Redes de produção de saúde e segurança do paciente Dário Frederico Pasche – DE/UFSC Florianópolis, 10 de abril de 2015 Redes de produção de saúde e segurança do paciente, o que tem haver esses dois temas? A princípio parecem tratar de questões que guardam entre si certa distância. Para buscar relações e pertinências vamos, primeiramente nos deter em cada um deles, para na sequência buscar entender que se trata de questões que guardam entre si relações, estão intimamente ligados a uma agenda desafiadora do sistema de saúde. Redes de produção saúde Por redes podemos entender – assim como tem sido pensado no SUS – como um conjunto de estratégias de gestão, cujo resultado esperado é a ampliação do grau de comunicação entre serviços e equipes de saúde, capazes então de contraírem de forma compartilhada responsabilidades pelo cuidado de usuários/pacientes e comunidades/coletivos. A ideia de contração de responsabilidade – ou de corresponsabilização – tem sido um grande desafio no SUS. Aliás, o SUS como sistema busca na ideia de Único uma série de “unidades” entre as quais: (1) integração de ações sanitárias de distintos serviços de saúde que se encontram nos territórios (e não apenas aqueles que são contíguos); (2) essa integração implica em uma dinâmica de gestão do cuidado, que para ser efetiva necessita transversalizar e conectar ações e serviços que não só são distintos em sua composição tecnológica (podem ter mais ou menos equipamentos e ou profissionais) como se encontram em distintos níveis de atenção; (3) construção da integralidade a partir da ação complementar de serviços e equipes, construindo linhas de cuidado, que garantam acesso a tecnologias/estratégias/profissionais/serviços em tempo oportuno. Assim, a ideia de rede pressupõem a construção, a partir de negociações, pactuações e contratos, de responsabilidades fazendo com que cada equipe, cada serviço perceba e garanta o seu trabalho no cuidado de pacientes. Em geral, o que se vê é a segmentação do cuidado em níveis de atenção (atenção básica, ambulatorial especializada e atenção hospitalar), cujos serviços têm baixíssima capacidade de gerir longitudinalmente os casos, que tendem a “se perder” em itinerários erráticos e pouco lógicos. Há pouca – ou nenhuma – troca entre equipes da AB/ESF e ambulatórios especializados e hospitais e vice-versa, o que produz uma série de efeitos ruins, como riscos para o paciente, gasto ineficaz, falta (relativa) de recursos terapêuticos escassos (em geral especializados). Aqui se coloca uma primeira questão de segurança para o paciente: nem sempre se consegue no tempo oportuno acessar serviços para se confirmar ou completar diagnósticos, que tendem a ser mais demorados que o necessário; por falta de dispositivos de conexão entre serviços/equipes (e em geral não nos falta telefone, internet, nem sistema de informação), há tendência de repetição de exames, as vezes invasivos, o que coloca o paciente em riscos desnecessários; da mesma forma, como os processos de comunicação são precários, recursos como segunda opinião, ou opinião formativa não são habituais, determinando tomada de condutas nem sempre as mais aconselhadas para o caso. Nessa perspectiva, rede é a produção de conexão/conectividade entre serviços, se apresentando como recuso valioso para se ganhar tempo. E bem sabemos o quanto esse recursos escasso – o tempo – é vital em muitas patologias, as vezes decisivo no desfecho do caso. Mas o que tem sido feito no SUS para buscar se resolver ou contornar essas questões? O SUS tem recebido nos últimos anos uma série de aportes/inovações gerenciais, buscando romper com a baixa conexão – interação – comunicação entre serviços. Entre eles: (1) ampliação da oferta e qualificação da atenção básica, sobretudo pela ESF. Sabemos que a cobertura e efetividade da AB é fundamental para se garantir universalidade no acesso. O Brasil já conta com uma rede bastante forte de serviços de saúde, mas na minha opinião há pressupostos na AB que deveriam ser melhor observados para que a resolubilidade/efetividade das práticas de saúde fossem aumentadas: - todo brasileiro/ra tem o direito a uma equipe de saúde que lhe cuidará ao longo da vida, ou seja, que o acesso e o cuidado não ocorra apenas em episódios/queixas, mas deve assumir a responsabilidade pelo cuidado integral a partir da construção de fortes laços de confiança entre equipe/profissionais – usuário/família/comunidade; - para tanto deveria garantir que a AB desenvolva pelo menos três funções/tarefas, tomadas como responsabilidades das equipes: (i) atender demanda espontânea (acolher quem chega); (ii) fazer clínica programada; e (iii) fazer atividades de saúde coletiva, na comunidade. Sem isso, muito provavelmente ou a equipe ficará presa na demanda, que pressiona por atendimento, ou restará refém da lógica normativa dos vários programas do MS, das SES e das próprias SMS; - AB não dá alta para paciente. Em que pese seja frequentemente necessário buscar aporte de outros serviços/equipes/profissionais de outros níveis de atenção, a atenção o básica é o lócus/ethos do vínculo preferencial do sujeito com o sistema de saúde. Dar alta é sinônimo responsabilização; de baixa mas fala também de certa concepção de atenção básica, em geral tão pobre quanto aqueles a que ela se destina. Logo uma política/estratégia de atenção mínima. - (2) Além de se buscar ampliar e qualificar a atenção básica, a construção de redes temáticas, tem sido apresentada como alternativa de buscar maior unidade e sistematicidade em grandes áreas, como a obstetrícia e pediatria (na Rede Cegonha), a Saúde Mental (na RAPS), a urgência e emergência (na RUE), entre outras. Esses redes, que devem dialogar entre si, buscam integrar no território serviços/equipes, ofertando ações que são complementares e em seu conjunto buscam garantir atenção integral; (3) Apoio e maior aporte de recursos (de todas as ordens) para que a atenção básica seja mais efetiva: - NASF, que apoia ESF não apenas como recursos clínicos especializados (acesso a especialistas), mas que tem por missão ajudar as ESF na resolução de problemas, como excesso de filas, gestão dos processos de trabalho, conflitos nas relações de trabalho, entre outros; - Telessaúde, dispositivos essencial que amplia não só a efetividades das ESF, como torna o trabalho clínico mesmo solitário, como estimula e desafia a equipe na resolução/melhor manejo de casos complexos; - introdução de dispositivos de gestão interequipes e interserviços, colocando em contato equipes/serviços de diferentes níveis e equipes de um mesmo território, por exemplo, para que juntos teçam redes colaborativas e cooperativas; disponibilização de recursos financeiros, sobretudo do MS, para se construir, reformar, equipar e ampliar Unidades Básicas da Família, constituindo-se serviços mais bem qualificados para que ESF atuem de forma mais digna, diminuindo em parte o sofrimento gerado pelo exercício do trabalho em lugares as vezes muitos precários. Todas essas medidas, se acredita, melhoram a capacidade de acolher, de cuidar e de se lidar com saúde de pessoas/comunidades, o que certamente se reverte também em mais e melhor saúde para as pessoas, garantindo melhor segurança tanto para os usuários, como também para os trabalhadores da saúde, que passam a contar com novos recursos para realizar seu trabalho. Assim, eu diria que a um primeiro nível de segurança do paciente que envolve a organização do sistema de saúde, cujos serviços e equipes podem a contar com saberes e expertises agregados aos seus, bem como acesso mais livre (que na saúde significa dizer regulado) a recursos estratégicos para garantir diagnósticos e cuidado adequado em tempo oportuno para os pacientes e usuários com que se contrata corresponsabilidades. Por outro lado, quando falamos em redes de produção de saúde, não podemos reduzir a discussão ao campo da ações sanitárias. Isso porque o conceito de saúde adotado no Brasil se amplia, e a produção de saúde passa a ser derivada, então, de um conjunto mais amplo de situações e condições, entre as quais de vida. Embora eu não vá me dedicar a essa questão, é importante ressaltar que a saúde de um povo está intimamente ligada a capacidade da sociedade produzir e distribuir riquezas. E nesse campo, bem sabemos, em que pese avanços importantes na última década, quando milhões de brasileiros saíram da miséria absoltuta, continuamos a ser um dos países que mais concentram renda e riqueza. Ou seja: temos poucos, mas muitos ricos e muitos muito pobres. Boa parte dos descuidados, da deshumanização, dos descasos, da baixa responsabilização, tem um viés de classe, sendo os mais pobres aqueles que mais sofrem. Basta percebermos alguns indicadores, como a violência contra adolescentes e jovens negros, a mortalidade materna entre mulheres negras (vejam que além de uma dimensão de classe, temos também uma dimensão de raça e cor em nosso país) como o cuidado adequado em agravos potencialmente ameaçadores da vida, que pelas oportunidades de acesso aos serviços são muitos distintos entre classes sociais. Mas há um terrível paradoxo nessa questão, pois aqueles que conseguem acessar serviços de saúde, seja porque compram diretamente, ou porque possuem planos privados de saúde, estão submetidos a riscos – logo falo de segurança – por um potencial maior de acesso a práticas, muitas vezes, iatrogênicas e regidas sob a lógica da medicalização, que acabam por determinar consumo desnecessário, pois a forma dominante de pagamento é a remuneração de serviços e profissionais por procedimentos (em geral é assim que se paga os serviços) induz a um consumo irracional de recursos médicos. Aproveito essa passagem para entrar de um segundo nível da segurança do paciente. Em geral quando falamos de segurança do paciente nos referimos a um conjunto de condutas e técnicas (boas práticas), que uma vez observadas afastam possibilidades tanto de erro (médico e de outros profissionais), como da produção de efeitos não desejados (e não esperados por nossa ação profissional em instituições de saúde), a exemplo das infecções hospitalares. Certamente nos preocuparmos e nos ocuparmos para evitar erros médicos, que sendo erro é evitável, e efeitos indesejados da ação profissional é algo muito importante. Todavia, o que merece discussão é como temos feito a ação para se evitar isso nas organização de saúde. Uma primeira constatação: em que pese esforços pouco tem se buscado compreender os fatores multicausais em uma rede complexa de multicausalidade que gera tanto o erro quanto os efeitos indesejados. Em geral têm sido atribuídos a certa inobservância de protocolos e regras, cuja responsabilidade é de um ou de outro profissional. Assim, há uma tendência de se culpabilizar, de se responsabilizar individualmente o trabalhador da saúde, que precisa, então ser punido e/ou reciclado ou sensibilizado. Duas medidas que geral pouco geram de efeito positivo. A punição exemplar, além de fazer sofrer a sanção a que cometeu o erro, faz permanecer na memória dos outros como ação possível face a reprodução do erro. Assim, pouco se toma como aprendizado, a como medida de prevenção de novos episódios. Reciclar – que é uma palavra forte – implica em remodelamento, ou seja, o sujeito sofrerá ação que o capacite, já que constatado é incapaz. Mais uma vez, se localiza o problema em uma pessoa. Penso que a segurança do paciente possa estar comprometida quando esse tipo de atitude e comportamento são hegemônicos em um serviço de saúde. Não advogo que não se possa nem que não se deva responsabilizar individualmente, até porque respondemos civil e criminalmente por nossa autonomia profissional. Mas acho que seria mais efetivo se, compreendendo melhor o fenômeno, pudéssemos agir de forma menos moralista e culpabilizante. infantilizantes. Ou com capacitações O trabalho em saúde é sempre coletivo e depende de uma rede complexa de relações profissionais, interpessoais e institucionais. Logo a segurança do paciente está na dependência interligados. de uma série de fatores A Política Nacional de Humanização, que em meu entendimento é a maior estratégia no SUS para a segurança do paciente, nos oferece uma série de dispositivos para uma melhor gestão dos processos (coletivos) de trabalho, sem o qual os diretos do paciente tendem a ser negligenciados. Boa parte das questões que envolvem a segurança do paciente em instituições hipercomplexas como os hospitais se resolvem, em grande parte, por regramentos e normativas, que fundadas em princípios técnicos e ético, ofertam sistematicidade para a organização e funcionamento dos serviços. Regras de condutas para pacientes e acompanhantes; regras de segurança que devem ser observadas pelos profissionais de cada uma das unidades de produção, em cada umas das situações possíveis de trabalho. Aliás, nesse aspecto nossa obsessividade é exemplar: nossas instituições são feitas de um cipoal sem fim de regras. E há estudos que dizem que boa parte delas não encontra qualquer amparo técnico, significando que colocamos restrições considerando nossas necessidades e interesses como profissionais, pouco deixando espaço para que necessidades e interesses de usuários e familiares comparecem. Mas eu dizia que a segurança depende em parte do regramento que normatizamos nos serviços de saúde. E qual seria a outra parte? A resposta advém da constatação de que a segurança do paciente, protegido do erro e da produção de efeitos não desejados (infecções, quedas, não observância de boas práticas etc) não advém da falta de regramento, mas do seu não cumprimento. Disse também que a saída não deveria se restringir a punição e reciclagem, muitas vezes de ordem moral e sobre o trabalhador. O que falta então e qual é a oferta da PNH? A PNH propõe a partir do método da inclusão, princípios para estruturar novos modos de gerir e novos de cuidar nos serviços de saúde. Não separar a gestão do cuidado, acionar o protagonismo de (todas) as pessoas em situação de trabalho e acionar processos de comunicação mais transversais, são princípios que ordenariam a oferta de dispositivos de gestão da organização e dos processos de trabalho. O trabalho em saúde, como disse acima é coletivo. Mas é certo dizer também que pouco compartilhado e regido sob o signo da divisão social e técnica do saber, que constrói territórios de saber-poder. E territórios de pertença, logo de exclusão. Territórios identitários. O que a PNH propõe, sem desconsiderar núcleos de saber e responsabilidades técnicas distintas entre os diversos trabalhadores da saúde, é criar modalidade mais coletivas de trabalho, que permitam a construção de linhas de responsabilização a partir de contratos mais coletivos e compartilhados de trabalho. Essa medida – nada simples – permitirá que os diversos trabalhadores possam conformar de forma mais efetiva equipes de trabalho (em geral não temos equipes, mas aglomerados profissionais). Para facilitar o exercício mais compartilhado, propõe, seguindo sugestão do Professor Gastão Campos da Faculdade de Medicina da UNICAMP, uma mudança na lógica da gestão, reunindo os trabalhadores de uma mesma área/setor em Unidade de Produção, a qual é cogerida e cuja coordenação participa do Colegiado de Gestão do hospital, por exemplo. Essa dinâmica de cogestão do trabalho em equipe permite que todos os trabalhadores participem tanto do processo de organização do trabalho, como, a partir disso, ampliar sua capacidade de contrair responsabilidades. Até porque, na perspectiva da PNH, a reorganização dos processos de trabalhos ocorre mediante a introdução diretrizes, os quais vão dispositivos. constituindo determinados As principais diretrizes da humanização são o acolhimento, a clínica ampliada, a valorização do trabalho e do trabalhadore a defesa dos direitos dos usuários e suas redes sociais, entre outros. Esse diretrizes se apresentam como valores, os quais se corporificam em dispositivos, que nada mais são que arranjos de trabalho, ou seja, ofertas para se redefinir modos de cuidar e de gerir. A gestão mais compartilhada e a introdução/reafirmação de valores éticos na organização do trabalho é, em nossa opinião, uma poderosa estratégia de proteção dos usuários, portanto afirmativa de uma diretriz fundamental que é a defesa e garantia da segurança do paciente. Segurança essa que não se faz sem a própria presença do usuário em processos de contratação de corresponsabilidades, quando ele, também, assume compromissos no processo de produção de saúde, do cuidar de si.