A iatrofísica e a iatroquímica – Pilares da medicina

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[14] A iatrofísica e a iatroquímica –
Pilares da medicina moderna
Na Antiguidade, o escultor Policleto media segmentos
do corpo com o objetivo de criar um conjunto
de regras, o Canon, que permitisse aos artistas
configurar uma forma humana harmoniosa e perfeita
do corpo humano que aproximasse o mundo
dos homens ao mundo dos deuses.
Inspirado na Antiguidade, sobretudo grega,
no seu ideal de beleza e conhecimento, o Renascimento
abre um novo olhar sobre as coisas a partir de uma ideia
diferente de Deus. Para o homem renascentista o corpo
do Homem é o corpo do Homem, algo que faz parte
do mundo material, e por isso nasce, envelhece
e morre. E Deus é Deus, pura espiritualidade –
não tem princípio, meio e fim, não integra a natureza,
está acima dela. Acontece, porém, que o ser humano
é uma matéria que pensa, e por isso só parcialmente
se identifica com a natureza. Com efeito, o Homem,
ao contrário dos outros animais ou seres naturais,
é um ser pensante, espiritual: reflete sobre a natureza
e Deus, correlaciona, cria, inventa, imagina. Mas para
pensar, como dizia São Tomás de Aquino, o homem
precisa de imagens, não imagens idealizadas de si,
como acontecia no mundo dos antigos, mas de imagens
especulares, imagens que reflitam a sua realidade física
e do mundo envolvente.
É essa vontade de conhecer a realidade
multidimensional do ser humano que leva médicos
e artistas, munidos de bisturi e pincel, a mergulhar
no interior do corpo humano, a máquina divina,
procurando desvendar a sua arquitetura, os seus
mistérios, a alma. Entre os artistas, Leonardo
da Vinci (1452-1519) merece um lugar de destaque
em todo este processo de redescoberta da anatomia.
Leonardo disseca ao longo de toda a sua vida animais
e até mesmo cadáveres humanos, enchendo páginas
e páginas de extraordinários e complexos estudos
anatómicos, inovadores não só quanto à forma mas
também quanto ao conteúdo. Recheados de anotações,
os desenhos anatómicos de Leonardo da Vinci
14.02
14.01
14.01
Estudo anatómico dos ossos do crânio (c. 1594).
Desenho de Leonardo da Vinci
14.02
Estudo anatómico dos ossos e músculos do braço (c. 1509-1510).
Desenho de Leonardo da Vinci
14.03
Projeto de máquina para o fabrico de limas (c. 1480).
Desenho de Leonardo da Vinci
14.04
Busto de Andreas Vesalius de Bruxelas (s. d.). Gravura de artista
não identificado
14.05
Paracelsus (s. d.). Cópia de uma pintura perdida de Quentin Matsys
feita por autor desconhecido
são de um realismo e de uma objetividade
sem precedentes, revolucionando os modos de ver
e representar o corpo, na ciência e na arte.
Embora se destinassem a um tratado sobre o corpo
humano, inspirado na Cosmografia de Ptolomeu,
da autoria de Leonardo, acabaram por não ser
sistematizados e publicados e por isso não
influenciaram a evolução da medicina na época.
A preciosa coleção de desenhos pertence atualmente
à Royal Library do Windsor Castle, em Inglaterra.
Mas o interesse de Leonardo vai muito para além
do estudo do cadáver. Alguns dos seus desenhos
anatómicos são extraordinariamente fluidos:
“Leonardo desenvolveu um notável sentido
de continuidade de formas no espaço – uma visão
alimentada pelo conceito tradicional de ‘quantidade
contínua’, que servia para diferenciar a geometria
da descontinuidade aritmética – e arquitetou esquemas
de ilustração em que as formas são representadas
como rodando em frente dos nossos olhos.
De um modo complementar, ele também representou
figuras em movimento local, como ocupando
uma série de posições contínuas no espaço, no que
pode ser justamente descrito como uma sequência
cinematográfica” 19.
Os desenhos anatómicos de Leonardo inauguram
a primeira época da cultura visual da medicina.
Desde então, e pelo menos até ao século xviii,
anatomistas e artistas irão estudar juntos, lado a lado,
o corpo humano dissecado com o objetivo de dar
a ver, através da imagem, o interior do corpo.
A segunda época é a da representação analógica,
com a radiografia, a fotografia e a cinematografia,
que compreende o século xix e parte do século xx.
Finalmente, a era digital, em que vivemos atualmente,
marcada pelas imagens computorizadas e pela
possibilidade de, com elas, se criarem modelos
tridimensionais configurando realidades virtuais.
A emergência da cultura visual da medicina
é uma verdadeira revolução, tanto nos modos de ver
e compreender a bios como de interiorizar o corpo.
Mas se é o artista e cientista Leonardo que funda,
do ponto de vista formal, este novo modo de olhar
para o corpo e de o representar, é o anatomista
Andreas Vesalius (1514-1564) que o sistematiza
e interpreta do ponto de vista da ciência médica,
através de um magnífico livro, publicado em 1543,
que liga exemplarmente a ciência e a arte:
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HISTÓRIA DA MEDICINA EM PORTUGAL
SÉCULOS X V E X VI
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