder de Deus.”37 Esta ressurreição “confirma a vida e os atos de Jesus na qualidade do Verbo eterno de Deus proferido por nós e pela nossa salvação.”38 O Credo expressa uma autoridade divina, universal e eterna de Jesus Cristo como resultado ocorrido segundo a ressurreição. Desta feita, chega à conclusão de que “Jesus deve ser reconhecido e 34 A Confissão da Fé Apostólica – Explicação Ecumênica da Fé Apostólica segundo o Credo NiceConstantinopolitano (381), p. 64. 35 A Confissão da Fé Apostólica, p. 65. 36 A Confissão da Fé Apostólica, p. 65. 37 A Confissão da Fé Apostólica, p. 64. 38 A Confissão da Fé Apostólica, p. 64. 27 obedecido na qualidade de Senhor sobre todos e todas as coisas” e “todos os seres humanos, todos os domínios e níveis da realidade estão debaixo da promessa e do mandamento do único Senhor Jesus Cristo.”39 Assim sendo, os cristãos confessam a “Jesus Cristo em termos de Senhor absoluto da mesma maneira como acreditam em Deus uno, Pai do universo.”40 Jaci Maraschin diz: A confissão da fé “em um Senhor Jesus” é seguida da palavra “Cristo”. Se, por um lado, acentua a plena humanidade do homem Jesus, imediatamente qualifica essa humanidade. Esse Jesus não é qualquer judeu da Palestina, mas um homem muito particular que foi considerado o Cristo. Isso significa que não podemos confessar a fé apenas pela metade. (...) Esse nome assim qualificado não pode ser pronunciado isoladamente. Ele é Jesus, o Cristo. 41 Perfeito quanto à di vindade e perfeito quanto à humanidade. Contra o dinamismo, Ário e Nestório, contra o docetismo de Marcion, Sabéio e Apolinário ; e o gnosticismo - Aceitaram o dualismo grego que considerava a matéria como inerentemente má e oposta ao espírito, pois, o corpo humano tinha conotações más, porque é matéria. A função de Cristo era a de vir como emissário do Deus supremo trazendo a gnosis, que é o conhecimento verdadeiro. Como um ser divino, Cristo não assumiu o corpo humano, nem morreu, mas temporariamente habitou num ser humano, Jesus, ou assumiu aparência humana, uma espécie de fantasma, com aparência de homem. A salvação proposta pelos gnósticos era que eles possuíam uma centelha do divino, ou uma espécie de natureza espiritual que lhes havia sido implantada de cima. Verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo. Contra Apolinário, que substituía a alma humana de Cristo pelo Logos divino e ensinava que o Logos assumira “carne celestial”; também contrário ao pensamento de Eutiques que defendia a idéia de uma pessoa e uma natureza; e ao ebionismo que negava a plena divindade de Jesus Cristo. 39 A Confissão da Fé Apostólica, p. 64. A Confissão da Fé Apostólica, p. 64. 41 Jaci Maraschin, p. 75. 40 Observando as afirmações da Fórmula de Calcedônia 28 podemos perceber o propósito de preservar o mistério a respeito da encarnação, bem como o desejo de estabelecer um acordo entre as escolas teológicas mais proeminentes, evitando seus extremos radicais. Olson diz que: Ela afirma claramente, seguindo uma teologia antioquena moderada, a verdadeira humanidade de Jesus Cristo e suas duas naturezas. Mas declara que as duas naturezas não devem ser divididas nem separadas e que cada uma delas, na sua plena integridade, permanecem juntas em uma só pessoa. (...) Calcedônia também afirma com clareza, contra a cristologia alexandrina radical, que as duas naturezas de Cristo não devem ser confundidas (ligadas ou misturadas), nem se deve pensar que foram alteradas mediante a união hipostática no Logos. 42 Consubstancial [homoousios] ao Pai, segundo a divindade, [em consonância com o Credo Niceno ] Os termos ousia 43 e homoousios não devem ser entendidos nos termos da distinção feita por Aristóteles entre substância primária e secundária. Isto porque nos primeiros séculos a formação do pensamento teológico cristão não foi influenciada, pelos menos não diretamente, pelas categorias da filosofia aristotélica. A teologia latina falava de três Pessoas e uma só substância. Os gregos falavam de três hipóstases e uma só ousia. Hipóstase e ousia são termos utilizados pelo Concílio de Nicéia (325) e confirmados pelo Concílio Constantinopla I (381), onde em suas formulações credais afirmam que o Filho é homoousios, ou consubstancial com o Pai. A dificuldade de linguagem surge logo em seguida, quando o termo latino essentia correlato direto do termo grego ousia, cai em desuso. Diante disto, os teólogos latinos passaram a empregar a palavra substantia em referência análoga ao termo grego ousia. O problema está exatamente no fato de substantia ser equivalente à palavra grega hipóstase. Desta feita a dificuldade lingüística está instaurada, pois os teólogos latinos se utilizavam da expressão substantia com o intuito de proclamar a unidade da Trindade. Já os gregos usavam hipóstase para expressar a distinção das três Pessoas da Trindade. A implicação pelo caráter lingüístico em voga era que os gregos pensavam que o uso latino da expressão una substantia como hipóstase, estariam negando a Trindade. De modo inverso, os latinos supunham que os gregos defendiam três 42 43 Roger Olson, p. 238. Sobre os diversos sentidos da palavra, ver Christopher Stead, A Filosofia na Antiguidade Cristã, p. 165. 29 deuses distintos. Não de somenos importância para a discussão terminológica estava o fato de que os latinos enfatizavam a unidade e os gregos as Pessoas da Trindade. 44 O professor de teologia Christopher Stead falando sobre o uso do termo homoousios, diz que : O próprio Concílio de Nicéia foi, é claro, objeto de discussões sem fim. É difícil apurar os fatos, já que não foram conservadas atas oficiais. Por que foi o homoousios introduzido no Credo, e qual se supunha ser o seu significado? No momento, nenhuma resposta segura pode ser dada. Costumava-se pensar que Constantino, ou Osio, o tivesse imposto como um termo “ocidentalizante”, destinado a enfatizar a unidade divina antes que a distinção das Pessoas (...). Mas nós temos pouca indicação do seu real uso no Ocidente; e uma importante objeção contra essa teoria é o fato de o posterior Concílio de Sérdica (342-3), que favorecia uma teologia monarquianista, não ter feito menção do homoousios, mas ter antes falado de “uma hipóstase”. É mais provável que, em Nicéia, vários diferentes motivos estiveram em ação. Uma razão para introduzir homoousios foi o simples fato de que o próprio Ario o tinha rejeitado (...); e o próprio Constantino pode ter preferido não definir seu significado de modo muito preciso (...); seu objetivo era não fazer vítimas, mas isolar Ario de seus defensores, e atrair o maior número possível deles para o lado vencedor. 45 A Confissão da Fé Apostólica – Explicação da Fé Apostólica segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano (381), Documento de Estudo da Comissão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas, quanto ao uso do termo homoousios por tal Concílio afirma no § 94: A expressão mais difícil e controvertida deste Credo no segundo artigo é homoousios, “consubstancial com o Pai”. Esta palavra aparece aí com a intenção de excluir qualquer idéia de que o Filho era um tipo de realidade diferente da realidade do Pai, contingente e criado. Ao contrário, o Filho, embora dependente do Pai, é inseparável da vida do Pai: o Filho vive da mesma maneira como vive o Pai, em amor, liberdade, eternidade e criatividade incondicionais. Assim, Deus sempre existe em relação de dádiva e reação, num movimento de amor que se derrama e que volta para si. Alguns padres da Igreja, já num período mais desenvolvido (por exemplo, Gregório de Nazianzeno) disseram que a palavra “Deus” não queria dizer mais do que a vida ativamente participada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo. O significa específico da intenção expressa no termo homoousios é o fato de que nossa salvação em Cristo se tornou possível pelo poder de Deus. 46 44 Christopher Stead, p. 150. Christopher Stead, p. 158. 46 A Confissão da Fé Apostólica, p. 59. Ver também, p. 67. 45 30 Mais à frente completa: “Embora o termo homoousios não ocorra na linguagem bíblica, o Credo pode ser considerado inteiramente “bíblico”, e é evidente que os pais de Nicéia e de Constantinopla buscaram apoio no Novo Testamento para afirmar a divindade de Cristo.”47 E consubstancial a nós, segundo a humanidade; [contra Eutiques] em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado”. [dogma da impecabilidade de Cristo] Por trás desta questão há um forte posicionamento contrário ao pensamento grego (platônico). A interpretação helênica a respeito da encarnação não poderia concebê- la concretamente, a possibilidade era de somente uma aparência, pois segundo defendiam, a matéria era má, por exemplo: os docetas. Outros como os estóicos, ou influenciados por eles e os monofisitas, não poderiam conceber uma união entre a matéria e o divino, onde a alma humana fosse eliminada ou sua função fosse reduzida. Com estas afirmações também se responde ao adocionismo nestoriano. Calcedônia quer afirmar a veracidade da encarnação. O papa Leão, em sua carta recebida em Calcedônia responde contra a possibilidade do pensamento, levantado por Eutiques, de que Cristo não era de nossa natureza, da natureza de sua mãe (por causa do seu nascimento pelo Espírito Santo), enfatizando que Jesus Cristo assumiu nossa natureza, e que esta natureza era da mesma essência da de Adão, nossa limitação e mortalidade, mas não o pecado, pois este não é essencial à existência humana. Gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelo Pai . [em consonância ao Credo NicenoConstantinopolitano] A Confissão da Fé Apostólica, quanto ao assunto explicita que: “O Credo pressupõe a pré-existência e a divindade de Jesus Cristo quando confessa que ele é “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”, “gerado pelo Pai antes de todos os séculos” e “pelo qual todas as coisas foram feitas”.”48 Expressando o conceito de que o Filho teve sua origem em relação ao Pai na eternidade, diametralmente oposto à origem no tempo, o que se fosse de outra forma implicaria em que “o Deus eterno não estaria plenamente presente no Filho, e Jesus, o Filho 47 48 A Confissão da Fé Apostólica, p. 60. A Confissão da Fé Apostólica, p. 60. 31 encarnado de Deus, nascido no tempo, não poderia comunicar aos fiéis a comunhão com o Deus eterno.”49 O relacionamento entre Pai e Filho é enfatizado pelo uso da palavra “gerado” que “expressa o relacionamento conatural entre Pai e Filho, e desde que o Pai é eterno, a geração do Filho não poderia ocorrer em algum tempo particular, mas na eternidade.”50 O caráter deste relacionamento é realçado pela seguinte afirmação do Credo NicenoConstantinopolitano : “Gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, consubstancial com o Pai”51 . Para expressar este conceito Basílio usava a analogia dos raios do sol para explicar logicamente o conceito de geração, o argumento era o seguinte: “Os raios de sol são tão antigos quanto o próprio sol. Nunca houve um tempo em que o sol tivesse existido sem seus raios (radiância). Sempre o sol gerou a sua radiância. Assim também o Pai gera eternamente o Filho de Deus, e o Filho de Deus é eternamente gerado pelo Pai.”52 Maraschin explica que, “gerar significa produzir seres da mesma espécie ou categoria.”53 Mais à frente aplica este conceito ao Credo NicenoConstantinopolitano para explicar a geração do Filho pelo Pai, quando diz que, “o Credo cristão expressou o dinamismo do ser divino, nas suas relações internas, empregou a palavra “gerar” para falar, em termos humanos, do Pai que tem o Filho. A geração do Filho não é, então, como a nossa. Ela é eterna. Isto é, ela pertence às categorias da vida divina. Diríamos, em termos espaço-temporais, que nunca teria havido um tempo em que o Pai não estivesse gerando o Filho, e que faz parte do ser eterno do Pai gerar eternamente o Filho. Na verdade, em termos dialéticos, não se poderia jamais falar de Pai sem o termo correspondente Filho. Deus é Pai porque só pode ser Pai se for o Pai do Filho, e vice-versa. A geração do Filho pelo Pai não se dá tampouco num espaço determinado, mas antecede a todos os espaços.”54 À frente continua, falando sobre o tempo: “A geração do Filho “antes de todos os tempos” não se dá para fazer desse “não-tempo” o modelo do tempo presente. O importante nesta manifestação da fé cristã é o fato de que essas relações trinitárias, fo ra do tempo, entram no tempo criado, pela própria decisão da divindade, para fazer desse tempo criado o nosso tempo, tempo da história, tempo da vida.”55 49 A Confissão da Fé Apostólica, p. 66. A Confissão da Fé Apostólica, p. 66. 51 Para uma maior explicação da expressão “Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, consubstancial com o Pai”, ver A Confissão da Fé Apostólica, p. 66. 52 Roger Olson, p. 185. 53 Jaci Maraschin, p. 86. 54 Jaci Maraschin, p. 86-87. 55 Jaci Maraschin, p. 90. 50 32 E, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus [Theotókos]. [embate de Cirilo versus Nestório, resolvido no Concílio de Éfeso em 431] Para Maraschin, a expressão theotókos é um paradoxo, e segundo ele, fruto da metafísica trancendentalista e da lógica aristotélica da linguagem dos Padres, diz que “a filha de Deus passa a ser a mãe de Deus, contradizendo a própria estrutura do Tomo de Leão, fundamentador das declarações dogmáticas do Concílio de Calcedônia.”56 À frente, explica pormenorizadamente sua posição, afirmando: Esse Concílio (451 A.D.) elabora a mais contraditória das definições da pessoa de Cristo, ao traçar a origem divina à substância (ousia) do Pai e a origem humana à maternidade de Maria. Se de Maria procede o ser humano de Jesus, e não o divino, posto que a divindade vinha do próprio Pai, preexistente “antes de todos os mundos”, Maria não poderia propriamente ser chamada de theotokos, “mãe de Deus”. Além disso, a mesma definição insiste na confissão de que as duas naturezas, a divina e a humana, são “inconfundíveis, imutáveis, conseparáveis e indivisíveis” (em dyo physein, asygchytos, atreptos, adiairetos, achoristos). Ora, se as naturezas, segundo a lógica de Calcedônia, são assim “inconfundíveis”, a afirmação de que Maria, fonte da humanidade seja “mãe de Deus”, resulta, segundo essa mesma lógica, em confusão das naturezas. Ela não poderia ser, ao mesmo tempo, mãe do “homem” Jesus, e a mãe de Deus. Se insistirmos na afirmação da maternidade divina, a primeira parte da definição de Calcedônia perde o sentido. Se o Cristo for confessado, como tem sido ao longo da história da Igreja, como o Logos, gerado do Pai (sendo o Cristo a natureza divina de Jesus, o Cristo), Maria não poderia nem mesmo ser chamada de “mãe de Cristo” como às vezes se prefere.57 A Confissão da Fé Apostólica expressa um entendimento diferente deste termo, Theotokos, usado pelo Credo Niceno-Constantinopolitano e confirmado pela Fórmula de Calcedônia: Todos os cristãos aceitam a confissão afirmada pelo Concílio de Éfeso (431) de que Maria é “Theotokos”, mãe daquele que também é Deus, por meio do poder criador do Espírito de Deus. Ao se referir à maternidade de Maria, o Credo quer mostrar que o Filho de Deus é um ser humano como nós, participante na nossa experiência de nascer e de ser amado por sua mãe, e acompanhado pelo cuidado de seus pais. Mas Maria é também uma discípula que ouve a palavra de Deus, responde a ela e a guarda. Maria, pela obediência a Deus e pela perfeita dependência do Espírito Santo, é o exemplo por excelência de nosso discipulado. Desde os primeiros séculos , ela tem sido considerada a representante da filha de 56 57 Jaci Maraschin, p. 136. Jaci Maraschin, p. 136-137. 33 Sião, esperando a realização das promessas messiânicas e da vinda do Reino. 58 A controvérsia acerca do uso litúrgico do termo theotokos surge no ano de 428, quando Nestório, o antioqueno patriarca de Constantinopla, prega um sermão contra o uso de tal expressão atribuída a Maria, dando início assim a uma das maiores polêmicas de cunho teológico e também político da história do cristianismo. A tradução literal do termo é “portadora de Deus”, no entanto, normalmente é traduzida como “mãe de Deus”. A despeito desta distinção “o título Theotokos na verdade serve como indicador da verdadeira divindade de Jesus. Quando Maria deu à luz o seu Filho, deu à luz Deus.”59 Este era o conceito que o Credo Niceno-Constantinopolitano afirmara. O uso desta expressão por Constantinopla era um ponto pacífico, portanto, o sermão de Nestório causou grande espanto ao povo da cidade e a fúria dos alexandrinos, principalmente Cirilo. Para Nestório a questão importante envolvida dizia respeito a uma possível confusão das diferentes naturezas de Jesus Cristo. Nestório levou a cristologia de Teodoro de Mopsuéstia até à sua conclusão lógica, argumentando que a natureza divina é imutável, impassível, perfeita e incorruptível. Fazendo uma distinção importante para sua argumentação, dizendo que embora a natureza humana de Jesus Cristo houvesse nascido de Maria, a sua natureza divina não. Assim sendo, aceitava o uso do termo Christotokos, ou seja, “portadora de Cristo”. Afirmava ser correto dizer que Cristo nasceu de uma mulher, mas errado dizer que Deus nasceu de uma mulher. Sua intenção com esta distinção não era negar a divindade de Jesus Cristo, sua questão dizia respeito à ênfase que ele dava à divindade do Logos, negando qualquer atribuição de características próprias da criatura. Tão pouco Nestório era contrário ao dogma do nascimento virginal de Maria, acreditava realmente que ela deu à luz o homem Jesus Cristo e que desde o momento de sua concepção estivera unido ao eterno e divino Logos de Deus. É possível que o uso do termo Christotokos por Nestório tenha sido motivado por querelas político-teológicas contra a escola oposta de Alexandria. Após ampla discussão com Cirilo e inúmeras cartas, bem como informações passadas por espiões alexandrinos em Constantinopla, o termo Theotokos saiu-se vitorioso no Concílio de Éfeso, Nestório foi exilado e considerado herege. 58 59 A Confissão da Fé Apostólica, p. 69. Roger Olson, p. 215. 34 Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, [conforme a cristologia ocidental defendia] inconfundíveis e imutáveis, [contra Eutiques e outros pensadores anteriores] conseparáveis e indivisíveis. [contra o nestorianismo] Com estes quatro advérbios, a Fórmula de Calcedônia deseja demarcar o caminho a ser construído pela cristologia ortodoxa. Tentando assim estabelecer uma união entre as duas escolas contrárias, a saber: A Escola de Antioquia e a Escola de Alexandria. Expressa a negação da fusão tanto quanto da separação a respeito da pessoa e das naturezas de Jesus Cristo. Estabelecendo assim os limites para a construção realizada a respeito da união hipostática, duas naturezas co-existindo perfeitamente em uma única pessoa, Jesus Cristo. Os advérbios “inconfundíveis” e “imutáveis” são usados para evitar o eutiquianismo e o monofisismo, que na tentativa de preservar a pessoa defendiam uma única natureza após a encarnação. Já os advérbios “conseparáveis” e “indivisíveis” expressam cautela contra os excessos do nestorianismo, que tendiam a enfatizar a separação entre divino e humano a ponto de defender duas pessoas distintas. Tais advérbios não definem o dogma da encarnação, apenas estabelecem limites, preservando assim o mistério da encarnação. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa. [indicativo da natureza racional e da substância individual de Cristo; contrário ao monarquianismo] Para os teólogos do período a grande questão que envolvia a discussão sobre a união das naturezas na pessoa de Jesus Cristo dizia respeito à salvação, por isto o desejo incansável em expressar esta doutrina, pois somente um salvador divino- humano poderia unir o abismo existente entre Deus e o homem. Ao que parece, segundo alguns, o desejo primordial não era propriamente explicar como duas naturezas, a divina e a humana, subsistiam em uma única pessoa, mas tão somente salvaguardar o mistério em que tal relacionamento estava envolvido, protegendo assim o evangelho da salvação. O Concílio de Calcedônia expressou o dogma da “união hipostática” como uma definição doutrinária declarando-o obrigatório para os cristãos. O que não significa propriamente que a partir de então as controvérsias se encerraram, tão pouco que todos, no Oriente e no Ocidente, vieram a professá- lo. 35 Neste aspecto referente à doutrina da união hipostática percebemos a grande influência que Cirilo efetuou na formação da Fórmula de Calcedônia. Pois tal doutrina surge inicial com ele, ou pelo menos as suas idéias básicas. Segundo Olson esta doutrina “tornou-se o alicerce da Grande Igreja na explicação e interpretação do mistério da encarnação de Deus em Cristo.”60 E, “A doutrina que ele [Concílio de Calcedônia] encerra e expressa é a união hipostática.”61 O que em linha gerais de modo simplificado “significa que o sujeito da vida de Jesus Cristo era o Filho de Deus que assumiu uma natureza e existência humana, sem deixar de ser verdadeiramente divino.”62 A Confissão da Fé Apostólica diz: Embora o Credo Niceno-Constantinopolitano não defina o modo da unidade existente entre Jesus e o Filho eterno, o Concílio de Calcedônia no quinto século explicou-o e definiu-o por meio do conceito da “união hipostática” das duas naturezas de Cristo: as naturezas divina e humana existem sem confusão nem divisão, mas a natureza humana possui um modo de ser único e particular ao ser sustentada inteiramente pela presença ativa do Verbo eterno. Assim, o Verbo divino não substitui nenhuma parte da existência humana de Jesus, mas age por meio de sua completa humanidade. 63 E subsistência [hipóstases]. [indica uma existência pessoal e real; contra o gnosticismo, o arianismo e o sabelianismo] Os capadócios formularam a distinção entre ousia e hipóstase, defendia m a fórmula: Deus é uma só ousia e três hipóstases. Stead explica este uso que os capadócios fizeram dos termos ligando-os à sua fonte influenciadora direta, ou seja, o neoplatonismo, quando afirma que “antes dessa época parece que não se fizera uma distinção formal; mas podemos observar preferências não formuladas. Ambos os termos são quase igualmente correntes no sentido muito geral de “existência” (como fato), ou “coisa existente”; ambos são comumente usados para significar “materialidade”, “elemento material de que algo é feito”, “coisa material”; mas ousia é de longe o mais comum no sentido categorial de “substância”, indicando ou a espécie 60 Roger Olson, p. 222. Roger Olson, p. 238. 62 Roger Olson, p. 222. 63 A Confissão da Fé Apostólica, p. 59. 61 36 ou um membro de uma espécie, a “substância ordinária” de Aristóteles, mas não fazendo referência formal a essa distinção. Para “realidade inteligível” o uso varia; muitos platônicos preferiam chamá- la ousia, seguindo o uso do próprio Platão; foram os neoplatônicos que introduziram “hipóstase” como terminus technicus [termo técnico].”64 Basílio fazia uso da distinção entre substantivos gerais e limitados para explicar a distinção existente, segundo o pensamento capadócio enfatiza, entre ousia e hipóstase. Dizia ele que “o que é referido de modo especial e peculiar é indicado pelo nome de hipóstase. [...] Essa, portanto, é a hipóstase, ou “subqualidade”; não o conceito indefinido da essência ou da substância [ousia], que, sendo geral no seu significado, não encontra nenhuma “qualidade”, mas o conceito que, por meio das peculiaridades expressas, confere qualidade e circunscrição ao geral e não-circunscrito.”65 Deus é descrito por Basílio como “um único ser ou substância divina, formado de três subsistências distintas, porém inseparáveis. Os outros pais capadócios ofereceram analogias diferentes, mas todos defendiam o mesmo argumento básico.”66 A distinção básica era a seguinte: ousia (substância) esta relacionada ao conceito platônico de forma como uma proposição universal; hipóstase (subsistência) não dizia respeito ao ser individual, mas a ênfase recaía na comunhão (ou comunidade). Para Basílio, bem como para os outros capadócios, as três pessoas da Trindade compartilham da mesma substância divina e a realidade deste fato supera a suposta individualidade, mostrando assim que as hipóstases são inseparáveis, o que não significa que sejam idênticas em todos os aspectos. Gregório de Nazianzeno explicava o termo hipóstase (pessoa) como o “relacionamento” que ocorre dentro da própria Trindade, onde não existem três seres, mas três relacionamentos (mesmo que as hipóstases da Trindade sejam consubstanciais (homoousios), não são idênticas). Estes relacionamentos não são substâncias tão pouco são simplesmente modos de atividade. Para ele havia uma realidade ontológica nos relacionamentos. “As três pessoas de Deus, portanto, não devem ser entendidas como seres individuais, como núcleos independentes de consciência e vontade (...), mas como verdadeiros relacionamentos interdependentes dentro de uma única comunidade de existência e substância.”67 A filosofia platônica com o seu conceito de realidade das proposições universais foi o fundamento teórico utilizado por Gregório de Nissa para explicar a unidade da existência de 64 Christopher Stead, p. 168. Roger Olson, p. 188. 66 Roger Olson, p. 189. 67 Roger Olson, p. 192. 65 37 Deus harmonizando com a distinção de pessoas na Trindade. Defendia que “a “natureza” (ousia) era como a “forma” platônica, uma proposição universal genuína que une muitas coisas diferentes. A natureza ou essência de Deus, portanto, era semelhante à forma da natureza humana, e a forma da natureza humana, semelhante à forma do próprio Deus.”68 Argumentava ele que Deus tem uma só existênc ia (substância) e não três, assim as três hipóstase agem sempre em conjunto e toda ação é comum às três pessoas da Trindade. Não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor. [contra Nestório; também demonstra claramente a influência do prólogo joanino nos quatro primeiros concílios ecumênicos]. A Confissão da Fé Apostólica sobre esta questão, afirma: “Pode-se dizer que a metodologia patrística desde os primeiros tempos seguia a linha “confessional”. Aceitava o relato de Jesus, testemunhado pelos evangelhos e em todas as demais partes do Novo Testamento, muito embora a perspectiva fosse a do Evangelho de João. Podiam assim estabelecer a ligação crucial entre Jesus e o Criador do mundo, cujo Logos eterno tornara-se manifesto na vida de Jesus. A mesma preocupação transparece na formulação do Credo Niceno, no qual Jesus é chamado de “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus” (cf. Jo 1.1). Essa linguagem sugere fortemente o uso preferencial do prólogo joanino.”69 Conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu. Indicação do propósito inicial de confirmar a fé nicena ; demonstrando o entendimento que o Antigo Testamento pré-anunciou a vinda de Cristo; aceitando o relato da Vida de Jesus e do seu discurso como contido nos evangelhos como fonte confiável para o entendimento deste dogma. 68 69 Roger Olson, p. 183. A Confissão da Fé Apostólica, p. 63. 38 A conclusão a que Lorenzo Perrone chega quanto à definição dogmática estabelecida pelo Concílio de Calcedônia é pertinente e adequada como uma explicação clara e abrangente do efeito produzido por tão expressivo conclave de líderes eclesiásticos do V século, ei- lo: Depois de vinte anos de Éfeso – que no evento salvífico do Verbo encarnado havia sublinhado de maneira particular a união inseparável do homem com a divindade –, Calcedônia inverte, de certa maneira, a ênfase insistindo na humanidade de Deus. Na realidade, o resultado doutrinário do concílio é mais complexo e, ao mesmo tempo, mais equilibrado. Ele é um meio termo entre os diversos modelos cristológicos das tradições alexandrina e antioquena e, pela primeira vez, insere de maneira decisiva na elaboração dogmática a contribuição da Igreja ocidental, através da intervenção do papa Leão. Esse resultado está numa definição que não é concebida como profissão de fé distinta ou mais completa do que o símbolo niceno-constantinopolitano, mas sim como sua fiel interpretação e esclarecimento. Ele se limita, de fato – como declara o amplo preâmbulo –, a expor a doutrina cristológica correta, objeto das discussões daquele período, sem pretender reformular a fé da Igreja no seu conjunto. O esforço de harmonização de instâncias teológicas diferentes e, com isso, o fiel espelhamento dos dois pólos ontológicos que constituem a única realidade do ser de Cristo são facilmente perceptíveis no texto da definição conciliar. Testemunha-o de forma eloqüente a estrutura binária da primeira parte das afirmações relativas ao Deus encarnado. Os enunciados que se sucede m compõem-se sobretudo de duplas de termos que se evocam mutuamente: ao termo divino se associa imediatamente o termo humano. O “único e mesmo nosso Senhor Jesus Cristo” é proclamado “perfeito na divindade e perfeito na humanidade”, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, “consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade”. Essa dialética da unidade e da distinção baseia -se ontologicamente em algumas formulações que se utilizam do aparato conceitual da metafísica antiga muito mais abundante do que ocorrera em Nicéia . 70 Berkhof expressa sua opinião sobre as mais importantes contribuições da Definição de Calcedônia, mostrando as seguintes implicações: (1) As propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma só Pessoa, como por exemplo, onisciência e conhecimento limitado. (2) Os Sofrimentos do Deus-Homem podem ser reputados como real e verdadeiramente infinitos, ao mesmo tempo em que a natureza divina não é passível de sofrimento. (3) É a divindade, e não a humanidade, que constitui a raiz e a base da personalidade de Cristo. 70 Lorenzo Perrone, p. 100. 39 (4) O Logos não se uniu a um indivíduo distinto, e sim à natureza humana. Não houve primeiro um homem já existente com quem se teria associado a Segunda Pessoa da Deidade. A união foi efetuada com a substância da humanidade no ventre da virgem. 71 Philip Schaff esboça, segundo a sua compreensão, sete idéias principais que o símbolo cristológico conforme reafirmado pelo Concílio de Calcedônia expressa acerca da encarnação do verbo, como: 1. Uma verdadeira encarnação do Logos, ou segunda pessoa da Trindade, onde esta encarnação não se constitui em uma conversão ou transmutação de Deus em homem, tão pouco do homem em Deus ou uma absorção de um ao outro ocasionando uma confusão dos dois, ou uma mera habitação de um no outro, nem uma conexão externa, transitória dos dois fatores, mas uma união real e permanente dos dois numa vida pessoal; 2. Uma precisa distinção entre natureza e pessoa. Natureza ou substância (essência) denota a totalidade de poderes e qualidades que constituem um ser; enquanto que pessoa é o Ego, a autoconsciência, a auto-asserção e a ação do sujeito. O Logos assumiu, não uma pessoa humana (então teríamos duas pessoas, uma divina e outra humana), mas uma natureza humana que é comum a todos os homens; 3. O Deus- homem é o resultado da encarnação. Cristo não é um ser duplo com duas pessoas (nestorianismo); nem uma combinação gerando um meio termo ou terceiro algo, um outro algo (apolinarismo ou monifisitismo); é sim uma pessoa divina e humana; 4. A dualidade das naturezas. A doutrina ortodoxa manteve, contra o eutiquianismo, a distinção de natureza até mesmo depois da encarnação, por um lado diz que esta relação é sem confusão e sem mudança, e por outro sem divisão e sem separação, de forma que o divino permanece divino e o humano permanece humano, e ainda as duas naturezas têm uma vida continuamente comum e interpenetrada uma à outra como as pessoas da Trindade; 5. A unidade da pessoa. A união da natureza divina e humana em Cristo é um estado permanente, pois é o resultado da encarnação, ou seja, uma real, sobrenatural, pessoal e inseparável união. A autoconsciência de Cristo nunca é dividida; a pessoa de Cristo consiste em uma união tal do humano e a natureza divina, que a natureza divina é o assento da autoconsciênc ia que penetra e anima o humano; 6. A totalidade da obra de Cristo é atribuída à sua pessoa, e não há uma ou outra natureza exclusivamente; 7. A natureza divina é a base da personalidade de Cristo. 72 Já para Stead o resultado do Concílio de Calcedônia não é dos mais otimistas: 71 Louis Berkhof, A História das Doutrinas Cristãs, p. 98-99. Philip Schaff, Creeds of Christendom, with a History and Critical notes. Volume I. The History of Creeds, 6a. Ed. in http://www.ccel.org/ccel/schaff/creeds1.thml. CCEL, 2003, primeira publicação em 1877. p. 46-48. 72 40 No essencial, assumo a posição de que a definição calcedonense foi uma conquista bastante limitada; foi uma afirmação das condições a que era preciso fazer frente, dentro de dado horizonte de pensamento, para uma doutrina satisfatória a respeito de Cristo; não representou uma solução concreta. Não procurarei defender que, dentro desse horizonte de pensamento, o problema era insolúvel; nem, ao contrário, que se tenha encontrado uma solução e que ela possa ser agora apresentada. O que eu defendo é que naquela época o problema não poderia ser resolvido porque estava em debate, simultaneamente, um número demasiado grande de questões, algumas das quais eram objeto de controvérsia declarada, outras eram pressupostos não detectados e incongruências.73 Beneditto Ferraro diz que o Concílio evidencia as tensões político-religiosas existentes entre o papa e o imperador, onde o controle do imperador se faz evidente através da presidência do Concílio efetuada por me io de uma comissão de funcionários imperiais. Percebe-se o desejo de solucionar um impasse doutrinário mediante a ampla participação de bispos, no entanto, a presença do Oriente ainda é superior. O Concílio retoma conceitos estabelecidos nos concílios anteriores (Nicéia, Constantinopla I e Éfeso). Enfatiza a unidade do Filho, bem como, atem-se à distinção entre natureza divina e natureza humana de Jesus Cristo, insistindo na consubstancialidade com a humanidade e com a divindade. Diz ele: “Cremos que estamos diante de uma clara intencionalidade: afirmar o que é humano em Jesus e que este humano não é absorvido pela divindade, mantendo-se a alteridade da humanidade na mesma pessoa.”74 Afirma o Concílio de Calcedônia ser um passo adiante na expressão da plena humanidade de Jesus, concluindo (“levando em conta a evolução da psicologia e filosofia no tocante à compreensão da pessoa humana.”), sem negar a intencionalidade de Calcedônia, que Jesus é também uma pessoa humana. Sustenta tal afirmação lembrando dos Evangelhos que mostram Jesus agindo, posicionando-se quanto aos dilemas de seu tempo, e enfatizando que quem entregou-se ao Pai não foi apenas uma natureza, mas o próprio Jesus, verdadeiramente humano. Também afirma que o nosso conhecimento sobre Deus só é possível por meio da pessoa humana, Jesus. A história humana de Jesus se tornara a linguagem de Deus, onde “todas as coisas que Jesus fez são atributos de Deus”. Conclui dizendo que: “Uma cristologia coerente com a história de Jesus deve estar sempre em sintonia com as aspirações e buscas de determinada época histórica. Neste sentido, Jesus deve ser ao mesmo tempo histórico e contemporâneo, pois ele deve dar respostas para os problemas 73 74 Christopher Stead, p. 180; Roger Olson, p. 244. Benedito Ferraro, p. 33. 41 enfrentados pelos seres humanos, nos diferentes contextos históricos, sem deixar de ser o Jesus da história”. 75 Como rapidamente podemos ver que, dentre tantos autores e estudiosos que expressaram suas opiniões a respeito do Concílio de Calcedônia, não há concordância quanto ao resultado deste concílio. Provavelmente isto é prova do que podemos apenas afirmar o propósito principal deste Concílio foi de estabelecer apenas limites, e não decretar uma fórmula final para expressar a encarnação do Logos. 1.2 – Influências na Formação do Pensamento Quenótico 1.2.1 – O Cristo da Filosofia de Hegel e o quenoticismo Este tópico é deveras importante devido ao conceito de religião de Hegel, e principalmente quanto ao seu pensamento a respeito de Cristo, correlaciona ndo e interpretando os dogmas com olhares filosóficos. Para Hege l a filosofia no seu escopo de ação conjunta é uma interpretação da sua concepção de religião e também da fé em Cristo, do evento Jesus. Segundo Kern, “O significado que a figura e a história de Jesus Cristo têm para Hegel se torna claro justamente porque todas as afirmações que podemos fazer a esse respeito são entrelaçadas no conjunto do método e do sistema da sua filosofia.”76 Enfim, Hegel desejava uma síntese entre Deus e humanidade. Kern consegue elaborar uma introdução ao tema da encarnação de Deus em Cristo segundo o pensamento de Hegel, o que é de primordial importância em nosso objeto de estudo. Na filosofia de Hegel Jesus é um homem que tem uma “relação com o Deus presente”, e uma “relação infinita”, “aquele único que reuniu em si mesmo a natureza divina e a humana” e aquele que é o próprio “Deus em forma humana”; assim a encarnação expressa o seu sistema de síntese aplicado à Deus e ao Deus-Logos. 77 O uso deste ensaio de Kern se faz necessário para uma melhor compreensão da cristologia de Hegel e de suas hipóteses acerca de Cristo. Aqueles que expõem a teoria da cristologia quenótica atribuem uma influência na estrutura de formulação da hipótese de Thomasius ao pensamento hegeliano, e de igual forma as hipóteses cristológicas elaboradas 75 Benedito Ferraro, p. 30-38. Walter Kern,. Georg Wilhelm Friedrich Hegel – O Cristo “conservado” pela filosofia contra os teólogos de profissão in Silvano Zucal (org.) Cristo na Filosofia Contemporânea, Vol. I: de Kant a Nietzsche, p. 149-183. 77 Walter Kern, p. 149. 76 42 por Dorner também foram diretamente influenciadas pela filosofia dialética de Hegel. Kern nos dá pistas para encontrar tais influências que são essenciais para a compreensão das bases, dos pressupostos e também da formulação teórica da hipótese quenótica. Hegel voltou-se contra Schleiermacher e os românticos, para os quais a religião se manifestava como intuição imediata e sentimento de completa dependência do absoluto. Segundo Hegel, a religião (como a vida da mente em geral) aparece sobretudo na forma dos pensamentos ou conceitos humanos. Sentir é forma inferior de consciência, enquanto que o raciocínio – que distingue o homem dos animais – é a forma mais elevada. “Se Deus se revela ao homem, ele o faz essencialmente ao homem como ser pensante... os animais não têm religião.” O sistema de Hegel abria espaço para os aspectos eruditos e especulativos da teologia. 78 O absoluto, a verdadeira realidade e o conhecimento plenamente desenvolvido sempre incluem uma progressão que Hegel supunha ser de tipo dialético, lógico, ao mesmo tempo que também a julgava ser uma transformação histórica. Em vista disso, Hegel baseou seu sistema no assim chamado método dialético: cada conceito aponta além de si mesmo a outro conceito contrário; resolvendo-se a oposição numa unidade ma is elevada. Essa progressão (de tese à antítese e à síntese) constitui o esquema para o desenvolvimento das idéias bem como para o curso da história. Também fornece a base para o sistema universal em que Hegel procurou sintetizar tanto o conhecimento como a realidade. 79 Há completa harmonia entre religião e filosofia no sistema hegeliano. Ambas têm o mesmo objetivo, o absoluto. O cristianismo é a etapa final no desenvolvimento da religião. Seu correspondente no campo da filosofia é o sistema hegeliano (de acordo com Hegel). Hegel apresentava o cristianismo como a religião absoluta. Julgava que o método dialético podia ser encontrado na doutrina da Trindade. A divindade evoluiu em três etapas. Deus é sua idéia eterna (o reino do Pai), ele se revela na finitude, na consciência, e em ação (o reino do Filho), e então volta a si mesmo na união com o finito na congregação (o reino do Espírito). 80 78 Bengt Hägglund, p. 313. Bengt Hägglund, p. 313. 80 Bengt Hägglund, p. 314. 79 43 Hegel nos apresenta um quadro da realidade que é, em última análise, espiritual. Tudo quanto experimentamos é, na realidade, parte integrante da evolução divina. Não devemos pensar que Deus está por cima de nosso mundo e além dele, mas, sim, que é imanente nele. Esta também é a chave à encarnação, que é uma manifestação específica do Espírito num ser humano específico. 81 Hegel exerce grande influência em todo o pensamento posterior. Procurou colocar a doutrina da Trindade no centro do seu pensamento como expressão clara de sua formação luterana. A doutrina trinitária, para Hegel, está relacionada ao “dar-se” fenomenológico, na morte na cruz, do verbo feito carne. 82 Para esta questão em relação direta á doutrina quenótica, vejamos o que diz Piero Coda: Como justamente afirmou E. Jungel, a verdadeira novidade de Hegel foi a de ter conjugado de modo profundo a teologia crucis de Lutero com a teologia trinitária: ou, pelo, menos, – parece-me essencial precisá-lo – com aquilo que ele entendia por cada uma dessas duas. Está propriamente nisto, também, aquela que Karl Barth justamente definiu a grande ‘promessa’ hegeliana: compreender o dinamismo do ser tri pessoal de Deus a partir da kenosis da Encarnação, da cruz e da morte de Jesus Cristo, exatamente aquele ‘salto de qualidade’ e perspectiva de que necessitava a dogmática tradicional. (...) Essas categorias se reduzem, afinal de contas, àquela de ‘Sujeito’ (Geist) e àquela de ‘negatividade’. Com a primeiro [Sujeito], Hegel quer repensar – ainda que à luz da ‘descoberta’ moderna do sujeito como auto consciência (De Descates a Kant) – a identidade do Absoluto como movimento do devir à plena e consciente realização de si. Com a segunda [Espírito ou Geist] – inspirando-se naquilo que ele mesmo definirá a ‘sexta-feira expeculativa’ – a ‘necessidade’ que o Absoluto, para alcançar a si mesmo, tem de passar através do movimento de ‘alienação’ da extrisicação; numa palavra, da morte. Evidentíssima a inspiração cristã desses conceitos, reconhecida pelo próprio Hegel que define o cristianismo ‘a religião dos tempos modernos’. Mas evidentíssimo também o racionalismo que nega este pensamento: a fé é absorvida toda ela na razão. Deus na autoconsciência, que tem dele (ou que é) a humanidade.83 Para Fedeli, esta noção dialética de Hegel é típica da Gnose, ou seja, o repúdio ao princípio da não contradição, por isto afirma: Essa doutrina dialética, claramente gnóstica, permite a Hegel afirmar que o Mundo é idêntico e contrário à Divindade, assim como o finito e o infinito se resolvem na identidade da contradição, e que, assim também, a 81 Colin Brown, Filosofia & Fé Cristã, p. 85. Orlando Fedeli, Jean Guitton e o Modernismo no Concílio Vaticano II: resposta ao parecer de Brescia in http://www.montfort.org.br/ 83 Piero Coda, Dio Uno e Trino – Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, apud Orlando Fedeli. 82 44 Criação e a Divindade são idênticas na contradição, e que, pois o homem e Deus são e não são, a mesma coisa. (...) Hegel aplica essa doutrina dialética, junto com a doutrina kenótica, para explicar a sua concepção da Trindade divina. Para Hegel, as relações das Pessoas divinas devem ser consideradas de acordo com o evento pascal, que significa um total e real doar-se ao Outro, e depois acolhê-lo em Si, isto é, a kenosis, o auto esvaziamento ou aniquilamento de Deus. (...) Hegel, seguindo Lutero, vê o abandono de Deus em Jesus crucificado como uma forma de Kenose e a relação com a Trindade e as processões das Pessoas divinas. Conforme Hegel, em Deus, as Pessoas são porque não são. O Pai é Pai somente porque gera o Filho, mas para gerá-lo deve comunicar-lhe kenoticamente todo o seu ser, esvaziando-se absoluta mente do ser. O Filho, por sua vez, se reverte ele também kenoticamente no Pai, e esse mútuo esvaziamento kenótico do Pai e do Filho, e do Filho no Pai, constitui o Espírito Santo. Deste modo, a Trindade é um perfeito devir kenótico e não propriamente um ser. Na divindade, haveria somente o devir, e não tanto o ser, somente o devir como Espírito. (...) Desse processo kenótico na esfera da Divindade desenvolver-se-ia a Criação, exatamente como diziam os gnósticos, por uma espécie de decadência ou expoliação da Divindade infinita no ser finito. Assim como em Deus as Pessoas divinas procederam kenoticamente assim, por sua vez, Deus teria criado o mundo kenoticamente, esvaziando-se nele. A criação, por sua vez, passaria por evolução à racionalidade cognoscente, com o aparecimento do homem, para retornar ao nada divino, através da evolução dialética.84 E assim segue a influência de Hegel em Thomasius, não podemos afirmar que em todos estes aspectos, mas o contrário também não é certo. 1.2.2 – Cristo na Teologia de Schleiermacher Todo o itinerário cultural do século XIX resume-se na aspiração do homem em fazerse Deus e também no Deus que se encarna em Cristo. Há uma tentativa de síntese entre natureza humana e natureza divina. Schleiermacher desempenha um papel central nesta tentativa, tanto no campo da filosofia como no campo da teologia, que é renovada por causa de sua proposta. Cristo é central no pensamento de Schleiermacher, e é este considerado o Pai da Teologia Moderna, o que torna qualquer tema relacionado a ele, altamente relevante para a compreensão teológica do século XX, e como não poderia deixar ser, também do século XXI. O Cristo de Schleiermacher é o redentor igual a todos os homens enquanto pertencente a uma identidade da natureza humana, a sua diferença dos outros homens está no potencial perene da consciência de Deus, que o torna verdadeiro ser de Deus. Este conceito pode ser considerado, de forma altamente resumida, quem é Cristo para Schleiermacher. 84 Orlando Fedeli. 45 Para Schleiermacher a união do divino com o humano recebeu a expressão máxima na pessoa de Cristo. Esta pessoa representa o aperfeiçoamento da humanidade e ao mesmo tempo representa o desenvolvimento mais elevado do que é humano. Schleiermacher defendeu que a mesma união do divino e do humano conforme observamos na pessoa de Jesus também se encontra na Igreja, no âmbito da comunhão. Desta forma a Igreja é a continuação direta do surgimento de Cristo, representa a nova humanidade que tem Cristo como protótipo. Com Hägglund podemos ver a influência de Schleiermacher nos anos seguintes: A tradição iniciada com Schleiermacher foi levada avante em particular pela tendência geralmente denominada “teologia mediadora”. O aparecimento dessa tendência pode ser datado do ano 1827 quando foi fundado o periódico intitulado Theologische Studien und Kritiken. Seu programa proposto era o de mediar entre a fé bíblica e o moderno espírito científico. Mas ao mesmo tempo que esta escola teológica procurava mediar entre o cristianismo e a ciência, também tentava mediar entre várias escolas de pensamento. Schleiermacher foi o espírito que guiava seus adeptos por excelência, mas também havia ligação íntima com a tradição antiga, bem como com o avivamento e, por vezes, com Hegel. 85 O Cristo de Schleiermacher O surgimento de Cristo, que corresponde à fundação da nova totalidade vivente, ou seja, a salvação de Deus, é considerado uma nova criação que leva a cumprimento a criação da natureza humana. Cristo é o segundo Adão, aquele que dá partida a esta vida humana perfeita, o cumprimento da criação do homem. Este segundo Adão, por um lado é completamente igual a todos os homens, por outro lado é distinto somente pelo fato de ter sido dotado de uma consciência eficaz de Deus. Schleiermacher sobre Jesus Cristo diz que “desde o início, ele possuía uma absoluta e poderosa consciência de Deus.”86 Assim sendo, a criação do homem é dividida em dois momentos distintos: o primeiro momento refere-se ao antes de Cristo, período em que o homem está sob a consciência de pecado (pecado para Schleiermacher é a falta da consciência de dependência de Deus); já o segundo momento, refere-se ao depois de Cristo, onde há a consciência eficaz de Deus nele. Aqui “a atividade redentora de Jesus é devida à sua perfeição sem pecado – o que quer dizer, sua absoluta consciência de Deus, que nunca esteve em conflito com o segundo nível de consciência. Esta perfeição não pode ser explicada como sendo causada por seus antecedentes na história 85 86 Bengt Hägglund, p. 318. Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith. Edimburgh, p. 367. 46 humana, pois o que havia era pecado. Ela pode ser exp licada somente a partir da existência de Deus nele.”87 Cristo se torna assim o Redentor, alguém que possui a totalidade vivente da consciência de Deus, ou pode ser visto como o aperfeiçoador da natureza humana, que até a sua vinda se tratava apenas de uma possibilidade, que nele é concretizada. Schleiermacher fala do conceito de arquétipo em relação a Cristo, “como expressão adequada para a dignidade pessoal exclusiva de Cristo, que corresponde evidentemente só à carga de vigor da consciência de Deus – capaz de imprimir nele o impulso para todos os movimentos da vida e de determiná-los – e não aos mil relacionamentos da vida humana ligados ao saber ou a toda arte e habilidade, que se desenvolvem na sociedade humana.”88 Aqui a relação do Cristo arquétipo com o Jesus histórico é descrita por Schleiermacher da seguinte forma: “o redentor é igual a todos os homens por força da identidade da natureza humana, mas é diferente de todos os homens pelo potencial perene da consciência de Deus, que constituía nele verdadeiro ser de Deus.”89 Cristo é a sede originária para o ser de Deus na natureza humana de Jesus de Nazaré, homem distinto dos outros homens, “mas o Cristo é o “outro” do homem, porque, na sua autoconsciência, a consciência de Deus [de]termina perenemente e exclusivamente cada momento da sua vida.”90 Como diz Schleiermacher, “o ser supremo habita nele como sua essência peculiar e como coração do seu Eu.”91 O surgimento do primeiro Adão refere-se à vida física do gênero humano, enquanto o aparecimento do segundo Adão diz respeito à nova vida espiritual que é desenvolvida e comunicada de modo contínuo por meio da fecundação espiritual. O primeiro Adão não comunicou o espírito (ideal) à natureza humana de modo suficiente para elevar o homem ao estado do sentimento de dependência de Deus. Já o segundo Adão, expressou seu caráter ideal e a sua capacidade de reproduzir esse caráter em outros. Schleiermacher criticava a doutrina clássica das duas naturezas de Cristo, a divina e a humana existindo em perfeição na pessoa histórica de Jesus de Nazaré, como sendo uma impropriedade lógica. As duas naturezas não podem existir em um único individuo. Para ele 87 Justo L Gonzalez, vol. 3, p. 362. Marcelo Farina, Friedrich Daniel Ernst Schleiermahcer – O Cristo arquétipo perfeito do homem inabitado por Deus in Silvano Zucal p. 77. 89 Friedrich Schleiermacher, La dottrina della fede, p. 140 apud Marcelo Farina, p. 78. 90 Marcelo Farina, p. 78. 91 Friedrich Schleiermacher, La dottrina della fede, p. 144, 88 47 Jesus Cristo é completamente igual a todos os homens, exceto pelo que afirma no parágrafo 94, dizendo que: “O Redentor, então, é como todos os homens em virtude da identidade da natureza humana, mas distinto deles pelo potencial constante da sua consciência de Deus que era uma verdadeira existência de Deus nEle.”92 “Sua consciência de Deus não era produto apenas da humanidade; era resultante da atividade de Deus em sua vida. Era, porém, uma consciência completamente humana de Deus. A partir do seu nascimento, ele viveu no conhecimento plena da sua dependência de Deus.”93 Então para Schleiermacher é exatamente esta consciência de Deus que Jesus Cristo teve, o lugar onde encontra-se a possibilidade de expressão da sua divindade; pelo “fato de ele ser o ideal da consciência humana de Deus, sua completa e perfeita devoção.”94 Quanto à obra redentora de Cristo, afirma Schleiermacher no parágrafo 100: “o Redentor traz o crente para dentro do poder de Sua consciência de Deus e essa é sua atividade redentora”. 95 Seu argumento principal ao analisar e rebater a doutrina das duas naturezas, conforme expressa o dogma clássico, era de que o Novo Testamento conferia a Jesus apenas atributos que evidenciavam uma forma de humanidade elevada. 96 Para Schleiermacher, “a divindade de Jesus não faz parte da essência de seu ser, mas é uma atividade de Deus dentro dele – apenas uma atitude em relação a Deus e aos outros seres humanos.”97 Esta nova forma de interpretar, diga-se também original, o dogma das duas naturezas de Cristo fora motivado pelo seu conceito dos dois momentos da criação, um momento imperfeito, que “em Adão e no gênero humano que dele deriva, em que por outro lado é já possível distinguir, em teoria, entre natureza humana e consciência do pecado, ainda que, na prática, elas confluam na vida real de cada homem” 98 e outro perfeito que “só no segundo Adão, Cristo, o homem cujo “Eu” contém a consciência de Deus eficaz em todo momento”99 , possibilitando à toda a humanidade pode atuar a partir do divino, pois a ação divina sobre a natureza humana tornou-se um realidade idêntica. Para concluir, segundo Schleiermacher: 92 Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith, p. 385. Stanley Grenz, J.; Roger E. Olson, A Teologia do Século 20, p. 55. 94 Stanley Grenz, J.; Roger E. Olson, p. 55. 95 Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith, p. 425. 96 Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith, p. 424. 97 Stanley Grenz, J.; Roger E. Olson, p. 57. 98 Marcelo Farina, p. 79. 99 Marcelo Farina, p. 79. 93 48 “A obra do redentor é baseada sobre esta definição de sua pessoa. Esta obra é a comunicação de sua absoluta consciência de Deus a outros seres humanos. Ele faz isto assumindo crentes em sua própria consciência de Deus. O redentor é ativo em nós, como Deus é ativo nele; nós somos passivos com respeito a ele, como ele é passivo em sua humanidade com respeito a Deus. Sua atividade redentora é a obra de Deus por meio dele em nós. Por mais que isso pareça paradoxal, nossa ação na nossa redenção é sermos passivos, assim como Jesus foi unido com Deus por meio do seu próprio ato humano de passividade. Tornamo-nos inconscientes da nossa própria vida e nos tornamos conscientes de sua vida. Esta é a passagem do pecado para a perfeição. É um ato de liberdade para nós, bem como para o redentor. Somos formados como novas pessoas nele e, assim, nos tornamos parte da nova criação, que expressa a original perfeição.” 100 Schleiermacher negava a divindade de Cristo, que era visto por ele como apenas um homem com suprema consciência de Deus. Durante o século XIX deu-se uma mudança objeto fundamental da cristologia. O Cristo sobrenatural saiu de cena e os esforços se concentraram no Jesus meramente humano. A doutrina das duas naturezas na pessoa histórica de Jesus perdeu espaço para o Jesus como um homem divino. Schleiermacher foi o principal teólogo deste novo movimento. Cristo era visto por ele como uma nova criação, na qual a natureza humana seria elevada ao nível da perfeição ideal. No entanto, o seu Cristo não se elevava acima do nível humano. O caráter impar da pessoa de Cristo está no fato de que ele possuiu o perfeito senso de união com Deus. Houve uma presença especial de Deus nele movida pelo seu senso de total dependência. A teoria quenótica representa também uma tentativa de superação na elaboração da doutrina da pessoa de Cristo. Vejamos então como Thomasius propõe esta superação. 100 Justo Gonzalez, p. 363. cp. Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith, p. 432. 49 2 – Análise Thomasius da Cristologia Quenótica de Gottfried A cristologia quenótica foi um dos muitos empreendimentos na tentativa de mediar a teologia clássica com o pensamento científico moderno. A redefinição da doutrina da pessoa de Cristo proposta por teólogos do século XIX também foi pressuposta pelo molde filosófico do hegelianismo. Schleiermacher influenciou diretamente estes empreendimentos. A ordem do dia consistia em explicar Jesus como Cristo após exposto aos questionamentos filosóficos da época. O desejo era explicar o Cristo da fé como Jesus dentro dos moldes científicos. Vários teólogos se lançaram no empreendimento primoroso e fluído na teologia do século XIX, ou seja, responder algumas perguntas: como podem ser combinadas as antigas categorias da doutrina cristã com o moderno ponto de vista? Como manter intacta a antiga tradição diante das abordagens modernas? Dentre estes vários teólogos do século XIX, encontramos Gottfried Thomasius (18021875) como um dos que se propôs a lançar propostas como solução racional para responder a estas questões cristológicas. Thomasius propôs a teoria quenótica como resposta. Esta teoria foi formulada tendo como contexto o embate cristológico contra I.A. Dorner (1809-1884). Thomasius apegou-se ao conceito tradicional das duas naturezas de Cristo. Defendia que o Logos se fez homem, despojando-se dos atributos divinos que possuem relação com o mundo, sejam a onipotência, a onipresença e a onisciência. Jesus Cristo retomou estes atributos quando foi glorificado. Teorizando desta forma tentou fazer justiça à humanidade de Cristo mantendo as antigas categorias da cristologia tradicional. Já Dorner encontrava dificuldades em correlacionar o Jesus das pesquisas científicas com o Jesus Cristo da cristologia clássica. Negou a idéia das duas naturezas divina e humana na pessoa una de Jesus Cristo. Interpretou a natureza divina em Jesus como uma comunhão gradual com o Pai, distanciando-se do conceito clássico de encarnação. A definição cristológica clássica, conforme a Fórmula de Calcedônia expressa, não ensina uma cristologia quenótica como foi defendida por Thomasius. Contrariamente, nos primórdios da Igreja Cristã o que se expressou foi que as duas naturezas em Jesus Cristo eram perfeitas. 50 Quando o Logos encarnou-se, a natureza humana deixou de exercer alguns atributos da divindade, mas esses não deixaram de existir, como ensina o quenoticismo. Segundo a definição clássica, os mesmos atributos permaneceram em Cristo todo tempo durante sua vida na terra. A teologia quenótica tinha sido considerada expressiva no século XIX devido ao crescimento da psicologia moderna, onde estava iniciando o estudo do homem em categorias psicológicas. A categoria central do homem era sua consciência. Se o centro do homem era sua consciência, então Jesus possuía dois centros, pois ele tinha uma consciência como homem e outra consciência como Deus. Desta forma, Jesus não poderia corresponder a um homem normal, e consequentemente, não poderia ser considerado um humano. A psicologia tornou inviável a idéia de uma combinação de divindade e humanidade plenas em Jesus Cristo. Como poderia alguém ser tão diferente de um homem e ainda assim ser considerado um ser humano? Eis a questão. É preciso esclarecer que, mesmo diante das controvérsias existe um ponto de convergência entre Dorner e Thomasius, segundo Welch: “... um problema comum: o ser de Deus em Cristo, ou mais explicitamente, a doutrina da encarnação em relação ao conceito de Deus.”101 Como desenvolver o tema comum da pessoa de Cristo e a natureza de Deus em relação à encarnação. 102 Explicar isto foi a tarefa de ambos. Este dois teólogos possuem afinidades com a teologia da restauração em sua apelação às demandas da experiência religiosa e sua participação na tendência de reapropriação “eclesiástica” ou da doutrina ortodoxa. Eram teólogos da igreja, ambos viam a teologia a serviço da igreja, combinando a atuação acadêmica com a vida da igreja. Tencionavam relacionar a Wissenschaft (ciência) com a teologia, no que concerne ao pensamento teológico sistemático. 103 O problema mais importante para eles é metafísico, a pergunta do ser de Deus na pessoa histórica de Jesus Cristo, ou na linguagem da doutrina clássica, a união de Deus e homem no Deus- homem. A questão maior é sobre a pessoa de Cristo e não sobre sua obra. Mas falam de inseparabilidade destas realidades e incluem a unidade entre a pessoa e a obra, 101 Claude Welch (ed.), God and Incarnation in Mid-Nineteenth Century German Theology, p. 4. Claude Welch, p. 6. 103 Claude Welch, p. 4, 5. 102 51 para que na união de Deus e homem em Cristo se dê sua atividade redentora, a salvação da humanidade. 104 Ambos estavam envoltos na tentativa de responder de modo inteligível a grande pergunta da sua época: Como é possível relacionar o Jesus Histórico (na visão atual da pesquisa moderna) com o dogma das duas naturezas de Cristo (como exposto pelo Concílio de Calcedônia)?105 2.1 – Isaak August Dorner106 Todo o século dezenove pode ser visto como uma luta para afirmar a humanidade de Jesus, pode-se observar isto com grande cla reza na segunda metade deste século no pensamento protestante alemão. O período é marcado pela tensão e pelo choque de posições contrárias quanto a cristologia. Isaak August Dorner buscou uma solução para o problema desejando reter as declarações tradicionais sobre Cristo, mas também tentando incluir as mais novas idéias, correntes no momento, provindas do hegelianismo e das escolas descendentes, como a alta crítica ou o criticismo histórico. O método histórico-crítico apresentou um desafio radical à cristologia ortodoxa como expressa no Concílio de Calcedônia. F.C. Baur de Tubingen se utilizara do método crítico mais radical durante algum tempo, no entanto seu aluno D.F. Strauss foi quem gerou maior amplitude de controvérsias quando da publicação do seu livro Leben Jesu em 1835. Este livro apresentou Jesus como uma pessoa completamente histórica e humana, sobre quem não temos grande informação a respeito, não havendo, portanto, a possibilidade de se fazer qualquer afirmação dogmática a respeito do aspecto sobrenatural dele. A obra de Strauss encontrou muita oposição neste período, pois havia na Alemanha o desejo corrente de permanecer com as afirmações da cristologia clássica, em contraposição as afirmações do método que ora surgia. Estabelecia-se então um posicionamento de proponentes opostos tais como os defensores da crítica histórica e os defensores da ortodoxia cristológica como expressa tradicionalmente pelo Concílio de Calcedônia. Como uma tentativa de conciliação entre estas partes surge a escola da mediação que tentava preservar a cristologia clássica bem como levar em consideração método, atualmente 104 Claude Welch, p. 7. Bengt Hägglund, p. 318-319. 106 Para a escrita deste tópico me concentrei no artigo de John M. Drickamer, Higher Cristicism and The Incarnation in The Thought of I.A. Dorner in Concordia Theological Quarterly, vol. 43, n.º 3, junho 1979, p. 197-206. 105 52 proposto, de abordagem histórico-crítico. O princípio básico da construção teológica da escola da mediação era fazer uma síntese entre estes pensamentos opostos, reconciliando estas partes discordes numa dialética da mesma tradição de Hegel e Schleiermacher, com o intuito de unir ciência e teologia. Dentro desta escola a divergência de pensamento era constante, movidos pelo problema: Como relacionar as confissões cristãs históricas com a consciência histórica moderna? Especificamente, tiveram problemas em conceber a crença na divindade de Cristo e igualmente manter a idéia de que Jesus teve uma vida totalmente humana, precisamente moral, espiritual e mental. No entanto, os teólogos da mediação conceberam um Cristo com uma forte ênfase em sua humanidade, de um modo radical, como nunca havia sido feito anteriormente. Mas eles rejeitaram com igual ênfase as conclusões de Baur e Strauss, atribuindo às conclusões cristológicas tradicionais o fundamento para conceber interpretações e conclusões a respeito de Jesus. Desta forma, se dedicaram à difícil tarefa de incorporar o novo método histórico sobre Jesus aos dogmas mais antigos sobre as duas naturezas de Cristo e também com respeito à Trindade. A cristologia ortodoxa havia mantido Jesus Cristo como completamente humano como também completamente divino; verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O século XIX foi marcado pela ênfase realizada pelos críticos históricos de que Jesus era meramente humano e que nele não havia nada de divino, um homem, como diz Schleiermacher, completamente igual a todos os outros homens, exceto pelo seu potencial perene de consciência da dependência de Deus. Os teólogos da mediação intentavam manter algum sentido com respeito à divindade de Jesus sem, contudo negar a insistência histórico-crítica de que ele era apenas um mero homem e nada mais. Nesta atmosfera de pensamento teológico surge Isaak August Dorner (1809-1884) como erudito acadêmico sério e também desempenhando um serviço eclesiástico ativo. Era aluno de Baur e contemporâneo de Strauss na Universidade de Tübingen. Lecionou em Tübingen (1838-1839), Kiel (1839-1844), Koenigsberg (1844-1847), Bonn (1847-1853), Goettingen (1853-1862), e Berlim (1862-1884). Em Berlim também serviu como chefe do conselho da Igreja Prussiana, um dos partidos mais expressivos da União Prussiana. Portanto, Dorner era um erudito acadêmico com grande envolvimento prático na sua igreja. Dorner era um dos estudiosos de maior respeito em seu tempo, e poder ser considerado uma das figuras mais importantes entre os teólogos da mediação. Autor de obras acadêmicas significantes, em 1856 foi um dos fundadores do Jahrbuecher fuer Deutsche Theologie. Apesar das contribuições importantes feitas por ele para a discussão teológica durante a segunda metade do século XIX, até o momento em que publicou a sua obra 53 completa, ou seja, sua Teologia Sistemática conforme os preceitos da teologia da mediação, ele não era reconhecido como uma opção válida de influência a ser seguida, isto devido à controle causado pelo pensamento de Albrecht Ritschl. A teologia de Dorner é representativa na teologia alemã na segunda metade do século XIX, sendo herdada diretamente pelo pensamento de Schleiermacher e Hegel. A influência de Schleiermacher é vista de várias maneiras, no entanto, é mais notavelmente perceptível a preocupação de Dorner quanto às emoções da experiência religiosa, que poderia ser entendida como a prova das conclusões teológicas contra a imediação da vida religiosa. Já a importância do pensamento de Hegel é vista na preocupação por objetividade e cognição, mais precisamente quanto ao método dialético de interpretação histórica e sistemática, lugar este onde a influência de Hegel sobre Dorner era proeminente. Com este padrão dialético em mente Dorner esperava uma nova síntese que superasse os problemas do passado. A teologia de Dorner estava em uma relação dialética entre a sua própria geração e a construção teoló gica diretamente precedente. A solução proposta por Dorner, quanto aos problemas cristológicos surgidos no conflito entre a alta crítica e a ortodoxia, foi formulada frente à sua contestação da solução destas mesmas questões encontradas pelo seu contemporâneo Gottfried Thomasius, ou seja, o quenoticismo ou cristologia quenótica. Gottfried Thomasius e seus seguidores, os quenoticistas, não pertenciam à escola da mediação, mas lidaram com as mesmas questões cristológicas. Aceitaram a ênfase históricocrítica no desenvolvimento das idéias a respeito de Jesus, também tentaram explicar a relação entre o divino e o humano em Cristo como um auto-esvaziamento do Logos divino, a segunda pessoa da Trindade. O nome quenosis é derivado da palavra grega kenosis, encontrada na carta os Filipenses capítulo 2 verso 7, Thomasius entendeu como “esvaziamento”, passando ele a ensinar que o Logos esvaziou-se da divindade quando encarnou-se. O quenoticismo temia que a divindade fosse um elemento tão forte na vida de Jesus que impediria um desenvolvimento verdadeiramente humano dele, o que negaria então a sua encarnação verdadeira. Thomasius traiu as raízes racionalistas de sua proposta teológica quando se recusou explicitamente a aceitar uma doutrina que ele próprio não pode entender. A forma mais simples de quenoticismo dizia que o Logos se transformou em um ser humano. Para Dorner o Logos é capaz de desenvolvimento e sujeito a mudança de acordo com sua essência, e é assim distinto do Pai que somente possui asseidade. 54 Devido às críticas, principalmente de Dorner, Thomasius ensinou que o Logos não deixou sua deidade completamente de lado, mas apenas alguns atributos, que não eram essenciais à deidade. Ou seja, o Logos esvaziou-se apenas de atributos como onisciência, onipotência e onipresença, que segundo Thomasius são apenas necessários para o seu relacionamento com a criação, retendo assim atributos essências à divindade, especialmente o amor. Dorner rejeitou tanto o quenoticismo inicial, mais radical, quanto ao que fora posteriormente modificado pelas suas críticas; compartilhou algumas das mesmas preocupações e foi em princípio atraído pelas idéias quenóticas, mas logo veio a opor-se devido às dificuldades insolúveis que esta doutrina gerava quanto à concepção clássica acerca da Trindade, sem, contudo conseguir resolver o problema cristológico vigente. Dorner negou terminantemente qualquer mudança no ser de Deus. Segundo Dorner, o quenoticismo com suas afirmações sobre Jesus Cristo, criava uma mudança tal na relação entre Deus e o mundo, que impossibilitava haver uma história da salvação, um desenvolvimento da revelação e a reconciliação entre Deus e o mundo e vice-versa; assim, Dorner insistiu na imutabilidade de Deus que julgava ser um aspecto irreconciliável com o pensamento quenótico. Provavelmente sob influência do pensamento de Hegel, a quem a unidade era uma idéia chave, deu forte ênfase à unidade da essência de Deus a cima das pessoas da Trindade, até o ponto de falar mesmo da personalidade absoluta do Divino. Enfim para Dorner o quenoticismo violava o monoteísmo. Argumentava que se uma pessoa da Trindade se rebaixa a uma mera potencia durante o tempo do desenvolvimento de Cristo e então interrompe sua atividade de sustentar e administrar todo o mundo criado, aí o Logos não somente é mutável como também inferior em relação à Trindade, cabendo apenas uma colocação acerca deste conceito conforme assim expresso, o subordinacionismo do Logos em relação ao Pai. Em outras palavras, Dorner mantém o pensamento de que o proble ma do relacionamento das duas naturezas em um único ser, Jesus Cristo, não pode ser resolvido meramente atribuindo uma mudança a Deus. Dorner afirmava que o quenoticismo não oferecia uma resposta concreta à pergunta cristológica corrente no século XIX, apresentando um Cristo que não era completamente divino e que degradava o Logos. Inclusive em vista do desenvolvimento completamente humano de Jesus, o quenoticismo via o Logos ser completamente comunicado a ele, havendo um tempo de total falta de autoconsciência. Isto parecia a Dorner não deixar nenhum lugar para o Logos possuir o atributo divino do amor, onde a autoconsciência era uma condição prévia para a sua existência. A redução da divindade de Jesus Cristo, feita pelo quenoticismo, 55 não dava nenhuma explicação de como se relacionavam as duas naturezas em uma única pessoa. Para Dorner, segundo a cristologia quenótica, a única conclusão a que se poderia atingir era que Cristo não fora realmente um ser humano, mas apenas uma natureza divina em forma de servo. Dorner acreditava que os quenóticos somente poderiam explicar a encarnação do Logos como a própria kenosis. Desta forma a única conclusão lógica seria a idéia de que o sofrimento de Cristo pertenceu propriamente à sua natureza divina, desta maneira imputando mudança a Deus. Dorner acreditou que a verdadeira síntese, a melhor resposta para as questões cristológicas existentes no século XIX, era uma doutrina do desenvolvimento ou crescimento da unidade entre o Logos e a pessoa humana de Jesus. O desenvolvimento da cristologia foi visto por Dorner como uma dialética entre a dualidade das naturezas e a unidade da pessoa de Cristo. Esta dualidade seria transcendida finalmente, por meio de uma síntese que fizesse justiça ao divino e ao humano na sua união em Cristo. Para Dorner, com seu posicionamento evidentemente hegeliano, a confusão dos sistemas filosóficos que influenciaram a cristologia no século XIX, indica somente uma fase de transição na produção de uma nova convicção comum. Implícito na ênfase no desenvolvimento humano de Jesus e requisito necessário para a nova concepção de Dorner sobre a encarnação, estava a crença que Jesus era uma pessoa humana independente. A cristologia ortodoxa ensinou que não tinha havido nenhuma pessoa humana separada com que a Pessoa do Logos tenha entrado em união, mas que sempre houve uma só Pessoa do Logos, e que a natureza humana completa havia sido assumida em unidade com esta Pessoa sem ter existido à parte desta união. Dorner concebeu a idéia de um crescimento gradual da pessoa humana de Jesus no Logos de modo que a unidade teantrópica, e não somente a humanidade é algo crescente, que deve ser entendida como um processo constante em uma verdadeira e vital concepção da unidade, onde a encarnação não pode ser pensada como instantânea, mas sim como uma unidade progressiva, real e crescente. Dorner ensinou que Jesus havia sido gradualmente levado a uma unidade com o Logos, e intentou expressar esta concepção através dos eventos históricos da vida de Jesus. Ele não se deixou influenciar pela crítica histórica, neste ponto, que adotou um posicionamento radicalmente cético para com os evangelhos, pelo contrário, parecia estar plenamente seguro de que os evangelhos eram historicamente confiáveis. Dorner enfatizou o aspecto sobrenatural na origem do Deus- homem. Com a morte, Cristo teve a sua obra completada, teve a perfeição de sua pessoa realizada. Por conseguinte, o nível mais profundo de sua humilhação externa está no princípio de sua morte, ou seja, a exaltação, que trouxe Jesus a um nível de perfeição em sua 56 vida interna. O ponto mais baixo para o seu corpo era ao mesmo tempo o ponto mais alto para sua alma, segundo afirmava Dorner. O fato de Cristo ter descido ao inferno faz parte de sua exaltação, significando para a pessoa de Cristo um estado de vida espiritual mais elevado, posição em que pode usufruir do seu poder espiritual livre do tempo e do espaço. Contrariamente a muitos dos seus contemporâneos, Dorner acreditava que Jesus havia subido dos mortos, que sua ressurreição física foi real e que possuía significado teológico. No entanto, não aceitou a ressurreição por meio do testemunho do relato dos autores do Novo Testamento, mas porque concluía ser necessária à exaltação plena do Deus-homem. O espírito dele havia sido glorificado ou transfigurado, a morte não poderia tirar parte do seu ser, seu corpo. A necessidade de ressurreição estava na sua perfeição interna, espiritual, que tinha alcançado em sua morte. Esta ressurreição não era, para Dorner, um simples reviver que ainda havia deixado o corpo mortal. Na realidade o corpo não permaneceu físico, segundo Dorner. Jesus subiu ao céu em uma existência exaltada, e para ele a ressurreição e a ascensão foram eventos reais. Dizia que na ascensão de Cristo, ou exaltação absoluta, sua ressurreição encontrou a realização absoluta e como realidade plena a pessoa terrena de Jesus se transformou em perfeição espiritual. E conclui dizendo que o Deus-homem exaltado deixou para trás limites temporais e espaciais tornando-se o instrumento adequado ao Logos. A pessoa de Jesus Cristo, conforme a idéia de Dorner parece ser difusa ou dissolvida no Logos. A cristologia de Dorner era uma tentativa seria de resolver o principal problema cristológico do século XIX: como relacionar e expressar o dogma das duas naturezas em uma única pessoa, Jesus Cristo, de modo inteligível à presente época sem contudo abrir mão das concepções cristológicas clássicas. Dorner tentou propor uma solução original, no entanto, sua proposta estava mais próxima do nestorianismo, pois separava Jesus Cristo em duas pessoas, uma pessoa humana e uma pessoa divina. Já depois da ressurreição, sua concepção assemelhava-se ao eutiquianismo que propunha uma só natureza. Por fim, podemos dizer que a tentativa de Dorner enquanto válida, parece não ter encontrado ponto pacífico em sua aceitação, tão pouco há acordo que ele tenha conseguido levar a efeito seu propósito inicial de síntese e de uma dialética convincente que explicasse a possibilidade de expressar o dogma cristológico segundo expresso pela Fórmula de Calcedônia em uma linguagem aceitável ao pensamento teológico alemão do século XIX. 57 2.2 – Questão de Fonte Neste trabalho nos concentramos na compilação feita por Claude Welch da sistemática de Gottfried Thomasius no que concerne à Pessoa e à Obra de Cristo. Nesta obra de 1965, há muito esgotada, Welch além de editor também é o tradutor, e não somente de Gottfried Thomasius, mas de I.A. Dorner e A.E. Biedermann, proponentes importantes de posições cristológicas na segunda metade do século XIX na Alemanha. Eis a obra: Claude Welch (ed.), God and Incarnation in Mid-Nineteenth Century German Theology, New York, Oxford University Press, 1965. Esta obra contempla um período teológico alemão durante o século XIX. Seu início é marcado pela morte de Hegel em 1831 e Schleiermacher em 1834, cujas obras depois de Kant, inauguraram a era teológica moderna. Este livro se constitui de uma seleção de obras de autores que são esquecidos neste período próspero no desenvolvimento da teologia alemã, normalmente há um salto de Hegel e Schleiermacher direto a Ritschl. Welch pretende preencher esta lacuna existente na história do dogma. Os documentos estão intimamente relacionados, são declarações clássicas da cristologia quenótica e da concepção da encarnação gradual, abordando também o tema da imutabilidade de Deus. Todos os tratados teológicos tratam de um problema comum, ou seja, o ser de Deus em Cristo, ou mais explicitamente, a doutrina da encarnação em relação ao conceito de Deus. Thomasius aparece como representante do neo- luteranismo, enquanto Dorner da teologia da mediação. Welch não pretende abranger a totalidade do período teológico, mas tais autores são centrais em termos de tendência do pensamento teológico daquele período. Thomasius e Dorner possuem afinidades com a teologia de reavivamento nas suas aproximações da experiência religiosa e grande tendência de participação na reapropriação eclesiástica da doutrina ortodoxa. A teologia de Erlangen a qual Thomasius era ligado encarna uma diretriz confessional em uma forma moderada e flexível. Ambos eram teólogos da igreja e desejavam colocar a teologia a serviço da igreja, mostrando que o estudo acadêmico desempenha um papel intensivo em outros aspectos da vida da igreja. Ambos também concordavam que a doutrina cristã tem história, e cada um buscou discernir e construir movido pela tendência dessa história e pela dialética interna, obviamente tomando rumos notavelmente diferentes. 58 As obras selecionadas por Welch neste volume tiveram como fio condutor o tema comum da pessoa de Cristo e a natureza de Deus relacionada à encarnação do Logos. O problema cristológico é um foco comum nesta seleção, não somente pela posição central do assunto para Thomasius e Dorner, ou pela distinção que fazem do tema, ou pelo debate vigoroso ocorrido entre eles, mas porque a pergunta sobre Cristo tem uma proeminência importante no pensamento protestante com relação ao significado da religião e da natureza do conhecimento religioso (revelação e fé), isto porque a teologia do período tende a construir a partir das fundações estabelecidas por Schleiermacher e Hegel. Para Schleiermacher trata-se da relação direta da teologia com a redenção realizada em Jesus de Nazaré, Hegel por su vez recupera e exalta o conceito de encarnação. Dentro do âmbito das preocupações cristológicas, o problema fundamental para Thomasius e Dorner é metafísico: é a pergunta do ser de Deus na pessoa histórica de Jesus Cristo. Assim o alvo principal é na “pessoa” e não na “obra” de Cristo. Tanto Thomasius quanto Dorner afirmavam a unidade entre pessoa e obra, de modo que a união de Deus e Cristo é atividade meritória. A estrutura da dogmática de Thomasius fundamenta-se diretamente na sua elaboração da teoria da encarnação, ou teoria quenótica. A pergunta metafísica sobre o a união entre o divino e o humano na pessoa de Cristo foi moldada segundo o pensamento corrente da época. A humanidade de Cristo se tornou o pivô para a reconstrução teológica do período. A pergunta anterior era: Determinando a deidade de Cristo, como pode ser mantida a autenticidade da humanidade? Agora: Determinada a integridade da existência humana, como é possível falar da presença do divino em Cristo? Ainda permanecia a questão relativa à união do divino no humano, mas agora a realidade e perfeição da existência humana não poderiam ser prejudicadas. As construções cristológicas de Thomasius e Dorner tomam forma com respeito á consideração da relação entre o divino e o humano, no entanto, eles apresentam respostas radicalmente diferente. Para Thomasius a resposta é uma quenose do Logos, uma perda de poder da segunda pessoa da Trindade para que a vida encarnada dele pudesse ser idêntica à existência genuinamente humana. Para Dorner a solução deve ser encontrada em uma nova avaliação da homogeneidade interna ou compatibilidade do divino com o humano que genuinamente se torna divino na vida humana histórica de Cristo. 59 Hegel e Schleiermacher foram os pensadores que a teologia alemã do século XIX tomou como base, fixando assim as fundações e abrindo possibilidades para novas construções. Strauss em seu livro A Vida de Jesus, radicalmente pôs em questão o objeto histórico da fé, Jesus Cristo. Feuerbach pôs em questão o objeto metafísico. Questões são empreendidas: a imagem do evangelho é essencialmente mitológica; seria impróprio para o absoluto se manifestar completamente em um único individuo; e a idéia de Deus é uma projeção da consciência humana. Thomasius tem como objetivo principal reafirmar e restabelecer a doutrina clássica, mas com uma renovação positiva do seu desenvolvimento. Ele possuía o desejo de combinar a fidelidade às confissões luteranas com o trabalho acadêmico. 2.3 – Sobre Gottfried Thomasius (1802-1875) Teólogo luterano alemão nasceu em 1802 em Egenhausen na Franconia. Em 1821 concluiu seu curso ginasial em Anspach, logo em seguida prosseguiu com os seus estudos teológicos nas universidades de Erlangen, Halle e Berlim. Em 1829 tornou-se pastor da Igreja do Espírito Santo em Nuremberg, e em 1830 foi instrutor religioso no ginásio da mesma cidade. Em 1842 foi convidado para ser capelão e professor da cadeira de dogmática na Universidade de Erlangen. Ocupando tal cadeira por mais de trinta anos. Morreu em 24 de janeiro de 1875. Thomasius foi um dos mais importantes representantes do Neo-Luteranismo. Ele tentou combinar a fidelidade às confissões luteranas com o academicismo autêntico sem perder de vista o progresso teológico, também levando em consideração uma fusão de pensamento com Schleiermacher, além de observar a teologia da restauração e o biblicismo. O desenvolvimento de um novo modo de construção e direção teológica era a marca indelével de Thomasius, procurando uma reflexão teológica geral renovada, no entanto, sem abrir mão da sua orientação confessional luterana. 107 Para Thomasius o dogma significa tão somente a expressão conceitual para a fé comum da igreja. Para ele a igreja seria edificada quando houvesse uma compreensão dos fundamentos e conceitos básicos de sua confissão de fé, mas sem a repetição de definições 107 Cp. Claude Welch, p. 10. 60 oficiais. Desejava que o dogma fosse revisitado constantemente, no entanto, sem perder suas raízes, sempre tencionando dar uma forma para este que deve ria aproximar-se da fé bíblica e eclesiástica. Conseqüentemente a reconstrução cristológica que faz, está intimamente relacionada com as discussões luteranas dos séculos XVI e XVII, pelo menos no escopo do seu desejo. Ao mesmo tempo, na defesa que Thomasius empreende de sua cristologia, existe a insistência, provinda de Schleiermacher, quanto à consciência religiosa como fonte de doutrina. 108 Já nos dias atuais John Hick, historiador das religiões e teólogo anglicano nos auxilia na compreensão de Thomasius: O teólogo luterano do século XIX, Gottfrie d Thomasius, foi o primeiro a propor que poderíamos reconhecer propriamente a humanidade genuína de Jesus – naquela época novamente enfatizada – supondo que, ao assumir a natureza humana, o Filho preexistente teria posto de lado algumas de suas qualidades divinas. Thomasius sugeriu que “postulamos a própria encarnação precisamente no fato de que ele, o eterno Filho de Deus, a segunda pessoa da divindade, entregou-se à forma da limitação humana, e com isso aos limites de uma existência espácio-temporal, sob as condições de um desenvolvimento humano, nos limites de um ser histórico concreto, a fim de viver, em e através de nossa natureza, a vida de nossa raça no sentido mais pleno da palavra, sem por essa razão deixar de ser Deus” (Welch 1965, 48). 109 A motivação de Thomasius era produzir uma síntese entre o conceito das duas naturezas do redentor, conforme expressas pelo Concílio de Calcedônia e o pensamento moderno do século XIX, de modo que a síntese que Hegel tanto insistia entre Deus e humanidade fosse observada sem distanciar-se da ortodoxia luterana. A resposta foi o autoesvaziamento do Logos divino. Segundo Thomasius a idéia central da teoria quenótica diz respeito ao abandono dos atributos metafísico da divindade (ou atributos não-essenciais: onipotênc ia, onisciência e onipresença) quando da encarnação do Logos divino e, vivendo assim o redentor uma vida segundo os limites, sofrimentos e tentações inerentes à humanidade. Seu interesse era combinar a fé na divindade de Jesus Cristo com a sua vida plenamente humana, ou, a vida de um homem pleno. Esta é a forma como Thomasius tentava interpretar e atualizar o conceito das duas naturezas na pessoa una de Jesus Cristo como formulado pelo Concílio de Calcedônia. Thomasius tomara uma posição contrária à de 108 109 Claude Welch, p. 11, 12. John Hick, A Metáfora do Deus Encarnado, p. 88. 61 Dorner que falava de uma encarnação gradual, Jesus começou o início de sua vida como mero homem, e ao final dela era Deus. Para Thomasius existem três preocupações essenciais para a formulação da sua teologia. Primeiramente estava interessado em salvaguardar adequadamente a humanidade plena da pessoa de Jesus Cristo. A sua outra preocupação era afirmar que Deus estava verdadeiramente em Jesus Cristo. Aqui nestes dois primeiros pontos encontramos a convergência do pensamento teológico de Thomasius com os credos formulados pelos concílios cristológicos dos primeiros séculos da cristandade. A terceira preocupação de Thomasius está relacionada à primeira, pois “a época em pauta estava aprendendo a pensar em termos das categorias da psicologia. A consciência era uma categoria central. Se a nossa consciência está em nosso “centro”, e se Jesus era tanto Deus onisciente quanto homem limitado, logo, Ele tinha dois centros e, portanto, fundamentalmente não era um de nós. A cristologia estava se tornando inconcebível para algumas pessoas”110 , principalmente para Dorner, seu opositor mais ferrenho. Colin Brown a respeito, diz: Em Christi Person und Werk I-III (1853-61), Thomasius procurou declarar uma doutrina da encarnação que respondesse às acusações de críticas radicais tais como D.F. Strauss, que diziam que o quadro ortodoxo de Cristo como sendo humano e divino era o de um hibrido historicamente inconcebível. A resposta de Thomasius pretendia demonstrar que se podia conceber de Jesus em termos de Deus, e, porém, ao mesmo tempo, em termos de quem vivia uma vida plenamente humana. Sua resposta, portanto, foi uma nova declaração de idéias dogmáticas, em termos que se condiziriam com as exigências da crítica histórica. Deve-se notar, no entanto, que onde as tentativas mais liberais e radicais no sentido de declarar de novo Quem era Cristo meramente cortavam o nó, dizendo que Ele era um homem inspirado por Deus, de modo comparável com os profetas, a cristologia quenótica era uma tentativa de preservar a doutrina das duas naturezas de Cristo. Onde os radicais diziam que Jesus não era divino, kenosis respondia que era divino, mas que não possuía, ou não empregava, todos os atributos divinos. Isto porque deliberadamente Se acomodava às condições comuns da humanidade. 111 Desde já podemos nos utilizar de algumas questões quanto à teoria quenótica que nos darão as balizas necessárias para a caminhada quanto ao entendimento da mesma: 110 Stephen M. Smith in Walter A. Elwell, vol. II, p. 396. Colin Brown in Colin Brown (ed.), O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol. IV, p. 690. 111 62 a) A teoria quenótica deve ser entendida como um esvaziar-se dos atributos divinos (mesmo que apenas alguns)? Ou como uma ação soberana do amor divino em descer até o homem? b) No contexto de compreensão da doutrina da União Hipostática, como compreender o conceito da communicatio idiomatum? Já que tomado de forma simplista, o quenoticismo pode enfatizar a unidade de Cristo em detrimento de uma das pessoas? c) Quanto á doutrina da Trindade, a teoria quenótica pode mostrar uma base sólida para o estabelecimento desta doutrina? 112 2.4 – Exposição da Cristologia Quenótica de Thomasius 2.4.1 – Introdução Para Thomasius a vinda de Cristo ao mundo é o grande fato que estava por vir desde o princípio da revelação de Deus à humanidade. É o centro da história da salvação inteira, implantado no centro do tempo; é a conclusão do velho, o começo criativo de algo novo, propagado por tudo aquilo que é anterior, condicionando e determinando tudo aquilo que se segue. Como o centro histórico que é deste modo ao mesmo tempo o fundamento interno da inteira revelação econômica para a humanidade, também é o objeto que medeia a graça divina para a humanidade tanto anterior como posterior: para trás, aponta para a proclamação profética do Antigo Testamento como propósito da obra de Deus eternamente presente no decreto divino; adiante, para a proclamação apostólica que testemunha do que é dado a humanidade em Cristo. Assim o surgimento de Cristo no mundo tem um significado sem precedentes a nenhum outro fato ocorrido, ele é o centro da história do mundo e da salvação. Agora este fato não é deduzido como simplesmente “necessário”, ou como parte da essência de Deus, ou da idéia de humanidade, ou do desenvolvimento histórico da raça humana, não pode alterar o conteúdo essencial de fé Cristã. 113 Não é que uma identidade intrínseca da essência divina e humana alcance a consciência somente neste fato; não há nenhuma identidade intrínseca e nenhum processo ao longo dos quais seria Cristo mediado com Deus que é a personalidade absoluta e como tal está completa nele, e a humanidade é a Sua criatura e como tal não é elemento do conceito de Deus. A humanidade não tem nenhuma relação de essência com Deus, mas é somente o 112 Religion in Geschichte und Gegenwart: Handwörterbuch für Theologie und Religionswissenschaft, p. 931. Gottfried Thomasius, Christi Person und Werk – Darstellung der evangelisch-lutherischen Dogmatik vom Mittelpunkte der Christologie aus, vol. II in Claude Welch, p. 31. 113 63 produto da sua aliança, o trabalho das Suas mãos, destinada para representar a personalidade absoluta como uma semelhança com o Criador dentro dos limites da finitude. Este fato nada mais retifica além da significação da fusão da realização da idéia de humanidade, ou a conclusão do propósito da criação segundo a sua necessidade; embora na criação haja um alvo fixo a ser alcançado pela humanidade, ainda para a concretização daquela meta, o pecado não impedia o alcançar este alvo, nenhum arranjo essencialmente novo da parte de Deus teria sido necessário, ou seja, desde a criação o homem já possuiu todas as condições e virtudes para esta auto-perfeição que está de acordo com o que fora destinado a ele. Ele atingiria o que ele deveria ter se tornado através de um desenvolvimento naturalmente normal. 114 O surgimento do pecado só fez necessária a encarnação do Filho de Deus, e até mesmo este não era nenhum meio para solucionar a discórdia entre Deus e a humanidade que foi originada pelo pecado, mas para restabelecer a comunhão de Deus com a humanidade. É o decreto eterno do livre amor compassivo de Deus para com o pecador que é cumprido na encarnação, o ato mais elevado e mais maravilhoso deste amor. Estar seguro deste ato de amor Deus não só exterminará o pecado com suas conseqüências na humanidade, como também restabelecerá o que estava perdido. A restauração do perdido ao caminho de reconciliação e redenção é ao mesmo tempo planejado para ser o meio principal da humanidade àquela transfiguração espiritual-corpórea para a qual a real possibilidade já era determinada na criação, os meios para o cumprimento completo do decreto eterno de Deus para humanidade e para o mundo cujo centro é a humanidade. O estabelecimento de uma nova humanidade, aperfeiçoada, abrangendo o universo inteiro debaixo de um cabeça como um reino de Deus para que este fato se estenda em seus efeitos. Embora novamente seja relacionado ao pecado que emergiu, Deus tem seu próprio telos que deseja não obstante a reconciliação e redenção do mundo, e por causa disso se demonstra mais maravilhoso e glorioso. Desta forma já evidente como a pessoa de Cristo e sua obra estão entrelaçadas um ao outro na Cristologia de Thomasius. Os dois somente não estão relacionados como o fim e o meio, mas cada um está contido dentro do outro. A obra nada mais é que o auto-testemunho, a 114 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 32. 64 manifestação viva da sua pessoa; a pessoa, concebida como atual e viva, é nada mais que a mediação pessoal encarnada e reconciliadora. Para podermos compreender melhor, nós temos que separar os dois para uma exposição própria, e lidarmos primeiro com a pessoa e então depois com a obra do mediador, porque o segundo tem uma relação interna com o primeiro como pressuposição; mas este silêncio só pode ser desfeito de tal maneira que consideremos os dois em conexão constante entre si e que de qualquer modo, há no fundo um mesmo assunto, somente visto de perspectivas diferentes. E realmente nós conduzimos nosso ponto de partida para sua obra, mais precisamente na comunhão com Deus mediada por Cristo na qual nós experimentamos participando da sua fé. Desta comunhão seguirá as preocupações com a pessoa do mediador. Para Thomasius, assim proceder é requerido pelo princípio da sua confissão, pois, segundo ele, este é o modo no qual a igreja luterana tem desenvolvido sua cristologia. 115 A comunhão com Deus, na qual nós somos edificados como cristãos é uma realidade presente e atual, um relacionamento pessoal com Deus. Perdoados e amados por Ele, nós nos percebemos como seus filhos, reconciliados com ele, inspirados pelo seu Espírito; nós temos relacionamento de fé com ele, em um amor responsivo e também na oração. Mas o mediador desta comunhão é Cristo, o Cristo pessoal e vivo. Através dele nós somos reconciliados com Deus, nele nós temos a Deus como nosso pai, a sua ação abundante em nós nos enche do fluxo de graça divina e dos poderes do Espírito Santo; através dele nós oramos ao Pai, nele nós temos relacionamento com o Pai. Pelo mesmo fato que nós somos edificados numa comunhão pessoal com Cristo, nós somos edificados numa comunhão pessoal, atual com Deus. Cristo é o laço vivo desta comunhão. Porém, esta comunhão presente aponta para um lado e para o outro: para trás fora o aparecimento histórico e atividade redentora de Cristo na carne, através da fé na apropriação da qual nós entramos em relacionamento com Deus no qual nós somos edificados como cristãos; à frente aponta para uma perfeição futura com relação à transfiguração correspondente do mundo. 115 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 33. 65 Agora se nós começamos na comunhão presente, de modo experimental, a relação atual na qual nós somos levantados a Cristo e então através dele para Deus, esta relação é somente manifestadamente possível e atual em virtude do fato de que ele, o mediador, é pessoalmente um com Deus e também um conosco, onde um é reconciliado no outro; um com Deus como membro na Trindade Santa, um conosco como membro de nossa raça, e logicamente pertencendo essencialmente a ambos. O primeiro elemento, a unidade essencial de Cristo com Deus, já está garantida a nós como é geralmente reconhecida na igreja Cristã. É a comunicação da comunhão pessoal de Deus conosco, mediada por Cristo, de um amor de Deus em Cristo a nós, de uma doação de vida divina por Cristo a nós; é a morada experiencial de Cristo em nós que somos ao mesmo tempo a morada do Pai e do Espírito Santo porque ele é da mesma essência divina, personalidade divina, e comporta dentro dele o amor autoessencial, a abundância absoluta de Deus! O outro elemento, a unidade essencial do mediador conosco, realmente é acentuada freqüentemente como importante para o estabelecimento objetivo da comunhão com Deus por meio da reconciliação, mas não é de nenhuma importância para a existência subjetiva e continuação daquela reconciliação. Precisamente na identidade dele com a fundação e a manutenção continuada e renovada de nosso estado pessoal à graça está no fato de que ele morreu uma vez por nós e agora ele nos dá vida. É mediado o bom prazer de Deus em nós incessantemente pelo bom prazer absoluto dele no homem Jesus como a reconc iliação pessoal encarnada; o amor do Pai a nós somente vem através do coração do encarnado, e somente assim nós também temos acesso constante ao Pai por meio dele. Precisamente por causa disto, desde que nós conhecemos a Cristo como igual e agora humanamente relacionado a nós, humanamente próximo, nós ousamos reivindicar a defesa dele junto a Deus quanto a nossos pecados diários, ir diretamente a ele em todas as solicitações, o amigo compassivo; no ser-homem dele mais santo continuamente há o conforto mais tenro para todo coração preocupado. E até mesmo a comunhão mais essencial e real com Cristo que os sacramentos oferecem, a eficácia mística destes meios de graça é que dá a vida do divino-humano aos membros da sua comunidade. Em resumo, é a pressuposição ou somente a condição fundamental de nossa fé Cristã, que Cristo se coloca em comunhão essencial com Deus por um lado e conosco por outro; somente neste aspecto ele é considerado o mediador. 116 O resultado é o mesmo quando, secundariamente, nós olhamos a relação presente de comunhão com Deus em Cristo na sua mediação histórica. Esta conexão forma um elemento 116 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 34-35. 66 integrador de nossa fé. Esta relação pessoal é estabelecida através da justificação; mas justificação não é essencialmente nada diferente da porção dada a nós mesmos que objetivamente fosse adquirida para a raça inteira de uma vez por todas pelo ato reconciliador de Cristo. Neste fato nós sustentamos nossa fé. Mas agora a inteira significação deste fato descansa muito mais em seu ser divino do que na sua ação humana; para isto ele pôde instituir uma relação eterna que abraça o todo da humanidade, e pôde lançar fora e superar a culpa da raça com respeito à morte, o pecado do mundo, somente isto aconteceu por causa do ato do Deus eterno, um ato de quem é o criador, senhor e juiz da raça; e isto só pertence verdadeiramente a nós por causa de sua verdadeira humanidade. Como um ser meramente divino careceria de realidade histórica; como meramente humano necessitaria de poder para reconciliar o mundo. Só como o divino- humano é que de fato pode ser mediatorial. Mas uma ação do divino- humano pressupõe a idéia de que é da mesma maneira essencial com Deus como também essencial com a humanidade, um assunto em que a personalidade divina interpenetra o humano como unidade viva. 117 Finalmente, em nossa comunhão presente de fé com Deus nós temos a certeza de nossa perfeição futura relativa ao último ponto mais elevado, em termos éticos e o também pelo lado natural de nossa vida, mais precisamente a certeza de uma liberdade completa de tudo que agora ainda perturba esta comunhão, do poder do pecado, da morte e da maldade. A expectativa de uma transfiguração futura na imagem de Deus em alma e corpo, de um reino futuro de glória em comunhão com todos – este resgate é o conteúdo de nossa esperança cristã. E esta esperança descansa completamente mais uma vez na pessoa de Cristo; é essencialmente esperança nele, no futuro com ele; sim, ele é a esperança de nosso futuro. Porque somente ele instituiu a comunhão que pode conduzir para a vitória de sua meta. Sem esta conclusão o inteiro estado presente de nossa vida cristã e a história do seu reino na terra com suas lutas e sofrimentos, conforme afirma Thomasius, seria um fragmento enigmático, um começo sem um fim, um semear de lágrimas sem uma colheita. A igreja pode estar certa do seu futuro. Tem a promessa para o futuro de ver com seus olhos ao Cristo em quem acredita, de ser tirada por ele para fora do estado de sofrimento em direção à glória. 118 Uma pessoa divino- humana acentua um ponto adicional, se não é uma pessoa, Cristo, que essência divina interpenetra a natureza humana como uma unidade pessoal em uma atividade comum? Então todos os elementos previamente notados perdem o sue significado 117 118 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 35-36. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 36. 67 imediatamente. Estes atos se não são então divino-humanos, mas divididos em divino e humano, eles são como um paralelo, e somente pertencem a um ou outro lado, mas não a ambos - e assim a sua ligação íntima é desfeita. Isto é aplicável a ambos, ao passado, ao presente e aos atos futuros do Mediador. Se a deidade e a humanidade em Cristo dividiram-se à parte, então no presente não há nenhuma comunhão divino-humana completa dos crentes com ele, e nenhuma real imanência espiritual de Cristo neles. Neste caso, o que nós temos de fato e pessoalmente nele é somente o lado divino do seu ser; o que nós recebemos dele são somente influências divinas e são meramente comunicadas; resta apenas uma distância completamente transcendente entre ele e nós. A encarnação perde completamente seu significado duradouro. Somente passa a existir quando é dada a devida importância ao ato historicamente passado da redenção, para o comportamento presente de Cristo em nós e a conseqüente relação presente nossa com ele. 119 Assim de todos os modos, os interesses práticos mais profundos nos forçam a conceber a pessoa do mediador como uma unidade viva, como um ego unitário, como uma pessoa divino-humana. Todo dualismo que afirma separadamente o divino e o humano nele de modo que a unidade da pessoa é destruída e sua atividade é separada compromete os elementos mais essenciais de nossa fé; toda representação que não permite a confissão, “Jesus Cristo, o homem, é Deus,” contradiz nossa consciência cristã, dizia Thomasius. 120 Segundo Thomasius, agora ele [Cristo] está divino-humanamente perto de nós onde nós o buscamos; agora ele vive no céu como também na sua comunidade na terra, e dá o seu ser divino- humano aos crentes; isto indica uma condição de superioridade para o mundo e de liberdade, uma transfiguração do humano no modo divino de ser e agir. Então ele estabeleceu a reconciliação, enquanto vivendo e sofrendo, enquanto combatendo e morrendo por nós; isso indica um estado de sofrimento, um modo de existência análogo ao qual nós nos achamos no presente. Mas a identidade do assunto tem que continuar ao longo desta diferença de condições, porque precisamente naquela identidade a significação das atividades, aqui como lá, procede somente dele. Nisto nós temos uma diretriz e um alvo para nossa apresentação da pessoa e da obra do mediador. 121 119 120 121 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 36-37. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 37. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 37-38. 68 2.4.2 – A base da encarnação Em primeiro lugar o divino que se tornou o homem em Cristo preexistiu como ego pessoal antes da sua entrada na humanidade. Este fato histórico tem seu fundamento no decreto pre-temporal, não é a determinação do testamento de uma única pessoa divina, mas do Deus Triuno ; procede do amor unitário do Pai, do Filho e do Espírito Santo que efetivaram a obra inteira da mediação da salvação. Não obstante o que se tornou homem não é para nós nem o Pai nem o Espírito Santo; ele não é o Pai, porque ele nos reconciliou com o Pai, e não é o Espírito Santo, porque ele derrama em abundância o Espírito a nós, mas o Filho que é a pessoa em ambos. E é o Pai que envia o Filho, e o Espírito Santo que medeia a união do Filho com a humanidade. 122 Assim a encarnação corresponde àquela forma universal da revelação; aqui também é encontrada a forma “do Pai pelo Filho no Espírito Santo.” E a salvação-histórica desta forma aponta então para a revelação das relações trinitárias imanentes das três pessoas, com sua base interna. A encarnação não pode ser do Pai porque é a especificidade trinitária do Pai, enquanto permanecendo eternamente nele, ser o princípio do Filho e da ordem econômica de salvação. Não pode ser do Espírito Santo porque a especificidade trinitária dele requer a mediação da antítese entre Deus e a criatura pela sua imanência na criatura. É apropriado para o Filho se tornar o homem; pode-se dizer que o seu estado trinitário o destina para isto. Porém, esta determinação do Filho é ao mesmo tempo a sua própria autodeterminação, não uma decisão empurrada a ele, mas um ato da sua própria liberdade, do seu amor, amor doador que é dirigido a humanidade da mesma maneira que para o Pai – a humanidade cujo criador e arquétipo é o Filho. É o mesmo amor divino que o Pai destina ao Filho para devoção na humanidade, e que se dá esta determinação no Filho. Em virtude da tal autodeterminação o Filho mediou o relacionamento da raça humana, desde o princípio caída, com o Pai. Jesus possibilitou o modo para o cumprimento do decreto de redenção ao longo do todo da história, atestou e se apresentou anteriormente a Israel, assim já esteve próximo à humanidade, e apareceu, agora que o tempo tinha sido cumprido, para 122 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 38-39. 69 estabelecer em primeiro lugar na sua pessoa a comunhão com Deus que fora quebrada por causa do pecado, mas para isto ele também havia se preparado. 123 2.4.3 – A possibilidade da encarnação A possibilidade geral de tal união íntima de Deus com a humanidade na pessoa de Cristo resultante da relação dos dois é estabelecida na criação. Certamente se os dois tivessem estado em uma antítese exclusiva, seria impossível realmente a humanidade; mas como criatura pessoal esta relacionada a Deus, receptiva a comunicação divina, estruturada para relacionamento vivo com Deus; ela, a humanidade, estava originalmente em comunhão pessoal com Deus e foi destinada para atingir um nível ainda mais alto daquela comunhão. Assim quando o Filho entra na humanidade ele não recorre a uma esfera inadequada para ele, mas destina-se a uma natureza que ele criou à sua imagem com a finalidade de sua autorevelação, da qual ele nunca esteve completamente distante, até mesmo quando da corrupção mais profunda da humanidade. A diferença é que ela não oferece nenhum obstáculo para uma comunhão mais íntima. Porém a distinção situa-se entre o absoluto e a personalidade que pertence à criatura, precisamente da qual constitui a essência anterior, a autoconsciência. Até mesmo a corporalidade não é uma barreira excludente. Porque a corporalidade é o organismo para o espírito, permeável e útil para o espírito, e então também capaz de servir à deidade como um órgão destinado a ser transfigurado no espiritual. Temos nossa própria experiência de salvação, na medida em que nós (como renascidos) já possuímos os primeiros frutos do Espírito de Deus e há nisso uma garantia para a comunhão perfeita com Deus, abraçando alma e corpo aos quais nós somos chamados como cristãos: uma comunhão na qual nós conheceremos a Deus como nós somos conhecidos por ele, na qual a sua vida nos penetrará completamente, com a sua santa vontade de que nossa própria personalidade seja santificada, e com nossa natureza modificada como instrumento do seu domínio acima de toda natureza material. 124 De tudo isso segue agora, primeiro, que o homem não só é estruturado geralmente para uma penetração do divino, uma natureza humana capaz de receber o divino, mas para uma penetração mais íntima e perfeita que acontece nesta fase da vida – e disto surge a possibilidade da encarnação de Deus, mas só em linhas gerais. Quer dizer, é evidente que não 123 124 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 39. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 40. 70 há nenhum obstáculo na natureza humana para uma real união com Deus; mas isto não explica de nenhuma maneira ou a peculiaridade específica da relação com que nós estamos aqui preocupados ou o ato pelo qual ele entrou no ser. O conceito de um Deus-homem, além da comunhão com Deus que conforma a nossa experiência e esperança; o homem somente consegue ser bom se estiver subordinado a Cristo o Deus-homem, tendo-o como o objeto de fé e adoração. 125 2.4.4 – O ato da encarnação Se Jesus Cristo é uma pessoa divino- humana e se o Filho eterno de Deus for o princípio formativo desta pessoa, então o ato da encarnação pode não ser concebido como se ele, o Filho de Deus, já estivesse unido com um indivíduo humano existente e depois disso transfigurou este indivíduo, por via de penetração gradual, para tornar-se um com ele. Para isso bastaria somente dizer que o homem é elevado à comunhão com Deus, e não que este homem é essencialmente Deus. O ego desta pessoa, o próprio sujeito, sempre permaneceria somente um humano, e a unidade simplesmente ética análoga ao que o Espírito Santo tem com os crentes. O resultado seria um “Deus-homem,” um homem divinizado, uma pessoa humana em quem Deus habita e age, não um homem que é Deus. Mas Cristo é verdadeiro Deus. Da mesma maneira que pouco pode aquele ato que seja concebido como se o Filho de Deus tivesse transmudado fora dele, ou nele, a humanidade na qual ele historicamente surgiu. Esta definição só pode significar, por um lado, que o Logos eterno é intrinsecamente homem e agora só fez completar o aparecimento e a atualização na qual está nele; a encarnação pressupõe a distinção de essência divina e gênero humano. Ou então o significado é que o Logos mudou a natureza humana, e aqui também o mediador não seria nenhum homem verdadeiro, ou não pertencente de fato aos membros da humanidade que foi resgatada, porque ele não teria emergido da continuidade de nossa raça; mas também, se o conceito de transformação é levado até as últimas conseqüências, ele já não seria Deus. 126 Ambas as visões devem ser igualmente evitadas. Elas contradizem o cânon porque elas destroem a verdadeira deidade e a verdadeira humanidade do mediador. 125 126 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 41-42. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 42-43. 71 Numa definição mais precisa da encarnação nós teremos que evitar qualquer distinção entre o divino e o humano com o risco de gerar uma falsa identidade, ou estabelecer uma justaposição externa dos dois; a realidade da deidade e a humanidade pereceriam um terceiro ser, e em um evento posterior seria perdida a unidade pessoal. Se forem usados os modos anteriores de caracterizar a relação das duas naturezas para descrever a mesma origem da pessoa do mediador, ou só sua existência duradoura, eles sempre vão, retroativamente ou projetivamente, ameaçar aquela forma de Cristo que é a real pressuposição de nossa comunhão com Deus, o objeto de nossa fé, nosso amor, nossa adoração. Deste ponto de vista os dois falsos caminhos anteriores que a encarnação deve por de lado estão fixados no fato que o Filho eterno de Deus não é natureza, mas pessoa apropriada a ele, um humano comum a todos; o humano de natureza espiritual-corpóreo (não um indivíduo completo), i.e., ele fez isto a si próprio e assim ele formou a pessoa do Deus- homem primeiro. Porém, ao mesmo tempo deve ser mantido que esta natureza humana assumida por ele se eleva em conexão orgânica essencial conosco, e assim é levada da substância e tronco da árvore adâmica da vida, porque somente assim o mediador é nosso semelhante. Do ponto de vista dos outros dois falsos caminhos, a união do Filho de Deus com a humanidade deve ser concebida assim, o eterno, e o portador da abundância absoluta de Deus, na natureza humana, se entregando e participando nesta relação. Ele estabelece uma relação sem se exterminar na sua deidade e também em sua humanidade pelo qual originou uma unidade viva pessoal atual dos dois, um ego divino-humano: um homem que é Deus. 127 2.4.5 – A encarnação como apropriação da natureza humana 128 A encarnação esta relacionada primeiramente a uma apropriação da natureza humana por parte da segunda pessoa da Trindade. A encarnação deve ser entendida como uma apropriação da natureza humana porque a questão não está relacionada com a existência de uma pessoa totalmente nova, mas sim com a origem de uma pessoa histórica que esta em conexão orgânica com a humanidade e pertencente à raça humana. Para Thomasius a natureza de Cristo deve ser completamente humana, individuo humano em seus termos, pois ele deve ser capaz de experimentar todas as coisas próprias de um ser humano real, pois somente como verdadeiro homem ele pode mediar a comunhão da humanidade com Deus. 127 128 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 43-44. Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 44-46. 72 Jesus também teve que estar isento do pecado hereditário que devido à queda de Adão afetou toda a raça humana e é inevitavelmente inerente a todos os membros da raça por causa da sua origem natural. Isto porque o Deus santo somente poderia ter uma completa unidade pessoal com a humanidade em pura essência. É somente por meio de uma natureza humana totalmente sem pecado que poderia a segunda pessoa da Trindade realizar a sua obra de salvação para a qual se tornara homem. Nos tempos atuais um dos problemas mais debatidos diz respeito à psicologia humana de Jesus. Este interesse surge nos tempos de Thomasius no século XIX, no entanto, percebemos que as categorias próprias para o estudo da psicologia ainda não haviam encontrado sua maturidade. Portanto a partir daqui pretendemos através de Dupuis mostrar a função desempenhada pela psicologia humana do Filho de Deus, encarnado quenoticamente, durante sua vida na terra. Para tanto pretendemos correlacionar o pensamento de Thomasius ao de Dupuis, sem, contudo desejarmos ser anacrônicos ou diacrônicos. Sobre o problema da distinção na unidade com respeito à vontade e às ações humanas de Jesus, escreve Dupuis: Na busca de uma resposta a esse problema, é necessário, de novo, relembrar o estado quenótico de Jesus antes da Páscoa e sua identificação real com a condição concreta da humanidade (cf. Hb 4,15), que vedam a aplicação do falso princípio das “perfeições absolutas” à vida terrena de Jesus. Na verdade, pode-se e deve-se atribuir à vontade humana de Jesus certas perfeições, mercê de sua identidade pessoal de Filho de Deus. É o caso da ausência de pecado e até ausência da inclinação para o pecado, ou seja, da “concupiscência”. Mas a pessoa divina de Jesus não impede que nele haja alguma tentação verdadeira e, menos ainda, fraqueza humana, desânimo, medo, tristeza, como nos conta a tradição evangélica. O princípio-chave para uma avaliação teológica das perfeições e das limitações da vontade humana de Jesus, como também de seu saber humano, é que o Filho de Deus assumiu todas as conseqüências do pecado que poderia assumir, inclusive os sofrimentos e a morte, às quais conferiu um sentido e um valor positivo para a humanidade. (...) Portanto, é primeiro na tradição evangélica que devemos entrever como se ajustam entre si as perfeições humanas, devidas à identidade de Jesus como Filho, e as limitações decorrentes de seu estado de autoesvaziamento (kenosis).129 O propósito da encarnação consistia em mediar à humanidade a comunhão com Deus. Este foi o propósito primeiro, ao entrar Cristo em comunhão com a humanidade numa vida de limitação, para sofrer e morrer, e depois restaurar objetivamente a comunhão com Deus no qual ordem também o relacionamento subjetivo está incluído. Para Thomasius, Cristo veio à natureza humana não no mesmo estado de Adão antes da queda, mas sim em fraqueza, 129 Jacques Dupuis, Introdução à Cristologia, p. 176, 177. 73 suscetível ao sofrimento, na atual condição presente do homem: em nossa natureza rejeitada, dominada pelo poder da morte, suscetível às influências do mal, sensualmente corpórea, terrestremente limitada, com necessidade de redenção, o que segundo ele, a Escritura chama de “carne”. Se a encarnação fosse uma criação absolutamente nova e não uma apropriação de carne pecadora, somente poderia ter acontecido algo completamente distante da natureza humana. No entanto, de modo algum esta encarnação poderia ter se dado pela via da geração natural por causa da efetiva transmissão na humanidade do pecado natural. Defende Thomasius que Cristo na encarnação tomou a natureza humana, ou como diz, somente o substrato humano, o que aconteceu fora da velha substância da humanidade adâmica, mas ocorreu como uma atividade purificadora. Esta natureza humana o Filho eterno de Deus a assumiu na unidade da sua pessoa, ele foi por ele tomada e adentrada pelo divino. Seguem-se logicamente duas coisas: apropriação e penetração da natureza divina no ser humano Jesus e também uma comunicação e participação do divino no humano, um no outro. O Logos eterno possui uma natureza humana preparada para ele, verdadeiramente em completa comunhão com ele, o que possibilitava a unidade pessoal existir. Desta forma, a concepção de encarnação de Thomasius com alguma mudança parece ser algo bem próximo do pensamento de Apolinário no século IV. Para ele, o corpo humano de Jesus era apenas um invólucro para a habitação do Logos, e este tomou apenas o lugar da alma racional essencial ao homem. Segue-se que no apolinarismo o Logos é o espírito ou a nous que habitava em Cristo. 2.4.6 – A encarnação como auto-limitação do Filho de Deus130 Thomasius aqui responde às dificuldades afirmando que Cristo teve uma vida genuinamente humana e uma auto-limitação do Logos na encarnação. Se o eterno Filho de Deus permanece no seu modo divino de ser e também com uma natureza humana finita como assumida por ele, então se conclui que permanece em uma posição “trans- mundana” e também com poderio de governo do seu mundo criado, e há uma dualidade que o aflige continuamente. Mas, para Thomasius, o divino supera o humano, o divino é como um círculo maior que compreende e abarca o menor círculo, o humano. Em 130 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 46-56. 74 seus conhecimentos, vida e ação o divino estende o seu poder infinitamente além e acima do humano. Com o atributo da eternidade ele está livre do aspecto temporal, é perfeito em si mesmo e completamente livre das limitações terrestres. Isto ocorre numa progressividade constante, onde o encarnado Logos desenvolve-se rumo à “glória que teve junto ao Pai”, atingindo seu ápice na exaltação da ressurreição, diametralmente em oposição às limitações anteriormente por ele assumidas quando da encarnação, ou ao despojamento dos seus atributos não-essenciais. Argumentava Thomasius que a consciência que o Filho tem de si e do seu governo universal não vem junto com a consciência do Cristo histórico sobre ele. A atividade universal que o Filho continuamente exerce não coincide com a sua ação divino-humana no seu estado de humilhação no esvaziamento. Para Thomasius, a distinção entre Logos e Cristo era assim estabelecida, o Logos desempenhava o seu papel com respeito à criação, enquanto Cristo restringia-se à esfera da redenção, pelo menos temporariamente. Desta feita, ele via o homem Jesus em um duplo modo de ser, uma vida dupla e uma consciência dual. Assim o Logos é ou tem algo que não se funde na sua aparência histórica, que tão pouco pode ser identificado com o homem Jesus. Para Thomasius, isto tudo parece destruir a unidade da pessoa e a identidade do indivíduo, mas a conclusão é que se não for assim, não acontece uma penetração viva e completa, tanto do divino no humano como do humano no divino, ou seja, não haveria nenhum ser-homem proveniente de Deus. Para Dupuis, “O Jesus terreno, porém, não está na glória, mas no estado de quenose. Não atingiu ainda o termo de seu percurso humano. Em seu auto-esvaziamento, em sua caminhada para o Pai, Jesus não desfruta a “visão dos bem-aventurados” no céu. Possui, no entanto, como já foi dito, a consciência humana de sua identidade de Filho de Deus e, por isso, tem a “visão imediata” de Deus, chamado por ele de “Pai”.”131 Esta concepção de Thomasius expressa uma contradição claramente evidente, sua ênfase primordial era expressar a unidade, aqui mostras dos centros de consciência. Se entendermos a consciência como essencial à pessoa, ou Jesus possuía dois centros de consciência, ou eram duas pessoas, o que nos aproxima do pensamento de Nestório. Se, porém, o Filho de Deus em natureza humana tivesse tido a abundancia ilimitada do senhorio divino e tivesse sido transfigurado em seu modo de ser e agir, então haveria sido despojado de sua limitação terrena que naturalmente lhe era inerente, e como conseqüência 131 Jacques Dupuis, p. 180. 75 haveria perdido a sua relação com o estado de vida e sofrimento da humanidade, sendo levado a uma perfeição que não pode ser observada em qualquer ponto da história. Como resposta a Dorner, dizia que um desenvolvimento gradual e naturalmente humano em sua vida e sofrimento é incompatível com a possibilidade de divinização do humano. Não seria feito justiça à sua condição de sofrimento na carne, na real participação nas limitações e fraquezas humanas, na desolação, morte e transgressão próprias da humanidade. O resultado lógico implicaria em que o ato de encarnar-se nunca resultaria na pessoa do Cristo histórico que é o postulado da comunhão de Deus com os homens mediada por ele, e que segundo afirma Thomasius, corresponde ao quadro que é apresentado pelos evangelhos. Esta pessoa humana somente pode ter sido originada através de Deus determinando a sua real participação no humano, ou seja, na forma humana de vida e consciência. Assim Thomasius diz que a própria encarnação consiste no fato de que o Filho eterno de Deus, a segunda pessoa da Trindade, se entregou em uma forma de limitação humana, dentro dos limites de uma existência espaço-temporal, sob as condições do desenvolvimento humano, dentro de uma concretude histórica, para viver com e através da natureza humana, sem contudo deixar de ser Deus. Assevera que somente assim pode haver uma entrada verdadeira de Deus na humanidade, resultada na pessoa histórica do mediador, o Deus- homem. A transição para esta condição é claramente uma auto- limitação para o Filho eterno de Deus. Não é exatamente um despir-se do que é essencial à divindade de Deus, mas é um despir-se do modo divino de ser em favor da forma de existência da criatura humana, e uma renúncia da glória divina que ele teve desde o princípio com o Pai e exercitou enquanto governante e sustentador do mundo. O teólogo de Princeton, Charles Hodge, quanto à resposta proposta por Thomasius a respeito da pergunta de como se concretiza a identificação do humano e do divino na pessoa de Cristo, interpreta-o dizendo: Acerca desta questão, diz Thomasius: Primeiro, que o Filho Eterno, depois de assumir a humanidade, reteve suas perfeições e prerrogativas divinas, ele não se tornou homem, nem se uniu com a humanidade. Pairou sobre ela e a incluiu como um círculo maior faz com um menor. Mas não houve verdadeiro contato nem comunicação. Segundo, se no momento da encarnação fosse comunicada à humanidade a natureza divina na plenitude de seu ser e perfeição, então Cristo não poderia ter um existência humana. A vida histórica desaparece; e fica destruído todo o vínculo de relação e de solidariedade conosco. Terceiro, a única 76 maneira na qual se poderia responder ao grande fim buscado é que Deus mesmo, mediante um processo de depotenciação, ou autolimitação, se fez homem; ele tomou sobre si uma forma de existência sujeita às limitações do tempo e do espaço, e passou pelo processo ordinário e regular de desenvolvimento humano, tomando parte em todas as experiências sem pecado de uma vida e morte humanas. 132 A análise de Hodge demonstra o caráter dúbio da formulação teórica de Thomasius : afinal de contas às vezes paira a dúvida de se Deus adentrou verdadeiramente no humano para ele. A preocupação de Thomasius encontrava guarida no pensamento clássico da dogmática cristológica, ou seja, a encarnação estava intrinsecamente relacionada à salvação, mas o posicionamento antigo era que “aquilo que não foi assumido não pode ser salvo”. Diante disto fica incerto se Thomasius conseguiu ser consistente com suas intenções iniciais, ou mudou-as. Da mesma forma que a apropriação da na tureza humana, a encarnação é ao mesmo tempo a auto- limitação do Deus Filho. E reciprocamente a auto- limitação do Filho de Deus medeia a apropriação da carne humana. Despojando-se, ele se destina ao ser humano, se dando; ele verdadeiramente participa da humanidade de uma maneira una com ele como uma pessoa. A encarnação é o mistério mais profundo de amor abnegado, segundo Thomasius, uma ação de amor na qual o Filho eterno de Deus se torno u como nós, e pelo sofrimento tencionava nos reconciliar com Deus e nos fazer participantes de sua glória. Para Thomasius a passagem de Filipenses capítulo 2, principalmente os versos de 6 a 8 (pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz), se constituía uma prova bíblica incontestável das afirmações por ele formuladas. Dizia que se a questão fosse demonstrar a identidade dogmática destas pressuposições em relação ao senso divino da Escritura, ele possuía aval em toda a Escritura para suas assertivas. O ato que está envolvido neste texto, segundo ele, é um auto- esvaziamento, um auto-despir de algo que lhe pertence diretamente. Mas ele esvaziou-se da “forma de Deus”, tomando “forma humana”. Essa “forma” (morphê) não é igual à essência (ousia) ou natureza (physis), ou estado (status), mas esta “forma” indica a apropriação aqui 132 Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 806. 77 representada, ou seja, da natureza humana. Para Thomasius a quênosis consistia no fato de que Cristo trocou a sua forma de existência, trocou a forma de existência divina pela forma de existência humana. Também enfatiza que o apóstolo Paulo não diz diretamente aqui que Cristo tornou-se homem, mas que assumiu a natureza humana, porque o sujeito é precisamente a forma da existência. Este é um ato de livre abnegação com dois momentos distintos que são mostrados pelo apóstolo, segundo o pensamento de Thomasius, consistindo num ato de renúncia da condição divina de glória junto ao Pai e da apropriação da forma humana limitada e condicionada ao padrão desta vida. Também afirmou que o Logos, renunciou a plenitude do seu ser divino em todas aquelas relações em que ele se revela ad extra, baixando-se a si mesmo para se tornar o substrato de uma real personalidade humana, mudando a sua consciência divina para uma que era humana, ou antes, divino-humana, e, assim, tornou-se capaz de formar o centro de uma única vida pessoa l. Além do mais, podemos construir essa vida como experimentando um desenvolvimento verdadeiramente humano, visto que, como o Logos tinha voluntariamente contraído sua vida para as formas e dimensões da existência humana, submetendo-se às leis do crescimento humano e preservando seus poderes absolutos somente na medida em que eles eram essenciais para a sua obra redentora; e no final de sua carreira terrena ele reassumiu uma vez mais a glória que ele havia colocado de lado. 133 Para Dupuis, “Jesus veio de Deus, em cuja glória (morphè theou) estava (uparkòn) antes de sua vida humana e, mercê da ressurreição, a ele retornou com sua existência humana glorificada. A vida humana e a morte de Jesus na cruz são vistas como “auto-esvaziamento” (kenòsis) e realizam a figura traçada no Dêutero-Isaías do “Servo de Deus” (morphè doulou) em cujos termos o mesmo Jesus contemplou a própria morte.”134 Quanto ao entendimento deste texto tão controverso na história da igreja é pertinente observarmos as assertivas de Frank J. Matera, professor de Novo Testamento e especialmente versado nas Cartas de Paulo, que sobre Filipenses 2.6-11 afirma: ... marca um ponto alto na cristologia paulina (...) chamada de “hino de Cristo” (...) Embora “forma” seja uma tradução correta de morphê, pode dar a impressão de que o chamado Cristo apenas tem a aparência externa de divindade, mas não possui a realidade interior do que significa ser divino. Este, porém, não é o sentido da palavra grega, como indicam quase todos os comentaristas. Em grego, morphê refere-se “à forma específica da qual dependem a identidade e o status”, e o termo pode ser melhor vertido por “natureza”, “status ou posição” ou “condição”. Assim, a observação inicial de Paulo de que Cristo estava na forma de 133 H.R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, p. 266 apud Heber Carlos de Campos, A União das Duas Naturezas do Redentor, p. 261. 134 Jacques Dupuis, p. 95. 78 Deus significa que ele possuía uma posição divina. A afirmação de que aquele que possuía essa posição divina tomou a morphê de escravo estabelece o contraste básico do texto e confirma o que é dito acima. Cristo, que tinha posição divina, agora toma a posição de escravo. A referência aqui é ao status e posição reais e não à mera aparência externa. (...) Ao dizer que Cristo se esvaziou tomando a condição de escravo, o texto não que dizer que Cristo se desfez de sua divindade, de sorte que não mais gozasse da posição divina. Fosse este o caso, seria difícil ver como haveria uma continuidade entre o preexistente que tinha uma condição divina e aquele que assumiu a condição de escravo. Ekenôsen (“esvaziou-se”) é melhor entendido à luz de não levar vantagem de algo. Assim, ao se esvaziar, Cristo recusou-se a levar qualquer vantagem de sua condição divina. Tendo nascido na igualdade humana (en homoiômati anthrôpôn), o preexistente encontra-se em forma humana no tocante à sua aparência específica (kai schêmati euretheis hôs anthrôpos). Novamente, Paulo não está referindo-se à mera forma externa em contraste com uma realidade interior verdadeira. A aparência humana específica de Cristo indica um ser humano real que se humilhou e tornouse obediente ao ponto de morrer uma morte de escravo na cruz. 135 Para Thomasius este conceito de auto- limitação do divino, também surge em outras passagens dos evangelhos, foi se estes textos forem interpretados sem a pressuposição de uma auto-limitação do divino, hipótese para ele altamente inconcebível, a unidade da pessoa estaria destruída ou a veracidade a respeito da vida humana de Jesus estaria perdida. É importante observarmos a posição de Hick sobre o que os evangelhos mostram sobre o assunto justificado pela questão relevante que propõe: “Te ndo como ponto de partida as evidências dos Evangelhos sinóticos, somos obrigados a dizer que Jesus carecia ao menos de alguns dos atributos de Deus. Ele não era, por exemplo, nem onisciente nem onipotente. A primeira pergunta, então, é se ele carecia destes (e também de outros) atributos no sentido absoluto de que ele simplesmente não os possuía, ou somente no sentido de que os possuía mas sistematicamente se abstinha de exercê-los.”136 Ao argumentar sobre a infância do redentor, valendo-se de Lucas 2 versos 40 e 52 (Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele; E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens), afirma ter acontecido um desenvolvimento natural da vida de Jesus como uma progressão gradual em séries sucessivas. Uma consciência crescente, um conhecimento em fa se de maturação constante. Segue dizendo que sem o esvaziar-se ele mesmo na infância permaneceria com poder ilimitado, como a onisciência para ver todas as coisas e tempos, de modo onipotente e 135 136 Frank J. Matera, Cristologia Narrativa do Novo Testamento, p. 190-200. John Hick, p. 88. 79 onipresentemente governaria o universo, mas estes fatos para Thomasius contrariam completamente a consciência infantil que Jesus possuía, pois ele crescia e se desenvolvia, mas diz que Jesus como uma criança nem soube dis to, não possuía consciência destas coisas, tão pouco tenha cooperado com elas. Se esta questão não for levada em consideração a conclusão lógica afirmada por Thomasius é que haveria uma duplicação de ação e de consciência que destruiria a unidade pessoal e que ameaçaria destruir até mesmo a própria encarnação em si. No entanto, afirma que o relato de Lucas fala do começo de um processo por meio dos quais as duas naturezas se formariam mutuamente, pois o homem Jesus seria penetrado sucessivamente pelo Logo s, desenvolvendo-se até a estatura de Deus-homem para culminar por fim na sua exaltação. Neste primeiro momento de desenvolvimento inicial ele não era o Deus-homem, mas apenas um homem influenciado pelo Logos. Thomasius aqui difere da asserção da teologia clássica a respeito das duas naturezas numa mesma pessoa desde o nascimento, pois a sua preocupação se dá em enfatizar o aspecto humano de Jesus temendo uma contradição com respeito à consciência que é própria de um ser humano na infância. Também pretende demonstrar um fundamento para sua proposta de esvaziamento ou autolimitação usando como argumento a passagem de Mateus em que Jesus está dormindo num barco durante uma tempestade (versos 23 a 25, Então, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram. E eis que sobreveio no mar uma grande tempestade, de sorte que o barco era varrido pelas ondas. Entretanto, Jesus dormia. Mas os discípulos vieram acordá-lo, clamando: Senhor, salva-nos! Perecemos!), adotando a hipótese clássica numa tentativa de demonstrar sua contradição interna, segue dizendo que a natureza humana estava dormindo enquanto a divina, ou o Logos eterno de Deus estava acordado, e não somente isto, mas antes havia determinado que a tempestade ocorresse e agora a acalmava. O intuito de Thomasius era o de mostrar que pensar assim contrariava a unidade da pessoa. No entanto, também diz que não pode conceber que o redentor houvesse dormido, porque o sono é uma rendição temporária da consciência em uma condição de inconsciência. A resposta possível para Thomasius é de uma supressão dos atributos de Cristo, voluntariamente, que o relacionam com o mundo criado. A distinção entre inconsciência e supressão parece muito tênue para se conseguir delimitar claramente suas diferenças e assim poder comp reender o que tais expressões significam realmente. Ainda há para ele uma dificuldade insuperável pela dogmática clássica quanto ao texto de Marcos 13.32 (Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai). Para ele Jesus aqui confessa a sua atual ignorância quanto a um 80 fato futuro, mas a deidade sabe sim, apenas Jesus em seu estado humano e auto- limitado não faz uso deste conhecimento. Mas a auto- limitação, adverte ele, deve ser compreendida como um despojar-se momentâneo da sua onisciência. Lembremos que para Thomasius onisciência não era um atributo essencial à divindade. Momentâneo porque quando da exaltação Jesus teve de volta esta capacidade, ou reassumiu esta capacidade, de ter o mesmo conhecimento do Pai, mas nos tempos de encarnado, para Thomasius, fica claro que ele não o exercitou. Sobre o problema do conhecimento e desconhecimento de Jesus em consonância ao conceito quenótico de encarnação, Dupuis afirma: Ao estudar o conhecimento humano de Jesus, tenha-se em mente dois pontos: trata-se do conhecimento do Filho de Deus, mas, por outro lado, o Verbo encarnado, pela quenose, não gozou, durante os dias terrenos, da “perfeição” (teleiòsis) (cf. Hb 5,9), que assumiu ressuscitando. Mercê de sua identidade pessoal de Filho de Deus, algumas perfeições Jesus teve, sem dúvida. Não se esqueça, porém, de que ele manteve, pela quenose, a natureza humana como tal, carregando em sua existência humana imperfeições voluntariamente assumidas. (...) ... o estado quenótico da existência humana de Jesus deixa perceber que a glória divina (doxa) permanece recolhida em sua vida terrena, até a hora de sua glorificação. Deixa perceber também que o Verbo, tendo assumido plenamente a condição concreta do gênero humano, com exceção do pecado. (cf. Hb 4,15), participa de nossa situação, marcada por sofrimentos e até pela morte. Livremente, ele assumiu as seqüelas compatíveis do pecado, transformando-as em instrumento de salvação. (...) As perfeições humanas de Jesus são pr oporcionais a seu estado quenótico e se prendem à sua missão. E é bom lembrar que a diferença entre o estado quenótico de Jesus e seu estado glorioso reside numa transformação real. Só na ressurreição estará ele inteiramente de posse de seu poder messiânico e salvador. E quanto à sua missão, Jesus, em sua vida terrena, tinha as perfeições e os conhecimentos humanos necessários para cumpri-la.137 À frente continua: ... não vemos nenhuma razão teológica para não aceitar, francamente, alguns desconhecimentos de Jesus. Vimos que, em sua existência terrena, a visão que desfrutava de Deus não era universal. Por um conhecimento infuso e profético, conhecia tudo o que precisava saber, em sua missão reveladora e salvífica. Se o dia do Juízo não constava da missão reveladora de Jesus, não era preciso que o conhecesse e então, simplesmente, não o conhecia. O não-saber fazia parte de seu estado quenótico. (...) ... se alguma ignorância fazia parte da situação quenótica da vida terrestre de Jesus, a possibilidade de comungar opiniões 137 Jacques Dupuis, p. 162, 163. 81 contemporâneas não ligadas à sua missão deve ser entendida como parte integrante de sua participação em nossa condição humana. 138 São apenas exemplos pontuais. Para Thomasius, esta concepção da auto- limitação é vista na vida inteira de Jesus, pois ele a todo instante se dirige ao Pai em oração para estar seguro de sua atividade salvadora, principalmente na oração sacerdotal relatada no evangelho de João capítulo 17, onde ele ora principalmente por causa do seu sofrimento de sua morte iminente. Desta forma, Thomasius admite somente um único ser e que este ser estava com o Pai, entrou na carne, viveu na carne e voltou para o Pai; para ele a escritura expressa apenas este conceito. Conclui dizendo que a apropriação da natureza humana pelo Lo gos somente é possível por meio da quenose, esvaziamento de atributos naturais, pois somente assim o Logos poderia ter continuado a ser carne conduzindo-se até a conclusão da finalidade proposta inicialmente, ou seja, a redenção do homem. Assim Thomasius tenta levar em consideração a preocupação dos conciliares de Nicéia a Calcedônia que desenvolveram o dogma cristológico clássico, de que a dissociação das naturezas humana e divina do redentor levaria à impossibilidade de salvação do homem. E não somente isto, mas Thomasius evidência assim a sua preocupação de expressar o dogma de modo a ser aceito no século XIX. Sobre o tema da oração vemos mais uma vez a posição Dupuis referir-se: ... Jesus orou ao Pai e não genericamente a Deus ou à Trindade, nem ao Filho ou ao Espírito. Viveu em nível humano suas relações pessoais intratrinitárias com o Pai e com o Espírito. Vivida e experimentada de maneira consciente em sua psicologia humana, sua origem eterna intratrinitária do Pai, por meio da geração, é expressa pela oração e por um sentido de dependência total em relação a ele. Por isso é que Jesus orava ao Pai e somente a ele, segundo os evangelistas. Quanto ao Espírito Santo, conta o Evangelho que Jesus promete enviá -lo da parte do Pai, após suas ressurreição e glória (Jo 15,26). Essa promessa demonstra, em dimensão humana, a relação pela qual, no seio da vida divina, o Espírito tira sua origem do Pai por meio do Filho. Em ambos os casos e dos dois lados, aconteceu na psicologia humana de Jesus uma transposição, em nível humano, das relações intratrinitárias no íntimo da divindade. Portanto, a origem eterna do Filho, gerado pelo Pai, transposta ao plano humano da psicologia humana de Jesus, tomou um sentido de dependência total. Essa idéia de dependência total para com o Pai é que se revela na oração de Jesus. Sua oração ao Pai constitui a expressão de uma consciência essencialmente filial. 139 138 139 Jacques Dupuis, p. 170, 171. Jacques Dupuis, p. 173. 82 2.4.7 – A Pessoa do Deus Homem140 Se a encarnação, na unidade destes elementos – participação e entrega, apropriação e auto-limitação – é a ação do eterno Filho de Deus, então o Filho é o princípio formativo da pessoa, isto é, o eu da pessoa divino-humana que passou a existir por meio dele. Para Thomasius, ele começa a existir em uma natureza humana limitada, mas ele permanece como Filho de Deus, essencialmente um com o Pai, com vida absoluta, a verdade absoluta, em santidade e amor, o mesmo ser desde o princípio, que estava com Deus e era Deus, seguindo obviamente o prólogo do evangelho de João. Portanto, nada estaria faltando a ele para que continuasse a ser co-essencial com o Pai. Quanto à constituição ontológica de Jesus Cristo, Dupuis afirma: O “ato de ser” do Filho provê a humanidade de Jesus com uma existência humana real e autêntica. Torna-o homem, de maneira pessoal. Entretanto, insiste-se: negando em Jesus uma pessoa humana, não se torna ele irreal? Então, em que sentido se pode falar de Jesus como “pessoa humana”? No sentido de que uma pessoa “divino-humana” é una e é também verdadeiramente humana e no sentido ulterior de que o Filho de Deus feito homem usufrui, atualiza e desenvolve uma genuína “personalidade humana”.141 Sobre esta questão W. Kasper assevera também: A afirmação da humanidade de Jesus e, por conseqüência, o ato de unificação máxima, constitui essa natureza em sua autonomia criatural. Em forma humana, ou seja, de modo a garantir a liberdade humana e autoconsciência humana, a humanidade de Jesus está, assim, unida hipostaticamente ao logos. Justamente porque ele não é senão o logos, é também no logos e por meio dele uma pessoa humana. E vale também a afirmação inversa: a pessoa do logos é a pessoa humana. 142 Mas este eu (Ego) divino tem intrinsecamente agora a característica marcante de ser um eu (Ego) humano, determinado humanamente em sua consciência e vida, o eu (Ego) de uma natureza espiritual-corpórea completa, e inteiramente idêntica à do homem, como Thomasius faz questão de enfatizar, que em osso e medula da mesma raça é que nós homens e mulheres somos co-partícipe da humanidade comum a todos. 140 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 56-64. Jacques Dupuis, p. 150. 142 W. Kasper, Gesù il Cristo, p. 348 apud Jacques Dupuis, p. 150. 141 83 Estas afirmações mostram Jesus como uma pessoa divino- humana, uma personalidade divino-humana. Este eu (Ego) fez a sua natureza humana existir de modo humano, e esta forma do eu (Ego) divino-humano como uma apropriação da pessoa inteira, o centro da pessoa de Jesus, sua consciência. Por conseguinte, para Thomasius, em virtude deste centro unitário a pessoa de Jesus era uma unidade viva e uma unidade pessoal constituída de personalidade una como divino- humana. Thomasius demonstra aqui uma certa obscuridade terminológica, pois falta definir propriamente o que quer dizer com os termos pessoa, personalidade e eu (Ego). Parece- nos que “eu” (Ego) seja usado em um sentido mais restrito, próximo a hipóstase; “pessoa” parece ser um termo inclusivo, e “personalidade”, caracterizado pelo princípio da autoconsciência, talvez seja mais abragente. Desta forma, Thomasius parecer querer afirmar que a união do eu (Ego) divino do Logos com a natureza humana, por apropriação de natureza humana e pela auto- limitação qua nto os atributos nãoessenciais, estabelece a pessoa histórica do Deus-homem, que se desenvolve e adquire caráter concreto na personalidade. Dupuis sobre a questão afirma: O ego da consciência humana de Jesus não é a natureza em sua autopossessão intencional (Galtier), mas a pessoa divina, ontológica. E isso porque a consciência é o ato da pessoa na natureza e por meio da natureza. Segue-se daí que o centro último de referência dos atos humanos de Jesus é a pessoa divina do Verbo. O ego dos enunciados evangélicos de Jesus é, em última instância, o Verbo de Deus em uma consciência humana. Ele tem consciência de si mesmo, de modo humano, da mesma forma que age também de modo humano. Não se quer dizer com isso que não exista “personalidade humana” em Jesus nem um ego humano das experiências humanas de Jesus. O ego de Jesus nos Evangelhos é o Verbo, mas precisamente enquanto consciente, de maneira humana, em sua humanidade: é a expressão da autoconsciência humana do Verbo. O mistério da união hipostática estende-se até a ordem da intencionalidade humana. Por isso, o ego humano de Jesus é, na realidade, nada mais que um prolongamento, na autoconsciência humana, do ego da pessoa do Verbo. Um não compete com o outro. Ambos estão, essencialmente, relacionados entre si. O Verbo, sem tal centro humano de referência, não poderia estar cônscio de suas experiências humanas como verdadeiramente suas. 143 Para Thomasius o humano não é absorvido pelo divino como uma relação meramente subordinada, mas é o fator co-determinante da pessoa. O divino penetrou completamente no humano, a vida absoluta da essência divina existe nos limites estreitos da humanidade. Para 143 Jacques Dupuis, p. 158. 84 Thomasius, santidade absoluta e verdade são atributos essenciais do divino que na pessoa de Jesus são desenvolvidas na forma do seu pensamento humano. Como uma sensação humana no coração deste homem, a liberdade absoluta advêm a ele na forma de autodeterminação humana. Quanto ao problema da liberdade humana de Jesus, vejamos a exposição de Dupuis: Se a liberdade é a perfeição máxima da pessoa e o mais alto sinal da dignidade humana, seria grave ofensa à verdadeira e autêntica humanidade de Jesus não considerá-lo homem livre. Deve-se insistir, precisamente, no contrário: como homem perfeito, só lhe cabia liberdade perfeita. O problema da liberdade humana de Jesus surge quando se pondera que lhe incumbia realizar uma ordem divina incontornável, a saber, sua paixão e morte. Na realidade, estas são a conseqüência natural do contraste inevitável entre a missão a que devia fidelidade e as forças opostas a ele. Nem Deus quis, diretamente, a morte de seu Filho na cruz. Foi, antes, a fidelidade de Jesus à sua missão salvífica que o levou, decididamente, a esse extremo. Mas permanece o fato de que a morte na cruz se inseria na lógica do plano amoroso e salvador de Deus em prol da humanidade. Essa realidade revelou, nas profundezas do autoesvaziamento do Filho, o amor intenso e incontido de Deus pela humanidade. Nesse sentido, é correto dizer que, no desígnio divino, Jesus devia morrer crucificado. 144 À frente conclui seu pensamento: À luz dessa análise da liberdade humana, podemos dizer que a liberdade humana de Jesus é perfeita. Onde não há a determinação de nenhuma vontade explícita do pai persiste a possibilidade de escolha. Assim era sobretudo quanto aos meios e modos de cumprir sua missão; ele tinha total possibilidade de iniciativa e de criatividade. Ademais, não foi isso que tornou sua liberdade perfeita; foi, antes, o sinal de que ele, nesta vida, continuava um peregrino a caminho da última meta. Ao entrar na glória, sua vontade humana estaria plenamente determinada, definitivamente imersa na adoração do Pai e no exercício de seu poder salvífico. Antes disso, porém, toda vez que se submetia, obedientemente, ao Pai, não havia para Jesus possibilidade de escolha. Por outro lado, ele se determinava a si mesmo pelo conhecimento pleno da meta a que aspirava e à qual aderia com todo o seu ser. Sua vontade coincidiu perfeitamente com a do Pai. Tudo o que decidia, num ato autêntico de autodeterminação, harmonizava, infalivelmente, com o beneplácito divino. Sempre que surgia alguma exigência da vontade de Deus, Jesus se decidia por ela. Mas sua vontade humana o estimulava à ação pessoal, exercendo a própria autodeterminação não por causa de uma inspiração divina, suportada a contragosto, mas por um impulso pessoal, intrínseco. A visão do Pai não era para ele uma violência a impedir a autodecisão, 144 Jacques Dupuis, p. 184. 85 mas sim a meta que atrai e cuja intuição conduz à autodeterminação plenamente esclarecida. 145 O Filho de Deus não reservou para si um ser fora da natureza humana que ele assumiu, ou uma consciência distinta da humana, ou uma esfera distinta de ação ou poder humanos, assevera Thomasius, pois ele de nenhuma maneira e em nenhum ponto, depois da encarnação, existe fora da carne humana. Na totalidade do seu ser ele se tornou homem, a sua forma de existência e vida é de um homem espiritual-corpóreo e também está espaço-temporalmente condicionado. Já a natureza humana é elevada até o divino e completamente penetrada por ele. O que não ocasiona uma consciência humana distinta, nem uma ação humana distinta em relação ao Logos, da mesma forma que o Logos não tem nada que não seja diretamente relacionado à humanidade assumida, o que é iniciado pelo Logos é levado adiante pelo pensamento humano, vontade e capacidade. Thomasius adverte que não pode haver aqui a hipótese de um dualismo dos modos de ação divinos e humanos, quanto à existência, ou de consciência divina e humana, mas o que há é uma justaposição de ações divinas e humanas, uma moldagem constante de um no outro, porque há uma ação unitária de experiência e desenvolvimento de vida, pois há um mesmo eu (Ego) e uma mesma personalidade divinohumana. Hodge afirma que para Thomasius, “... o resultado da encarnação é que Deus se tornou homem em um sentido tal que o Filho de Deus não tem vida nem atividade, nem conhecimento, presença ou poder fora de ou à parte de sua humanidade. Em Cristo só há uma vida, uma atividade, uma consciência. Cada ato do Logos encarnado é um ato humano, e cada experiência da humanidade de Cristo, todas as suas dores, debilidades e sofrimentos foram a experiência do Logos.”146 À frente cita Thomasius para fundamentar sua interpretação, como segue: A vida absoluta, que é o ser de Deus, existe nos estreitos limites de uma vida humana terrena; a santidade e verdade absoluta, os atributos essenciais de Deus, se desenvolvem na forma de pensamento e vontade humanos; o amor absoluto assumiu uma forma humana, vive como sentimento humano, como sensibilidade humana no coração desse homem; a liberdade absoluta tem a forma de autodeterminação humana. O Filho de Deus não reservou para si mesmo uma forma especial de existência (ein besonderes Fürsichseyn), uma consciência especial, uma esfera ou um poder especial de ação; Ele não existe em parte alguma fora da carne (nec Verbum extra carnem nec caro extra Verbum). Ele se 145 146 Jacques Dupuis, p. 187-188. Charles Hodge, p. 805. 86 tornou homem na totalidade de seu ser; sua existência e forma de vida são de um homem corpóreo-espiritual sujeito às limitações espaçotemporais. A outra faceta dessa relação é que a natureza humana é absorvida inteiramente na divina, e impregnada por ela. Não tem nem uma consciência humana especial nem uma atividade humana especial da vontade em distinção à do Logos, assim como esta última nada tem que não pertença à primeira; no pensar, querer e agir humanos, o Logos pensa, quer e age. Todo dualismo de forma de existência divino-humana, de uma consciência divino-humana, de uma concomitância de ação divino-humana, fica necessariamente excluído; como também sucede com toda a comunicação sucessiva (Hineinbildung) de um para o outro; é uma atividade, sensibilidade e desenvolvimento idênticos e vivos, visto ser um Ego, uma personalidade, divino-humana (unio, communio, communicatio, naturarum).147 Thomasius, demonstrando suas bases na cristologia clássica, afirma que os pilares básicos da Cristologia dizem respeito à verdadeira deidade de Jesus, sua verdadeira humanidade e uma real unidade da pessoa, concluindo que Jesus Cristo é uma unidade pessoal de ser divino e forma humana, o homem que é Deus. Thomasius parece ecoar o que diz McGrath: uma das constantes tarefas da teologia cristã tem sido a explicação do relacionamento entre os elementos humanos e divinos na pessoa de Jesus Cristo. O Concílio de Calcedônia (451) pode ser considerado como o formulador do princípio determinante para a cristologia clássica, o qual tem sido aceito como definitivo em grande parte da teologia cristã. O princípio em questão poderia ser resumido da seguinte maneira: desde que se reconheça que Jesus Cristo é plenamente humano e plenamente divino, a maneira pela qual isto seja articulado ou explorado não é de relevância fundamental. 148 O Filho de Deus existe, segundo Thomasius, como um homem, em completa identidade conosco, descansado em um livre ato de auto- limitação. Mas auto- limitação não é uma negação da vontade, tão pouco uma falta de manifestação da essência divina. A substância da essência de Deus não é morta, mas é demonstrada completamente na vontade, no ato da vida, como senhor de si mesmo. A auto- limitação do divino tem seu limite, mas este limite é condicionado pela própria vontade de Deus, ou mais precisamente, o seu amor, ou seja, o seu amor interno no relacionamento da Trindade e com respeito à criatura. O amor é motivo exclusivo deste ato de auto- limitação. O amor infinito pela criatura é que determina a auto- limitação, a essência deste amor é que pode deixar tudo, que se leva a própria limitação, fazer o maior sacrifício para restabelecer a imagem de Deus no homem que entrou 147 Gottfried Thomasius, Christi Person und Werk – Darstellung der evangelisch-lutherischen Dogmatik vom Mittelpunkte der Christologie aus, vol. II, p. 201, 202 apud Charles Hodge, p. 805. 148 Alister E.McGrath, Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 423. 87 em corrupção. O Filho de Deus quando se entregou à forma de existência numa natureza humana, elevou até Deus a natureza humana, pois ele era o eu (Ego) de um individuo humano espiritual-corpóreo. Para Thomasius, o que distingue o homem Jesus Cristo dos demais está no fato de que ele existe como um ser humano em sua pureza completa, não esta acima dos demais, mas possui uma perfeição ética. Thomasius aqui parece demonstrar a influência que sofre da Cristologia de Schleiermacher, que entendia Cristo como “homem perfeito, triunfo da natureza e das virtudes humanas. A divindade se confunde com as mais altas possibilidades do homem. Jesus é Filho de Deus por excelência, mas no mesmo nível dos outros homens, um primus inter pares.”149 Mas também seguimos aqui o entendimento de McGrath a respeito da questão: É possível alegar que as raízes dessa idéia se encontram no pietismo alemão, especialmente nas formas que assumiam nas obras de Nicolaus von Zinzendorf (1700-60), cuja “religião do coração” estabelecia uma ênfase particular sobre um relacionamento pessoal íntimo entre o cristão e Jesus Cristo. Essa idéia foi desenvolvida e redirecionada por F.D.E. Schleiermacher, que se considerava como um “Herrnhuter” (isto é, um seguidor de Zinzendorf) “do mais alto escalão”. O entendimento de Schleiermacher sobre a maneira pela qual Cristo é capaz de aceitar os cristãos, entrando em relacionamento com eles, apresenta fortes paralelos com a análise feita por Zinzendorf a respeito do papel dos sentimentos religiosos na vida espiritual e seus fundamentos no relacionamento do cristão com Cristo. 150 Cristo é a realização corporal da imagem divina, um homem por excelência, o homem que é Deus. Afirma que o divino e o humano existem em uma unidade na pessoa de Jesus, mas conclui que esta singularidade, a relação íntima existente dos dois tem que permanecer um mistério, pois a fala humana não possuía expressão exaustiva para explicar, nem conceito apropriado para se referir a este mistério de forma inteligível. As palavras de Hick quanto ao subterfúgio do mistério são aqui apropriadas. Após avaliar a teoria quenótica proposta por Weston, afirma: Assim, o empenho de Weston termina naquilo que ele se vê forçado a aceitar como mistério. E esse é geralmente o caso com os teólogos quenóticos. Eles dizem, costumeiramente, que não podemos esperar compreender o processo ou a maneiro do auto-esvaziamento divino. (...) Todavia, a falácia presente nesses apelos ao mistério enquanto substituto para a clareza conceitual está em que a cristologia quenótica não é uma verdade revelada, e sim, como Davis corretamente a denomina, uma 149 150 Marcelo Farina, p. 67. Alister E. McGrath, p. 434. 88 teoria. Ela é uma hipótese humanamente projetada; e nós não podemos salvar uma hipótese deficiente rotulando-a de mistério divino. 151 Já Dupuis diz: No fundo, a psicologia humana do Verbo encarnado na quenose constitui enorme mistério. Como juntar e conciliar nela elementos que parecem se contrapor e se anular um ao outro? Como afirmar, ao mesmo tempo, a ausência de pecado e a tentação real, a visão de Deus e o sentir-se por ele abandonado na cruz, a obediência à vontade do Pai em sua morte e a liberdade de sua auto-entrega? Nisso tudo, são vãs e despropositadas as deduções apriorísticas. O necessário é não perder de vista a história de Jesus e de sua missão. De um lado, ele deve revelar o Pai (Jo 1,18); do outro, deve sofrer para a salvação da humanidade (Lc 24, 26). 152 2.4.8 – Resposta a Dorner 153 Thomasius inicia sua resposta à crítica feita por Dorner falando do que para ele são os principais pilares da cristologia da igreja luterana, três doutrinas: a verdadeira deidade e a verdadeira humanidade do redentor, e a unidade de ambas numa mesma pessoa. Continua dizendo que a Igreja Luterana colocou ênfase principal nesta realidade, a unidade indivisível, mútua e viva da pessoa de Jesus. Sua peculiaridade cristológica esta precisamente na ênfase neste elemento. Entende esta unidade pessoal, a inteira pessoa unitária do Deus-homem, ter se dado precisamente na encarnação, como defendido pela igreja cristã desde os tempos iniciais. O terceiro tema, segundo ele, expressa a idéia básica da cristologia luterana, uma ênfase na unidade da pessoa. E “luterana ” para Thomasius quer dizer aqui, quanto à cristologia, a forma de cristologia como foi desenvolvida por Lutero e como veio a tornar-se o símbolo doutrinário da igreja luterana em anos posteriores. Defende-se das críticas dizendo que sua tentativa sempre foi a de cumprir estas definições básicas da cristologia luterana, e desenvolve- las como empreendimento de seus esforços no pensar teológico e que a escritura expressava em respeito à cristologia. No entanto, dizia que não era capaz de unir duas coisas, a realidade plena do ser divino e humano de Cristo, principalmente no que diz respeito ao seu desenvolvimento numa vida plenamente humana, e a unidade plena de sua pessoa divino-humana, sem levar em consideração a sua suposição de uma auto- limitação do Logos na encarnação. Pois para ele 151 John Hick, p. 99. Jacques Dupuis, p. 163. 153 Gottfried Thomasius in Claude Welch, p. 88-89. 152 89 esta pressuposição era de vital importância, pois sem ela a unidade da pessoa não se sustentaria, e isto para ele estava de acordo com os princípios cristológicos luteranos. A crítica principal que Dorner fazia à hipótese quenótica de Thomasius era que esta posição desembocaria numa mudança no ser de Deus. Chegava a dizer que esta doutrina era uma despotencialização, extinção de consciência do Logos, que se tornava finito e impotente, enfim uma criatura, concluindo assim que Deus deixa de ser Deus. Quanto a isto Thomasius responde dizendo que o que ele defende não é uma mudança na essência de Deus, apenas um esvaziar-se de atributos não-essências quando da encarnação. Para explicar melhor, Thomasius fazia distinção dos atributos divinos em dois tipos: os imanentes e os relativos. Os imanentes são o poder absoluto de liberdade e eternidade, santidade absoluta, verdade e amor. Já os relativos estão em relação com o mundo criado, que sejam, a onipotência, onisciência e onipresença. O esvaziamento do Logos se deu quanto aos atributos relativos, e isto foi o que Thomasius com grande calma e atenção tentou demonstrar a Dorner. 90 3 – Retomada da Questão: Calcedônia e o Quenoticismo Da para frente retomaremos a partir do desenvolvimento posterior a Thomasius, levando também em consideração algumas propostas mais recentes quanto ao entendimento, análise e interpretação, tanto da teoria quenótica, quanto a duas possibilidades de interpretação de Calcedônia nos dias atuais. 3.1 – O Desenvolvimento do Quenoticismo posterior a Gottfried Thomasius Após e durante a formulação e exposição da teoria quenótica por Gottfried Thomasius, houve uma grande variação desta teoria em meio aos teólogos alemães e ingleses, principalmente, mas não de somenos importância também na Dinamarca. Esta profusão de pensamentos em torno do desenvolvimento, reação e superação desta teoria, deu-se basicamente durante a segunda metade do século XIX e início do século XX. Neste período muito se levantaram advogando esta proposta. Todavia mencionaremos apenas os teólogos mais influentes, que sejam: Ebrard, Gess, Martensen e Gore. 3.1.1 – O quenoticismo de Ebrard EBRARD, Johann(es) Heinrich August (1818-1888), nasceu em Erlangen no dia 18 de janeiro de 1818; foi educado na sua cidade natal e em Berlin; trabalhou como professor em Erlangen (Privatdozent, 1841) e Zurich (1844); em 1847 foi escolhido como professor de teologia em Erlangen, ocupando esta cadeira até ele demitir-se em 1861; em 1875 começou a pastorear uma igreja reformada francesa na mesma cidade; morreu em 23 de julho de 1888; apoiou uma posição mediadora entre a ortodoxia e o teólogo F.D. Schleiermacher; sua doutrina da Ceia do Senhor e predestinação foi uma tentativa de reconciliar luteranos e reformados; explicava a justificação à luz da regeneração. 154 H. Orton Wiley define o quenoticismo de Ebrard como de “tipo semi- metamórfico absoluto.”155 154 Erwin L. Lueker; Luther Poellot; Paul Jackson (eds.), Christian Cyclopedia, Concordia Publishing House, in http://www.missourisynod.info/ca/www/cyclopedia/02/.; H. Orton Wiley, Christian Theology, in http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Johannes%20Heinrich%20August%20Ebrard. 155 H. Orton Wiley. 91 Para Ebrard mesmo o Logos tendo se reduzido às limitações de um homem, ainda e ao mesmo tempo, manteve e exerceu as perfeições divinas essenciais à segunda pessoa da Trindade. Surge então a pergunta de como é possível que uma e a mesma pessoa possua atributos divinos e atributos humanos unidos? Responde nas palavras de Hodge, “que a solução deve ser achada na constituição original e no destino da humanidade.”156 Ainda continua Hodge: O homem foi designado para este domínio supremo, perfeita santidade e ilimitado conhecimento. “A glorificação de Deus como Filho, no tempo, é idêntica à culminação do desenvolvimento normal do homem.” Muitos, embora nem todos, defensores de sua teoria sustentam que a encarnação teria ocorrido mesmo que o homem nunca houvesse pecado. Entrava no propósito divino em referência à qual o homem alcançaria assim a unidade com ele.157 Diante da teoria de Ebrard algumas perguntas surgem. Como o Filho eterno de Deus pôde continuar com suas perfeições divinas e, no entanto, despojar-se delas conforme é revelado em sua vida de limitação na terra? “Uma governa o mundo e é onisciente, a outra não é, ele responde que precisamos compreender o problema. Não se trata de duas naturezas se converterem em uma só natureza, e o Filho de Deus, encarnado, Jesus, outra, senão que o Filho encarnado possui as propriedades de ambas as naturezas.”158 Outra pergunta que segue, como o Logos encarnado sem a natureza divina na forma de Deus pode ser o Logos governante do mundo, que por sua vez existe na forma de Deus? Ou seja, como é possível uma mesma mente possuir as qualidades de finitude e infinitude? “... ele responde dizendo primeiro que a continuidade de existência não depende da continuidade de consciência. Um homem, em um desmaio ou um estado de sono hipnótico, é a mesma pessoa, embora sua consciência esteja suspensa ou seja anormal.”159 Apesar disto ser verdadeiro, uma questão ainda persiste, como o Logos pode ser uma criança e ao mesmo tempo o Deus onisciente e onipotente que governa o mundo criado? “... ele admite que a resposta anterior não satisfaz plenamente o caso, e portanto acrescenta que toda a dificuldade desaparece quando temos em mente (...) que a Eternidade e o Tempo não são linhas paralelas. Mas (...) visto que isso não é suficiente, ele diz que o Logos Eterno ignora sua forma humana de existência com um relance (...), enquanto o Logos encarnado não age assim, mas, com uma verdadeira 156 Charles Hodge, p. 807. Charles Hodge, p. 807. 158 Charles Hodge, p. 807. 159 Charles Hodge, p. 807. 157 92 consciência humana, olha para adiante e para trás.”160 Conclui Hodge, dizendo que “a contradição permanece. A teoria presume que a mesma mente individual pode ser ao mesmo tempo consciente e inconsciente, finita e infinita, ignorante e onisciente.”161 Berkhof sobre a questão se expressa da seguinte forma: Ebrard, um erudito Reformado, supunha uma vida dupla no Logos. Por um lado, o Logos ter-Se-ia reduzido às dimensões de um homem, tornando-Se dono de uma mera consciência humana; mas, por outro lado, Ele também reteve e exercia Suas perfeições divinas na vida trinitariana, sem sofrer qualquer solução de continuidade. O mesmo “ego” existiria, ao mesmo tempo, na forma eterna e na forma temporal, mostrando-se infinita e finita por igual modo. 162 Ao que aprece, é dificil fugir dos conceitos sobre a pessoa de Cristo conforme formulados no decorrer da história dos dogmas, este é o presente caso, a teoria de Ebrard tem traços de eutiquianismo, e este foi expressamente condenado pelo Concílio de Calcedônia, conforme observamos no capítulo primeiro. No seu pensamento, o Logos não assumiu uma natureza humana, apenas atributos próprios da humanidade; apareceu apenas no aspecto externo de homem. O Logos eterno de Deus, para Ebrard, esvaziou-se ao tornar-se homem, mas não abdicou de qualquer dos seus atributos, sejam eles metafísicos ou morais. Diferindo assim de Thomasius. Para, Ebrard o erro está basicamente no fato de Cristo não possuir uma consciência infinita neste mundo, mas somente permanecer em completa perfeição nas relações com a Trindade. Resolveu esta questão afirmando que Jesus possuiu apenas uma consciência humana. Portanto, o Logos despiu-se de sua autoconsciência divina quando da encarnação. 3.1.2 – O quenotisicmo de Gess GESS, Wolfgang Heinrich Christian Friedrich (1819-1891). Nasceu em Kirchheim unter Teck, Alemanha. Foi educado em Tübingen; pastor em Grossaspach (1847); professor de teologia sistemática e exegese em Göttingen (1864), e Breslau (1871); membro do consistório salesiano; superintendente geral da província de Posen. 163 Foi influenciado por Bengel, Oetinger e Beck. 160 Com o suporte do realismo teosófico bíblico levou a teoria Charles Hodge, p. 807. Charles Hodge, p. 807. 162 Louis Berkhof, A História das Doutrinas Cristãs, p. 110. 163 Erwin L. Lueker; Luther Poellot; Paul Jackson. 161 93 quenótica mais adiante que Thomasius, afirmando que o Logos não somente se esvaziou de seus atributos relativos, mas também se despiu dos atributos essenciais. Para ele houve uma transformação concreta do Logos em criatura humana. Cristo assumiu sua carne através de Maria, mas sua alma não, esta foi resultante de sua quenose. 164 Sobre a teoria quenótica proposta por Gess, Berkhof afirma: A teoria de Gess,a qual era mais absoluta e coerente, como também mais popular, dizia que o Logos, na encarnação, literalmente cessou em Suas funções cósmicas e em Sua consciência eterna, tendo-Se reduzido de modo absoluto às condições e aos limites da natureza humana, de tal maneira que Sua consciência tornou-se pura consciência de uma alma humana. Isso se parece muito com a idéia de Apolinário. Já Hodge nos esclarece mais o pensamento quenótico de Gess dizendo: Ele afirma que o Filho Eterno, na encarnação, despojou-se da Deidade e fez-se homem. A substância do Logos permaneceu; mas a substância estava na forma de uma criancinha, e não tinha nenhum conhecimento ou poder superiores aos de uma criancinha. Na Trindade, o Pai é pó si mesmo Deus; o Filho é Deus pela comunicação da vida divina do Pai. Durante a carreira terrena do Logos, a comunicação da vida divina foi suspensa. O Logos reduzido às limitações da humanidade recebeu do Pai aquela comunicação de poder supernatural de que necessitava. Quando subiu e se assentou à destra de Deus, recebeu a vida divina em toda a sua plenitude como a possuíra ante de vir ao mundo. Vejamos esta teoria quenótica pelas próprias palavras de Gess: A mesma substância que dormiu no ventre da Virgem, sem consciência de si mesmo, ofereceu-se ao Pai em sacrifício, trinta e quatro anos depois, sem mancha nem contaminação, havendo antes revelado à humanidade a verdade que havia compreendido perfeitamente. Na época desse sono já exis tia na substância aquela vida indestrutível em virtude da qual ele consumou nossa redenção (Hb 7.16), bem como o poder para conhecer o Pai como ninguém mais o conhece (Mt 11.27), porém era uma vida inconsciente. Além disso, a mesma substância que agora dormia em inconsciência existira com o Pai como o Logos, por meio de quem o Pai criara, governara e preservara o mundo, mas já não tinha consciência disso. 165 À frente fala Gess que a vontade consciente de um homem é a que coloca as suas capacidades em ação: 164 165 H. Orton Wiley. Charles Hodge, p. 808. 94 Na página seguinte lemos que a vontade consciente de um homem é a que põe suas capacidades em ação. "Quando esta cai no sono, todos os poderes da alma ficam dormentes. Era a substância do Logos que inerentemente tinha o poder de chamar o mundo à existência, de sustentálo e de iluminá-lo; mas, quando o Logos mergulhou no sono da inconsciência, sua eterna santidade, sua onisciência, sua onipresença e todos os seus atributos realmente divinos se desvaneceram; sendo a vontade propriamente consciente do Logos através da qual todos os poderes divinos residentes nele foram postos em ação. Haviam-se desvanecido, ou seja, estavam suspensos - ainda existiam, mas só potencialmente. Além do mais, quando um homem desperta de seu sono, coloca-se imediatamente na posse de seus poderes e faculdades; mas quando a consciência despertou em Jesus, não foi a do Logos eterno, mas a consciência realmente humana, que se desenvolve gradualmente e só preserva sua identidade através de constantes mudanças.... Foi esta forma humana de existência autoconsciente que o Logos escolheu em sua ação de auto-esvaziamento. Portanto, é claramente patente que não se deve atribuir a Jesus, enquanto esteve na terra, nem a onisciência, que vê e conhece todas as coisas concomitantemente e de um só ponto central, nem a fusão imutável da vontade na do Pai, nem santidade divina; e o mesmo sucede com a imutável bem-aventurança da vida divina. Tampouco foi somente a consciência própria e eterna da qual o Filho se privou, mas ele também 'afastou-se do Pai'. Não devemos entender que a habitação mútua do Pai, do Filho e do Espírito se tenha dissolvido, mas, sim, que o ato de o Pai dar o Filho, que tinha vida em si mesmo, como a tem o Pai, foi suspenso. Uma vez colocadas de lado sua autoconsciência e atividade, ele perdeu com isso a capacidade de receber em si a corrente de vida do Pai, e de enviá -la novamente; em outros termos, já não era onipotente. Também perdeu, ou pôs de lado, sua onipresença, a qual não deve ser, em todo caso, considerada como universalmente difundida, mas como dependente da vontade conscie nte. 166 O quenoticismo de Gess mais parece uma mistura de apolinarismo, o Logos como elemento racional em Cristo, e com o eutiquianismo, Cristo teve apenas uma natureza. Ambas as posições foram condenadas pelos Concílios que trataram sobre a questão das duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo. Enquanto Thomasius afirmava que o Logos, eterno Filho de Deus, esvaziou-se apenas dos atributos relativos ou metafísicos, Gess defendia a tese que na encarnação o Logos autoesvaziou-se de todos os atributos. Os atributos morais e/ou essenciais também foram despojados quando da encarnação. Estendendo, desta feita, a quênosis à todos os atributos, numa completa metamorfose do Logos em fazer-se homem, possuidor de apenas uma consciência, a humana. 166 Charles Hodge, p. 808. 95 3.1.3 – O quenoticismo de Martensen MARTENSEN, Hans Larsen (1808-1884). Um dos teólogos luteranos mais proeminentes da Dinamarca. Nasceu em 9 de agosto de 1808, em Flensburg, na Alemanha, uma fronteira próxima da Dinamarca. Estudou em Copenhagen, em 1832 foi aprovado no exame eclesiástico, mesmo ano que recebeu uma bolsa de estudos do governo para viajar. Então visitou Berlin, Munique, Viena e Paris, dedicava atenção especial ao estudo da filosofia da Idade Media. No seu retorno à Dinamarca em 1836 foi licenciado em teologia, defendendo a tese da Autonomia da Natureza Humana. No ano seguinte começou a lecionar a matéria de Ética na Universidade de Copenhagen. A sua popularidade se tornou ainda maior quando em 1845 tornou-se pregador da corte, ai o seu hege lianismo começou a influenciar diretamente a estrutura de pensamento de sua geração. Bispo de Zelandi, principal ilha da Dinamarca (1854). Teve uma tendência marcadamente mística-especulativa. Martensen morreu no dia 3 de fevereiro de 1884. 167 Defendeu uma teoria quenótica real, mas relativa. Com isto queria dizer que a despotenciação foi real, mas somente aplicada à vida terrestre de Cristo na carne, e de nenhum modo à sua natureza divina ou os seus atributos. Hägglund diz: Martensen aceitou a cristologia quenoticista, que desenvolveu de maneira magistral. Foi influenciado não apenas por Schleiermacher mas também por Hegel e por um misticismo teosófico que influiu especialmente sobre sua concepção dos sacramentos. 168 Berkhof afirma: Martensen postulava a existência de uma vida dupla no Logos encarnado, proveniente de dois centros vitais não comunicantes. Permanecendo no seio de Deus, Ele continuava a exercer as Suas funções na vida trinitária e também em Suas relações cósmicas para com o mundo, como Criador e Mantenedor. Mas, ao mesmo tempo como o Logos completamente esvaziado, unido à natureza humana, ignorava as Suas funções trinitárias e cósmicas, e só Se conhecia como Deus num sentido segundo o qual esse conhecimento é possível às faculdades da humanidade.169 A teoria quenótica de Martensen mais parece com um tipo modificado de nestorianismo. Enquanto Thomasius enfatizou a pessoa una de Jesus Cristo, mesmo distinguindo entre as naturezas divina e humana. O quenoticismo de Martensen gerava uma 167 H. Orton Wiley. Bengt Hägglund, p. 319. 169 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 328. 168 96 pessoa com dois centros de consciência. Na verdade, o redentor era uma pessoa dupla, ou melhor, duas pessoas. É difícil compreender como ele defendeu o esvaziamento, dizia este ter sido real, mas dirigido apenas à vida na carne. Como conclusão, o Logos não encarnou-se, e isto Thomasius não defendia de modo algum. 3.1.4 – O quenoticismo de Gore GORE, Charles (1853-1932). Nasceu em Winbledon, Inglaterra. Foi bispo de Worcester (1902-1905), Birminghan (1905-1911) e Oxford (1911-1910). Um dos líderes de maior influência na igreja anglicana. Sob sua influência o Movimento de Oxford procurou restaurar os ideais do anglicanismo na linha da erudição moderna e dos problemas morais contemporâneos. Donald K. Mckim nos diz sobre ele: Gore é caracterizado como um “católico liberal”. Para ele, tratava-se do anglicanismo no seu melhor aspecto. Notava três marcas do catolicismo, como a sucessão apostólica, o alto conceito do sacramentalismo e uma regra de fé comum. O liberalismo de Gore é visto na sua preocupação em dar à razão um amplo domínio, quer na filosofia ou na ciência, quer na crítica histórica, quer na experiência espiritual da humanidade. 170 Como editor da Lux Mundi (1889), pôde levar à efeito as suas idéias e exercer grande influência. Hägglund nos mostra: O editor de Lux Mundi foi Charles Gore (1853-1932), representante do anglo-catolicismo que procurou combinar seus princípios de autoridade com a aceitação de normas científicas na teologia. Gore elaborou sua posição em conexão com uma série de conferências sobre a encarnação. É em parte devido a sua influência que a doutrina da encarnação passou a ocupar o lugar de maior destaque na teologia anglicana. Isto difere do ponto de vista evangélico, em que a expiação se encontra no centro. Característica de Gore era sua doutrina da quênose: Cristo, dizia, despojara-se dos seus atributos divinos na encarnação, sujeitando-se às limitações humanas. Há certa conexão entre esta idéia e a tentativa de Gore de combinar a autoridade divina da Escritura com a concepção crítica da Bíblia. Como resultado da influência de Gore, a tendência anglo-católica desenvolveu-se em linhas mais modernistas, e ele tornouse o líder do que foi denominado anglo-catolicismo liberal. 171 170 171 Donald K. McKim in Walter A. Elwell, vo. II, p. 208. Bengt Hägglund, p. 329. 97 De grande importância na expansão de suas idéias foram as Preleções Bampton que realizou, A Encarnação do Filho de Deus (1891) e as Dissertações sobre Assuntos Ligados com a Encarnação (1895), onde escreveu: Nelas, a kenosis ou auto-esvaziamento de Cristo veio a ser a chave da encarnação, a doutrina central do cristianismo para Gore. Isto significava que, durante Sua “vida encarnada e mortal”, Jesus, pelos Seu “amor autorestritivo” Se limitou voluntariamente, de modo que Suas funções e poderes divinos, tais como a onisciência, não eram exercidos. Gore acreditava que isto era bíblico, e que permitia que o Filho de Deus, sem deixar de ser Deus, entrasse plenamente na experiência humana. Pressuposta em todo o pensamento de Gore estava a união básica entre a natureza e a graça, em que Jesus Cristo é tanto Criador como Redentor. Em Jesus, a intenção criadora da Deidade atingiu sua mais alta realização. 172 McGrath também comenta o efeito das Palestras de Bampton, mostrando os efeitos da defesa do quenoticismo por Gore: Essa abordagem também foi aceita com certo entusiasmo na Inglaterra. Em 1889, no círculo de palestras de Bampton, proferidas na Universidade de Oxford, Charles Gore defendeu que Cristo esvaziara-se dos atributos divinos, especialmente da onisciência, em sua encarnação. Isso levou um dos principais conservadores Darwell Stone, a denunciar que a perspectiva de Gore “contradizia os ensinamentos praticamente unânimes dos pais da igreja, assim como era inconsistente com a imutabilidade da natureza divina”. Uma vez mais, tais comentários apontam para a íntima conexão que existe entre a cristologia e a teologia e indicam a importância das considerações cristológicas para o desenvolvimento da doutrina de “um Deus sofredor”. 173 J.I. Packer assim se expressa quanto ao quenoticismo de Gore: Na Inglaterra, a teoria da Kenosis foi esboçada pelo Bispo Gore em 1889, para explicar porque nosso Senhor era ignorante daquilo que os críticos do século 19 pensavam saber a respeito do Velho Testamento. A tese de Gore defendia que ao tornar homem o Filho desistira de seu conhecimento divino de todos os assuntos embora mantivesses uma completa infabilidade divina em assuntos morais. Dentro dos fatos históricos, entretanto Ele estava limitado às idéias correntes dos judeus, que aceitou sem questionar, não sabendo que nem sempre elas estavam certas. Daí o seu tratamento do Velho Testamento como sendo verbalmente inspirado e completamente verdadeiro, e o ter atribuído o 172 173 Donald K. McKim, p. 208. Alister E. McGrath, p. 435. 98 Pentateuco a Moisés e o Salmo 110 a Davi, pontos que Gore julgava insustentáveis. 174 Ao que parece, dos teólogos posteriores a Thoma sius que utilizaram o conceito de quenose para explicar a encarnação do Logos, Gore foi o mais fiel. Juntamente com Thomasius denfendia que o Filho eterno de Deus ao encarnar-se auto-esvaziou-se dos seus atributos não-essenciais e que também esta é a forma mais coerentemente bíblica de interpretar o hino cristológico de Filipenses 2. 3.2 – A Proposta de John Hick: A Encarnação como Metáfora John Hick, teólogo e filosofo anglicano escocês, nasceu em 1922. Um dos filósofos cristãos de maior expressão na atualidade. Defensor ardoroso do pluralismo religioso. Adepto da hipótese de uma cristologia pluralista. Segundo John Hick, a quenose é uma metáfora viva para a qualidade de autodoação do amor divino. A metáfora do auto-esvaziamento serve ao propósito prático de guiar os fieis cristãos em suas vidas, afastando-os do autocentramento e dirigindo-os para um novo e radical centramento em Deus. É uma boa metáfora – Jesus como um “filho de Deus”, uma pessoa em quem o espírito divino estava presente de maneira poderosa e cuja vida revelou a outros a realidade, o amor e a exigência de Deus. A metáfora original da encarnação pode expressar uma resposta distintivamente cristã de Jesus como o mediador da presença salvífica de Deus. Para absorver estas idéias nos utilizamos da seguinte obra como texto fonte: John Hick, A Metáfora do Deus Encarnado. Promove uma compreensão inovadora do dogma central do cristianismo, o Jesus Histórico e o Cristo da Fé. Hick não pretende uma interpretação deste dogma em uma forma literal e metafísica, também não recorre ao argumento do simples mistério. Propõe uma releitura do dogma da encarnação de Deus como uma metáfora específica do cristianismo, que segundo ele é apenas mais uma entre a diversidade de possíveis interpretações dentro do mundo diverso das religiões. 174 J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 50. 99 No prefácio Hick já demonstra que sua intenção não é descartar o dogma históricoortodoxo acerca da Encarnação do Logos. Inicia mostrando que a compreensão tradicional quanto a Jesus de Nazaré mostra que ele foi Deus encarnado, o eterno Logos preexistente, o Filho de Deus. Ele tornou-se verdadeiramente homem com a finalidade de mediar a salvação à humanidade por meio de sua morte. Outra tarefa que Jesus, o Logos desempenhou aqui na terra foi a de fundar a Igreja para que proclame este desígnio de salvação. Por implicação, segundo Hick, se realmente Jesus de Nazaré foi o Deus encarnado, então o cristianismo se constitui na única religião, dentre tantas outras, a ser fundada por Deus em pessoa. Portanto, em conseqüênc ia, o cristianismo deve ser uma religião incomparavelmente superior a todas as religiões existentes. A proposta de Hick é que o dogma da encarnação de Deus em Jesus de Nazaré seja submetido a um conjunto diferente de ferramentas interpretativas. Estas ferramentas precisam ser mais coerentes com a natureza do vocabulário teológico. Eis os argumentos que Hick apresenta como alternativas: • Jesus não ensinou aquilo que se tornaria a compreensão cristã ortodoxa a seu respeito; • O dogma das duas naturezas de Jesus, uma humana e outra divina, demonstrou sua incapacidade de ser explicado de maneira satisfatória; • Historicamente, o dogma tradicional foi utilizado para justificar grandes males humanos; • A idéia da encarnação divina é melhor compreendida como idéia metafórica, e não literal – Jesus incorporou, ou encarnou, o ideal da vida humana vivida em fiel resposta a Deus, de sorte que Deus foi capaz de agir através dele, e que ele, por conseguinte, foi a corporificação de um amor que é reflexão humana do amor divino; • Podemos corretamente considerar Jesus, assim entendido, como nosso Senhor, como aquele que tornou Deus real para nós e cuja vida e ensinamentos nos desafiam a viver na presença de Deus; e • Pode-se considerar um cristianismo não-tradicional, baseado nessa compreensão de Jesus, como uma entre as diferentes respostas humanas à Realidade transcendente última que denominamos Deus, podendo servir melhor ao desenvolvimento da comunidade mundial e da paz mundial do que um cristianismo que continua a ver a si 100 mesmo como locus da revelação final e do portador da única salvação possível para todos os seres humanos. 175 No mundo atualmente, ou pelo menos quando da publicação desta obra, havia uma intensa atividade no que concerne ao campo da cristologia, basicamente sobre o significado de Jesus e a questão de saber quem ele foi realmente. Para Hick isto acontece, pois há a formação de um cristianismo que quer ser consciente de si mesmo expressando uma resposta válida quanto à questão da realidade transcendente última, o Absoluto, Deus. A busca por esta compreensão motivou a realização de diversos empreendimentos, um deles foi a publicação no ano de 1977 de um compendio de ensaios intitulado The Myth of God Incarnate, onde Hick foi o editor. Esta obra produziu grande agitação em diversos círculos teológicos. A principal tese era que o próprio Jesus Cristo nunca ensinou que era Deus encarnado. Apesar da natureza polemista do livro, Hick afirma que ele cumpriu seu propósito “de baixar boa parte da cortina que separava o que os estudiosos sabiam daquilo que os pregadores estão acostumados a contar às suas comunidade.”176 Apesar da grande polemica gerada em torno da publicação desta obra e das diversas interpretações acerca de qual seria a proposta de Hick, ele demonstra em A Metáfora do Deus Encarnado que sua “intenção era dizer que, caso se pretenda demonstrar que a doutrina da encarnação possui um significado digno de fé, deve-se expressar isso de maneira inteligível – acrescentando que “todo e qualquer conteúdo proposto até aqui teve de ser repudiado”177 , e continua explicando sua posição, “eu não estava sugerindo, porém, que a idéia da encarnação divina pode ser descartada a priori, sem considerar as tentativas de explicá- la”178 , mas havia algo de extrema importância a ser considerado, segundo ele, “a questão em jogo era se alguma dessas tentativas alcançou sucesso”179 . Segue Hick em sua exposição sobre o assunto: Dado o caráter relativamente aberto de nosso conceito de humanidade, e mais ainda de nossos conceitos de divindade, será sempre possível ajustálos um em relação ao outro de modo a tornar factível uma compreensão literal da encarnação divina. Mas a questão é se essas manobras são aceitáveis em termos religiosos. Elas tornam a idéia de Jesus como Deus encarnado capaz de desempenhar a função dela exigida pela teologia cristã tradicional? Na história da Igreja, propôs-se um grande número de teorias para explicar em que sentido Jesus era ao mesmo tempo divino e humano; mas, no passado, elas tiveram de ser rejeitadas uma a uma por 175 John Hick, p. 9-10. John Hick, p. 13. 177 John Hick, p. 14. 178 John Hick, p. 14. 179 John Hick, p. 14. 176 101 violarem a compreensão aceita, quer da divindade, quer da humanidade. A questão, assim, não é se é possível proporcionar algum sentido literal à idéia da encarnação divina, mas antes se é possível fazê-lo de um modo que satisfaça as preocupações religiosas que dotam a doutrina de significado. 180 Ao tratar da figura histórica de Jesus, adverte quanto ao uso do termo “Cristo”, optando pelo uso tão somente do termo “Jesus”. Pois o termo “Cristo” significa ungido, termo grego advindo do hebraico, tendo o seu uso em relação a reis e não comportava qualquer conotação relativa à divindade. Já no cristianismo primitivo, Jesus foi chamado de ungido de Deus, e à medida em que o tempo passou ele foi elevado dentro da Igreja a um status divino, onde o termo “Cristo” tornou-se equivalente a “Filho de Deus” e finalmente ao “Deus Filho”. No entanto, afirma que: “o presente livro, porém, trata da questão se este ainda seria um modo apropriado de pensar a respeito de Jesus. E, uma vez que concluo que não o é, tentarei evitar confusão referindo- me ao indivíduo que teve uma influência tão importante na história humana simplesmente com o nome “Jesus” ou “Jesus de Nazaré”. 181 Seu modo apropriado de entendimento a respeito de Jesus é como segue dizendo a respeito desta “figura histórica”: Nem sempre se percebe que o próprio Jesus não pode ter tido qualquer concepção acerca dessas questões. Ele vivia numa experiência tão intensa e poderosa da presença divina que suas palavras e sua vida continuam a tornar Deus real para aqueles que são inspirados por ele. Mas a maneira pela qual Jesus compreendeu seu papel foi-lhe fornecida pela escatologia de restauração judaica de seu tempo. (...) Cumpria o papel único do profeta final, que veio para proclamar uma Nova Era, o reino divino que Deus brevemente inauguraria na terra. Contudo, um movimento baseado nessa expectativa somente poderia durar por um período relativamente curto, pela simples razão que o mundo intelectual apocalíptico do judaísmo do primeiro século desaparecera havia muito tempo. Com efeito, a versão acerca do mesmo apresentada por Jesus, e centrada em seu próprio papel, durou somente umas poucas décadas entre seus seguidores, sendo substituída por algo mais apto a durar no mundo pluralista do Império Romano e, finalmente, a tornar-se sua estrutura de sentido dominante: o profeta escatológico Jesus foi transformado, no contexto do pensamento cristão, no Deus Filho que desceu dos céus a fim de viver uma vida humana e salvar-nos por meio de sua morte reparadora.182 180 John Hick, p. 15. John Hick, p. 16. 182 John Hick, p. 16, 17. 181 102 Hick diverge da tradição quanto à preexistência de Jesus como forma divina, ou Logos eterno de Deus. No entanto, foco deste livro está concentrado no sentido de uma teologia cristã encarnacional que afirma que Jesus de Nazaré foi o Filho de Deus, o Logos eternamente preexistente que viveu uma vida inteiramente humana. Como diz, “... este livro focaliza a doutrina que serve de padrão ortodoxo ao rezar que Jesus foi plenamente Deus e plenamente homem, e que foi, como tal, a auto-revelação singularmente completa e final de Deus à humanidade.”183 A preocupação primordial de Hick quanto ao dogma da encarnação não é simplesmente descartá- la ou esquecê- la, mas conforme podemos observar, Hick pretende fazer uma abordagem positiva ao assunto em questão. Assim, descreve a estrutura de desenvolvimento de sua obra da seguinte forma: ...seguirei uma linha lógica que começa com a questão histórica se Jesus considerou a si mesmo como Deus encarnado; e, caso ele não o tenha feito, se é satisfatório deslocar a base da crença cristã, como geralmente se faz agora, dos ensinamentos do próprio Jesus para aqueles da Igreja, e particularmente para as decisões dos grandes concílios ecumênicos dos séculos IV e V. Em seguida, levantarei a questão filosófica se a idéia da divindade e humanidade simultâneas de Jesus pode ser coerentemente decifrada, voltando-me, a seguir, para os modos em que a idéia do senhorio absoluto e universal foi utilizada para justificar grandes males no decorrer da história ocidental. Depois disso, passarei às idéias correlatas da reconciliação e da salvação; e, finalmente, às interpretações alternativas de Jesus e de sua mensagem hoje disponíveis. 184 Após mostrar claramente o caminho que pretende percorrer, Hick desde o início de sua obra já aponta para o alvo que deseja atingir. Revela desta forma um espírito inquiridor com sólido fundamento na pesquisa. As conclusões e vias de acesso ao dogma da encarnação que serão propostas não é fruto da mera crítica exacerbada destituída de análise lógica coerente e concreta. Pelo contrário, são as implicações da pesquisa científica coerente que foi empreendida aqui. Segundo apresenta sua conclusão final: ...é que a idéia de encarnação divina em sua forma cristã padrão, na qual se insiste tanto na humanidade genuína como na divindade genuína, nunca recebeu um sentido literal satisfatório; por outro lado, porém, conclui-se que ela proporciona um excelente sentido metafórico. (...) Aqui, a encarnação é uma idéia metafórica. 185 183 John Hick, p. 24. John Hick, p. 24-25. 185 John Hick, p. 25. 184 103 Pode-se observar com acuidade, o que é constante em Hick, a exposição de sua principal tese a seguir: O que recomendarei é a aceitação da idéia da encarnação divina enquanto idéia metafórica. Vemos em Jesus um ser humano extraordinariamente aberto à influência de Deus e que, portanto, viveu em uma medida extraordinária como agente de Deus na terra, “encarnado” o propósito divino para a vida humana. Assim, ele corporificou, nas circunstâncias de sua época e lugar, o ideal da humanidade que vive em abertura e em atitude de resposta a Deus, e ao fazê-lo ele “encarnou” um amor que reflete o amor divino. Esta vida memorável tornou-se a inspiração de uma vasta tradição que, por muitos séculos, proporcionou orientação intelectual e moral para a civilização ocidental. Mas a inspiração original daquele que confiou plenamente em Deus, embora dentro de um cenário humano bem diferente do nosso, não é menos vigorosa do que em séculos anteriores. Se ela puder livrar-se da rede de teorias – acerca da encarnação, da Trindade e da reconciliação – que no passado serviram para pôr em evidência sua significação, mas que agora somente servem para obscurecê-la, aquele conjunto de ensinamentos vividos pode continuar sendo uma fonte muito importante de inspiração para a vida humana.186 Partindo destas bases constrói uma releitura de conceitos relacionados a Jesus. Mas, a sua intenção principal é demonstrar que a linguagem bíblica não pode ser metafísica, a possibilidade mais lógica é que ela deve ser interpretada como uma linguagem metafórica. Hick defende que houve um tempo em que o discurso bíblico que é proeminentemente metafórico passou a ser interpretado de forma metafísica. A sua interpretação do Concílio de Calcedônia demonstra a sua intenção em observar tal conceito: A linguagem metafórica da Bíblia cria de modo natural comunicação com todos que habitam ou possam adentrar imaginativamente em seu universo de discurso. Ainda temos pais e filhos, e, menos universalmente, reis e pastores como parte de nosso mundo conceitual; e, fazendo valer apenas um pouco de esforço imaginativo, podemos apreciar o habito antigo de conceber uma pessoa espiritualmente próxima de Deus, como um servo fiel de Deus, tal como um Filho de Deus. Metáforas como esta estabelecem comunicação com sucesso, porque foram formadas dentro do discurso ordinário da época. Mas a fórmula de Calcedônia é um artefato filosófico, que contém todo o sentido fixado por ela, nada mais nada menos. Fórmulas como esta impressionam precisamente porque seu único sentido é técnico e conhecido apenas de eruditos. Contudo, um minucioso exame crítico e de cunho filosófico dessas construções conceptuais sempre deve estar na ordem do dia. E nesse caso, precisa-se considerar a possibilidade de que a fórmula, que á primeira vista parece tão firme e definitiva, seja incapaz de ser explicada de qualquer maneira 186 John Hick, p. 25-26. 104 religiosamente aceitável. A intenção por trás dela era excluir qualquer compreensão de Jesus que negasse, quer sua divindade plena e autêntica, quer sua humanidade plena e autêntica. Mas talvez isso não possa ser feito! Se a fórmula é constituída de tal maneira que qualquer explicação pormenorizada de seu significado venha a ter implicações que entram em conflito com um ou outro daqueles desideratos, então a fórmula representa um fracasso. Se todas as tentativas de explic á-la revelam-se inaceitáveis, ela somente pode funcionar como um pronunciamento ritual, cujo sentido não deve ser examinado muito de perto e que somente pode servir para inibir e ensandecer o pensamento. 187 Mais pormenorizadamente expressa o seu posicionamento quanto ao Concílio de Calcedônia, na que defende o conceito de duas naturezas na pessoa histórica de Jesus: ...a tarefa com que se depara alguém que pretenda reafirmar uma cristologia calcedoniana não é a de traduzir, em termos contemporâneos, uma explicação helenística acerca de como essa pessoa singular, Jesus, pôde possuir duas naturezas; isso pela simples razão de que nenhuma explicação desse tipo está contida na fórmula original. (...) O problema não se encontra numa linguagem e conceptualidade antiquadas, mas no fato de que, na verdade, o Concílio apenas afirmou que Jesus foi “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”, sem tentar dizer como um tal paradoxo é possível. (...) Declarar simplesmente que duas naturezas coexistiram em Jesus “sem confusão, sem modificação, sem divisão e sem separação” é pronunciar uma forma de palavreado que até agora não possui um sentido especificado. A fórmula coloca diante de nós um “mistério”, e não uma “idéia clara e distinta”. Além disso, este não é um mistério divino, e sim um mistério criado por um grupo de seres humanos que se encontraram em Calcedônia (...) O resultado é que herdamos a fórmula original de Calcedônia, mas sem qualquer significado claramente detalhado ligado à mesma. 188 Uma das muitas tentativas de conceber um significado mais detalhado ao conceito de duas naturezas em Jesus é a teoria quenótica de Thomasius, como expressar uma pessoa que era verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Surge então a sua crítica à teoria do auto-esvaziamento: Desta forma, as principais teorias quenóticas não falam meramente de uma ocultação de atributos divinos, e sim de um efetivo autoesvaziamento e auto-retração divinos, de um despojamento de poderes, de um abandono de qualidades absolutas a fim de assumir a humanidade – e, não obstante, sem que a pessoa que age assim deixe de ser, de modo pleno e inequívoco, o Deus Filho. É evidente que aqui existe no mínimo uma contradição aparente; e, como no caso das cristologias das duas naturezas, a questão é saber se, não obstante, essa contradição faz sentido. É isto que os teóricos da quenose tentam fazer. Em minha 187 188 John Hick, p. 66-67. John Hick, p. 70. 105 opinião, eles não alcançam sucesso. Eles propõem a idéia geral de uma autodoação divina radical em que o Salvador vem a nós na humildade de sua fraqueza, pobreza e vulnerabilidade; e eles demonstram que o valor religioso desse quadro está em apresentar uma manifestação suprema do amor divino. Todavia, quando chegam à contradição aparente de um ser que é Deus e no entanto carece dos atributos de Deus, tudo o que conseguem fazer é oferecer analogias incapazes de alcançar a questãochave, partindo a seguir para um apelo ao mistério. 189 Especificamente quanto à teologia quenótica, Hick demonstra que esta teoria fora usada como uma alternativa para dinamizar a cristologia. Para comprovar isto Hick apresenta o pensamento de autores posteriores a Thomasius, principalmente na década de 60 do século XX. Hick não aprova o uso da construção quenótica por causa de uma incoerência lógica no sistema da linguagem usada, devido ás conseqüências que iria acarretar para a doutrina de Deus. O problema principal para ele são as implicações às quais tal teoria levaria. Após analisar o quenoticismo do Bispo Frank Weston, expõe sua crítica: Assim, o empenho de Weston termina naquilo que ele se vê forçado a aceitar como mistério. E esse é geralmente o caso com os teólogos quenóticos. Eles dizem, costumeiramente, que não podemos esperar compreender o processo ou a maneira do auto-esvaziamento divino. (...) Todavia, a falácia presente nesses apelos ao mistério enquanto substituto para a clareza conceitual está em que a cristologia quenótica não é uma verdade revelada, e sim, como Davis corretamente a denomina, uma teoria. Ela é uma hipótese humanamente projetada; e nós não podemos salvar uma hipótese deficiente rotulando-a de mistério divino. 190 A teoria quenótica conforme expressa por Thomasius dizia que o Filho eterno de Deus, o Logos, abriu mão de alguns atributos não essenciais à divindade quando da encarnação. Para Hick esta é uma idéia altamente paradoxal. A crítica feita por Dorner quanto ao quenoticismo tinha como carro chefe a imutabilidade de Deus, que nesta teoria estaria sendo maculada. Hick retoma a questão indagando: Mas seria possível escapar a esta conclusão distinguindo entre atributos divinos que não são essenciais à divindade em nível de gênero – e que por conseguinte podem ser abandonados no processo de encarnação – e aqueles outros que são preservados por serem essenciais, e logo por precisarem caracterizar Deus continuamente, mesmo quando encarnado? 191 189 John Hick, p. 88-89. John Hick, p. 99. 191 John Hick, p. 100. 190 106 À frente segue utilizando um argumento que levanta uma questão de extrema pertinência: ... somos livres, até um certo ponto, para declarar que qualquer qualidade divina ou humana é ou não é essencial, dependendo das necessidades colocadas por nossas teorias. (...) E deve-se declarar o mesmo de vários outros atributos. (...) ... sempre é possível salvar o dogma tradicional estipulando definições que lhe facultem ser verdadeiro. Contudo, temos de calcular os custos. O perigo disso é que, ao ajustar o conceito de Deus a fim de tornar possível a encarnação divina, corremos o risco de descartar aspectos do conceito que são essenciais em termos religiosos. 192 Como possibilidade inteligível frente às impropriedades causadas pelas teorias quenóticas, Hick propõe uma saída: De início é muito mais plausível sugerir que Jesus encarnou o amor divino do que sugerir que ele encarnou a onipotência ou onisciência divinas. Isso pela razão de que embora não fosse, evidentemente, todopoderoso ou todo-sapiente, ele tanto ensinou como vivenciou o mandamento do amor. Sua vida foi a expressão de uma agape autodoadora pelos homens e mulheres que encontrava em seu caminho; ele abriu as portas do reino dos céus aos pobres e humildes, estando disposto a morrer no cumprimento de sua missão. No sentido metafórico de “encarnação”, sua vida foi uma encarnação da agape, e dado que toda agape é uma reflexão da agape divina, é fato possível dizer que ele “encarnou” o amor de Deus. 193 Como proposta sugere: A quenose é uma metáfora viva para a qualidade de autodoação do amor divino assim como foi revelado em Jesus, e para o amor autodoador a que somos chamados como seus discípulos. No entanto, quando a metáfora é utilizada com a intenção de fazer sentido literal da idéia da encarnação, sugerindo-se que o Deus Filho se despojou de certos atributos seus a fim de tornar-se homem, ele acaba gerando problemas demais para ser aceitável. (...) Portanto, a metáfora do auto-esvaziamento serve ao propósito prátic o de guiar-nos corretamente em nossas vidas, afastandonos do autocentramento e dirigindo-nos para um novo e radical centramento em Deus – um novo centramento corporificado, segundo a experiência e/ou a teologia de Paulo, na vida da comunidade cristã.194 Assim vemos em forma rápida as teses de John Hick referentes ao assunto em questão. Hick valoriza em alto grau a linguagem metafórica, como o tipo adequado para expressar a 192 John Hick, p. 101. John Hick, p. 105-106. 194 John Hick, p. 109. 193 107 realidade da pessoa histórica de Jesus, mas que não somos totalmente capazes de racio nalizar e compreender em sua totalidade. Em A Metáfora do Deus Encarnado, Hick sugere que a abordagem à doutrina da encarnação seja diferente dos moldes como tradicionalmente tem-se feito. Contudo, não pretende descartar o dogma, mas antes, submetê- lo a uma hermenêutica que, segundo ele, seja mais coerente com a linguagem teológica. Para Hick um dos problemas mais freqüentes da teologia consiste em interpretar metafisicamente o que deve ser entendido metaforicamente. Para ele houve um tempo em que o discurso metafórico passou a ser interpretado literalmente, e isto, conforme afirma, se constitui num erro serio. Ou seja, tratar uma metáfora religiosa como metafísica literal. John Hick argumenta a partir de uma perspectiva pluralista. Sugere que a doutrina da salvação seja possível somente por intermédio de Cristo é inconsistente com a idéia da vontade redentora e universal de Deus. Propõe também a possibilidade de diversas encarnações de Deus ocorridas nos trâmites das crenças nas diversas religiões. Hick atem-se a cristologia que possui seu ponto de partida na humanidade da pessoa de Jesus Cristo e não somente nesta única pessoa, mas abre a possibilidade de existência de outras mais. Thomasius contrariamente defendia um entendimento metafísico do dogma cristológico conforme fora expresso em Calcedônia, por isso o seu intuito em explicar os trâmites da presença de duas naturezas na pessoa una e histórica de Jesus Cristo. Para Thomasius, desta feita, Deus encarnado houve apenas um, Jesus Cristo. Uma Cristologia “de cima”. 3.3 – A Proposta de Roger Haight: entender Calcedônia pela ótica do símbolo Roger Haight, diz que, a realidade de Jesus como ser humano precisa ser afirmada com maior incisividade histórica: Jesus era uma pessoa humana. Como ser humano igual a nós, Jesus torna Deus presente a nós e não apenas a ele. E Jesus nos é relevante como revelador e salvador passível de imitação, por ser consubstancial conosco. Jesus é o símbolo humano que torna presente aquele que se constitui como alteridade de si próprio: Deus. Jesus Cristo, símbolo histórico de Deus, torna Deus presente na história. Jesus, contudo, como símbolo religioso constitutivos da fé cristã, torna Deus presente no mundo. Para mostrarmos 108 estas concepções nos concentraremos em sua obra: Roger Haight, Jesus: Símbolo de Deus. Roger Haight escreveu este livro com o desejo de estabelecer um diálogo com a cultura pós- moderna, “segue o imperativo”, como ele afirma, “de dirigir-se ao mundo contemporâneo, procurando tornar a fé inteligível em seus próprios termos. Não foi produzido como parte de um debate interno à Igreja católica romana; busca antes reunir teólogos cristãos de todas as denominações para, nas coordenadas do terceiro milênio, apresentar a fé cristã, de maneira inteligível, a pessoas instruídas, de dentro da Igreja, que transcendem fronteiras nacionais e partilham um conjunto de valores e idéias constituintes de uma subcultura.”195 Apresenta-se assim a intencionalidade da obra e o público alvo a que se destina esta obra. Os pressupostos que permeiam toda a sua obra são apresentados pelo autor como segue: Desenvolvi esta cristologia convencido de que o cristianismo, no século XXI, deverá enfrentar novos problemas e questões, os quais, por sua vez, irão efetivamente engendrar novas compreensões e padrões de comportamento, tanto no seio das Igrejas como por seu intermédio. O símbolo generalizado dos fatores culturais mediadores dessas mudanças é a pós-modernidade. Ao mesmo tempo, contudo, o cristianismo, nesse caso em sua teologia e em sua cristologia, há de permanecer fiel à sua revelação original e à tradição estabelecida. Por esse motivo, boa parte da obra foi reservada à exposição e à análise da tradição. 196 A intenção de sua cristologia conduz ao método chamado de “a partir de baixo”, desta forma fica estabelecido um ponto final puramente metódico de uma “cristologia alta”, segundo Haight. Desta feita Jesus de Nazaré é tomado como fonte e referente último nas afirmações feitas sobre Jesus Cristo. Mais adiante explica: Esse arcabouço reflete-se em freqüentes recursos à imaginação como parte integrante do processo de conhecimento, porque a imaginação é a ponte entre a realidade concreta e a compreensão que dela temos. O arcabouço explica o interesse pelo Jesus Histórico. Se Deus se fez carne em Jesus, independentemente de como se explique isso, seria estranho que os cristãos não tivessem a curiosidade de saber tudo quanto fosse possível acerca da pessoa histórica de Jesus. A estrutura explica por que, mesmo sendo uma cristologia, intitula -se “Jesus”. Se fosse uma cristologia de cima, intitular-se-ia “Cristo, o sacramento de Deus”, em que sacramento é explicitamente um símbolo do encontro humano com Deus. Por ser uma cristologia de baixo, Jesus é chamado “símbolo de Deus”, pois, conquanto esse símbolo seja um sacramento e nunca 195 196 Roger Haight, Jesus: símbolo de Deus, p. 12. Roger Haight, p. 12 109 meramente um símbolo, “símbolo” é a categoria interdisciplinar mais ampla e mais reconhecida. Na cristologia deste livro, o símbolo exerce função mediadora em ambas as direções: atrai a consciência humana para Deus e medeia a presença de Deus ao espírito humano. (grifo meu) 197 No seu método de construção teológica o caráter simbólico da linguagem é de suma importância. E esta é a função do símbolo: Um símbolo é aquilo por meio do qual se conhece alguma coisa que dele próprio difere. Um símbolo medeia a percepção de alguma outra coisa. Às vezes, a única forma possível de conhecer esse outro é por meio da mediação simbólica. (...) Os símbolos religiosos são semelhantes a essas formas; apontam para realidades transcendentes e servem-lhes como instancia mediadora, em resposta à interpelação religiosa. 198 E segue explicando o seu uso do conceito de símbolo: O conhecimento engendrado por meio do símbolo não é uma forma atenuada de cognição, mas uma extensão da amplitude da percepção humana. O tipo de conhecimento mediado pelos símbolos pode ser chamado de conhecimento participativo engajado. Isso significa que tal conhecimento é o resultado do processo de conscientização existencial e experiencial daquilo que é mediado pelo símbolo. Como se verá mais adiante, o símbolo possui uma estrutura tensiva e dinâmica que estimula a mente à atividade. Leva-a a buscar o sentido ulterior que reside dentro do próprio símbolo. Só mediante uma participação ativamente engajada a mente humana pode captar um significado mais profundo do que o empírico ou mais elevado do que o terreno. Como lida com a realidade transcendente, e os dados da fé são recebidos por meio da revelação, a teologia é uma disciplina simbólica. 199 Diante do caráter simbólico da teologia, para Haight, surgem então dois axiomas básicos que interragem dialeticamente. O primeiro é formulado em termos negativos e diz respeito ao fato de que, sendo a teologia simbólica suas afirmações não são enunciados diretos de informação objetiva acerca de Deus. A teologia trata do caráter transcendente da fé e da revelação, portanto não pode transmitir nenhum dado direto sobre Deus. A importância maior recai sobre o segundo axioma que é estabelecido da seguinte forma: O segundo axioma pode ser formulado em termos positivos: as asserções simbólicas da teologia comunicam por meio da experiência participativa engajada a qual estimulam e ativamente engendram. As asserções simbólicas da teologia introduzem ao mistério do transcendente. Não 197 Roger Haight, p. 13. Roger Haight, p. 23. 199 Roger Haight, p. 24. 198 110 perdem valor epistemológico por não transmitir fatos; as asserções religiosas simbólicas desvelam e medeiam à consciência áreas que, de outro modo, permaneceriam fechadas. Mas a percepção cognitiva tem de descobrir sua base em alguma forma de enc ontro participativo engajado com seu objeto. Em última análise, o significado e a verdade dos símbolos da tradição têm de ser encontrados na experiência cotidiana da comunidade. 200 Para Haight quando este dois axiomas básicos são levados em consideração, torna-se evidente que a teologia é uma disciplina que esta em constante desenvolvimento ao longo de toda a história, e permanecera evoluindo continuamente. Como conseguinte não existe instancia religiosa que detenha todas as respostas existências ou que abarquem todos os âmbitos de ação teológica. Para ele a teologia: “... defini-se mais propriamente como o tratamento de questões perenes cujas respostas não estão simplesmente à espera de descobertas. (...) A teologia deve ser uma contínua discussão aberta a todos os envolvidos que possam contribuir com respostas simbólicas às questões humanas mais fundamentais.”201 O que caracteriza a disciplina é a “reflexão sobre a natureza da realidade segundo a perspectiva dos símbolos da fé cristã”, o que “envolve uma reflexão explícita sobre Deus e o mundo, bem como um exame retrospectivo e crítico dos próprios símbolos da fé, como no caso da cristologia.”202 Sobre o símbolo na sua relação com a teologia, segue afirmando: A idéia de um símbolo é essencialmente tensiva, dinâmica e dialética; um símbolo medeia alguma outra coisa que não ele próprio, induzindo ou remetendo a uma verdade mais profunda ou mais elevada que se encontra para além de si mesmo. Quando concebemos a teologia como disciplina simbólica e utilizamos cons istentemente a linguagem do símbolo, temos condições de assegurar o respeito a seu caráter essencial. Os símbolos não transmitem informações objetivas acerca de Deus, embora introduzam a consciência e a vida humanas em uma esfera mais profunda de encontro com a realidade transcendente. Epistemologicamente, isso representa um realismo simbólico. 203 Roger Haight passa então a situar Jesus Cristo dentro deste padrão de interpretação teológica. A relação que existem entre a teologia cristã como um todo e a cristologia é reflexo da importância que Jesus Cristo ocupa no âmbito do cristianismo. Jesus Cristo é o âmago central da fé cristã. Alguns princípios são apresentados para clarificar a compreensão, 200 Roger Haight, p. 24. Roger Haight, p. 24, 25. 202 Roger Haight, p. 25. 203 Roger Haight, p. 26. 201 111 um deste é o princípio de que toda revelação é historicamente mediada. No entanto, para Haight “a presença universal só pode adentrar a consciência humana, de maneira explícita, reflexiva e temática, na qualidade de objeto, em decorrência de uma mediação histórica.”204 Para tanto e que isto seja levado a efeito, “é necessária a mediação simbólica de uma evento externo ou de um meio objetivo e específico para nomear particularmente uma percepção que, de outra forma, permaneceria difusa.”205 Como implicação desta realidade há uma pluralidade dos modos de um determinado grupo experienciar a presença de Deus. Daí então para Haight, “a percepção e a conceituação da realidade divina” assumirem formas e estilos delimitados pelo contexto em que estes grupos estão inseridos, mais precisamente podemos dizer que há uma relação direta com a linguagem, a cultura e os símbolos específicos que lhes servem de mediação à consciência. Seguindo Tillich, Haight vai afirmar que “os símbolos de uma cultura específica provêem a forma de uma consciência religiosa particular.”206 Chegando a um momento crucial em seu desenvolvimento teológico, Haight distingue entre dois tipos de símbolo que ele assume nesta obra. Para ele existem os símbolos conceituais ou conscientes e os símbolos concretos. De modo claro e direto expõe as balizas que delimitam estes tipos de símbolos: Os símbolos conscientes são as palavras, as noções, os conceitos, as ideias, os ditos ou textos que medeiam uma consciência mais profunda de um nível de realidade que vai além de seu sentido manifesto. (...) Constrastivamente, um símbolo concreto é um objeto. O termo refere-se a coisas, lugares, eventos ou pessoas que medeiam a presença e a consciência de uma outra realidade.207 Diante da exposição destes dois princípios. Primeiro que toda fé e revelação são mediadas historicamente. E segundo, que os símbolos podem ser classificados em dois tipos conforme expressa. Haight afirma qual é o lugar de Cristo na religião cristã, “para os cristãos, Jesus é símbolo concreto de Deus”. 208 Para Haight Jesus foi uma figura concreta histórica humana. Já sobre o termo “Jesus” é utilizado em sua obra para referir-se a Jesus de Nazaré, empregando o termo em forma direta, ou seja, sem o designativo “histórico”. Pois para ele há um consenso de que tal pessoa, Jesus de Nazaré, realmente existiu na história. Segundo Haight, “Jesus foi um judeu dos 204 Roger Haight, p. 28. Roger Haight, p. 28. 206 Roger Haight, p. 28-29. 207 Roger Haight, p. 29. 208 Roger Haight, p. 29. 205 112 primórdios do século I que posteriormente veio a ser reconhecido por alguns, ou por muitos, dependendo da perspectiva, como o Messias, o ungido, ou Cristo.”209 Mas quanto ao título “Cristo”, “logos se transformou em um segundo nome próprio, de modo que muito provavelmente ele passou a ser conhecido como Jesus Cristo após a morte.”210 A sua conclusão final quanto ao nome, é a de que o Jesus de Nazaré é o melhor designativo direto para referir-se a Jesus durante a sua vida na terra. Ainda sobre Jesus como Cristo diz que Jesus é a mediação da presença de Deus, pelo menos para o Cristianismo. E para Haight, “esse é significado primeiro e mais fundamental ou a lógica subjacente, qualquer que seja o sentido literário que se encontro na predicação de que Jesus é o Cristo.”211 E ainda, Jesus é o símbolo de Deus como mediação da experiência do próprio Deus na história. Para Haight, “Jesus é o mediador da fé especificamente cristã.”212 Assim, “Jesus, chamado Cristo, é o único determinante central, mas não exclusivo, do caráter da fé cristã”. 213 Quanto à relação entre cristologia e a teologia propriamente dita, segue dizendo que “a cristologia é um tratado da teologia, e define-se como o estudo e a discussão a respeito de Jesus Cristo, ou de Jesus como Cristo.”214 A questão cristológica mais premente diz respeito à maneira de como Jesus se relacionava com Deus. Pois “o cristianismo tem seu fundamento no encontro de Deus em Jesus e por intermédio de Jesus. O foco do conceito cristão de Jesus como meio de Deus suscitou, e ainda suscita, a questão sobre como Deus se fez presente a ou em Jesus.”215 Nesta questão cristológica o ponto central é o próprio Jesus em relação à sua posição em relação a Deus e aos demais seres humanos também. A teologia patrística, principalmente a formulada pelo Concilio de Calcedônia responde que na pessoa una Jesus Cristo, havia uma natureza humana e uma natureza divina, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Haight assim expressa a importância histórica do assunto, bem como também expressa seus pressupostos de abordagem quanto ao assunto e seu propósito em considerar tais questões cristológicas: 209 Roger Haight, p. 29. Roger Haight, p. 29. 211 Roger Haight, p. 30. 212 Roger Haight, p. 30. 213 Roger Haight, p. 30. 214 Roger Haight, p. 30. 215 Roger Haight, p. 31. 210 113 A questão estritamente cristológica não pode ser negligenciada, como tampouco a cristologia pode ignorar as respostas clássicas a essa questão que foram formuladas no período da patrística. Os concílios regem a linguagem e a compreensão das principais Igrejas. Evidentemente, a questão cristológica tornou-se uma nova problemática que não encontra respostas nas antigas fórmulas; precisamos de nova linguagem. Mas devemos levar em conta as fórmulas clássicas em qualquer cristologia adequada, pois, ainda que de maneira problemática, continuam a moldar a consciência cristológica mil e quinhentos anos depois. Só existem três alternativas possíveis em relação a essas formulações clássicas: evitá-las, repeti-las ou interpretá-las. Não se pode evitá-las, porque a questão sobre quem foi exatamente Jesus, em termos ontológicos, continua sempre de pé. Não irá desaparecer nem é irrelevante. Por outro lado, não há como simplesmente repetir as fórmulas clássicas, porque não possuem em nossa cultura o mesmo significado de que se revestiam na época em que foram enunciadas. Repeti-las, portanto, é interpretá-las em um sentido que não corresponde ao que pretendiam. Por conseguinte, não resta outra alternativa senão assumir as formulações conciliares clássicas e interpretá-las explicitamente para nossa própria época. As cristologias que tentam suplantar as doutrinas clássicas pecam por incompletude.216 Com estes parâmetros diretivos, seus pressupostos e método simbólico de aproximação da cristologia que visa responder perguntas sobre Jesus e seu relacionamento com Deus, e a mediação que promove do homem a Deus, passa Haight a interpretar o Concílio de Calcedônia. No capítulo primeiro expusemos os conflitos e as resoluções deste importante concílio da cristandade. No capítulo segundo mostramos a teoria quenótica como tentativa de superação hermenêutica da fórmula das duas naturezas em Jesus Cristo. Aqui passamos a mostrar a posição de Haight para entender o concílio. A fórmula de Calcedônia surge como resultado da tentativa de conciliar posicionamentos divergentes em relação à pessoa de Jesus Cristo, Alexandria e Antioquia, conforme pudemos observar no capítulo primeiro. Cirilo, principal proponente da Escola de Alexandria, enfatizava a realidade divina do Logos que a este mundo em uma existência humana. Expressava que Jesus Cristo é o Logos ou Filho eterno de Deus. São um único e mesmo indivíduo. Sua motivação primordial em enfatizar a pessoa humana do redentor se fazia necessária, pois, se a existência humana não fosse de todo assumida e vivifica pelo Verbo divino, não haveria a possibilidade de concreta salvação ao homem. 216 Roger Haight, p. 31-32. Para Haight há debilidade que atualmente é acentuada, “a plena 114 humanidade da figura histórica Jesus torna-se passiva, e tudo desaparece na realidade divinizadora da pessoa divina, o Filho eterno.”217 Nestório em contrapartida focaliza a sua atenção na pessoa histórica de Jesus Cristo. Elabora uma cristologia centrada no Filho eterno de Deus tal como surgiu encarnado na história. Nestório enfatizava a tal ponto a distinção das duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo que debilitava o conceito de união, gerando duas pessoas distintas, uma divina que não poderia ter Maria como mãe e outra humana, que obrigatoriamente a teria como mãe. Por isto atribuía o termo Christotokos a Maria, em discordância do termo Theotokos. Diz Haight que, A fraqueza dessa postura patenteia -se com maior clareza no contraste com Cirilo: onde reside a unidade de natureza de Jesus Cristo? Qual é sua identidade metafísica? No arcabouço joanino de uma cristologia descencional em que operava, e por contraste com a predileção ciriliana de pensar em termos de uma natureza, muito embora admitisse duas naturezas, a ênfase de Nestório na plenitude da humanidade de Jesus Cristo e em suas qualidades e poderes não deixou um delineamento claro da espécie de natureza que o próprio Jesus era. 218 A doutrina elaborada pelo Concílio de Calcedônia foi o resultado da tentativa de construir uma cristologia que fosse comum a estes lados opostos. Para Haight resume-se da seguinte forma a conclusão atingida pelo concílio: “Muito embora a fórmula de Calcedônia tenha haurido de diversas fontes, o significado histórico fundamental da doutrina reside em seu delicado equilíbrio entre a cristologia da única pessoa divina dos alexandrinos e a cristologia das duas naturezas dos antioquenos, apoiada de Roma pelo papa Leão.”219 deste modo, expressa três afirmações fundamentais: 1) A unidade da pessoa de Jesus Cristo está no eterno e divino Filho de Deus, o Logos. Não há distinção entre Jesus e o Filho eterno de Deus, são uma e a mesma pessoa. Por isso Haight conclui que, a personalidade de Jesus é completamente idêntica à natureza do Logos eterno. Portanto, “em termos técnicos, Jesus Cristo não é uma pessoa humana, mas uma pessoa divina, e a natureza humana de Jesus subsiste ou é a natureza humana de uma pessoa divina, de um ser individual ou hipóstase.”220 ; 2) Calcedônia afirma a dualidade de naturezas como característica da pessoa una Jesus Cristo. Essa dualidade é mostrada pelo uso da expressão “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. Mostra também que a pessoa una de Jesus possui duas naturezas limitadas pelo uso das quatro expressões clássicas deste concílio (“sem confusão, sem separação, sem mudança, 217 Roger Haight, p. 332. Roger Haight, p. 333. 219 Roger Haight, p. 334. 220 Roger Haight, p. 334. 218 115 sem divisão”). A diferença destas naturezas não são eliminadas na união. Mas, são preservadas as propriedades de cada natureza, que estão unidas em uma só prosopon ou hipóstasis. Daí a concluir Haight que, “isso é antioqueno; o monofisismo é uma linguagem rejeitada; a integridade das duas naturezas é preservada; e com ela a consubstancialidade de Jesus Cristo, de par com todos os outros seres humanos, é afirmada.”221 3) O Concílio de Calcedônia também faz uso do conceito da comunicação de atributos. Ou seja, os atributos ou qualidades de uma natureza são tomados como pertencentes à pessoa una de Jesus Cristo. E isto, logicamente, porque ele é a pessoa que compartilha identicamente de ambas as naturezas. Segue Haight afirmando que, “ambos os predicados, o divino e o humano, podem ser afirmados acerca de Jesus Cristo, mas, no espírito de compromisso na direção dos antioquenos, a maternidade de Deus é esclarecida de alguma forma pela expressão “com referência à sua humanidade”.”222 A conclusão que normalmente se chega é que na cristologia formulada pelo Concílio de Calcedônia estão contidas as posições discordes no debate de longo tempo. Possivelmente os mais extremistas não concordaram com esta exposição cristológica. Mas, foi recebida pelos que advogavam uma posição mais ao centro de ambos os partidos teológicos envolvidos. Portanto, diz Haight, que “por um lado, a visão antioquena de Jesus Cristo como união de duas naturezas distintas e integrais foi preservada; por outro lado, o esquema alexandrino domina toda a visão: a pessoa divina única assumiu uma natureza humana, de sorte que a verdadeira identidade de Jesus de Nazaré era o Logos.”223 Segundo Haight as críticas atribuídas ao Concílio de Nicéia são aplicáveis também ao Concílio de Calcedônia. Pois esta é prefaciada por Nicéia. E o próprio objetivo de Calcedônia não era formular um novo credo, mas apenas confirmar o credo nicenoconstantinopolitano, se propondo assim a apenas um comentário ou extensão deste. Desta formas as críticas de Haight são basicamente as seguintes: “perspectiva exclusivamente joanina, antiquada argumentação da Escritura, “hipostatização” dos símbolos bíblicos, cristologia descensional a partir de cima em método e conteúdo, ambigüidade no tocante ao objeto da cristologia. A essas podem ser acrescidas algumas reservas sérias acerca da linguagem específica de Calcedônia.”224 A despeito destas críticas não deixa de reter as formulações cristológicas antigas: “é importante relembrar que a intenção desta crítica é 221 Roger Haight, p. 335. Roger Haight, p. 335. 223 Roger Haight, p. 335. 224 Roger Haight, p. 336. 222 116 franquear o espaço necessário a uma fiel recuperação dessa doutrina em uma linguagem mais ajustada a nossa época.”225 O Concílio de Calcedônia aborda Jesus em uma categoria metafísica abstrata comprometendo o enfoque imaginativo sobre ele. A linguagem utilizada tem por objetivo conduzir a atenção para o modo de como Jesus existe na união das naturezas humana e divina. Resultando em deficiência na sua consubstancialidade conosco, assim Jesus é único e diferente de nós no seu relacionamento e união com Deus. A problemática envolvida é que os evangelhos sinóticos não retratam Jesus como uma pessoa divina, mas como alguém semelhante a nós que se relaciona com o Deus transcendente. Assim pensa Haight. Calcedônia ensina que Jesus é uma pessoa divina dotada de natureza humana. Para Haight a natureza humana de Jesus é abstrata no sentido de não ser a natureza de uma pessoa humana, mas que subsiste em outro, o Logos eterno que apropriou-se dessa natureza concluindo que a natureza humana de Jesus subsiste na hipóstase divina. 226 O princípio de unidade da pessoa de Jesus Cristo é divino. O Logos é que é Deus. E que como pessoa assume a natureza humana integral, mas não uma existência humana. Essa natureza humana se constitui em mero instrumento do Logos. Assim quem age na história não é o homem e sim Deus. Como implicação, ocorre a impossibilidade de Jesus ter sido um ser humano integral. 227 Para Haight o ponto de partida atual da cristologia não é mais a questão metafísica do Logos que se fez carne, mas sim diz respeito à manifestação histórica da pessoa de Jesus de Nazaré. Ou seja, a divindade de Jesus precisa ser compreendida à luz da compatibilidade da sua existência humana empírica e histórica. Enfim a crítica que Haight faz sobre Calcedônia não é ao seu conteúdo, mas sim ao seu contexto teórico de formulação. Para ele o que efetivamente mudou de lá para cá forma a estrutura, as suposições, as premissas, a linguagem e o método. Positivamente falando, 225 Roger Haight, p. 336. Roger Haight, p. 336-337. 227 Roger Haight, p. 337. 226 117 quanto aos ensinos de Calcedônia, o que é mais assimilável é a asserção clara sobre a natureza consubstancial de Jesus com a humanidade, o que reconduz a cristologia ao Jesus histórico. 228 Após expor suas críticas, Haight não pára por esboçar as possibilidades e os caminhos para se interpretar Calcedônia hoje. Podemos dizer que a tarefa de desconstruir status teológicos historicamente estabelecidos é freqüente, o difícil é propor caminhos coerentes para a construção ou reconstrução de novos fundamentos. Haight propõe a reconstrução. As pressuposições iniciais para se reconstruir a doutrina de Calcedônia são as seguintes: • Primeira suposição e premissa para interpretar a doutrina de Calcedônia é que Jesus foi e é um ser humano; • Segunda, a presença de Deus em Jesus deve ser considerada como uma presença no âmbito de sua humanidade; • Terceira, a liberdade de Jesus é plena e autônoma. 229 Uma lógica de interpretação é necessária. Através de qual lógica pode-se captar o autêntico significado da Fórmula de Calcedônia? A resposta será encontrada na estrutura soteriológica. Calcedônia está intimamente ligada à salvação, tema este que mostra um campo comum entre Calcedônia e as teologias anteriores a ela e que lhe deram origem, e também liga à compreensão cristã contemporânea, isto segundo diz Haight. Assim existem dois temas experienciais que são comuns: • O primeiro tema experiencial comum é que a salvação deve ter sua origem em Deus, que só Deus pode operar a salvação definitiva da humanidade. • O segundo tema comum é que a salvação humana deve ser efetuada de tal maneira que a própria liberdade humana seja ativamente engajada. 230 Ao se utilizar destas ferramentas para interpretar Calcedônia chega Haight a um resumo do significado fundamental da sua doutrina: • Primeiro, a doutrina de Calcedônia assevera que, no interior e ao longo de toda a existência de Jesus de Nazaré, ninguém menos que Deus está presente e ativo em prol de nossa salvação. 228 Roger Haight, p. 338. Roger Haight, p. 340-341. 230 Roger Haight, p. 341-342. 229 118 • Segundo, a fórmula de calcedoniana das duas naturezas em uma pessoa, e a descrição daquele que, embora verdadeiramente divino ou consubstancial a Deus, também é verdadeiramente humano e consubstancial a nós, restabelece Jesus como ser humano. Considerando-se que Jesus é um ser humano como todos os demais, o que ele traz de Deus é a autêntica revelação e a salvação da existência humana. • Terceiro, esses dois tópicos juntos expressam a estrutura dialética de Jesus como símbolo histórico da salvação de Deus para a humanidade. Em conclusão sobre sua análise, crítica e proposta de interpretação das doutrinas conforme elaboradas pelos Concílios de Nicéia e Calcedônia, diz Haight: Em conjunto, Calcedônia e Nicéia representam formalmente a estrutura dialética da fé cristã: Jesus Cristo, símbolo histórico de Deus, torna Deus presente na história. Jesus de Nazaré foi um ser humano, com uma existência humana e com uma identidade consubstancial a nós. Jesus, contudo, como símbolo religioso constitutivo da fé cristã, torna Deus presente no mundo. Nicéia representa e defende a dimensão divina de Jesus Cristo; Calcedônia, por sua vez, reafirma sua plena existência humana. (...) Em última análise, portanto, o significado simbólico oficial e normativo de Calcedônia e de Nicéia envolve a necessária tensão dialética entre a natureza humana de Jesus e sua essência divina, por mediar Deus e a salvação de Deus.231 A proposta cristológica de Roger Haight é construída na linha da recuperação de Jesus como um ser humano autêntico. Tem como desejo a tentativa de recuperar o sentido mais positivo de Calcedônia, que for esquecido. Um sentido que seja mais plausível e inteligível nos tempos atuais. Um sentido que tem seu fundamento na expressão de consubstancialidade de Jesus com a natureza humana. Haight propõe uma reformulação da linguagem de Calcedônia, esta precisa ser interpretada pela via do símbolo, pois toda linguagem teológica é simbólica. A realidade de Jesus Cristo era uma pessoa histórica humana, insisti Haight. Jesus como ser humano procede a mediação simbólica de Deus à humanidade. Em consonância com Thomasius, Haight também deseja reinterpretar Calcedônia de modo que possibilite o entendimento da realidade de Jesus Cristo para suas respectivas gerações. Bem como, insistir na possibilidade do relacionamento do homem como Deus. 231 Roger Haight, p. 345, 346. 119 Considerações Finais A cristologia quenótica com freqüência é estudada por vias indiretas. Poucas são as obras que dedicam tempo a analisar o pensamento cristológico de Gottfried Thomasius diretamente da sua produção acadêmica. O conceito principal da quênosis do Logos por vezes é e foi apreendido por meios secundários. Nosso primeiro intuito foi tratar este profícuo teólogo com presteza devida, ou seja, os seus conceitos por ele mesmo. No entanto, com toda certeza muito haveria para ser analisado desta cristologia, bem como há muito ainda a ser superado diante das propostas efetuadas por Thomasius. Reconhecemos, portanto, que nosso trabalho cumpriu o objetivo primeiro, o de trazer à tona a existência desta teoria que encontra respaldo em muitos âmbitos teológicos na atualidade, mas sem a devida referência ao proponente inicial. A atenção primeira deste trabalho encontra suporte nos questionamentos históricos a respeito da encarnação do Verbo e da união das duas naturezas distintas, uma divina e outra humana, numa única pessoa, Jesus Cristo. Thomasius mediante o uso do seu conceito de quenose tentou responder ao questionamento do século XIX a respeito da relação entre a pessoa do Jesus Histórico e o Cristo da fé como uma e a mesma pessoa. Procurando, porém, enfatizar a humanidade do redentor. Este desejo em mostrar evidências da humanidade de Jesus é freqüente em nossos dias atuais. Por isto a obra de Thomasius não pode ser tomada pelo esquecimento. A teoria quenótica de Thomasius surgiu em um contexto caracterizado por diversas e novas descobertas intelectuais. pensamento humano. Momento que ocorreu superação e desenvolvimento do Observando este período, destacam-se nomes como Hegel e Schleiermacher. Portanto, estudar este período e este autor, mais especificamente, se constitui em uma contribuição histórica importante para o desenvolvimento do entendimento do dogma cristológico. Oportunidade para observar como o teólogo e sua teologia foram moldados diante do pensamento cultural de sua época. Na história do dogma embates doutrinários foram freqüentes. Este período não é diferente dos demais. A despeito das dificuldades e problemas produzidos nestes conflitos,a maturação do pensamento teológico sempre ocorreu. Mesmo alguns proponentes permanecendo nos extremos, vários outros optaram pelo equilíbrio e pela moderação. Thomasius formula sua teoria em meio a divergências, o que somente prova a insistência do 120 seu pensamento em manter-se firmado nas premissas que estabeleceu anteriormente. A abordagem do quenoticismo, levando em consideração estes aspectos, se constitui numa contribuição acadêmica pertinente para a compreensão cristológica do século XIX na Alemanha. Nesta pesquisa nos propusemos mostrar que o Concílio ecumênico de Calcedônia em 351, não fecha a questão das duas naturezas (a divina e a humana) na pessoa histórica de Jesus de Nazaré. Nossa tese é de que este concílio possuía o propósito de apenas estabelecer limites para as possíveis construções teológicas posteriores acerca das duas naturezas em Jesus Cristo. Desta forma, o produto final deste concílio, ou seja, a Fórmula de Calcedônia, não impede o desenvolvimento da compreensão do dogma das duas naturezas, somente tenciona salva-guardar o mistério envolvido nesta relação. Deixa sim, campo amplo e aberto para que sejam produzidas superações e reações posteriormente no desenvolvimento da história do dogma. A teoria quenótica de Thomasius é exemplo desta expressão de desenvolvimento do dogma. E o Concílio de Calcedônia é a base para a construção da teoria que Thomasius propôs. Assim, estabelecemos o fundamento primordial sobre o qual Thomasius construiu o seu pensamento teológico com respeito à cristologia. Mostramos as influências diretas que Thomasius sofreu. Para tanto defendemos que Hegel tendo recuperado e exaltado o conceito de encarnação, tornou o assunto pertinente no século XIX. Assim Thomasius trata de assunto tal, a encarnação, que faz parte da pauta teológica deste período aqui estudado. O método dialético de Hegel é o meio usado por ele para expressar o dogma da encarnação do Logos, na tentativa de enquadrar-se ao modelo científico do criticismo histórico do período em questão. Desta feita, mostramos os pressupostos hegelianos influenciadores da cristologia quenótica. A teoria quenótica foi um dos diversos esforços empreendidos no século XIX com o propósito de mediar a fé bíblica e o pensamento científico moderno. Schleiermacher foi o principal expoente no campo da teologia neste período que tencionou fazer uma mediação entre a teologia e a ciência. Apresentamos como o Cristo de Schleiermacher é uma expressão desta tentativa de síntese. E que também, este desejo de elaboração teológica sintética foi também fator motivador para Thomasius. Apontamos que Thomasius desenvolveu uma formulação do dogma cristológico das duas naturezas de Jesus Cristo conforme os princípios de Calcedônia. No entanto, sua construção 121 teológica se expressa como resultado de sua tentativa de adequação da doutrina da encarnação aos moldes de compreensão e às estruturas de pensamento de sua época. O pensamento de Thomasius, conforme está sustentado pela dialética hegeliana em seu propósito de mediação entre ciência e teologia, foi influenciado claramente pela síntese teológica de Schleiermacher. Também apresentamos a tese de que a questão pertinente para Thomasius dizia respeito ao problema metafísico da pergunta sobre o ser de Deus na pessoa histórica de Jesus Cristo. Ou seja, a união de Deus e homem no Deus-homem Jesus de Nazaré. Em nossa exposição do pensamento teológico de Thomasius, a teoria quenótica, partimos da idéia de que ele estava envolvido na tentativa de responder de modo inteligível à pergunta teológica de seu tempo: “Como é possível relacionar o Jesus histórico (como expresso pelo criticismo moderno) com o dogma das duas naturezas de Cristo (conforme expresso pelo Concílio de Calcedônia)?” Diante desta questão metafísica, a humanidade de Cristo torna-se o pivô para a elaboração teológica do período. Outra pergunta surge então: “determinada a integridade da existência humana de Cristo, como é possível falar da presença do divino nele?” Mostramos como Thomasius responde esta pergunta expondo sua cristologia quenótica. No entanto, de modo resumido, podemos dizer que para Thomasius a resposta é uma quenose do Logos, uma perda voluntária de poder da segunda pessoa da Trindade para que a vida encarnada dele (do Logos) pudesse ser idêntica a existência genuinamente humana. Para ele o Logos quando da encarnação abriu mão de alguns atributos não-essenciais ou metafísicos, aqueles que possuem relação direta com o mundo criado, ou seja, a onipotência, a onipresença e a onisciência. Apontaremos que nesta quênose consiste o conceito primordial de auto-esvaziamento do Logos, o Filho eterno de Deus. Concluímos que o objetivo principal de Thomasius foi reafirmar e restabelecer a doutrina clássica da encarnação do Logos, mas desejando ao mesmo tempo uma renovação positiva do desenvolvimento desta doutrina. Seu desejo maior foi combinar a fidelidade às confissões de fé luteranas ao academicismo de seu tempo. Mostramos o desenvolvimento posterior da teoria quenótica. Primeiramente, para Ebrard o Logos eterno de Deus esvaziou-se ao tornar-se homem, mas não deixou de lado qualquer dos seus atributos, metafísicos ou morais, diferentemente de Thomasius. Para ele o problema do projeto quenótico de Thomasius está basicamente no fato de Cristo não possuir uma consciência infinita neste mundo, mas somente permanecer em completa perfeição nas relações com a Trindade. Tal questão foi por Ebrard resolvida afirmando que Jesus possuiu 122 apenas uma consciência humana. Desta forma o Logos despiu-se de sua autoconsciência divina quando da encarnação. Quanto a Gess apresentamos sua idéia de que na encarnação o Logos auto-esvaziou-se de todos os seus atributos, diferentemente de Thomasius que afirmava apenas o esvaziamento dos atributos metafísicos. Para Gess o Logos esvaziou-se também dos atributos morais, estendendo-se a quênosis a todos os atributos. Desta forma defendia uma completa metamorfose do Logos quando da encarnação. Já o quenoticismo de Martensen defendia uma pessoa com dois centros de consciência. Apresentava o redentor como uma pessoa dupla ou duas pessoas distintas, como se fosse possível logicamente tal coisa. Para ele o esvaziamento foi real, mas apenas na vida em carne. Como implicação do seu pensamento, o Logos não encarnou-se realmente, poderiamos concluir. Gore apresenta-se como o teólogo que advogou uma teoria quenótica mais próxima à de Thomasius. Para ele o esvaziamento do Logos constitui-se na abdicação dos atributos não-essenciais. Defendia que esta posição é a forma mais coerente e bíblica de interpretar o hino cristológico compilado na carta aos filipenses. Também demonstramos idéias cristológicas de nosso tempo presente. Hick defende que a abordagem à doutrina da encarnação deve ser diferente daquela que tradicionalmente é apresentada. Mas não quer dizer que por isto o dogma deve ser descartado, e sim, submetê- lo a uma hermenêutica coerente com a linguagem teológica. Mostraremos que para Hick um dos problemas mais freqüentes da teologia é interpretar metafisicamente o que deve ser entendido metaforicamente. Ou seja, não se pode tratar a metáfora religiosa como metafísica literal. Assim propõe Hick sua abordagem interpretativa à encarnação do Logos. Quanto a Haight apresentamos que para ele a proposta cristológica deve ser construída na linha da recuperação de Jesus de Nazaré como um ser humano autêntico. Mostramos que Haight deseja recuperar o sentido mais positivo do Concílio de Calcedônia, mais inteligível no presente tempo, a consubstancialidade de Jesus Cristo com a natureza humana. Para ele a chave interpretativa de Calcedônia é o símbolo, pois, toda linguagem teológica é simbólica. Em consonância com o pensamento de Thomasius, Haight propõe uma reinterpretação de Calcedônia de modo a ser compreendido no tempo presente. Assim nós chegamos ao fim de nossa empreitada. Neste trabalho levantamos elementos no decorrer da história do dogma pautados nos problemas da síntese entre Deus e homem e também com respeito à cristologia da encarnação do Logos. Observamos que consenso não houve e ao que parece jamais haverá. Portanto, a 123 conclusão que chegamos é que a teologia, ou a cristologia neste caso, é uma longa estrada a ser percorrida por muito tempo até chegarmos ao seu fim, se é que ele existe. Segundo Thomasius, o amor foi o fator motivador do auto-esvaziamento do Logos. O tema do amor ao próximo é pertinente na atualidade. Como metáfora do amor divino o ser humano pode encontrar uma força propulsora para modificar as relações de comunhão dentro e fora de suas comunidades. A ênfase na humanidade de Cristo enfatizada por Thomasius serve ao propósito de relembrar ao próprio ser humano seu grau de valor. Pois, se Deus se fez carne, então ser carne não é pejorativo. Ser homem não é tão deplorável como alguns pensam que é. E,se ser homem não é algo depreciativo, então nossa responsabilidade quanto ao outro é pertinente. Portanto, o conceito de quenose não está fadado ao passado, mais precisamente ao século XIX ou ao início do século XX. Encontramos teólogos modernos utilizando este tema em suas construções teológicas. Conforme já observamos, John Hick é um destes que vêem uma possibilidade de uso do conceito quenótico. Enxergamos outros como Karl Rahner, Jürgen Moltamnn, Jon Sobrino, Jacques Dupuis, entre tanto que de uma forma ou outra incorporaram o conceito de quênosis ás suas construções teológicas. Enfim, nenhuma tarefa teológica está completa. Uma das características da teologia é o seu dinamismo. Algumas perguntas ficaram sem resposta por Thomasius. Será que aquele hino de filipenses 2 ensinou mesmo o esvaziamento de atributos não-essenciais pelo Logos quando da encarnação? Thomasius procura defender o dogma metafísico da encarnação com a teoria do esvaziamento (quenosis), onde o Logos pré-existente abre mão dos atributos metafísicos da divindade (ou aqueles que o relacionam com a criação), no entanto, os atributos morais permanecem. Mas para que os atributos morais de Deus se tornem completamente encarnados em um homem, este homem teria estes mesmos atributos na medida em que a divindade os possui, ou seja, em uma medida infinita. Como um homem (finito) teria tais qualidades que devem ser infinitas? Ou seja, estas duas perguntas permanecem e as discussões continuarão. Mas ainda temos o mistério como saída. 124 Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. A Confissão da Fé Apostólica – Explicação Ecumênica da Fé Apostólica segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano (381). São Bernardo do Campo/Porto Alegre: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Re ligião/Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC): 1993. AQUINO, Marcelo F. O Conceito de Religião em Hegel. São Paulo: Loyola, 1989. BAILLIE, Donald M. Deus Estava em Cristo. Rio de Janeiro: JUERP/ASTE, 1983. BERKHOF, Louis. A História das Doutrinas Cristãs. São Paulo: PES, 1992. ______. Teologia Sistemática. Campinas: LPC, 1990. BERKOUWER, G. C. A Pessoa de Cristo. São Paulo: ASTE, 1964. BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. 4.ª ed. São Paulo: ASTE, 20001. BRAATEN, Carl E. 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