estudos legislativos 2010__v2_final

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ESTUDOS
Legislativos
novembro
2010
ano 4
nº4
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
MESA
Presidente: Dep. GIOVANI CHERINI - PDT
1º Vice-Presidente: Dep. MARQUINHO LANG - DEM
2º Vice-Presidente: Dep. NÉLSON HÄRTER - PMDB
1º Secretário: Dep. PEDRO WESTPHALEN - PP
2º Secretário: Dep. LUIS AUGUSTO LARA - PTB
3º Secretário: Dep. PAULO BRUM - PSDB
4º Secretário: Dep. ADÃO VILLAVERDE - PT
ESCOLA DO LEGISLATIVO
Presidente: Dep. ADÃO VILLAVERDE
Direção: CÁRMEN LÚCIA DA SILVEIRA NUNES
Coordenação da Divisão de Publicações:
VANESSA ALBERTINENCE LOPEZ
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do
Assembleia Legislativa
Estado do Rio Grande do
Escola do Legislativo
Deputado Romildo Bolzan
Divisão de Publicações
Ano
Porto Alegre
4 – N.º 4 – 2010
Sul
Revista Estudos Legislativos – Assembleia Legislativa do Estado do
Rio Grande do Sul
Porto Alegre
Ano 4 – N.º 4 – 2010
Publicação oficial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul,
conforme Resolução nº 2942/2005
ISSN: 1980-2951
Periodicidade: anual
Editora Responsável
Profª. Drª. Sinara Porto Fajardo
Conselho Editorial
Prof. Dr. Alfredo Culleton - Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Prof. Dr. Enrique Serra Padrós – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS
Prof. Dr. Luís Gustavo Mello Grohmann - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
- UFRGS
Prof. Dr. Ingo Sarlet - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS
Prof. Dr. José Luís Bolzan de Moraes - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS
Prof. Dr. Manuel Calvo García - Universidad de Zaragoza - UNIZAR – Espanha
Prof. Ms. Marco Antonio Karam Silveira – Assembleia Legislativa do Rio Grande do
Sul - ALERGS
Profª. Drª. Maria Luisa Gastal - Universidade Nacional de Brasília - UNB
Prof. Dr. Rildo Cosson - Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da
Câmara dos Deputados - CEFOR
Profª. Drª. Teresa Picontó Novales - Universidad de Zaragoza - UNIZAR - Espanha
Prof. Dr. Vladimir Araújo - Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - ALERGS
Prof. Ms. Wremyr Scliar - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS
Comissão Editorial
Cármen Lúcia da Silveira Nunes - Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan
Fernando Guimarães Ferreira - Procuradoria
MariaAvelina Fuhro Gastal - Superintendência Legislativa
Marinella Peruzzo - Superintendência de Comunicação Social
Sinara Porto Fajardo - Superintendência Geral
Sônia Domingues Santos Brambilla - Superintendência de Comunicação Social
VanessaAlbertinence Lopez - Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan
Pareceristas ad hoc
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Dra. Denise Fagundes Jardim
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Ms. Juliano Heinen
Ms. Marcos Jorge Catalan
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Dra. Maria Palma Wolff
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Dr. Paulo Leivas
Dra. Sandra Martini Vial
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Marinella Peruzzo
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Supervisão Técnica
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Diagramação: Sérgio Santos
Projeto da Capa: André Sardá e Sérgio Santos
Divisão de Comunicação Visual da Assembleia Legislativa
Foto da Capa: Luiz Guerreiro / Painéis de Vasco Prado na fachada do Palácio
Farroupilha, desde o Memorial do Legislativo.
Endereço para correspondência
Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan
Praça Marechal Deodoro, nº 101 – Solar dos Câmara
Cep. 90010-900 Porto Alegre/RS – Brasil
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Revista Estudos Legislativos / Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul ;
coordenação Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan. – Ano 4, n.
4, 2010. – PortoAlegre: CORAG, 2010- ---v.
Anual. ISSN: 1980-2951
Publicação oficial da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul,
conforme Resolução n.º 2.942 de 8 de julho de 2005.
1. Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. 2. Escola do
Legislativo Deputado Romildo Bolzan. 3. Política – Periódico. 4. Poder
Legislativo – Periódico. 5. Direito – Periódico. I. Título.
CDU 342.52 (05)
CDU: edição média em língua portuguesa
Biblioteca Borges de Medeiros / ALRS
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SUMÁRIO
EDITORIAL...................................................................................11
ARTIGOS ....................................................................................... 15
Confiança, virtude e perdão como fontes do direito
Ricardo de Macedo Menna Barreto e Leonel Severo Rocha .....17
Os subterrâneos do senso comum teórico dos juristas
Fernando Guimarães Ferreira......................................................41
Cidadania procedimental: a idealização habermasiana no execício
legislativo
Carolina Salbego Lisowski e Santiago Artur Berger Sito ..........71
Lei delegada
Marcelo Azevedo Chamone...........................................................95
Justiciabilidade das políticas públicas: desafios e possibilidades
Filipe Madsen Etges ....................................................................125
O princípio do caráter não automático dos efeitos das penas e a
inadmissibilidade de suspensão dos direitos políticos do condenado:
desconstrução discursiva e aproximação comparativa com o exemplo
português
Salah Hassan Khaled Junior e Fabrício Martinatto da Costa ..........159
Regras eleitorais e partidos políticos
Guilherme Andres Martinez Perin .............................................189
Impacto da coligação em eleições proporcionais: o caso da Câmara de
Vereadores de Pelotas (1988-2008)
Alvaro Augusto de Borba Barreto...............................................215
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EDITORIAL
A Revista Estudos Legislativos vem se firmando, pouco a pouco,
como um veículo de propostas cientificamente válidas no panorama dos
debates políticos e jurídicos contemporâneos em torno do parlamento.
Neste volume, apresenta-se um conjunto abrangente e representativo
de artigos que tratam de temas da filosofia do direito, da democracia, do
processo legislativo e do sistema eleitoral.
Ricardo de Macedo Menna Barreto e Leonel Severo Rocha refletem
sobre fundamentos simbólicos do direito, determinantes para a construção do
social e para a formação das estruturas do sistema jurídico que se constitui na
modernidade.
Fernando Guimarães Ferreira busca aprofundar a compreensão do
fenômeno jurídico, sustentando que o discurso científico, supostamente nãoideológico, conduz a um discurso jurídico igualmente cínico e salientando a
necessidade de uma reflexão crítica e desalienante das estruturas de poder do
campo do Direito.
Carolina Salbego Lisowski e Santiago Artur Berger Sito observam
aspectos da teoria habermasiana que devem ser considerados para que o
legislativo brasileiro acolha a voz dos destinatários das normas, reputando-os
como sujeito-autor e efetivando, assim, o exercício real da democracia.
Marcelo Azevedo Chamone examina o processo legislativo da lei
delegada, propondo que este instrumento normativo possa substituir, com
fortes benefícios à democracia, o uso abusivo da medida provisória, na
medida em que, diante da inevitabilidade da produção legislativa do
Executivo, permite este tipo de norma um debate amplo e plural.
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Filipe Madsen Etges entra no debate da crise enfrentada pela
prestação jurisdicional quando atua com foco na viabilização dos direitos
sociais que dependem de implementação de políticas públicas, propondo que
a judicialização das políticas sociais deve passar por decisões construídas
mais horizontalmente, a partir da interlocução permanente entre
magistrados, administradores, técnicos, universidades e associações da
sociedade civil.
Salah Hassan Khaled Junior e Fabrício Martinatto da Costa
sustentam que a suspensão dos direitos políticos do condenado é um resto
anacrônico de uma concepção de pena incompatível com o Estado
Democrático de Direito, defendendo uma abertura dogmática que contribua
para repensar a questão da cidadania e da própria humanidade da população
prisional.
Guilherme Andres Martinez Perin discute as implicações das regras
eleitorais sobre o sistema partidário, afirmado que perspectivas deterministas
carecem de comprovação empírica relevante e que receitas normativas
parecem ter pouca relação com a realidade, diante dos índices econômicos e
sociais do país.
Alvaro Augusto de Borba Barreto apresenta um estudo de caso
centrado na distribuição de cadeiras nas eleições para a Câmara de
Vereadores de Pelotas/RS, examinando as motivações e as consequências das
coligações na fragmentação do plenário.
Acima de tudo, esta edição é em homenagem a Joaquin Herrera
Flores, jovem e brilhante membro do Conselho Editorial da Revista Estudos
Legislativos, que no dia 2 de outubro de 2009 faleceu em Sevilha, na
Espanha. Desde o primeiro volume desta Revista, o Professor Joaquin
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manifestou, no discurso e na prática, seu entusiasmo e sua disposição de
sempre colaborar. A ele, nosso reconhecimento e nossa promessa de honrar
seu trabalho com o contínuo aperfeiçoamento deste projeto.
Sinara Porto Fajardo,
Editora
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Artigos
CONFIANÇA, VIRTUDE E PERDÃO
COMO FONTES DO DIREITO
Ricardo de Macedo Menna Barreto¹
Leonel Severo Rocha²
RESUMO
Este texto busca observar a confiança a partir de um conto oriundo da Terra
Santa, onde o soberano detentor do direito de vida e morte de seus súditos se
submete ao poder da palavra dada. A partir daí, percebe-se como a confiança
opera em três dimensões (pessoal, social e sistêmica) para a produção do
sentido da justiça. A confiança sistêmica, nesse contexto, é determinante para
a formação das estruturas do sistema jurídico positivo que se constituirá na
modernidade.
Palavras-chave: Confiança Sistêmica. Direito. Literatura.
ABSTRACT
This text seeks to observe the trust from a story coming from the Holy Land,
where the holder of the sovereign power of life and death over his vassals
subjected to the power of the word. From there, it is perceived as the trust
operates in three dimensions (personal, social and systemic) to produce the
sense of justice. Systemic trust in this context is crucial for the formation of
the structures of the legal system positive that will be in modernity.
Keywords: Systemic Trust. Law. Literature.
¹ Mestrando em Direito pela UNISINOS - Bolsista CAPES. Membro do Grupo Teoria do
Direito – CNPq/UNISINOS. Integrante do Projeto de Pesquisa Direito Reflexivo e
Policontextualidade.
² Dr. EHESS - Paris-França e Pós-Dr. UNILECCE - Itália. Professor Titular da UNISINOS.
Líder do Grupo Teoria do Direito – CNPq/UNISINOS.
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1 Introdução
A confiança tem uma presença silenciosa
em todas as interações sociais.
(Abdul-Rahman)
A confiança é um mecanismo privilegiado para a produção de
sentido no Direito, sendo um importante pressuposto simbólico para a
construção do social. Daí o estudo da confiança ser de suma importância para
4
se cruzar o umbral³ que envolve questões jurídico-sociais complexas . Na
5
presente análise, propõe-se a releitura de um antigo e ilustrativo conto que
³ Umbral é o espaço de significação constituído pelas sombras que invadem o habitante.
4
Algumas dessas questões, notadamente no âmbito da dogmática contratual, já foram
observadas em momentos anteriores. Para tanto, ver: MENNA BARRETO, R; ROCHA, L.
S. Confiança nos Contratos Eletrônicos: uma Observação Sistêmica. Revista Jurídica
Cesumar, Maringá, v. 7, n. 2, p. 409-425, jul./dez. 2007 e MENNA BARRETO, R.. Contrato
Eletrônico como Cibercomunicação Jurídica. Revista DIREITO GV, São Paulo, v. 5, n. 2,
p. 443-458, jul-dez, 2009.
5
Em um momento propício, por se falar muito em Direito e Literatura, traz-se um admirável
conto que contempla, no entendimento dos autores dessa análise, uma relação sistêmica de
confiança em toda sua complexidade. Sobre Direito e Literatura, ver especialmente as
contribuições de OST, François. Raconter la Loi. Aux sources de l'imaginaire juridique.
Paris: Odile Jacob, 2004, o posterior Sade et la Loi. Paris: Odile Jacob, 2005 e o recente
Traduire. Défense et illustrations du multilinguisme (Ouvertures). Paris: Fayard, 2009.
Aliás, a relevância da proposta levou François Ost a ministrar regularmente um módulo de
Direito e Literatura na Universidade Saint Louis, em Bruxelas. Uma visão privilegiada do
Direito interpretado a partir da Literatura encontra-se também no livro de POSNER,
Richard. Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998. Igualmente,
poder-se-iam citar GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: ensaio de
síntese teórica. Coleção Direito e Arte, organizada por Leonel Severo Rocha e Germano
Schwartz. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008 e AMADO, Juan Antonio Garcia. A
Lista de Schindler. Sobre Abismos que o Direito Dificilmente Alcança. Tradução de
Ricardo Menna Barreto e Germano Schwartz. Coleção Direito e Arte, organizada por Leonel
Severo Rocha e Germano Schwartz. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Finalmente,
vale observar que a utilização de contos arábicos (envolvendo camelos!), para a observação
do Direito moderno, parece ser uma interessante e construtiva metáfora. Nesse sentido,
destaca-se o já conhecido artigo de LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo
Camelo: do sentido de uma análise sociológica do Direito. In: ARNAUD, André-Jean;
LOPES JR. Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2004 e a igualmente válida tentativa de DE GIORGI, Raffaele.
Direito, Tempo e Memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
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demonstra como a confiança opera em distintos âmbitos do sentido.
Na história, serão observadas as três dimensões da confiança. Uma
observação sistêmica da confiança depende de investigações tanto em nível
comportamental como de sistemas sociais. O autor do conto trabalha com
três tópicos argumentativos básicos para a elaboração do texto: a confiança, a
virtude e o perdão. Isso permite que se estabeleça uma equivalência funcional
metalinguística com as metáforas da confiança. Esse ponto foi dividido,
6
portanto, em três partes : confiança pessoal, confiança social e confiança
sistêmica, buscando, com isso, observar a complexa relação de confiança
surgida entre os personagens.
7
Passar-se-á, pois, ao conto. Seu autor é J. E. Hanauer , um religioso
cristão que viveu boa parte da vida na Terra Santa. Hanauer, a partir de
fragmentos da tradição oral muçulmana, narra uma antiga história que, na
8
ausência de um título , será assim nomeada ...
6
É um tanto curioso que o número três se encontre, simbolicamente presente, na obra de
diferentes autores. Por exemplo, para Luhmann, são três as dimensões de sentido: temporal,
social e prática (LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984). Na lógica das formas de Spencer-Brown, são três os valores que
constituem uma operação de reprodução: a indicação (ou espaço marcado), o espaço não
marcado e a operação de separação do espaço marcado do não marcado (SPENCERBROWN, G. Laws of Form. New York: E. P. Dutton, 1979). Já para Peirce, na semiótica, o
signo (ou representamen) está ligado a três coisas: o fundamento, o objeto e o interpretante
(PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 46). Isso para
citar apenas três exemplos. Uma explicação possível para o sentido do número três é dada por
Carl G. Jung (citando Eduard Zeller): "A unidade é o primeiro elemento do qual surgem
todos os outros números, é nela, portanto, que devem estar juntas todas as qualidades opostas
dos números: o ímpar e o par; o dois é o primeiro número par, o três é o primeiro número
ímpar e também perfeito, porque é no número três que aparece, pela primeira vez, um
começo, um meio e um fim". Conforme ZELLER, Eduard. Die Philosophie der Griechen.
2. ed. Tübingen e Leipzig, 1856-68, p. 292, in: JUNG, C. G. Interpretação Psicológica do
Dogma da Trindade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 7.
7
HANAUER, J. E. Mitos, Lendas e Fábulas da Terra Santa. São Paulo: Landy, 2005.
8
Importante destacar que Hanauer não nomeia todos os contos e histórias contidos no livro,
daí a ideia de nomear o conto.
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2 E a Confiança não Pereceu...
Camelo e Morte. "Certa vez, um rebanho de camelos passava por
um pomar cujo proprietário estava sentado sobre uma cerca de pedra, quando
um dos animais agarrou um dos ramos de uma árvore, rompendo-o com os
dentes. Vendo isso, o proprietário do pomar pegou uma pedra e lançou-a
contra o camelo, sendo tão preciso em sua pontaria, que o animal caiu morto.
Diante de tal cena, o dono do camelo, furioso com a perda, pegou a mesma
pedra e lançou-a contra o proprietário do pomar, matando-o imediatamente.
Tomado de horror pelo seu ato, o dono do rebanho fugiu, mas foi alcançado
pelos filhos do homem morto. Voltando à cena da tragédia, próxima ao
acampamento do Califa Omar ibn el Khattab, os filhos do morto, não
querendo ouvir falar em indenização, exigiram que o dono dos camelos - que
alegava ter agido sob provocação - fosse decapitado."
O Julgamento. "Era de costume, naquela época, que a execução do
criminoso se desse imediatamente após a condenação à pena de morte. O
procedimento era o seguinte: uma pele – conhecida como nut'a - era
estendida na presença do monarca, onde a pessoa a ser decapitada se
ajoelhava sobre ela com as mãos para trás. O carrasco, colocado por trás do
condenado com sua espada desembainhada, clamava em voz alta: 'Ó
Comandante dos Crentes, está realmente decidido que fulano deixe este
mundo?' Se o Califa respondesse 'sim', o executor repetia a pergunta
novamente. Permanecendo a decisão, na terceira e última vez, se o monarca
não revogasse a resposta, o prisioneiro era decapitado."
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A Promessa. "Diante dessa situação, o condenado, vendo a morte
próxima, pediu encarecidamente ao Califa que lhe desse três dias de folga
para ir à sua tenda, situada em uma localidade distante, a fim de organizar
situações familiares, jurando que retornaria em três dias. O Califa assentiu,
dizendo que, na hipótese de ele faltar com a palavra, ele deveria encontrar um
infeliz para morrer no seu lugar. Diante de uma multidão de desconhecidos, o
pobre homem viu a nut'a sendo trazida pelo executor, que já se preparava para
amarrar-lhe as mãos, quando o imputado, então, gritou desesperadamente:
“Será que a raça dos homens virtuosos não mais existe?”
A Virtude. "Fez-se silêncio absoluto. Ao repetir a pergunta, eis que
surgiu o nobre Abu Dhur, um dos sohabas, companheiros do Profeta. Dando
um passo adiante, Abu Dhur pediu ao Califa permissão para ser o eventual
substituto do condenado. O monarca aceitou, alertando-o de que pagaria com
a própria vida no caso de o assassino não retornar no prazo previsto. O
condenado foi libertado e sumiu em desabalada correria em poucos instantes.
Três dias após o episódio, o homem não retornara e, não acreditando
que ele o faria, o Califa ordenou que Abu Dhur pagasse a penalidade. Em
meio a choros e lamentações dos parentes do nobre, iniciou-se o
"procedimento" de execução. Por duas vezes, o executor fez a fatídica
pergunta ao governante, que respondeu com um severo 'sim'. Antes que a
(terceira) pergunta fatal fosse feita, alguém gritou:
A Confiança. 'Parem, em nome de Alá: vejam quem vem correndo!'
A um sinal do Califa, o carrasco parou e, para surpresa de todos, o homem
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condenado à morte, três dias antes, aproximava-se correndo. Praticamente
sem fôlego e desfalecendo, o homem gritou: 'Louvado seja Alá'. Em resposta,
o monarca questionou: 'Tolo, por que retornou? Caso tivesse fugido, o seu
substituto teria morrido no seu lugar, e você estaria livre'. Respondeu o
homem: 'Eu retornei não só para provar que a raça dos virtuosos não
desapareceu, mas para provar que a raça dos homens confiáveis ainda existe'.
'Por que você não foi embora de vez?' Insistiu o monarca, incrédulo.
'Como eu lhe disse, ó Califa, voltei para provar que a raça dos
homens confiáveis não pereceu.'
'Explique-se', afirmou o Califa.
'Algum tempo atrás, uma pobre viúva veio até mim e me pediu para
guardar alguns objetos de valor. Como eu tinha que viajar a negócios, levei
estas comigo para o deserto e as escondi sob uma grande rocha, em um local
onde ninguém, além de mim, poderia encontrá-las. Lá estavam os pertences
da viúva quando fui condenado a morrer. Se minha vida não tivesse sido
poupada por alguns dias, eu teria morrido com meu coração pesado, pois o
conhecimento do esconderijo morreria comigo, a mulher estaria
irreparavelmente prejudicada, e meus filhos teriam ouvido a viúva
amaldiçoar minha memória, sem meios para esclarecer-lhe meu trágico fim.
Porém, agora que solucionei essa questão pessoal e devolvi à mulher seus
objetos de valor, estou pronto para morrer com o coração leve.'
Ao ouvir isso, Omar virou-se para Abu Dhur e lhe perguntou: 'Este
homem é seu amigo ou parente?'
Wallahi! Respondeu Abu Dhur: 'Eu lhe asseguro, ó Califa, que eu
jamais havia posto os olhos sobre ele até três dias atrás.'
'Então, por que você foi tão tolo a ponto de arriscar sua vida? Pois, se
ele não tivesse retornado, eu determinaria que você morresse no lugar dele.'
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'Eu fiz isso apenas para provar que a raça dos homens virtuosos não
desapareceu, respondeuAbu Dhur.'"
O Perdão. "Ao receber essa resposta, o Califa permaneceu um
tempo calado; então, virando-se para o homem ajoelhado, declarou: 'Eu o
perdoo, pode ir.'
'Por que, ó Califa', perguntou um velho e honrado xeique. Omar
respondeu:
'Porque, como ficou provado que a raça dos virtuosos e dos homens
de confiança não desapareceu, só me resta demonstrar que a raça dos homens
clementes e generosos ainda está viva. Por isso, não só perdoo este homem,
como pagarei o resgate da sua vida com meus próprios recursos'".
3As Três Dimensões da Confiança
Entende-se que o conto acima narrado possui entrelaçamentos
designativos suficientes para a estruturação de uma relação que contemple a
confiança em sua tridimensionalidade.
3.1 Primeira Dimensão: Confiança Pessoal
Encontra-se, no misticismo chinês de Lao Tse, uma sábia e inspirada
frase que resume muito bem a primeira dimensão da confiança: "Se não
confiares o suficiente nas pessoas, elas não poderão confiar-te nada". Essa
9
frase, do Tao Te King , dá importantes pistas acerca da primeira dimensão da
confiança. Nela o indivíduo precisa confiar em sua própria confiança em
9
TSÉ, Lao. Tao Te King. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989, p. 71.
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outra pessoa, atribuindo à (sua) confiança a habilidade para motivar os
outros. Tal habilidade (reflexiva) pode ser comparada à característica
10
capacidade que o indivíduo tem de pensar sobre seus próprios pensamentos .
Pois bem, observa-se que, em certa passagem do conto, o homem
condenado à morte, tomado de um sentimento de completo desespero, pede
ao Califa "três dias de folga para ir à sua tenda, que ficava em uma localidade
11
distante, para organizar questões familiares" . Esse pedido poderia soar a um
estranho como um total disparate. Entretanto, diante da proximidade do
fatídico momento, o homem, para conseguir um voluntário que se dispusesse
a (eventualmente!) perder a cabeça em seu lugar, precisaria confiar na
existência de uma comunidade fundada na virtude da palavra. Não obstante,
para tanto, precisaria confiar em sua confiança: essa era uma condição
interna para que o dono dos camelos obtivesse a confiança do Califa Omar.
A confiança, operando nesse nível, pode ser entendida inicialmente
como um mecanismo interno, reflexivo. Só depois, exterioriza-se e alcança
outro indivíduo (segunda dimensão da confiança). Destaca-se que, para
Luhmann, "solamente su propia confianza original le ofrece la posibilidad de
proponerla como una norma de que su confianza no debe ser quebrantada, y
12
de este modo, traer al otro a su lado" .
Naquele momento, a morte por decapitação pareceria, para os
incrédulos, como certa para o dono dos camelos. A assimetria de poder
absoluto na dialética entre o Amo e o Súdito, isto é, entre Califa Omar e o
condenado, só teve seu rumo desviado porque o dono dos camelos, ante a
decapitação, foi impulsionado por um ato de audácia da razão (reflexivo)
10
LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 120.
HANAUER, J. E. 2005, op. cit., p. 118.
12
LUHMANN, 1996, op. cit., p. 74.
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gerador da confiança. Poder-se-ia até afirmar: uma confiança em si mesmo .
Essa "confiança na confiança" é requisito necessário para que se chegue à
segunda dimensão da confiança. Uma vez se estabelecendo a confiança nessa
segunda dimensão, houve a possibilidade da ocorrência de um desfecho
diferente daquele para o qual a situação inicialmente apontava.
Aliás, a partir de estímulos oriundos da psicologia social, percebe-se
que desfechos sempre possuem dois componentes: recompensas e custos.
"As recompensas referem-se a todos os aspectos positivos do desfecho
(alegrias, prazeres, deleites etc.), e os custos, a todas as características
negativas (esforços exigidos, embaraço, frustração, perda de prestígio ou
14
estima etc.)” . Vale observar que, por vezes, o indivíduo, diante de situações
limítrofes, não consegue equacionar internamente o resultado (fazendo a
avaliação entre recompensas e custos), não obstante, os desfechos trarão
sempre esses dois componentes. Por isso, tanto a virtude como a confiança
permitem iluminar as sombras da tragédia.
A "recompensa" do dono dos camelos, naquelas circunstâncias, foi
demonstrar que ele também era confiável e virtuoso. E vivo! Quanto aos
custos: ele, a partir daí, sempre saberá que a impetuosidade pode gerar a
morte. O desfecho deste conto, pela ótica da psicologia social, fica, portanto,
o seguinte: a confiança é a melhor maneira para se encontrar uma saída,
mesmo onde ela tinha tudo para inexistir.
Destaca-se, assim, uma característica marcante da confiança: para
13
A expressão "confiança em si mesmo", de acordo com a matriz sistêmica, refere-se às
condições internas necessárias para que se construa a confiança, que são condições
igualmente dotadas de complexidade. Falando em termos funcionais: a confiança em si
mesmo corresponde à disponibilidade de mecanismos internos para a redução de
complexidade, isto é: de recursos internos disponíveis que, "no caso de uma desilusão da
confiança, podem ser colocados em ação, assumindo a tarefa de redução da complexidade e
solução de problemas" LUHMANN, 1996, loc. cit., p. 139.
14
HARRISON, Albert A. A Psicologia como Ciência Social. São Paulo: Cultrix,
Universidade de São Paulo, 1975, p. 396.
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Luhmann, a confiança só é possível em uma situação em que o eventual dano
pode ser maior do que a vantagem procurada. Confiar é necessário apenas se
um possível mau resultado fizesse o indivíduo pesar sua ação, pois, de outro
15
modo, o que se teria seria uma simples esperança . Percebe-se, na leitura do
conto, que a atitude confiante do dono dos camelos foi sopesada,
provavelmente oscilando entre a precipitação e a coragem.
3.2 Segunda Dimensão: Confiança Social
Como se observou, em um primeiro momento, o condenado fez-se
reflexivo confiando em sua confiança. Em outras palavras: conseguiu
efetivamente reduzir a complexidade em nível interno (psíquico). Mas isso
não significa que estão preenchidos os requisitos necessários para
caracterização de uma relação social de confiança, na qual figuram
16
necessariamente dois polos: alter e ego . Nesse caso, Alter precisa (a partir
da confiança em sua própria confiança – primeira dimensão) confiar na
confiança que ego possui nele. É isso que possibilita que alter baseie seus
17
planos de ação na confiança de ego . De certa forma, tanto no âmbito
individual como no social, está (ainda) se falando de relações humanas. Tais
relações orientam-se através de previsões. Para Watzlawick, Beavin e
15
LUHMANN, Niklas. Familiarity, Confidence, Trust: Problems and Alternatives. In:
GAMBETTA, Diego (org.) Trust: Making and Breaking Cooperative Relations, Electronic
Edition, Department of Sociology, University of Oxford, Chapter 6, pp. 94-107, 2000.
Disponível em: http://www.sociology.ox.ac.uk/papers / luhmann94-107.pdf Acesso em: 21
de jul. de 2008, p. 98.
16
Luhmann já demonstrou a complexidade advinda da interação entre alter e ego, observando,
com isso, a dupla contingência das relações sociais, em: LUHMANN, Niklas. Sociologia do
Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
17
LUHMANN, 1996, op. cit., p. 120.
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Jackson, da Escola de Palo Alto , "toda previsão está relacionada, de uma ou
19
outra maneira, com o fenômeno da confiança" .
No conto, o dono dos camelos, ao prometer voltar, obteve a
confiança do Califa Omar e de Abu Dhur, conseguindo os três dias
necessários para a resolução de questões familiares. O voto de confiança do
Califa dado ao condenado foi determinante para a tal resolução de problemas.
Por trás das aparências, sabe-se que todo procedimento decisório
apresenta outras razões. Alguns dos aspectos que motivaram o dono dos
camelos a fazer tal pedido podem ter sido ignorados inicialmente pelo Califa
(uma vez que não se pode participar da consciência do outro). Ainda assim,
tal fato não impediu, absolutamente, que este último outorgasse confiança. O
referencial mais concreto que o dono dos camelos fornecia ao Califa e aos
demais presentes, naquele momento, era a estranha necessidade de passar
"três dias fora para organizar as tais questões familiares".
Porém, o fato mais importante para o Califa, foi possuir um
substituto para perder a cabeça no lugar do condenado. Esta
corresponsabilidade, fiança, gerou uma confiança social ao difundir entre os
presentes a importância do Direito em atender aos compromissos pretéritos.
Isso estruturou um relacionamento comunicativo estabelecendo a
possibilidade de troca de papéis entre as pessoas, de modo temporário. Isto é,
18
Palo Alto é uma pequena cidade situada no estado americano da Califórnia, onde, bem
próximo dali, se encontra a Universidade de Stanford. Igualmente próximo, encontra-se o
hospital psiquiátrico da Veterans Administration, no qual Gregory Bateson trabalharia a
partir de 1949. Dez anos depois, em 1959, o psiquiatra Don Jackson funda, em Palo Alto, o
Mental Research Institute, no qual Paul Watzlawick trabalharia a partir de 1962, e que viraria
referência mundial em termos de pesquisa envolvendo psicologia, psiquiatria, linguística,
cibernética e comunicação. Para um interessante histórico acerca da Escola de Palo Alto,
recomenda-se a obra de WINKIN, Yves (Org.). La Nueva Comunicación. Selección de
textos de Bateson, Birdwhistell, Goffman, Hall, Jackson, Scheflen, Sigman e Watzlawick. 4.
ed. Barcelona: Editorial Kairós, 1994.
19
WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H.; JACKSON, Don D. Pragmática da
Comunicação Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São
Paulo: Cultrix, 2000, p. 204.
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ego pode ocupar o lugar de alter – mesmo que sob o fio da espada – desde que
20
isso possa ser revertido. Finalmente, essa relação de "dupla confiança" foi
incrementada com o surgimento da figura do nobre sohaba Abu Dhur, como
se perceberá no ponto seguinte. Perceber-se-á, igualmente, como a inclusão
de Abu Dhur e de alguns elementos simbólicos nesse episódio possibilitaram
a estruturação de uma relação de confiança sistêmica.
3.3 Terceira Dimensão: Confiança Sistêmica
A confiança sistêmica se relaciona com os meios de comunicação
simbolicamente generalizados, sendo uma característica própria de
sociedades complexas, diferenciadas. Não obstante o fato de o conto em
questão situar-se, ao que tudo indica, em um passado muito distante, ele
possui os elementos necessários para a observação de uma relação de
confiança sistêmica.
Diante de um alto grau de complexidade no mundo, supõe-se uma
multiplicidade de processos seletivos, o que faz com que a confiança
sistêmica surja como uma forma efetiva de redução de complexidade. Por
isso, para Luhmann, só se pode garantir "un mundo presente y simultáneo, si
la selección puede presentarse no sólo como resultado de las propias
acciones, sino también como la selectividad de otros que es simultánea y
21
presente" .
Para esclarecer-se o que se afirmou acima, faz-se necessário,
inicialmente, tecer breves considerações sobre o que vem a ser os meios de
comunicação simbolicamente generalizados, categoria fundamental para se
20
21
28
Aconfiança do condenado na confiança do Califa e vice-versa.
LUHMANN, 1996, op. cit., p. 82.
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preencherem os requisitos de uma relação de confiança sistêmica. Segundo
Luhmann, é diante da crescente complexidade e consequente diferenciação
funcional da sociedade moderna que surgem os meios de comunicação
simbolicamente generalizados. Conforme esse sociólogo, tais meios são
mecanismos adicionales al lenguaje cotidiano, que son
códigos de selección simbólicamente generalizados,
cuya función es proveer la capacidad de transmisión
intersubjetiva de los actos de selección, a través de
22
condenas más largas o más cortas .
Esses meios são normalmente exemplificados como a verdade, o
poder, o amor e o dinheiro. Eles possibilitam a formação de estruturas,
aliviando, dessa forma, a elevada contingência existente em sociedade. Sob
essa ótica, a contingência incrementada por meio da linguagem exige
dispositivos suplementares que, na forma de códigos simbólicos adicionais,
23
dirijam a transmissão, de forma efetiva, da complexidade reduzida . No
tocante a esses meios comunicativos, vale trazer as palavras de Luhmann e
De Giorgi: "Tuttavia non si tratta né semplicemente di linguaggi particolari
né di media della diffusione, ma di un tipo di media di genere diverso: di
24
un'altra forma, di un altro genere di distinzione, di un diverso codice" .
No conto em análise, pode-se dizer que a virtude, a promessa, a
22
Idem, ibidem, p. 82.
LUHMANN, Niklas. Complejidad y Modernidad: de la Unidad a la Diferencia. Edición e
traducción de Josetxo Beriain y José María García Blanco. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p.
104.
24
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della Società. Milano: FrancoAngeli,
1994, p. 106. (Todavia não se trata nem simplesmente de linguagem particular, nem de meios
de difusão, mas de um tipo de meio de gênero diverso: de outra forma, de outro gênero de
distinção, de um código diverso). Tradução livre.
23
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confiança e o perdão são as metáforas que permitem que os meios de
comunicação desbloqueiem o sentido. Com isso, já se pode perceber que o
estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica não se funda somente
em indivíduos, mas, sim, na confiança que estes depositam em tais
mecanismos e, consequentemente, em um sistema. Os indivíduos que
confiam nesses meios estão diretamente participando de um sistema, mesmo
que "inconscientemente."
"Al cambiar la confianza personal por la confianza en el sistema, el
proceso de aprendizaje se hace más fácil, pero el control es más difícil",
25
afirma Luhmann . Isso significa que quem confia em tais mecanismos não
pode corrigi-los, todavia, precisa manter a confiança, como se estivesse
coagido; não obstante, institucionalizada a confiança, cria-se uma espécie de
26
certeza equivalente .
Mesmo diante desse caráter paradoxal da confiança no sistema, tal
possibilidade se apresenta um tanto vantajosa em um cenário de crescente
complexidade social. Sai-se de uma contingente vinculação com um
indivíduo em específico, uma vez que não existe só uma, mas, sim, várias
decisões individuais vinculadas a um mecanismo que, por sua vez, está
vinculado à formação das estruturas de um sistema.
A virtude , observada aqui como meio de comunicação
simbolicamente generalizado, desempenha um papel primordial, pois se
encontra presente no estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica,
existindo inclusive (quando for o caso) concomitantemente com outros
meios, tais como o dinheiro ou o poder.
Partilhando essa concepção sistemista da confiança, Abdul-Rahman
25
26
30
LUHMANN, 1996, op. cit., p. 86.
Idem, ibidem, p. 86.
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afirma que a "System Trust, or Impersonal Trust, refers to trust that is not
based on any property or state of the trustee but rather on the perceived
properties or reliance on the system or institution within which that trust
27
exists. The monetary system is one such example" .
Pois bem, feitas essas considerações acerca dos meios de
comunicação simbolicamente generalizados e da confiança sistêmica, é
possível voltar agora a atenção ao conto de Hanauer.
Primeiramente, é preciso considerar que a confiança é o meio
predominante naquela curiosa relação entre o condenado à morte
(proprietário dos camelos), o Califa Omar e o nobre Abu Dhur. Ora, para
Luhmann, a confiança é o meio que atua como portador da redução de
complexidade intersubjetiva. Assim, "la confianza solamente es posible
donde la verdad es posible, donde la gente puede llegar a un acuerdo acerca
28
de alguna entidad dada que es obligatoria para una tercera parte" . No caso
em questão, isso significa que era necessário que todos estivessem com sua
orientação voltada à verdade, sendo essa uma condição imprescindível para
se erigir uma relação sistêmica de confiança. Note-se, desse modo, que há
três polos nessa relação: o proprietário dos camelos, Califa Omar eAbu Dhur.
O Califa precisou acreditar que as orientações do condenado e do
nobre sohaba Abu Dhur eram verdadeiras. Sistemicamente falando, o
símbolo da verdade facilita o entendimento e, desse modo, a redução da
complexidade, com a oferta de um significado que a terceira parte também
27
ABDUL-RAHMAN, Alfarez; HAILES, Stephen. Supporting Trust in Virtual Communities.
In: HAWAII INTERNATIONAL CONFERENCE ON SYSTEM SCIENCES, 33, 2000.
Proceedings..., p. 3. Disponível em: http://ieeexplore.ieee.org. Acesso em: 23 de jul. de
2008. (Confiança no sistema ou confiança impessoal refere-se à confiança que não se baseia
em qualquer estado da propriedade ou do administrador, mas, sim, sobre a percepção das
propriedades ou a dependência do sistema ou instituição, com a confiança que existe. O
sistema monetário é um desses exemplos). Tradução livre.
28
LUHMANN, 1996, loc. cit., p. 88.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010
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29
poderia considerar como uma posição correta . Se o Califa Omar ibn el
Khattab fosse avaliar todas as possibilidades, incorporando em seu horizonte
30
as contingências do futuro , ele possivelmente não permitiria a viagem de
três dias e, muito menos, a substituição de ego por alter. Por isso, pode-se
afirmar que o monarca reduziu complexidade com sua confiança, abstraindo
31
de seu horizonte as possibilidades de frustração futuras com esse ato .
32
Nessa linha de ideias, caso se quisesse citar, sem grande rigor, Jung ,
ter-se-iam três imagens arquetípicas no inconsciente coletivo que
cristalizariam a confiança: o Perdão, na figura do Califa, a Virtude, em Abu
Dhur e a Promessa, personificada no dono dos camelos. O inconsciente
coletivo habitado pela confiança poderia estruturar temporalmente a
dimensão de produção de narrativas coerentes.
Isso explica por que Abu Dhur, mesmo com enormes chances de
"perder a cabeça" – uma vez que o nobre sohaba não tinha ao menos uma
relação de familiaridade com o condenado – tinha confiança. Aliás, com
Luhmann, considera-se aqui que "familiarity is an unavoidable fact of life;
33
trust is a solution for specific problems of risk" . Diante desse enigma, surge
a pergunta: o que levou Abu Dhur a correr tal risco? Pois bem, a ausência de
uma relação de familiaridade reforça a hipótese de que sua confiança não se
fundava na pessoa do condenado, senão no valor social que se erigia naquela
relação.
29
LUHMANN, 1996, op. cit.,, p. 89.
Por exemplo: a possibilidade de o proprietário dos camelos não retornar, de Abu Dhur ser um
amigo querendo "livrar a cara" do condenado, ou até mesmo de o sohaba fugir etc.
31
Importante destacar: "abstraindo" as possibilidades de frustração, não as eliminando.
Independentemente de tal decisão, o futuro, obviamente, continuaria sendo incerto.
32
JUNG, C. G. OsArquétipos e o Inconsciente Coletivo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
33
LUHMANN, 2000, op. cit., p. 101. (Familiaridade é um fato incontornável da vida;
confiança é uma solução para os problemas específicos de risco). Tradução livre.
30
32
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O proprietário dos camelos, por sua vez, precisava igualmente
confiar na virtude, isto é, na existência de homens virtuosos. Nesse sentido,
partiu dele, de certo modo, um acordo intersubjetivo entre as partes. Destacase que não se está caindo em um "subjetivismo inobservável" ao afirmar isso,
senão observando um mecanismo de redução de complexidade. Conforme
Luhmann, "si tal reducción ocurre a través de un acuerdo intersubjetivo,
produce conocimiento garantizado socialmente, que es de este modo
34
experimentado como verdadero .
Além da virtude, o perdão surge como um dos elementos centrais no
35
desfecho do conto. Aliás, na obra de François Ost , o perdão é considerado
uma das quatro características do Tempo do Direito (sendo as outras três a
memória, a promessa e o questionamento). Perdão, nessa ótica, não significa
simplesmente esquecer, mas implica selecionar o que se vai esquecer.
É o perdão que faz o conto, ao final, tomar um rumo surpreendente.
Califa Omar ibn el Khattab recebe uma verdadeira lição sobre confiança e
virtude: um homem retornando resolutamente em direção à morte, "para
provar que a raça dos homens confiáveis não pereceu"; o outro, tendo
arriscado a própria vida "para provar que a raça dos homens virtuosos não
havia desaparecido". Restava, assim, ao Califa, detentor do direito de vida e
morte de seus súditos, demonstrar que a "raça dos homens clementes e
generosos ainda estava viva". Com o perdão, o Direito, então, se cristaliza: só
pode existir Direito em uma sociedade a partir do momento em que nela se
36
inscreve o perdão .
34
LUHMANN, 1996, op. cit., p. 54.
OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Odile Jacob, 1999.
36
ROCHA, Leonel Severo. A Construção do Tempo pelo Direito. In: ANUÁRIO DO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNISINOS: mestrado e
doutorado. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2003.
35
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De todo modo, era a confiança que operava em todas as dimensões de
sentido, fazendo com que a relação entre os papéis se despersonalizasse
notadamente a partir da segunda dimensão (alter/ego). Significa afirmar que
as orientações dos três personagens não se dirigiam aos "sentimentos" ou
mesmo às "consciências" de cada um, mas, sim, à virtude e à verdade que se
erigia naquela relação social.Apropósito, a verdade, em última análise (frisese: sistêmica), é uma só: aquela que reduz a complexidade do mundo.
Finalmente, vale destacar que uma perspectiva social ligada à
37
confiança sistêmica se aproxima da ideia defendida por Hannah Arendt e
38
retomada por Claude Lefort sobre a interpretação da obra literária no tempo
a partir do questionamento que ela provoca no leitor. Isso relaciona a
interpretação da obra com a invenção do novo e de outro tipo de forma de
sociedade ligada à política. A política como possibilidade de criação
comunitária de um sentido sistêmico de confiança.
4 Considerações Finais
Pretendeu-se, neste ensaio, demonstrar a passagem simbólica da
confiança pessoal para o nível sistêmico, ilustrada com o conto oriundo da
Terra Santa. Para tanto, procurou-se, analiticamente, observar como se
estruturam e se interpenetram essas três dimensões da confiança, intentando,
com isso, demonstrar a predominância da terceira dimensão (sistêmica) nas
relações sociais da sociedade moderna.
37
38
34
ARENDT, Hannah. The Human Condition. University of Chicago Press, 1958.
Já se falou anteriormente que a democracia é uma invenção (LEFORT, Claude. L'invention
democratique:
les limites de la domination totalitaire. Paris: Fayard, 1981.) e que a análise
́
dessa matriz pode ser auxiliada por um estudo comparativo do pensamento político de
Hannah Arendt e de Merleau-Ponty. In: ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e
Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 179.
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A confiança, a virtude e o perdão são, de fato, aspectos simbólicos
que surgem como fontes do Direito. A confiança sistêmica, nesse contexto, é
determinante para a formação das estruturas do sistema jurídico positivo que
se constituirá na modernidade. Não obstante, em um cenário de pósmodernidade, a confiança pode ser observada como um mecanismo que
permite que o sistema jurídico se erija e se auto-reproduza sistemicamente.
Despersonalizada, a confiança possibilita a estruturação de relações
jurídicas em um cenário de extrema e crescente complexidade. Viu-se, no
conto apresentado, que diante do risco, a virtude surge como um igualmente
importante mecanismo de construção do social. É o perdão, no entanto, que
fecha esta tríade simbólica, cristalizando um dos aspectos fundantes do
Direito. Ora, só existe Direito em uma sociedade, a partir do momento em que
nela se inscreve o perdão.
Enfim, foi notadamente o aspecto sistêmico da confiança que se
procurou ilustrar com o conto da Terra Santa. O Proprietário dos Camelos,
Califa Omar e Abu Dhur são, possivelmente, personagens de ficção. No
entanto, entende-se que o significado dos papéis constitui um elemento
simbólico que transpõe o conto, comunicando não só a sutileza, mas também
39
toda complexidade de uma relação de confiança .
39
A questão da confiança será redimensionada no século XXI pelo aumento da complexidade
social. Pretende-se, em um próximo artigo, a partir da ideia de autopoiese e "Obstáculo 3-D",
ampliar o foco dessa observação.
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OS SUBTERRÂNEOS DO SENSO COMUM
TEÓRICO DOS JURISTAS1
Fernando Guimarães Ferreira2
RESUMO
O texto trabalha a necessidade de uma visão complexa para uma efetiva
compreensão do fenômeno jurídico, propondo uma articulação introdutória
entre as ideias de Warat sobre o papel ideológico da argumentação na
construção da dogmática jurídica - referencial teórico do estudo - com as
concepções de Sloterdijk e Zizek, acerca da mecânica pela qual o discurso
transmitido pela linguagem, influenciado por uma razão cínica, vigente em
uma sociedade do espetáculo, concretizador de "pré-leituras" do real
(Sloterdijk), é acolhido pelos juristas por meio de um processo de
identificação imaginária ao discurso cínico (Zizek), dando consistência aos
sensos comuns teóricos (Warat).
Palavras-chave: Senso Comum Teórico. Razão Cínica. Identificação
Imaginária.
ABSTRACT
The text suggests a complex vision for an effective understanding of legal
phenomenon, proposing an introductory articulation between Warat's ideas
about the ideological role of argumentation in construction of dogmatic legal
– our theoretical reference - with the conceptions of Sloterdijk and Zizek,
about the mechanics by which the speech transmitted by language,
influenced by a cynical reason, prevail in a society of the spectacle, creator of
"reads" of real (Sloterdijk), is accepted by the jurists through a process of
imaginary identification to the cynical discourse (Zizek), giving consistency
to theoretical common sense (Warat).
Keywords: Theoretical Common Sense. Reason Cynical. Imaginary
Identification.
1
2
O tema do presente estudo teve origem em comentário proferido pelo Prof. Dr. Albano
Marcos Bastos Pepe, na palestra "O legado da racionalidade cartesiana", proferida em 20 de
abril de 2006, no XIII Núcleo de Estudos Avançados (A filosofia no direito) do Instituto de
Hermenêutica Jurídica (IHJ/RS).
Procurador da Assembleia Legislativa do RS, Conselheiro do Instituto de Hermenêutica
Jurídica, Conselheiro Científico da Escola Brasileira de Gestão Pública. Mestre em
Instituições do Direito do Estado pela PUCRS.
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1 Introdução
As abordagens produzidas pela ciência em geral - incluindo o
campo do Direito - são pautadas, usualmente, por uma tradição racionalcartesiana extremada, ou seja, realizam um exame reducionista do fenômeno,
a partir de suas individualidades, deixando, muitas vezes, de compreendê-lo
em sua verdadeira complexidade, nas inter-relações estabelecidas entre suas
individualidades, produzindo, assim, seguidas falhas de compreensão. A
superação estaria na adoção de uma abordagem complexa - adequada a uma
sociedade igualmente complexa e em transformação -, com o rompimento do
paradigma reducionista, com a busca de novas significações, amparadas em
uma compreensão transdisciplinar dos fenômenos. Reconhecendo a natureza
complexa da sociedade humana, apenas uma leitura transdisciplinar, uma
articulação entre os saberes, permitirá a adequada construção de
compreensões e soluções aos fenômenos jurídicos.
Luís Alberto Warat (2004, p. 27), constatando a necessidade de ser
realizada uma abordagem complexa sobre a produção do "saber jurídico
institucionalmente sacralizado", propõe, em artigo publicado originalmente
em 1982, uma trajetória analítica que denomina de "conhecimento" ou
"pensamento crítico do Direito", na qual pretende, com a utilização de
diferentes marcos conceituais, flexível e problematicamente relacionados,
construir uma compreensão das "condições históricas de elaboração e os
vários sentidos sociais dos hábitos teóricos aceitos como o discurso
competente dos juristas", apresentando, assim, uma "proposta revisionista
dos valores epistemológicos [...] que regulam o processo de constituição das
verdades jurídicas consagradas", concretizada "a partir do reconhecimento
dos limites, silêncios e funções políticas da epistemologia jurídica oficial". O
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deslocamento epistêmico proposto por Warat (2004, p. 28) objetiva, em uma
inversão propositiva, o primado da política sobre a razão e a experiência, de
forma que a "análise das verdades jurídicas exige a explicitação das relações
de força que formam domínios de conhecimento", o que não é realizado pela
ortodoxia epistemológica do Direito, preocupada, essencialmente, com o
"enclausuramento lógico referencial dos discursos produzidos em nome da
Ciência" - resultando em uma "alienação do conhecimento científico em sua
expressão material, como acontecimento significativo, politicamente
determinado" -, reduzindo, como consequência, as significações a meros
conceitos. O saber crítico do Direito propõe a "substituição do controle
conceitual pela compreensão do sistema de significações" e a "introdução da
temática do poder como forma de explicitação do poder social das
significações proclamadas científicas", permitindo a construção de uma
"história das verdades", onde seja possível a identificação dos "efeitos
políticos das significações na sociedade". A crítica proposta por Warat (2004,
p. 29) está precisamente em sua constatação de que a objetivação decorrente
da ortodoxia epistemológica do Direito acarreta o "[. . .] esvaziamento do
núcleo conceitual" do discurso produzido, "o qual passa a ser um mero
significante em um contexto fragmentado de conotações", de forma que é
subtraída a função referencial das relações conceituais, "tornando-as abertas
aos efeitos do poder" e impedindo, especialmente, a detecção dos seus efeitos
políticos. É exatamente a esses discursos competentes da Ciência e da
epistemologia jurídicas, "forjados na práxis jurídica", que Warat dá o nome
de "senso comum teórico dos juristas". Warat, em seus estudos, critica,
sobremaneira, a ideologização da dogmática jurídica, enquanto forma de
alienação, ressaltando a função fundamental de persuasão desempenhada
pela argumentação jurídica, na medida em que a vida quotidiana dos
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profissionais do direito se desenvolve por meio da utilização contínua da
linguagem, objetivando demonstrar a necessidade imperiosa de ser realizada
uma ruptura do modelo dogmático tradicional.
O objetivo do presente estudo, diante de sua proposta inicial de ser
adotada uma visão complexa para a compreensão do fenômeno jurídico, é
apresentar uma articulação introdutória, no campo do direito, entre as ideias
de Warat - referencial teórico adotado - e as de Sloterdijk e Zizek,
especificamente pela exposição da mecânica pela qual o discurso
transmitido pela linguagem - influenciada esta por uma razão cínica
(Sloterdijk), vigente no seio de uma sociedade do espetáculo (em que as
possibilidades de crítica do real restam reduzidas), produz esta (a
linguagem) uma mistificação tendente à concretização de "pré-leituras" do
real, impeditivas da correta percepção da realidade social pelos integrantes
dessa mesma sociedade - é acolhido pelos juristas por meio de um processo
de identificação imaginária ao discurso cínico, como leciona Zizek,
terminando por dar consistência aos sensos comuns teóricos (Warat), os
quais traduzem a percepção da realidade, fazendo com que os operadores do
direito adotem, enquanto fundamentos da construção racional de suas
decisões, ideias e conceitos que conduzem a conclusões aparentemente
justas, mas que, na verdade, podem estar distantes dos princípios
estabelecidos pelo texto constitucional. Essa articulação visa à desalienação
do discurso jurídico, principalmente diante do mito da pureza kelseniana.
Para o cumprimento dessa tarefa, seguiremos a seguinte estruturação: em
primeiro, abordaremos a necessidade de ser adotado o pensamento
complexo no campo do direito, diante da constatação da insuficiência do
atual modelo dogmático adotado pela Ciência do Direito; em segundo, são
lançadas, como referencial teórico deste estudo, as lições de Warat a respeito
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do papel ideológico da argumentação na construção da dogmática jurídica e
do senso comum teórico; em terceiro, a noção de racionalidade cínica e de
identificação imaginária aos ditames desta falsa consciência ilustrada; e, por
fim, as conclusões propostas.
2 AInsuficiência do Modelo Dogmático
A dogmática jurídica tradicional, de viés positivista, demonstra-se
atualmente insuficiente para realizar uma adequada formação dos
profissionais do direito. Urge, por consequência, a elaboração de uma
alternativa que supere as limitações do ensino contemporâneo, formador de
operadores do direito cada vez mais despreparados para a correta percepção e
competente solução das questões sociais a eles apresentadas, marcadas estas
por uma crescente complexidade (hipercomplexidade dos fenômenos
sociais). O reflexo dessa problemática se revela, por exemplo, na
multiplicidade de decisões diametralmente opostas produzidas pelo Poder
Judiciário para situações concretas absolutamente idênticas, sob o argumento
de que o magistrado julga conforme a sua consciência (problema da
discricionariedade judicial). Neste aspecto, Lênio Streck (2010, p. 95)
propõe que "[. . .] para uma teoria ser pós-positivista, é necessário superar o
'decido conforme minha consciência'"3, com o estabelecimento de padrões
hermenêuticos que, dentre outros princípios, estabeleça "[. . .] condições
hermenêuticas para a realização de um controle da interpretação
3
"Em síntese – e quero deixar isso bem claro -, para superar o positivismo, é preciso superar
também aquilo que o sustenta: o primado epistemológico do sujeito (da subjetividade
assujeitadora) e o solipsismo teórico da filosofia da consciência (se desconsiderar a
importância das pretensões objetivistas do modo-de-fazer-direito contemporâneo, que
recupera, dia a dia, a partir de enunciados assertóricos, o 'mito do dado'). Não há como
escapar disso. Apenas como a superação dessas teorias que ainda apostam no esquema
sujeito-objeto é que poderemos escapar das armadilhas positivistas.”
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constitucional (ratio final, a imposição de limites às decisões judiciais)".
Conforme o autor (STRECK, 2010, p. 96), a "[. . .] superação do positivismo
implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial", ou seja,
"no enfrentamento do solipsismo da razão prática". Os estudos de Streck,
frisa-se, na hermenêutica jurídica, são fundamentais.
A proposta para a superação dessa problemática consiste no efetivo
rompimento da visão unidisciplinar típica do dogmatismo de cunho
positivista, uma vez que o direito, enquanto ciência humana e social, não
pode ser compreendido como um ente autônomo à sociedade ao qual é
aplicado. Torna-se necessário libertar o ensino jurídico dos modelos políticos
subliminarmente impostos (ideologia), os quais tendem à perpetuação de um
dogmatismo abstrato, dissociado da realidade, replicador do "[. . .] mito de
que o sistema jurídico tem respostas para todas as questões apresentadas pela
sociedade" (FAGUNDEZ, 1997). Urge que o operador do direito adote uma
visão integradora - dialógica - aos mais diversos campos científicos que com
ele tenham pontos de contato, numa prática transdisciplinar.
Luiz Fernando Coelho (1997) aponta a "[. . .] necessidade de se
repensar totalmente a educação jurídica, procurando incentivar nossos
jovens juristas a formarem nova mentalidade, não se submeterem a uma
visão estritamente profissional de um segmento alheio ao todo e alienado dos
problemas sociais", propondo o surgimento de "uma mentalidade voltada
para o futuro, no meio daqueles que, além de juristas, são cientistas sociais e
cidadãos", e que, assim, permita a "construção de uma sociedade livre, de
homens verdadeiramente livres, porque não alienados". Paulo Roney Ávila
Fagundez (1997)4, citando Boaventura de Souza Santos, menciona que a
"ciência pós-moderna deverá transformar os seus processos de investigação,
4
46
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. Portugal: Cortez. 2001 apud Paulo Roney Ávila Fagundez, 1997, p. 223.
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de ensino e de extensão". O autor, para tal, propõe três princípios: a) "a
prioridade da racionalidade moral-prática e da racionalidade estéticoexpressiva sobre a racionalidade cognitivo-instrumental"; b) "a dupla ruptura
epistemológica e a criação de um novo senso comum"; e, c) "a aplicação
edificante da ciência no seio das comunidades interpretativas". Em um
pequeno texto, Leonel Severo Rocha (2003, p. 40-44) aponta que "somente
uma nova matriz teórica transdisciplinar pode nos ajudar na reconstrução da
teoria jurídica contemporânea, até então impotente para a compreensão e
observação dos acontecimentos deste início de século". A revolução
epistemológica de cunho transdisciplinar, apregoada pelos autores supra
referidos, propõe o rompimento com a "departamentalização dos campos de
racionalidade dominantes" (ROCHA, 2003, p. 40-44), permitindo um interrelacionamento amplo entre o sistema jurídico e a história, fertilizando o
campo para uma nova hermenêutica – não-relativista e constitucionalmente
vinculada -, voltada para uma interpretação do sistema jurídico
comprometida com a efetivação das promessas da modernidade.
3 O pensamento de Warat
O autor, com extrema profundidade, aborda, em diversas de suas
obras, a temática da função ideológica da argumentação, enquanto
mecanismo de convencimento (mistificações impeditivas da compreensão
da realidade), denunciando o efeito de realidade determinado pela persuasão
decorrente da linguagem, na hipótese de o discurso verossímil encontrar
adequação às formas axiológicas predominantes, como aponta, não
contradizendo a ideologia dos destinatários desse discurso. Como resultado,
realiza o autor crítica à teoria do direito e do ensino jurídico tradicional,
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salientando a ideologização da dogmática jurídica como forma de alienação.
3.1 Senso Comum Teórico dos Juristas
Adotando-se ainda o pensamento de Warat, torna-se necessário
fazer referência ao que ele denomina de "senso comum teórico" dos juristas,
sendo este constituído por um conjunto de representações, noções, crenças,
mitos e mistificações que governam, disciplinam e condicionam ideologicamente – as atitudes cotidianas dos juristas em relação ao processo
judiciário e a sua produção teórica, criando a falsa noção de que é esse
conjunto teórico-ideológico que, na prática jurídica, permite a produção de
decisões ou significações socialmente legitimáveis, quando, em verdade,
constitui um "sistema de conhecimentos que organiza os dados da realidade,
pretendendo assegurar a reprodução dos valores e práticas predominantes"
(WARAT, 1979). Para ele, o senso comum teórico "não deixa de ser uma
significação extra-conceitual no interior de um sistema de conceitos, uma
ideologia no interior da Ciência, uma 'dóxa' no interior da episteme", trata-se
de uma "episteme convertida em 'dóxa', pelo programa político das verdades,
executado por meio da práxis jurídica" (2004, p. 30).
É necessário esclarecer que, consoante os conceitos utilizados por
Warat, a dóxa seriam as "opiniões comuns", constituída "por um
conglomerado de argumentos verossímeis, formados a partir das
representações ideológicas, das configurações metafísicas e das evocações
conotativas", enquanto que a episteme, o "conhecimento científico", o
"saldo, logicamente purificado" dos fatores constituintes da dóxa (WARAT,
2004, p. 29). A cientificidade proposta pelos epistemólogos para a Ciência
deveria realizar a efetiva diferenciação entre os campos da dóxa e o da
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episteme - mito da neutralidade da Ciência -, sendo que, no entanto, quando
"esta concepção de racionalidade científica é apropriada na práxis jurídica",
as "opiniões comuns" não deixam de se manifestar, razão pela qual "o
conhecimento científico do direito termina sendo um acúmulo de opiniões
valorativas e teóricas que se manifestam de modo latente no discurso,
aparentemente controlado pela episteme" (WARAT, 2004, p. 29-30).
Como decorrência, a própria atividade profissional do direito acaba
por reivindicar, para si, miticamente, um lugar de neutralidade e pureza purificação metodológica -, em realidade inexistente. O autor constrói o
conceito a partir da noção de pensamento crítico, entendido este como um
agir opositor que, por meio de diferentes marcos conceituais, pretende
"compreender as condições históricas de elaboração e os vários sentidos
sociais dos hábitos teóricos aceitos como o discurso competente dos
juristas", visando a estabelecer uma nova formulação epistemológica sobre o
conhecimento jurídico "sacralizado", cujas significações são reduzidas a
meros conceitos (WARAT, 1979).
O discurso crítico proposto por Warat pressupõe a superação do
sistema de controle conceitual pela compreensão do sistema de significações
e a introdução da noção de poder como mecanismo de explicação do poder
social das significações, até então proclamadas científicas, de forma a
possibilitar o desvelamento do discurso de objetivação dogmático, o qual, em
que pese justificado em uma teorização dita imparcial e apolítica, está
condicionado por pressuposições ideológicas5. O senso comum teórico
5
"Reivindicamos, até aqui, a necessidade de instaurar, para o conhecimento crítico do direito,
uma epistemologia das significações como substituição ou complementação da atual
epistemologia dos conceitos. Esta última não permite, por um lado, discutir o sentido
político do saber do direito, já que os conceitos são construídos pela razão como uma
tentativa de suprimir das ideias seus vínculos com as representações ideológicas ou
metafísicas e com suas relações com o poder. [...] Em certo sentido, podemos dizer que,
mediante o jogo estratégico dos conceitos, estes são reaproveitados pelo senso comum dos
juristas, convertidos, novamente, em significações, quer dizer, em signos, de múltiplas
evocações conotativas." (WARAT, 2004, p. 31)
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pretende, como já dito, apontar para a impossibilidade de ser produzido um
discurso teórico puro no campo das ciências humanas, especialmente no do
direito. A epistemologia tradicional, segundo o autor, procura,
equivocadamente, "resolver, idealmente, as relações conflitantes entre a
teoria e a práxis jurídica, ignorando, fundamentalmente, o valor político do
conhecimento na práxis" (WARAT, 1979), propondo um saber puro como
teoria, o que permitiria a contaminação da práxis por essa pureza, "criando a
ilusão de uma atividade profissional pura". Como resultado da percepção
decorrente do pensamento crítico, urge a adoção de "uma epistemologia das
significações como substituição ou complementação da atual epistemologia
dos conceitos", uma vez que estes são "construídos pela razão como uma
tentativa de suprimir das ideias seus vínculos com as representações
ideológicas ou metafísicas e com suas relações com o poder" (WARAT,
1979). O autor aponta que a inter-relação entre a "região das crenças
ideológicas"6, a "região das opiniões éticas"7, a "região das crenças
epistemológicas"8 e a "região dos conhecimentos vulgares"9 influi,
6
"Estaríamos aqui falando as concepções do mundo que possuem os cientistas, ou seja, das
ideias que ajustam o indivíduo às condições de existência." Seriam, pois, "os elementos
representativos da realidade, que, independentemente da vontade dos cientistas, dominam
suas consciências, influindo na formação do capital cultural da prática teórica". (WARAT,
2004, p. 34)
7
Dentro do processo de formação do espírito científico, as opiniões éticas "forçam critérios de
racionalidade, pelos quais a desrazão surge como um desajuste em relação aos padrões
morais vigentes", sendo que, em função disso, se explora uma "identificação falaciosa entre
a razão e a ética", permitindo, assim, ao juristas, "legitimar o sistema de decisões legais
como expressão estereotipada de uma racionalidade eticamente determinada". (WARAT,
2004, p. 34)
8
Dizem "respeito às evidências fornecidas pela prática institucional dos cientistas". São os
"hábitos intelectuais que regulam as condições de produção do conhecimento, como
também, das interpretações vulgarizantes dos conceitos, fruto de suas desvinculações dos
marcos teóricos sistemáticos em que foram produzidos". Conclui o autor afirmando que
estas se relacionam com a "crença na eficiência do método para produzir a objetividade e a
verdade". (WARAT, 2004, p. 34)
9
Esta é a "atividade intelectual do homem comum, resultante da percepção imediata e da
utilidade do saber", podendo ser compreendida, igualmente, como "as imagens cotidianas
que criam a ilusão de uma realidade composta de dados claros, transparentes, que podem ser
interpretados, com segurança, mediante uma razão comandada pela intuição". (WARAT,
2004, p. 34)
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"consciente ou inconscientemente, na formação do espírito jurídico",
produzindo um saber "que provocando conotativamente a opacidade das
relações sociais, afasta os juristas da compreensão do papel do direito e do
seu conhecimento na sociedade" (WARAT, 2004).
A própria construção do senso comum teórico se daria por um
movimento dialético: no primeiro momento, haveria uma dóxa (hábitos
significativos); no segundo, a construção de uma episteme, a partir da
aplicação de processos lógicos purificadores; e, no momento final, teríamos
o senso comum teórico, "dado pela reincorporação dos conceitos nos hábitos
significativos" (WARAT, 2004, p. 31), dando início, assim, a um novo
movimento dialético, tal como descrito. Como resultado, o discurso da
episteme se revela ideológico, ou seja, "um discurso transfigurado em
elemento mediador de uma integração, ilusoriamente, não conflitiva, das
relações sociais" (2004, p. 31).
Sinteticamente, o senso comum teórico seria construído: a) por
uma "série móvel de conceitos", desconectados das teorias que os
produziram; b) por um "arsenal de hipóteses vagas" e até mesmo
contraditórias; c) por "opiniões costumeiras"; d) por "premissas não
explicitadas e vinculadas a valores"; e, por fim, e) por "metáforas e
representações do mundo" (2004, p. 32). Esses elementos, em que pesem
suas inconsistências intrínsecas, conduzem a uma uniformidade conceitual um sistema de verdades - sobre "o direito e suas atividades institucionais",
supostamente "construída em luta contra as representações costumeiras e
que, no entanto, volta como um grau diferente dessas mesmas
representações" (2004, p. 32). Importante aduzir que esse sistema de
verdades "não está vinculado a conteúdos, mas sim a procedimentos
legitimadores, determinantes para o consenso social", consenso esse
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produzido em um processo onde o sentido conceitual é substituído por
evocações estereotipadas, dando, assim, origem a um "processo de
apropriação institucional dos conceitos10, cuidadosamente elaborado, para
exercitar o poder dos significados" (p. 32), onde são produzidas "versões das
teorias ajustadas às crenças, e representações e interesses legitimadas pelas
instituições", ou, em outras palavras, é estabelecida uma interpretação
estereotipada dos conceitos (com a reconstrução dos conceitos e critérios
epistemológicos), "polissemicamente controlada", a partir do discurso
apropriado, "com clara função legitimadora" (p. 33).
Warat procura, sinteticamente, no "senso comum teórico dos
juristas", enquanto conjunto heterogêneo de hábitos semiológicos de
referência, "explicitar uma condição de significação para os discursos
jurídicos" (2004, p. 31).
3.2 O Papel Mistificador daArgumentação Jurídica
O extraordinário e acelerado desenvolvimento das tecnologias
massificadoras da informação e da comunicação no final do século XX,
tendentes a transformar a experiência humana em linguagem e comunicação,
associado à ampliação dos regimes democráticos, nos quais a palavra, e não
mais a força ou a violência, assume papel preponderante como instrumento
de ação política, evidenciam a recente necessidade de as ciências humanas e a
filosofia se debruçarem sobre os fenômenos da comunicação e da linguagem,
ressaltando que a preocupação prático-teórica do homem com a linguagem
remonta à tradição filosófica grega, a qual forneceu os princípios
fundamentais sobre os quais a linguagem tem sido estudada até os nossos
10
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Que o autor também denomina de "recuperação institucional do trabalho epistemológico"
(WARAT, 2004, p. 32).
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dias.
No final do século XIX, a problemática do estudo da linguagem
enquanto fenômeno tipicamente humano deu origem a três disciplinas
distintas: a) a lógica (p.ex., Wittgenstein); b) a linguística (p.ex., Saussure e
Chomsky); e, c) a filosofia da linguagem (p.ex., Ricoeur, Habermas e
Perelman). Em que pese as discordâncias entre os representantes dessas três
disciplinas, tornou-se consensual que a linguagem desempenha três funções
fundamentais: a) a comunicação indicativa/referencial de fatos e estados de
coisas; b) a expressão da subjetividade e do pensamento; e, c) a persuasão do
interlocutor. Interessa, aqui, o exame da função de persuasão do interlocutor
e a mecânica pela qual ela produz, efetivamente, efeitos de convencimento,
conferindo aspecto de realidade (representação sobre o real) a fatos ou ideias
que não correspondem a um extrato de veracidade.
Para Warat, esse processo de dominação da consciência dá-se por
meio de "processos determinados de persuasão", em que são utilizados
silogismos erísticos (falaciosos), visando a produzir conclusões
equivocadamente adequadas às premissas que as sustentam. Em outras
palavras, argumentos habilmente manipulados constituem um meio de
dominação ideológica, principalmente no discurso jurídico. Importa-nos,
agora, expor suas críticas à argumentação jurídica, visto que esse processo de
validação de argumentos não identificados com uma realidade concreta - que
Zizek, como veremos, denomina como identificação imaginária à razão
cínica - ocorre diuturnamente no âmbito do direito.
3.3 Crítica àArgumentação Jurídica
Os profissionais do direito, talvez mais que em outras atividades,
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realizam seus misteres por meio de um signo comunicante – a palavra, tanto
escrita como oral -, produzindo uma argumentação que visa,
finalisticamente, a interpretar o direito por meio de processos determinados
de persuasão, criando efeitos de convencimento. O grande problema está em
que essa produção argumentativa se utiliza, muitas vezes, na produção de
sentidos, de silogismos falaciosos, impondo ao eventual receptor da
mensagem comunicativa efeitos de realidade, de forma que este, em relação a
essa significação transmitida, deve sempre adotar uma visão
necessariamente crítica.
Warat (1994), ao propor, em sua crítica, uma leitura ideológica da
argumentação jurídica, enquanto instrumento de ligação entre um sistema de
poder e um sistema de comunicações, afirma, corretamente, que "as práticas
argumentativas do judiciário, da dogmática jurídica e das escolas de direito
são manifestações concretas da ideologia dos juristas" (1994, p. 94). De tal
forma, o argumento não seria mais do que um raciocínio que coloca "um
conjunto de signos informativos, em função do poder", transformando a
"mensagem linguística em ideologia", num sutil processo de sujeição e
uniformização das relações sociais. Em face dessa realidade, infelizmente
cada vez mais invisível, não se pode conceber um adequado estudo dos
sistemas de comunicação vigentes na sociedade sem uma profunda e
desmitificante preocupação quanto ao funcionamento ideológico dos
argumentos, bem como da própria teoria da argumentação, uma vez que
Warat concebe o argumento enquanto vinculação da persuasão à ideologia.
Assim, os argumentos, em seu aspecto ideológico, seriam produtores de um
efeito de reconhecimento, de ilusão quanto à demonstração de algo que, em
realidade, não se está comprovando, numa inversão do real que objetiva obter
a aceitação e principalmente a adesão dos receptores em relação àquilo que se
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pretende convencer, produzindo-se uma homogeneização dos valores.
No pensamento de Aristóteles, por exemplo, a argumentação é
constituída por raciocínios estabelecidos a partir de silogismos retóricos, ou
seja, de opiniões (premissas) geralmente aceitas, de forma que o conteúdo
aduzido pelo transmissor produz, no receptor, um efeito de adequação a esses
valores universalizados e a consequente adesão deste ao raciocínio exposto.
Importante esclarecer que no pensamento aristotélico há uma contraposição
entre o raciocínio argumentativo (não-demonstrativo), constituído por uma
lógica do pensamento não-formalizável, e o raciocínio lógico-formal
(demonstrativo). Este último raciocínio ocorre quando são devidamente
apresentados todos os pressupostos iniciais e suas regras lógicas de
derivação, enquanto que o primeiro é amparado num conhecimento
vulgarizado, em crenças generalizadas da população, de forma que ocorre a
aceitação da conclusão proposta em função de um efeito de adequação entre
essa conclusão e o "pensamento popular de base" (1994, p. 97). Assim, o
raciocínio argumentativo tende tão-somente à persuasão do receptor e não à
efetiva demonstração da conclusão apresentada como verdadeira, sendo, de
tal modo, desvinculado da realidade concreta, da verdade, vinculando-se à
verossimilhança, conceituada por Warat como "uma correspondência entre
um enunciado e um corpo de opiniões geralmente aceitas" (1994, p. 97),
produzindo, assim, um efeito representativo de verdade ou realidade.
Warat alerta que devemos ter muito cuidado com a adoção acrítica
de uma divisão maniqueísta entre os raciocínios demonstrativos e
persuasivos ou entre verdade e verossimilhança, visto que, muitas vezes, nos
raciocínios demonstrativos, verificamos, em suas conclusões, premissas ou
pressupostos epistemológicos, evidentes mistificações, em que se persuade
afirmando operar com a verdade, quando se está produzindo apenas um
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efeito de realidade. Aponta o autor, ainda, o paradoxo de a verdade buscar
auxílio na verossimilhança, uma vez que a elaboração de um problema da
verdade demanda, em seu processo, uma elaboração teórica ou linguística,
cujo controle dá-se em termos exclusivamente discursivos, mesmo que
voltados à formação exclusiva de raciocínios eminentemente
demonstrativos, resultando sempre em um "efeito de realidade, que servirá
para reconhecer nossas representações sobre o real" (1994, p. 98)
(verossimilhança), transformando-se em verdade quando vinculado ao
processo social de desenvolvimento humano, sofrendo, por consequência,
enquanto dado social e histórico, as transformações impostas pela história. A
verossimilhança, assim, não pode ser atualmente considerada como processo
de produção de uma persuasão, mas como gerador de um efeito de realidade
crível, decorrente da utilização de pontos de vista intuitivamente aceitos,
tornando-se psicologicamente aceitos, uma vez que "as relações sociais
produzem as ideias, ilusões e representações que regulam os critérios da
intuição" (1994, p. 98). Ou seja, a recepção socialmente dominante (opinião
geralmente aceita) da intuição resultante da verossimilhança acarreta a
persuasão psicológica do argumento utilizado, em outras palavras, a
aceitação de uma conclusão se dá, no processo argumentativo, a partir das
opiniões dominantes, revelando, segundo Warat, o caráter ideológico da
teoria da argumentação, permitindo sua utilização como forma de alienação,
realizando formas específicas de controle social, reproduzindo, numa função
socializadora latente, valores previamente estabelecidos. Como resultado
dessa noção, Warat conclui que a argumentação, para produzir efeitos de
persuasão, não deve apenas buscar alcançar um efeito de verossimilhança, de
adequação ao senso comum, mas principalmente, mesmo que indiretamente,
"um efeito de adequação axiológica em relação ao valor resguardado pela
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crença que habilitou o raciocínio" (1994, p. 99), entendida esta como
manifestação "standard" das ideologias. Revela-se importante considerar
que, diante de tais considerações, o jurista, ao utilizar as formas jurídicas de
argumentação, tem de se preocupar, que estas produzam um efeito de
adequação valorativa em relação às crenças sociais e jurídicas dos
destinatários, sendo considerados, portanto, significativamente legítimos se
não contradisserem, como aponta Warat, as "formas axiológicas
predominantes" que constituem a ideologia dos destinatários. De tal forma, a
ideologia seria o "tribunal" pelo qual seria possível aferir o grau de eficácia
ou ineficácia de um determinado argumento jurídico, razão pela qual a
argumentação jurídica sempre tende a operar como instrumento de
reprodução acrítica dos valores predominantes.
Warat, a partir de suas conclusões e do reconhecimento da evidente
possibilidade de certas teses da dogmática jurídica serem ditadas não por
enunciados teóricos, mas por enunciados retóricos, amparados por um efeito
de adequação valorativa, afirma que a moderna teoria da argumentação deve
ser fundada "sobre a tentativa de leitura dos argumentos e dos discursos
teóricos como ideologia" (1994, p. 101). Michele Borba, resumindo o
pensamento de Warat, afirma que a persuasão ocorre quando o emissor da
mensagem manipula "um conjunto completo de crenças, representações e
valores, com a finalidade de provocar o conjunto de relações associativas que
determinam a aceitação, por parte do receptor, dos pontos de vista do
emissor", lançando mão, inclusive, de "estereótipos que representam um tipo
de signos a partir dos quais a sociedade condensa e comunica os
condicionantes ideológicos do sistema central de seus valores".
Esse é o mecanismo psicossocial utilizado pelo discurso alienante,
socialmente sacralizado, e que se constitui em noção essencial para a devida
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compreensão do conceito de "senso comum teórico dos juristas",
estabelecido por Warat11. Como resultado, cria-se campo fértil para a
autorreprodução do conhecimento jurídico existente, já devidamente filtrado
por parâmetros ideológicos, dificultando a criação do novo.
3.4 Crítica a Kelsen
A mistificação quanto ao suposto caráter não-ideológico e puro do
direito, que ainda permeia grande parte da dogmática jurídica, foi apontada
por Marcelo Minghelli (2001, p. 93-104), em estudo no qual crítica a Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen à luz das lições de Warat.
Conforme Minghelli, Kelsen adotou um princípio metodológico da
pureza, requisito determinante da autonomia da Ciência Jurídica,
permitindo, assim, a criação de uma "teoria geral do Direito que tem como
objetivo descrever o que e como é o Direito, não existindo a procura por uma
justificação, explicitação, ou mesmo por uma desclassificação do mesmo"
(2001, p. 95). De tal modo, o conhecimento jurídico seria voltado unicamente
ao direito, o qual não admitiria influências interdisciplinares, tais como da
sociologia, da ética e da teoria políticos, visto que seriam fatores exteriores e,
portanto, a ele estranhos. Importante ressaltar que o núcleo teórico da
dogmática jurídica existente na época da elaboração da Teoria Pura do
Direito era carregado de significações produzidas pelo Direito Natural,
ideologicamente destinadas a legitimar um determinado ordenamento
11
58
Importante mencionar que a noção de Warat é trabalhada, de diferentes formas, por vários
outros autores, entre eles Tércio Sampaio Ferraz (astúcia da razão dogmática) e Pierre
Bordieu (habitus). A "astúcia da razão dogmática" de Ferraz, como resume Lênio Streck,
constitui "um deslocamento ideológico-discursivo", no qual "os problemas do universo
fenomênico são catapultados para o mundo das abstrações/idealizações".
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jurídico, o que, na visão de Kelsen, impediria a construção de uma ciência
jurídica comprometida com a verdade. Para superar essa realidade, Kelsen,
utilizando-se dos critérios do positivismo científico, estabeleceu um novo
paradigma refratário a essas "influências ideológicas produzidas pelo núcleo
teórico da dogmática jurídica norteado pelo Direito Natural" (MINGHELLI,
2001, p. 96), construindo uma teoria que "exclui de seu objeto toda ideologia
e prática política, qualquer contribuição proveniente da filosofia da justiça,
da moral, da religião e, ainda, crenças, princípios e categorias que regulam a
constituição das ciências causais, como também as pseudo-categorias do
pensamento jurídico-clássico" (WARAT, 1995, p. 157). Entendia Kelsen que
a tradição do Direito Natural, por adotar a ideia de justiça como fundamento
de validade do direito positivado, possuía uma proposta ideológica de
fundamentação metafísica e política do critério de validade, razão pela qual,
rompendo com essa tradição, buscou produzir um fundamento de validade
objetivo, uma norma fundamental gnoseológica, com a qual seria possível a
superação dos apelos de fundamentação metafísica e valorativa. Assim,
consoante a teoria de Kelsen, "um determinado ordenamento jurídico terá
como fundamento último de validade objetiva a sua conformidade com a
norma hipotética e fundamental da ordem jurídica" (1995, p. 157), tendo
como resultado que a validade de todo o ordenamento jurídico funda-se em si
próprio.
A crítica de Warat aponta que o princípio da pureza metodológica,
utilizado por Kelsen, criou uma falsa e perigosa ilusão de objetividade,
exatidão e imparcialidade do discurso jurídico produzido, uma vez que a
dogmática jurídica realizou um processo de recuperação ideológica da Teoria
Pura do Direito, ou seja, aquela, por meio de mecanismos de argumentação,
segundo o entendimento de Warat, redefiniu os sentidos críticos,
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readaptando-os, novamente, à função de representação ideológica dos
discursos tradicionais (1995, p. 161). A apropriação institucional dos
conceitos, segundo Warat, terminou por retirar das "categorias pertencentes
às matrizes kelsenianas", "através de lentos mecanismos redefinitórios",
todas as suas "singularidades teóricas", fundindo "os conceitos kelsenianos
às representações jusnaturalistas", bem como aos "princípios liberais,
aspirações transcendentais, fenomenológicas, neopositivistas e até, em
muitos casos, com um Hegel inconsciente e estereotipadamente assimilado"
(2004, p. 33)12.
O pensamento de Kelsen, na visão de Minghelli (2001, p. 98), não
só limita a compreensão do fenômeno jurídico "como também encobre a
função social da ciência jurídica negando a relação da influência existente
entre o processo de produção de significações produzidas pelos órgãos
institucionais politicamente determinados e o processo de produção de
significações da Ciência do Direito determinado de maneira objetiva e
neutra". O mito da neutralidade científica, conforme Minghelli (2001, p. 98),
escondendo a relação existente entre a ciência e a política, "obscurece e
camufla as teorias sociais e políticas, facilitando a sua inserção e cristalização
no domínio da ciência dominante". Ciente dessa realidade, Warat afirma que
uma Ciência do Direito verdadeiramente crítica deve revelar qual a sua
função social, entendendo-a como "um sistema institucionalizado de
produção, consumo, distribuição e censura do saber jurídico influenciado
pelas relações com a sociedade global, sendo que estas relações devem ser
exteriorizadas" (MINGHELLI, 2001, p. 98).
Como resultado da recuperação ideológica da Teoria Pura do
12
60
Como exemplo, Warat aponta que "o sentido conceitual da identidade kelseniana, entre
Direito e Estado, é convertido em uma fórmula estereotipada que conota o caráter ético do
Estado, impedindo, aparentemente, de agir fora da imaculada gaiola das normas positivas"
(2004, p. 32)
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Direito - pedra fundamental, mas não exclusiva do positivismo jurídico -, e
do senso comum teórico resultante, o operador do direito é posto diante de
uma realidade de significações não sujeita a críticas e que terminam por
conduzir e condicionar o seu processo de conhecimento, transformando-o em
mero repetidor dos conhecimentos ideologicamente reconhecidos como
válidos e impedindo-o de conhecer os pressupostos lógico-epistemológicos
desses conhecimentos, ou seja, do fenômeno jurídico em sua integralidade.
Assim, a dogmática jurídica de viés positivista adquire caráter
autorreplicante. Os estudos de Warat contribuem, de forma fundamental,
para a compreensão dos mecanismos ideológicos atuantes no mito de
neutralidade e objetividade da dogmática jurídica tradicional (positivista),
revelando "as ideologias e as contradições de um sistema que não acompanha
a realidade social" (MINGHELLI, 2001, p. 104).
4 Razão Cínica e Identificação Imaginária
É neste ponto que se pretender realizar, efetivamente, a articulação
de saberes, apontando o papel da identificação imaginária como forma de
proliferação de valores ideológicos, associado ao equívoco dos operadores
do direito de não reconhecerem o caráter ideológico da dogmática jurídica,
criando ambiente propício a que o discurso cínico seja recebido e assumido
como socialmente justificado.
Os operadores do Direito provenientes de um sistema de ensino
voltado à mera replicação do conhecimento já produzido - alienado de seu
caráter ideológico -, sem maiores preocupações quanto ao desenvolvimento
de novos conhecimentos, não possuem as condições para a devida
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compreensão do fenômeno social, sendo impossível a estes reconhecer, por
exemplo, que as relações na nossa sociedade contemporânea são ditadas,
como afirma Antônio Mendonça, por um "signo da impostura perversa", ou
seja, por um imaginário coletivo dominado pela "razão cínica" e por uma
"identificação imaginária a essa razão cínica".
A noção de "razão cínica" foi estabelecida por Peter Sloterdijk13,
sendo posteriormente incorporada pelo psicanalista Slajov Zizek à
psicanálise contemporânea, especificamente no estudo do campo lacaneano
do gozo (a "razão cínica" seria o "gozo perverso da sociedade
contemporânea"). O seu conceito possui conteúdo oposto ao do "kynisme"
grego, caracterizado este pela "apropriação cínica que as pessoas que estão
em desacordo com determinada ordem social" (MENDONÇA, 1999) fazem
da ideologia oficial, podendo ser apresentados como maiores exemplos, no
âmbito nacional, a obra de Machado de Assis e "Macunaíma" de Mário de
Andrade, repletas de críticas corrosivas, irônicas, parodísticas e
desconstituidoras da ideologia oficial. Seria a razão cínica, portanto,
diferentemente do cinismo auto-defensivo, a "hipocrisia, a impostura
exposta na forma sublime do 'bom-mocismo' pela ideologia oficial, que,
então, dissimula o seu caráter perverso" (MENDONÇA, 1999). A obra
"Crítica da razão cínica", de Sloterdijk, como aponta Mendonça, faz uma
crítica da ideologia por meio de uma paródia à "Crítica da razão prática", de
Kant ! que propõe uma teoria moral de uma sociedade idealizada, pautada
pela razão e pela liberdade, apontando que a razão cínica seria uma
característica cultural marcante da sociedade pós-moderna. O autor
transforma a sentença teológica do livre arbítrio cristão ("Pai, perdoai-lhes,
pois não sabem o que fazem"), e a célebre frase de Karl Marx ("Disso eles não
13
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A expressão foi inicialmente utilizada em sua obra Kritik de Zynischen Vernunft, publicada
em 1983, ainda inédita no Brasil.
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sabem, mas o fazem"14), na elocução "eles sabem muito bem o que estão
fazendo, mas mesmo assim o fazem", denunciando que, frequentemente, a
elite ! considerada em seu aspecto mais abrangente adota uma ideologia de
conveniência, supostamente humanista e libertária, para praticar atos de
tirania e perversão, ou seja, em nome da realização do bem-estar coletivo é
realizado, em verdade, ato cujos resultados não correspondem a essa pretensa
finalidade. A ideologia, para a razão cínica, desempenharia um papel
eminentemente dissimulador e deformante das relações sociais.
Sloterdijk estabeleceu, em sua teoria, o modo de funcionamento da
razão cínica, enquanto que Zizek identificou esse comportamento distorcido,
dentro de um ponto de vista psicanalítico, na ordem da perversão, no sentido
de constituir uma impostura, uma manipulação agressiva, embora
dissimulada, com desrespeito a todo e qualquer fundamento ético,
alcançando limites preocupantes, quando patrocinada pelo modo de
organização do sistema social. Zizek, com fundamento nas reflexões de
Freud na "Psicologia das Massas e Análise do Ego", bem como em Lacan,
examina a identificação egoica da sociedade à razão cínica, diante de uma
manipulação performática, frequentemente governamental, realizada por
meio da mídia, das identificações simbólicas da sociedade, ocasionando
distorções em suas percepções valorativas. Assim, na sociedade pósmoderna, as grandes narrativas de legitimação, interpretantes da sociedade,
entraram em decadência, sendo superadas por uma cultura do "show
business", em que a mídia exerce uma função estratégica, passando a
interpretar o mundo por meio de "personalidades atraentes", conferindo à
15
massa o papel de "maioria silenciosa" . Para a sociedade do espetáculo, o que
14
"Sie wissen das nicht, aber sie tun es.”
As grandes narrativas de legitimação emancipatória, em especial o marxismo, procuravam
interpretar o mundo e, então, modificá-lo, o que é afastado pela "performance" da razão cínica,
que procura desacreditar e desatualizar tais narrativas, substituindo-as por uma cultura
banalizada, em que ocorre, igualmente, a banalização da violência e da sexualidade.
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importa é a performance e o espetáculo na mídia e não o conteúdo da
mensagem. O que ganha relevo é o reconhecimento identificatório, em que o
indivíduo se identifica, imageticamente, por semelhança egoica, com a
"imagem" apresentada, independentemente dos valores a ela subjacentes,
num culto à banalização da cultura. A violência, p. ex., é vista, pela mídia,
como apelo ao sensacional, transformando-se em uma mercadoria a ser
explorada, face ao seu caráter performático.
Estamos diante de um "cenário de engaiolamento das
possibilidades de reinvenção política e cultural numa sociedade dominada
pelo mercado livre" (MENDONÇA, 1999), decorrente de uma suposta
inevitabilidade da história, tese já defendida pelo discurso neoliberal e
subliminarmente difundida pela mídia mundial. De tal forma, os limites de
indignação restam limitados por uma comunicação uniformizada e
dominada por uma lógica orientada pela razão cínica e, como leciona Flávio
Bertelli, "onde não há espaço para existir uma tensão que possa dialetizar
uma relação na prática, fica o supereu, reinando sozinho, e onde o supereu
reina, o sujeito se avassala", tendo em vista que a dita sabedoria cínica é
fundada na negação da negação pervertida. Bertelli propõe uma
complementação à frase de Sloterdijk que, a seu juízo, deveria ser: "eles
sabem muito bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas
eles, mesmo assim, continuam a fazê-lo".Arazão cínica, assim, não é fruto da
ignorância, mas sim do conhecimento, de um conhecimento voltado a uma
determinada finalidade de natureza "gananciosa", revelante do caráter
eminentemente hobbesiano da natureza humana, em que é ressaltado um
profundo desprezo pela condição humana. A ilusão, a fantasia ideológica
preconizada pela razão cínica procura "estruturar", ao seu sabor, a realidade
social, de forma que precisamos encontrar formas superiores de indignação
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que superem a lógica do cinismo e que reinventem a utopia. Forçoso, no
entanto, reconhecer, infelizmente, que, apesar de vivermos sob a égide de um
Estado de Direito, supostamente garantidor e promotor do pleno
desenvolvimento e exercício dos direitos fundamentais do cidadão, nosso
dia-a-dia é povoado por uma retórica - quando não demagógica inconscientemente fundada em uma identificação imaginária com valores,
mitos, representações e crenças que, em realidade, negam um verdadeiro
conceito de cidadania.
5 Conclusões
Na medida em que a moderna sociedade do espetáculo padroniza,
de forma unilateral, quais valores devem ser seguidos por todos os substratos
da sociedade, e que a ausência de uma reflexão mais aprofundada impede o
desvelamento do caráter alienante desses valores, mascaradores de uma falsa
consciência, cinicamente construída (frequentemente), não haveria de
ocorrer de forma diversa quanto aos operadores do direito, os quais, enquanto
membros dessa mesma sociedade alienada, são igualmente influenciados
pelo discurso científico, supostamente não-ideológico, sendo assim
inconscientemente controlados por pré-concepções que terminam por
impedir uma compreensão efetiva do real - da apropriação institucional dos
conceitos pelo discurso da Ciência do Direito, alegadamente neutro e puro -,
conduzindo, assim, à (re)produção de um discurso jurídico ideologicamente
vinculado a esses valores cinicamente transmitidos. Na medida em que esses
valores são incorporados à mente humana pelo processo de identificação
imaginária ou egoica - que faz paralelo com conceito de "apropriação
institucional dos conceitos" de Warat -, não se pode afastar a decorrência de
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que essa dimensão mistificadora, por meio de condicionantes interpretativos,
impede a construção de um raciocínio jurídico efetivamente vinculado aos
valores estabelecidos pela Constituição, mas a valorações intermediadas por
meio de processos de construção significativas, ideologicamente
estabelecidos. Warat (2004, p. 33) propõe uma metodologia reflexiva de
superação do "senso comum teórico" pela seguinte análise epistemológica:
a) "através de uma reflexão sobre a relação do sistema de conotação com a
prática jurídica", e b) "através de uma leitura preocupada com a explicitação
das funções sociais do saber jurídico". Seria, para tal, fundamental a
substituição do "egocentrismo textual" - compreensão de que as normas
jurídicas seriam determinantes plenas do sentido normativo - pelo "princípio
da heteronímia significativa", com a leitura crítica do direito que viabilize a
consequente explicitação das "funções sociais do saber jurídico", ou seja,
para a efetiva "compreensão do papel efetivo do direito e do seu
conhecimento na sociedade".
Voltando ao título do presente trabalho, este se justifica, no âmbito
de uma análise transdisciplinar, na compreensão de que o senso comum
teórico definido por Warat encontra um suporte "subterrâneo" - e sua fonte
replicadora - no processo de acobertamento ideológico realizado pela
dinâmica da identificação imaginária, que, falsamente, confere caráter nãoideológico a um discurso jurídico comprometido com valores uniformizados
pela sociedade do espetáculo, pretensamente refreadora do caráter dialético
do desenvolvimento humano. O professor Albano Pepe, ao se referir a um
"subterrâneo do senso comum teórico", não fazia menção a uma interação
psicanalítica, tal como propõe Zizek sobre a crítica de Sloterdijk, mas à
percepção de que deveria existir um mecanismo replicador – de recuperação
ideológica - pelo qual o senso comum era reiteradamente adotado, ao longo
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do tempo. O discurso cínico conceituado por Sloterdijk não tem o poder,
isoladamente, de produzir tal efeito replicador, sendo necessária a
interferência de uma outra instância - metajurídica -, a qual permite a
infestação do racional por esse discurso, qual seja a identificação imaginária.
Essa é a percepção inovadora que o pensamento complexo permite construir.
Temos, assim, que superar o paradigma de uma metodologia clássica do
ensino jurídico, propondo sua revolução, por meio de uma metodologia
voltada à formação transdisciplinar do operador do direito, permitindo que o
fenômeno jurídico seja examinado diante de outros saberes, dando espaço à
criação de novas percepções, inviáveis hoje diante das limitações da ciência
do direito.
Não se pode deixar de referir, ao perscrutar sobre o pensamento
crítico do Direito e a necessidade de construção de uma nova epistemologia
jurídica, a importância dos estudos desenvolvidos por Lênio Streck, em
especial as obras "Verdade e Consenso" e "Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise", bem como a recente "O que é isto – decido conforme minha
consciência?". Streck, por exemplo, sinteticamente, na última obra
mencionada, por meio de percepções diversas, extremamente sofisticadas e
originais, expõe a permanência da influência do positivismo jurídico no
imaginário dos operadores dando origem esta a uma mecânica onde a
discricionariedade positivista, risco de solapar nossa ainda iniciante
democracia. Podemos aduzir, a partir de Warat, que o senso comum teórico
dos juristas, por seu "processo de apropriação institucional dos conceitos",
constitui em um dos suportes fundamentais do hoje preocupante ativismo
judicial, eminentemente arbitrário e antidemocrático, razão pela qual deve
ser superado.
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Ad ultimum, a questão central do presente estudo foi a de salientar a
inarredável necessidade de ser adotada uma reflexão crítica, desalienante do
caráter intrinsecamente ideológico do saber jurídico institucionalmente
sacralizado, aparentemente purificado pela Ciência do Direito, uma vez que
os processos, anteriormente explicitados, de recuperação institucional do
positivismo jurídico e de identificação imaginária à razão cínica, permitem o
estabelecimento de manipulações significativas, no campo do Direito, pelas
estruturas de poder, compreendido este termo em seu espectro mais
abrangente.
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CIDADANIA PROCEDIMENTAL: A IDEALIZAÇÃO
HABERMASIANA NO EXERCÍCIO LEGISLATIVO
Carolina Salbego Lisowski1
Santiago Artur Berger Sito2
RESUMO
O presente artigo propõe uma investigação acerca da importância e dos
desdobramentos do conceito de cidadania no seio da teoria habermasiana
discursiva de direito procedimental. A tentativa de resgatar tal conceito
perpassa por um duto maior: o remontar próprio da ciência jurídica, em sua
totalidade, regatando-se parte a parte de contextos contingentes. Ao cabo,
este estudo não fica restrito ao fazer jurídico, tendo em vista que o sistema
social complexo, policontextural, acabam por atingir também, e de forma
especial, as práticas legislativas. Compreender como a cidadania foi
concebida e sua importância para absorver o que é, como funciona e quem
exerce o direito é crucial. Poder e soberania tornam-se contrapontos a serem
postos de frente com a cidadania, a fim de que se possa compreender os
desafios não só do judiciário como também do legislativo, ambos atuando em
tempos de globalização.
Palavras-chave: Cidadania. Legislativo. Habermas.
ABSTRACT
This article proposes a research about the importance and ramifications of the
concept of citizenship within the Habermas's discursive theory of procedural
law. The attempt to rescue such a concept exists within a larger study: the
reconstructing of Law science, in its entirety, saving its parts of the
contingent contexts. Although this study is not restricted to the legal aspect,
since the complex social system, policontextural, achieving also, specially,
the legislative practice. To understand how citizenship was conceived and its
importance to absorb what, how and who exercises the right is crucial. Power
and sovereignty become counterpoints to be put in front to citizenship so that
we can understand the challenge not only the judiciary but the legislature,
acting both in times of globalization.
Keywords: Citizenship. Legislature. Habermas.
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Santa
Maria.Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano.
2
Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano e do curso de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Santa Maria.
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1 Introdução
Jürgen Habermas ocupou-se extensivamente em construir uma
teoria discursiva para resgatar, pós 2ª Guerra Mundial, os destroços da razão
que provaram não sustentar a segurança de um sistema político normativo.
Em sua teoria, os direitos subjetivos e a elaboração legislativa ocupam um
local de destaque, pois delimitam a liberdade subjetiva que desenha o papel
do cidadão dentro do sistema de direitos moderno.
Visando a reconstruir esse caminho (da liberdade subjetiva),
Habermas traz o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão3, in verbis: "IV - Alei é a expressão livre e solene da vontade geral;
ela é a mesma para todos, quer proteja, quer castigue; ela só pode ordenar o
que é justo e útil à sociedade; ela só pode proibir o que lhe é prejudicial."4.
[sem grifos nos originais]
Percebe-se o quanto este artigo da Declaração tem conexão com a
ideia kantiana de princípio geral do direito. A liberdade de um sujeito é
garantida até onde não prejudique a liberdade coletiva circundante. John
Rawls, em seu primeiro princípio da justiça, estatui que: "[. . .] todos devem
ter o mesmo direito ao sistema mais abrangente possível de iguais liberdades
fundamentais"5. O conceito de lei vem ao encontro de tal aspecto, eis que
exterioriza características como generalidade e abstração.
3
Trata-se de documento carregado de profunda carga axiológica. Representa, sinteticamente,
a luta empreendida pelo terceiro estado francês, pela igualdade solapada da massa social, que
pesadamente sustentou o clero e a nobreza num contexto de extrema desigualdade prérevolução francesa, datada de 26 de agosto de 1789.
4
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/ anthist/dec1793.htmAcesso em: 28/03/2008, às 17h.
5
RAWLS, John apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e
validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 114.
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2ACidadania e a Formulação das Leis: o sujeito autor-destinatário
Um círculo envolve essa sistemática paradoxalmente: o mesmo
sujeito de direito que goza de liberdade conforme a lei é o responsável pelo
exercício de seu poder de soberania popular, ao produzir a lei. Deste ponto de
vista se explica a legitimidade pela legalidade. O direito só é legítimo quando
produzido legalmente (ou seja, dentro dos trâmites procedimentais
delineados pela lei) e só há produção de leis se oriundas de uma iniciativa
(popular) legítima (direitos políticos). Habermas ressalta que o processo
legislativo precisa desse componente democrático acentuado até a última
instância para a formação de um composto legal fruto de um entendimento
dos sujeitos acerca de sua convivência. É neste instante, então, que se pode
traçar as primeiras linhas do desafio do exercício legislativo demandado em
frente à complexa sociedade que se apresenta.
Imperioso, nesse instante, voltar-se atenção ao que se tem sobre
cidadania. Expõe José Murilo de Carvalho6, citando Bryan S. Turner, que
existem diferenças nas formas de constituição e na aquisição, por assim dizer,
de cidadania, sendo que, inicialmente, podem-se apontar dois eixos, os quais,
posteriormente, sub-rogam-se em quatro tipos distintos de cidadania.
A existência de dois eixos justifica-se, uma vez que representam
naturezas distintas de formação da condição cidadã, sendo uma "de baixo
para cima e outra de cima para baixo"7, ambas as direções tendo em vista o
sentido em que as opera essa constituição: de baixo para cima refere-se a uma
cidadania marcada por lutas populares, a fim de conquista e estabelecimento
de um Estado Democrático de Direito. Já a cidadania que se constrói no
6
TURNER, Bryan, apud CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: Tipos e Percursos. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996. p. 1.
7
CARVALHO, 1996, op. cit., p. 1.
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sentido oposto, por sua vez, mantém relação com a dicotomia entre público e
privado, viés esse a que Habermas alude quando aborda a um espaço do fazer
legítimo. Sobre esse sentido de construção, bem explana Carvalho:
A cidadania pode ser adquirida dentro do espaço
público, mediante a conquista do Estado, ou dentro do
espaço privado, mediante a afirmação dos direitos
individuais, em parte, sustentados por organizações
8
voluntárias que constituem barreiras à ação do Estado .
Expostas essas primeiras possibilidades para identificar a origem
da cidadania, além, por óbvio, das características idiossincráticas a cada
formulação, o autor apresenta a segunda partição, a qual advém dos dois
eixos, mas que origina quatro diferentes concepções de cidadania, as quais
podem ser conquistadas: a) de forma ascendente, de baixo para cima, no
espaço público; b) no mesmo sentido, porém dentro da esfera privada; c) a
contrário senso, no sentido de cima para baixo, no espaço público, e como
exemplo bastante claro, nessa concepção, a ideia de universalização dos
direitos; d) por fim, de forma descendente, no espaço privado, estabelecida
por meio de uma lealdade recíproca entre Estado e cidadão.
Mais interessante que se tentar configurar, especificamente, a
forma de cada uma dessas cidadanias é, justamente, perceber o quão amorfa e, por isso, complexa - de ser compreendida dentro de um aspecto estático e
definitivo. Percebe-se, a partir dessas definições, que delimitar cidadania
apenas como a "qualidade de um sujeito dotado de direitos políticos e
sociais" obsta, em grande parte, a carga que "ser cidadão" tem em si. A cada
forma e processo de constituição, a cidadania constrói-se de maneira
particular e carrega consigo toda a carga ideológica que a fez emergir, a qual,
em nenhum momento, pode ser desconsiderada.
8
74
CARVALHO, 1996, op. cit., p. 1.
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Como já citado, interessa-se Habermas pela constante conexão
entre autonomia privada e pública e a relação do sujeito com o fazer público
legislativo, especialmente. Mesmo ao tratar do direito subjetivo do cidadão, o
filósofo alemão trata de recordar como Savigny conceituara autonomia
privada: "o poder que compete à pessoa singular: uma região onde domina a
sua vontade – e domina com nosso consentimento"9. A autorização coletiva
para um sujeito usufruir sua liberdade é uma componente da autonomia
pública na autonomia privada, no sentido de autorização. Só em Kelsen que
direito subjetivo em geral tornou-se alvo de proteção pleno, garantindo ao
sujeito a faculdade de exercê-lo.
Mesmo após a 2ª Guerra Mundial, com a queda da "confiabilidade"
do direito estritamente liberal, as conotações entre autonomia privada e
moral não se sustentaram. O liberalismo rejuvenesceu e recupera espaço nas
construções estatais, tornando-se pano de fundo de uma capitalização
vociferante da realidade econômica mundial. O direito subjetivo foi
"desfigurado por um modo de ler individualista"10, esquecendo-se do suporte
que o reconhecimento social dá ao indivíduo. São esses direitos que os
indivíduos atribuem-se reciprocamente chamados de direito objetivo
(autonomia pública).
Com vistas ao direito objetivo, Habermas passa a tentar legitimar o
direito positivo, ou seja, aquele produzido via procedimentos democráticos
de produção de leis. A democracia do procedimento, por sua vez, resgata sua
legitimidade na soberania do povo.
As primeiras considerações partem da doutrina kantiana do direito.
Kant enumera três princípios (da moral, do direito e da democracia – que
9
SAVIGNY, Friedrich Carl Von apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre
facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. V I. P. 116.
10
HABERMAS, Jürgen. 2003, op. cit., V.1, p. 120.
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chama de modo de governo republicano) que Habermas compreende em um
só, qual seja, o da autolegislação. Esse conceito, explica Habermas, é uma
reação à frustrada tentativa de Hobbes em esquematizar um contexto jurídico
legitimado subjetivamente. Frustrada, porque Hobbes, ao desenhar o estado
de natureza e engendrar o contrato (instrumento burguês-liberal) social como
forma de ceder parcela da liberdade subjetiva a um escolhido, falhou em
perceber que as posturas determinantes de tais atitudes dos partidos
envolvidos eram orientadas pelo sucesso e não pelo entendimento.
3Alteridade e Reciprocidade: cidadania reconstrutiva
Essa troca de lógica empurra Habermas a prescrever as únicas
condições pelas quais é necessário passar para se atingir uma cooperação
protegida, de fato. A primeira trata da reciprocidade. Os sujeitos precisariam
compreender o que seja " assumir a perspectiva de um outro e a considerar-se
a si mesmos na perspectiva de uma segunda pessoa"11, ou seja, a condição de
alternância do sujeito em seus papéis enunciativos de sentido. Trata-se, no
reconhecimento de si, de constituir-se enquanto sujeito por meio da
alteridade. Em segundo lugar, os contratos deveriam poder ser parciais,
fechados entre sujeitos e partidos, para estes, num segundo momento,
repassar liberalidades naturais. Kant compreendeu, desta caminhada
hobbesiana, que os direitos subjetivos não poderiam buscar na construção
burguês-liberal um ideal de fundamentação. A chave do assunto residiria no
contrato. Falando sobre a soberania, Kant afirmou: "Aqui, porém, não é
possível o ato volitivo de nenhuma outra vontade a não ser a de todo o povo
11
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HABERMAS, Jürgen. 2003, op. cit., v.1, p. 124.
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(uma vez que todos determinam sobre todos e, portanto, cada um determina
sobre si mesmo): pois ninguém pode ser injusto consigo mesmo."12
A fundamentação de um direito moderno, atualmente, requer
discursos mais eficazes e concretos, como os direitos humanos e a soberania
popular. Habermas concebeu-os separadamente, dentro de suas
particularidades. Kant e Rousseau procuraram compreender um modo que a
teoria moral-cognitiva dos direitos humanos e a teoria ético-voluntária da
soberania popular "se interpretassem mutuamente"13. Kant, mais pelo lado
liberal dos direitos humanos, enquanto Rousseau, mais pelo lado
republicano, da soberania popular.
Habermas aproxima os conceitos da seguinte forma: o sistema
jurídico precisa funcionar sob a ótica de um ordenamento preciso e bem
construído, como bem já se constatou na trajetória das construções jurídicas.
As leis de tal sistema exigem, no seu processo de criação, a adoção de uma
sistemática procedimental democrática, para permitir que os sujeitos de
direito ditem, conforme suas ações orientadas pelo entendimento recíproco
de algo no mundo, o conteúdo normativo e figurem livremente deste como
autores (exercício liberal de usufruto da soberania popular). Já os direitos
humanos podem ser vastamente pesquisados e entendidos como substrato
informador do conteúdo jurídico destas produções democrático-soberanas.
Só assim a mutualidade das interpretações será ainda possível. Com o
emprego de faculdades é que se transformarão comunidades inteiras de
pessoas em autênticos cidadãos exemplarmente considerados. Esse é o
princípio aglutinado da autolegislação. O cerne do princípio reside no
"conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é
12
13
KANT, I. apud HABERMAS, 2003. loc. cit., p. 127.
HABERMAS, 2003. loc. cit., p. 134.
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assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade, e não
através de leis gerais."14 Compreender os destinatários dos direitos os
próprios autores é a ideia chave deste ponto.
É nesse ponto, então, que já se pode apontar que não basta uma
representação simbólica, em uma democracia que também se torna
simbólica. E isso acontece se a reduzirmos somente ao direito ao voto. Muito
mais do quer poder votar – o que, sem dúvida, representa a coroação do
estado democrático – a democracia, pensada a partir dessa concepção de
autotutela, impõe ao poder legislativo o dever de garantir aos cidadãos o
verdadeiro direito à participação e a criação normativa.
Para tanto, Habermas afirma que "são válidas as normas de ação às
quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na
qualidade de participantes de discursos racionais"15 [sem grifos nos
originais]. Quando emprega a palavra válidas, o filósofo alemão pretende
legitimar a norma jurídica construída num contexto participativodemocrático. Só tal premissa consegue debruçar sobre a norma a presente
qualidade. Essa validade justifica a imposição e as coerções na
desobediência. Se tal validade não estivesse presente, inócua seria a norma
construída sem a devida carga democrático-legislativa. Essa norma se dirige
a determinados sujeitos que fazem parte de uma comunidade jurídica que
Habermas já delimitou como destinatários e são, portanto, aqueles que serão
atingidos direta e indiretamente pela aplicação judicial e social da norma. É
nesse sentido, então, que se coadunam legislativo e judiciário, aquele
garantindo a participação dos tutelados na criação legislativa, e este,
reconhecendo ou não a legitimidade da norma em cada caso concreto.
14
15
78
HABERMAS, 2003. op. cit., p. 137.
Idem, p. 142.
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Na função de reguladora das relações intersubjetivas, a norma
atinge, imparcialmente, sujeitos de direitos que precisam obedecer. Precisam
porque o codex institucionalizado desenha sanções, diferente do codex moral
não institucionalizado. O discurso racional é momento do agir comunicativo
e da atuação dos atores, como bem se refere Habermas, do ato de constituir
legitimamente. Do somatório de sujeitos imbricados em discursos orientados
pelo entendimento, diante de posturas participativas, a comunicação atinge
seu ápice, acolhendo e distribuindo contribuições, informações e
argumentos, sempre simetricamente16.
Nesse mesmo sentido, Carvalho lança luzes sobre o que seria essa
relação indispensável entre Estado e cidadão, na qual este agiria como a
pedra de toque à efetiva atuação daquele. Segundo o autor, "estadania" é a
expressão que, exatamente, nomeia essa interligação, uma vez que se refere à
"afirmação cívica da cidadania"17, ou seja, considera a cidadania junto ao
estado e não apenas em face ao sujeito que, supostamente, a possua.
16
Tal aspecto merece maior atenção. A simetria exige que o contexto comunicativo considere
os sujeitos de direitos igualmente. Proposições emitidas por sujeitos precisam ser admitidas,
consideradas, contraditadas e utilizadas em igualdade. Caso contrário haveria justificada
iminência de instabilidade pela errônea distribuição da atenção coletiva. Os pressupostos do
agir comunicativo, dessa forma, impulsionam os sujeitos a serem considerados
simetricamente. Este termo posiciona no centro da discussão os parâmetros do
entendimento, impedindo que venham a pender para qualquer dos posicionamentos
polarizados. A simples possibilidade de permitir um posicionamento parcial esvazia o agir
comunicativo de credibilidade, depreciando sua legitimidade como instância reguladora da
ação humana (em última instância, da ação social). Tanto Rawls como Savigny são
exemplos dessa simetria quando afirmam que é direito de todos iguais liberdades subjetivas.
17
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. P.225
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4 Possibilidades deAção em Face ao Proposto
Enfim, como instrumentalizar essa produção válida de normas de
ação nos contextos de sociedades complexas? A resposta habermasiana
caminha no princípio da democracia. Habermas entende que o princípio da
democracia "destina-se a amarrar um procedimento de normatização
legítima do direito"18. Termos, nesse momento, a volta de autolegislação,
agir comunicativo e validade para explicar o porquê do princípio da
democracia. Tal princípio não fundamenta ações subjetivas e, por tal razão,
tem um caráter muito mais formal do que material. Ou melhor: sua
materialidade consiste em desenhar formalidades. A democracia é tida como
uma componente crucial de auto-organização de uma comunidade que
pretende ter como válido o objeto legislado. As responsabilidades do
princípio democrático são: garantir aos sujeitos de direito sua efetiva
participação, garantir a simetria das contribuições sem distinção alguma,
garantir contextos comunicativos capazes de permitir a extensiva utilização
da razão comunicacional coletiva e orientar a produção do próprio direito19,
dentro de contextos dialógicos.
Habermas ressalta um aspecto de agir: ele precisa ser livre e partir
da vontade desinteressada do sujeito de direito. Apoiado em Klaus Günther, o
filósofo alemão faz uso do conceito de "liberdade comunicativa", ou seja, a
liberdade de posicionar-se ante os proferimentos que levantam pretensões de
validade lançados nos discursos por sujeitos considerados "adversários". No
verso dessa liberdade reside o dever do singular que levantou o argumento a
18
19
80
HABERMAS, 2003. op. cit., p. 145.
A última função merece comentário. O princípio da democracia, além de garantir contextos
de utilização e exercício do agir comunicativo, precisa determinar os rumos e caminhos do
direito. Habermas menciona que não basta a democracia garantir acesso e institucionalizar
opiniões. Ela precisa proporcionar a forma que as regras jurídicas adotarão, em face dos
contextos modificativos da atualidade.
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necessidade de produzir um discurso plausível de justificação e de defesa
argumentativa de sua pretensão de validade. Nesta senda, Habermas sepulta
o egoísmo originário que Kant dissimulou no princípio da democracia.
Mesmo que o sujeito de direito não vislumbre teleologicamente resultado
favorável à sua pessoa, em uma decisão moldada comunicativamente, ele
pode simplesmente concordar. A racionalidade que o procedimento evoca é
capaz de congregar até o agir orientado pelo sucesso (individual), pois
verifica num médio ou longo prazo um entendimento comunicacional
(sucesso coletivo).
Ou seja, a liberdade comunicativa permite que os sujeitos venham a
se excluir do processo, mesmo sem justificar-se, simplesmente pelo fato de
não acreditarem na sistemática da divisão social do trabalho. Ela carrega o
direito à indiferença20. Estabelece-se, aqui, uma situação em que o silêncio
constitui sentidos outros que não o desconhecimento, por exemplo. Não se
pode pensar, nesse caso, que "quem cala consente". O indivíduo tem ainda o
direito de renunciar a essa liberdade, em face à discricionariedade individual
que possui.
Na retomada do princípio do discurso, Habermas explica que
direito e princípio da democracia só restam separados momentaneamente.
Da mixagem entre princípio do discurso e liberdades subjetivas surge a forma
jurídica contemporânea, a qual, institucionalizada, produz o princípio da
democracia. Os conceitos de forma jurídica (não-institucionalizada) e
princípio do discurso (substrato da forma jurídica) constroem a base
20
Deste direito à indiferença tratou José Joaquim Gomes Canotilho em seu "Brancosos" e
interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional.
Nesta obra comenta a legitimidade dos atos daqueles sujeitos que usufruem seu direito
político do voto depositando na urna uma cédula completamente em branco (por isso
chamado de "partido dos brancosos"). Seja pela descrença, pela falta de opção, ou qualquer
outro motivo, o eleitor tem o direito de abster-se de contribuir e tal direito considera-se
legítimo. Essa liberalidade é justamente um exemplo da liberdade comunicativa que
Günther e Habermas tratam.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
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semântica de qualquer ordem jurídica que se considera legítima. Para
Habermas, esta mistura produz três categorias de direitos:
1) Direitos fundamentais que resultam da configuração
politicamente autônoma do direito à maior medida
possível de iguais liberdades subjetivas de ação;
2) Direitos fundamentais que resultam da configuração
politicamente autônoma do status de um membro numa
associação voluntária de parceiros de direito;
3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente
da possibilidade de postulação judicial de direitos e da
configuração politicamente autônoma da proteção
jurídica individual.21
O primeiro tem influência de Savigny e Rawls, como já elucidado.
Todos os sujeitos devem possuir a maior liberdade individual possível, desde
que seja igual para todos. Essa premissa guarda relação com a simetria dos
participantes do agir comunicativo que orienta os processos de
autolegislação em uma comunidade de sujeitos agregados voluntariamente,
autores destinatários e destinatários autores.
O segundo tópico versa acerca desse caráter voluntário de
participação dos eventos de uma determinada comunidade de direito. Não se
trata de voluntarismo na estruturação, na produção ou na aplicação das
normas. O caráter voluntário reside apenas na participação ou não da
comunidade, ou seja, na subordinação ou não de determinado sujeito aos
ditames estatuídos, aceitos e produzidos por aqueles que legitimamente
impuseram à ordem da forma com a qual se apresenta. O sujeito precisa de
um direito à autoexoneração, do contrário é ferido em sua autonomia de
cidadão. Sendo manifestamente contrário aos conteúdos cogentes do seu
ordenamento local, nada pode impedir o sujeito de outro local procurar. A
21
82
HABERMAS, 2003, op.cit., p. 159.
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vida em sociedade exige do sujeito a aceitação de parâmetros e medidas e,
caso configure-se nisso um descompasso, este não pode ser fator de
sofrimento e sim de reflexão.
O terceiro direito diz respeito aos direitos fundamentais de acesso à
justiça e do devido processo legal. Desde que o estado de natureza foi
abandonado e o Estado Nacional monopolizou o exercício de dizer o direito,
os sujeitos precisaram lançar mão de manifestações públicas para ver seus
conflitos dirimidos. O acesso à Justiça passou a ser a forma que o cidadão tem
para ver sua pretensão, ao menos, apreciada. O devido processo legal é a
garantia de que interesses ilegítimos não partiriam sua pretensão em
exequível e impossível. Por certo, se o Estado Nacional retirou dos senhores
feudais a possibilidade de dizer o direito, também precisaria manter um canal
de comunicação entre partes e juiz. Essa categoria tem um cunho
procedimental nítido.
Percebe-se que o procedimento assume um fator mediador,
diferente do que muitas vezes se pensa, que comunica instâncias afastadas
pelos interesses contingentes à época. Um sujeito desprovido da atenção
jurisdicional espacialmente e temporalmente é objeto de fácil manipulação e
sujeição.Adominação se torna algo "corriqueiro".
Verifica-se que Habermas procurou elencar os elementos sem os
quais qualquer ordem jurídica é ilegítima, em qualquer condição espaçotemporal. Por exemplo: o direito da dignidade da pessoa humana, da
liberdade, da vida, da integridade física, da liberalidade, da escolha da
profissão são todos desdobramentos do direito geral às liberdades subjetivas
iguais. Da mesma forma, a proibição de extradição e de cassação de direitos
políticos (dos quais se permite apenas a suspensão) é desdobramento do
direito de ter um status geral de um membro de uma associação livre de
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sujeitos de direito. Todas as garantias processuais são seguranças dos sujeitos
à livre apreciação de sua pretensão manifestada em processo judicial (ex.:
non bis in idem, proibição de tribunais de exceção, independência funcional
do juiz, devido processo legal etc.)
As três categorias desenham sujeitos determinados à
autolegislação. Mesmo como destinatários das normas, precisam sentir-se
autores, razão pela qual Habermas formula uma quarta categoria: "Direitos
fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de
formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua
autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo."22
A quarta categoria diz respeito ao princípio da democracia. Todo
cidadão precisa, voluntariamente, saber que seu direito de participar é
exercitável, especialmente em condições simétricas de comunicação, ao
menos em parte, para formular um ordenamento efetivamente legítimo, ou
seja, mais comprometido com os ideais delineados em sociedade, conforme
pretensões de validade criticáveis e, principalmente, sustentáveis em níveis
de argumentação e fundamentação diferenciados. Novamente lançam-se
luzes à ideia de autolegislação: destinatários como autores e autores como
destinatários, e outros conceitos reaparecem para justificar contextos de agir
comunicativo.
Quando trata do quarto direito fundamental, Habermas desenha
essa transformação de "teórico que ensina os civis a se entenderem e a se
reconhecerem em seus direitos reciprocamente" para "os civis se
autocompreendendo, assumindo sua autonomia através da linguagem pré23
selecionada do direito, de autores e não só de destinatários de direitos" .
Neste ponto Habermas faz um interessante levantamento: ele alega que ao se
22
23
84
HABERMAS, 2003, op.cit.p. 159.
HABERMAS, 2003, op.cit., p. 163-4.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
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abandonarem as esferas do "eu" e do "tu", é preciso abandonar a pretensão de
entender e avaliar os sujeitos de direito a partir da nossa visão. Ou seja, são os
próprios sujeitos de direito que são capazes de eleger seus valores e que têm a
titularidade de transformar princípio do discurso em princípio da
democracia. Desde que haja racionalidade no iter, exteriorização simétrica
de liberdades comunicativas e aplicação de princípio do discurso orientado
pelo entendimento, haverá uma construção legítima de direitos24 por meio do
legislativo.
Por fim, Habermas descreve a quinta categoria de direitos:
"Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e
ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um
aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados
anteriormente"25. Esta categoria trata de uma busca pela igualdade material.
Trata-se de pensar a sociedade como um seio solidário, disposto a ajudar os
mais necessitados espontaneamente. As condições de vida passam a ser
objetivo de diversos órgãos que prestam serviços de cunho filantrópico. Para
permitir um uso e gozo pleno dos primeiros quatro direitos elencados
anteriormente, mister se faz que os sujeitos tenham possibilidades de chegar
a posições diversificadas, independentemente de limitações econômicas. As
exigências taxativas das categorias anteriores produzem esse quinto termo,
com ordens de caráter formal, ou preventivo, em relação aos sujeitos.
24
Embora, neste trecho não apareça a palavra "etnocentrismo", a ideia é por demais presente.
Toda história da ciência antropológica foi e é no sentido de afastar-se do conceito segregador
e injusto do etnocentrismo. Em termos gerais, etnocentrismo é o instrumento humano de
ler/ver o outro a partir de valores próprios, ou seja, uma incapacidade de considerar o outro
como um todo (homem + cultura). O conceito melhor trabalhado encontra-se em ROCHA,
Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Col.
Primeiros Passos.) Com base neste equívoco, durante anos a Antropologia produziu
ideologia, e não ciência. A corrente evolucionista por muito tempo neste caminho andou.
Mas foi Franz Boas que deu início ao processo de extirpação desse câncer do seio
antropológico. Nasceu, neste ponto histórico, o conceito de relativismo. Habermas faz uso
da ferramenta relativista, no trecho em tela.
25
HABERMAS, 2003, op.cit., p. 160.
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Habermas, contudo, reconhece que a simples teoria e a
fundamentação destas categorias de direitos são incapazes de sustentar
sozinhas as complexidades encobertas pelo agir orientado pelo
entendimento, com posturas participativas, visando a um processo de
autolegislação à luz da efetiva cidadania, seja ela como for constituída. É
necessário que o componente Estado faça parte desta imbricação, para
contribuir e problematizar a sistemática de democraticamente legislar de si
mesmo para si mesmo.
5 Considerações Finais
Poder-se-ia falar em um direito procedimental no Brasil atual sem
ferir os ânimos exaltados pela luta contra o positivismo jurídico?
A corrente procedimental do direito regula a facticidade da
necessidade de uma "segurança jurídica" e a validade da correção
jurisdicional por meio de um sistema normativo compreendido
sistematicamente. Isso se deve à observância prioritária da ordem legal, eis
que essa representa o ideal democrático, comunicativamente construído, em
ampla construção produzida por sujeitos de direito emissores de atos de fala
em certa proximidade de condições argumentativa. Daí a confusão (ou não,
conforme se verá) erigida por aqueles que consideram o procedimentalismo
com longa manus do positivismo.
Assim, a dúvida trazida acima, de fato, justifica-se. Tanto, que Luiz
Moreira afirma:
No entanto, estes processos políticos de formação e
institucionalização da vontade democrática dos
cidadãos, livres e iguais, são necessários, mas não
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suficientes para a efetivação da liberdade. A sua
circunscrição nos limites da faticidade procedimental
instituída pelo ordenamento jurídico pouco ou nada
difere das formulações do positivismo ou do
normativismo jurídico – dado que resultaria no
abandono de uma instância crítica ou regulativa –, uma
vez que assumiríamos, agora sim, uma posição
dogmática em sentido estrito.26
Se Habermas pretendesse alongar a percepção exegéticonormativista, não teria reconstruído o direito, como sistemática
interpretativa, tampouco pretenderia uma via capaz de solidificar uma certa
correção jurisdicional. Simplesmente optaria pela via kelseniana de direito
conforme a lei. O recorte axiológico produz uma certeza (dogmática) que
mascara um resultado correto, mas que, ao menos, produz "certa" segurança
jurídica. Atualmente o modelo encontra seu declínio, principalmente pelo
fato de ser incapaz de produzir, efetivamente, seu desiderato justificador.
Mas a ideia habermasiana não pretendeu esses trilhos. A terceira
27
via sempre foi seu objetivo, e tal pensamento fica claro no seguinte trecho:
O direito formal burguês e o direito materializado do
Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos
mais bem-sucedidos na moderna história do direito,
continuando a ser fortes concorrentes. Interpretando a
política e o direito à luz da teoria do discurso, eu
pretendo reforçar os contornos de um terceiro
paradigma do direito, capaz de absorver os outros dois.
26
MOREIRA, Luiz. Direito, Procedimento e Racionalidade. In: MOREIRA, Luiz. (org.) Com
Habermas, Contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy Editora,
2004. p. 196.
27
Denomina-se terceira via a opção de Habermas por afastar-se, primordialmente, do
paradigma liberal-burguês, por entendê-lo insuficiente para os padrões complexos e
principiológicos da pós-modernidade, e também do paradigma social (comunitarista), de
funções distributivas e protetivas. O Estado Liberal e o Estado Social são nítidas opções
abandonadas. A terceira via (Estado Democrático de Direito) é o objetivo final. Sua
implementação seria o berço perfeito para a construção e administração de todos seus
conceitos e hipóteses, até aqui expostas.
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Eu parto da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos
no final do século XX, nas democracias de massas dos
Estados sociais, denotam uma compreensão
procedimentalista do direito.28
Ou seja, Habermas reconhece e parte dessas duas paradoxais
compreensões da ciência jurídica para reconstruir o direito, a partir dele
mesmo. Utilizando esses pressupostos, Habermas oferta a terceira via, para
regular a tensão entre a facticidade e a validade, interna e externamente ao
direito.
Mesmo assim, se é possível considerar o positivismo como um
derradeiro fim do procedimentalismo, então é preciso compreender as
limitações do próprio positivismo em si. Desse ponto em diante, aplicável a
doutrina de Lenio Luiz Streck, cujo maior mérito é, sem dúvida, perceber e
enumerar as razões da inaplicabilidade da teoria discursiva habermasiana (e,
de forma mais ampla, a insuficiência do positivismo jurídico) no Brasil. A
incapacidade brasileira de absorver a contingência teórica de Habermas se
revela de muitas formas, e destas tratar-se-á a partir de agora.
Que o procedimentalismo alimenta-se do dogmatismo, Habermas
deixa claro, quando afirma que:
esta ideia [procedimentalismo] é 'dogmática' num
sentido sui generis. Pois nela se expressa uma tensão
entre facticidade e validade, a qual é 'dada' através da
estrutura lingüística das formas da vida sócio-culturais,
as quais nós, que formamos nossa identidade em seu
29
seio, não podemos eludir.
O que não resta claro é esse sentido sui generis que Habermas
menciona. Até onde se pode perceber, o dogmatismo referido tem as mesmas
28
29
88
HABERMAS, 2003, op.cit., p. 242.
HABERMAS, 2003, op .cit., p. 190.
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características de qualquer outro dogmatismo, ou seja, pré-determinando
comportamentos e interpretações, esquivando-se da realidade delineadora de
casos concretos, eis que pretensiosa ao ponto de pré-julgar os fatos, antes de
compreendê-los. Para o filósofo alemão, o grande mérito de sua teoria está no
fato de superar a necessidade de pré-determinação daquilo que é bom, ou
ideal, para a sociedade, como faziam os paradigmas liberais e sociais. A única
formalidade está na observância do procedimento para a construção de uma
materialidade comprometida com a coletividade. Seu conteúdo não é o mais
importante. Aliás, nem importante é30. O importante é que a tensão entre
facticidade e validade resta apaziguada por um contexto estrutural
linguístico, das formas de vida sócio-culturais, que permitem aos sujeitos
identificarem-se com aquilo que são e com aquilo que defendem.
Porém, Streck é perspicaz quando ataca o dogmatismo, pois
engendra contra tal compreensão a culpa pela indeterminabilidade do direito.
Os contextos normativos que pretendem a completude do ordenamento não o
fazem sem recorrer às conjunturas principiológicas. Recorda-se que
completude é "a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma
norma para cada caso. Tendo em vista que a ausência de uma norma costuma
31
ser chamada de 'lacuna', 'completude' significa a 'ausência de lacunas'" . Mas
a suprema dificuldade de previsão de todas as ocasiões é ressaltada por
Perelman:
30
Tanto é verdade que Habermas cita: "One of the distinctive features of this approach is that
the outcome of the legislative process becomes secondary. What is important is whether it is
deliberation – undistorted by private power – that gave rise to that outcome." In: SUNSTEIN,
Cass R. apud HABERMAS, 2003, op .cit., p. 342. Tradução livre: (Uma das características
desta abordagem é que o resultado do processo legislativo torna-se secundária. O importante é
saber acerca da deliberação - não falseada pelo poder privado - que deu origem àquele
desfecho.)
31
BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. P. 259.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
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Para construir um instrumento perfeito, o sistema de
direito deveria ter todas as propriedades exigidas de um
sistema formal, a um só tempo completo e coerente:
seria necessário que para cada situação dependente da
competência do juiz houvesse uma regra de direito
aplicável, que não houvesse mais que uma, e que esta
regra fosse isenta de toda ambiguidade.32
Neste trecho, Perelman salienta todas as características
pretensamente abarcadas pelo positivismo jurídico, quais sejam: a
completude, a unidade e a coerência e Habermas, mesmo intencionado a
quebrar tal barreira, nela apenas se soma. Veja-se, por exemplo, que não há
como pretender construir uma nova ordem (legal) para um modelo
(brasileiro) de tamanhas desigualdades sociais. Talvez o maior obstáculo à
proliferação conceitual da teoria discursiva habermasiana no Brasil resida
justamente nesse ponto, qual seja: sendo a democracia representativa alvo de
tantas críticas33, é natural que o simples observar do procedimento legislativo
não represente suficiente garantia acerca da materialidade do ordenamento,
principalmente porque o contexto positivista (e seus defeitos) não seria(m)
sequer abalado(s) por tal teoria.
Lenio também aponta importante deficiência do positivismo neste
trecho:
A toda evidência, tais questões devem ser refletidas a
partir da questão que está umbilicalmente ligada ao
Estado Democrático de Direito, isto é, a concretização
de direitos, o que implica superar a ficcionalização
32
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
p.33-34.
33
Especialmente trabalhadas no Capítulo 7 de: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.
Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo:
Saraiva, 1995.
90
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provocada pelo positivismo jurídico no decorrer da
história, que afastou da discussão jurídica as questões
34
concretas da sociedade.
Conclui-se que positivismo e procedimentalismo não são
sinônimos. São entes apartados. Mas a separação não é tão visível, é mais
transparente e opaca. Exige perceptibilidade. Os juristas e legisladores do
Brasil, nesse ínterim, precisam mesurar as aplicabilidades habermasianas,
mas antes disso, compreendê-las.
Sem dúvida, não se deixa de reconhecer a coerência da proposta
trazida por Habermas e torna-se quase difícil não se filiar ao ideal da
autotutela, pensando que "aquele que deve obedecer a regra também deve
formulá-la". Contudo, o que obsta a aplicação da teoria habermasiana, como
um todo, nas nossas condições de produção, é justamente essa ilusão de
iguais condições discursivas, por exemplo, na qual deveriam situar-se os
atores sociais.
É notório que o contexto brasileiro não permite essa aproximação,
tendo em vista a sua situação geopolítica de discrepâncias sociais e
econômicas – logo, participativas. Contudo, de qualquer forma, no
encerramento desta breve exposição, não se deixa de propor que a teoria
habermasiana seja considerada, ao menos quando trata da autolegislação
enquanto requisito de uma democracia efetiva. Assim, adequado às
condições da produção legislativa brasileira, o legislativo deve considerar a
voz dos destinatários das normas. Este é autor e destinatário, tendo-se em
mente que aquele que agirá socialmente, sob a égide de uma lei, é legitimado
a participar da sua elaboração. Ou seja, trata-se, na verdade, do exercício real
da democracia.
34
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias
Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. P. 1-2.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
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REFERÊNCIAS
BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: Tipos e percursos. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.
___________. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade:
ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. V. I.
_________. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.
MOREIRA, Luiz. Direito, Procedimento e Racionalidade. In: MOREIRA,
Luiz. (Org.) Com Habermas, Contra Habermas: direito, discurso e
democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo:
Brasiliense, 1999. (Col. Primeiros Passos).
92
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
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STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e
teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010
93
LEI DELEGADA
Marcelo Azevedo Chamone1
RESUMO
A função legislativa é em geral desenvolvida pelo Poder Legislativo,
podendo ser exercida pelos demais por atribuição da própria Constituição ou
por delegação, das quais, no sistema brasileiro, temos a 'medida provisória' e
a 'lei delegada' como exemplos típicos, aquela utilizada de forma abusiva e
esta figura praticamente esquecida.
Palavras-chave: Delegação de Função Legislativa. Processo Legislativo.
Lei Delegada.
ABSTRACT
The legislative function in general is developed by the Legislative, but may
be exerted by Executive and Judiciary by attribution of the Constitution itself
or by delegation, of which, in the Brazilian system, we have the 'provisional
measure' and the 'delegated law' as typical examples, that one abusively used
and this figure practically forgotten.
Keywords: Delegation of Legislative Powers. Legislative Process.
Delegated Law.
1 Introdução
O presente trabalho trata do processo legislativo de criação da lei
delegada, de acordo com bases e limites traçados pela Constituição Federal,
buscando exaurir os principais temas correlacionados com a matéria.
Inicia-se com uma breve exposição sobre a função legislativa e a
sua delegabilidade, para, em seguida, tratar de todos os seus aspectos
processuais no sistema brasileiro, com base nos textos legais e em pesquisa
doutrinária especializada.
Este instrumento normativo, infelizmente subutilizado, poderia
1
Analista Judiciário do TRT2. Mestre em Direito. Professor de Direito Constitucional em
cursos de pós-graduação. Email: [email protected]
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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substituir, com fortes benefícios à democracia, o uso abusivo da infame
medida provisória, como será visto em tópico específico.
2 Delegação da Função Legislativa
A função legislativa, exteriorizada pelo ato legislativo –
"declaração unilateral da vontade estatal expressa e exteriorizada por escrito,
que dispõe sobre a criação, modificação ou extinção de normas jurídicas
abstratamente gerais" (MEEHAN)2 – é exercida de forma típica pelo Poder
Legislativo; essa é a função cujo exercício é característico deste Poder.
Assim, temos que a regra geral é a indelegabilidade da função
típica – tal regra vinha expressa no texto da Constituição de 1967, em seu art.
6º, parágrafo único3, e não foi repetida no texto vigente, mas é consenso na
doutrina (SAMPAIO, 1968, p. 44; TEMER, 2006, p. 152; CLÈVE, 1993, p.
191)
Porém, como meio de assegurar a independência recíproca,
sabemos ser possível o exercício atípico dessa função pelos demais Poderes,
o que pode ocorrer por atribuição do próprio texto constitucional ou por ato
do Legislativo, que é quem ordinariamente detém o poder de legislar. Assim é
que ao Judiciário cabe prolatar as ditas 'sentenças normativas' (CF, art. 114,
§2º), e ao Executivo editar Medidas Provisórias (CF, art. 62) e Leis
Delegadas (art. 68).
Quando esse exercício atípico encontra assento na Constituição,
diz-se tratar-se de legiferação permitida. Quando depende de ato concessivo
do Congresso, legislação consentida (FERREIRA Fº, 2002, p. 160). Nesse
último caso temos a delegação, que é retirar parcela de atribuições de um
2
3
96
MEEHAN apud KILDARE CARVALHO, 2007, p. 65.
Essa mesma regra já fora prevista nos textos de 1934 (art. 3º, §1º), e de 1946 (art. 36, §2º).
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
L E I
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Poder para entregá-lo a outro Poder, segundo a definição de Temer (2006, p.
152).
Essa delegação pelo Legislativo de sua função típica ao Executivo
surgiu da necessidade de adoção de medidas jurígenas céleres, o que não se
faz possível através do processo legislativo ordinário, em razão da
necessidade que lhe é inerente de possibilitar debates entre as diversas
correntes políticas.
Assim, já na era do Estado de Direito e repartição das funções
estatais, tal necessidade se fez presente especialmente em épocas de crise,
sobretudo de crise econômica.
Registremos [. . .] a tendência universal para a expansão
da legislação delegada, independente do sistema
governamental, se parlamentar ou presidencialista,
embora o clima do govêrno de gabinete lhe seja mais
propício. Reproduzamos as razões dessa expansão,
resumidas no Relatório clássico sôbre o assunto,
apresentado, em 1932, pelo Committee on Minister
4
Powers , da Grã-Bretanha: 1) falta de tempo do
Parlamento, pela sobrecarga de matérias; 2) caráter
técnico de certos assuntos; 3) aspectos imprevisíveis de
certas matérias a ser reguladas; 4) exigência de
flexibilidade de certas regulamentações; 5)
possibilidade de fazerem-se experimentos através da
legislação delegada; 6) situações extraordinárias ou de
emergência. Cremos que se pode aduzir um motivo
político ponderável, embora de menor pêso na GrãBretanha do que em outros países: o interêsse dos
próprios membros do Legislativo de fugirem à
responsabilidade de medidas impopulares, como
aumento de tributos e restrições econômicas, a fim de
evitar desfavoráveis reações do seu eleitorado
(SAMPAIO, 1968, p. 42-43).
4
"The system of delegated legislation is both legitimate and constitutionally desirable for
certain purposes within certain limits and under certain safeguards".
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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Na verdade, seria mesmo possível dizer que os governantes –
exercentes da função executiva – raramente abandonaram o hábito
absolutista, tanto que a prática de legislação delegada já chegou a ser
chamada de 'novo despotismo'5. Não se contentam em executar as políticas
delimitadas pelo Legislativo – representantes do soberano legitimados para
tanto –, desejando eles mesmos estabelecer as políticas a serem perseguidas.
Assim, mesmo quando não há previsão de delegação da função
legislativa ao executivo, o Executivo invariavelmente se arvora a produzir
normas legais, seja por conta própria ou através de delegação sem previsão
constitucional, e, assim, foi em nossa história desde os tempos imperiais
(SAMPAIO, 1968, p. 43).
Nos Estados Unidos, não foi diferente: a Supreme Court, sobretudo
à época do 'New Deal' se viu obrigada a construir uma jurisprudência sobre o
tema, diferenciando delegação de abdicação; enquanto aquela não violaria a
Constituição, esta, sim, seria inconstitucional. O critério elementar, segundo
6
Edwin Corwin , é indagar se "os poderes delegados podem ser recuperados
sem o consentimento de quem os recebeu".
Tal critério, porém, é manifestamente insuficiente. A ele
se tem de somar outro, mais preciso e mais importante,
que é o dos padrões (standards).
Entende a Suprema Corte, conforme é de sua
jurisprudência reiterada, que é a essência do Poder
Legislativo 'especificar as condições e os padrões que
devem governar o Presidente, ou qualquer
departamento da administração na sua área particular
de atividade'. Tal cerne o congresso não pode delegar.
Todavia, fixado esse cerne, pode o Legislativo confiar
ao Executivo, por delegação, o poder de editar as regras
5
6
98
Lord Hewart of Bury. The new despotism, 1929.
CORWIN apud GONÇALVES, Manuel, 2002, p. 163-164.
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necessárias, conforme as circunstâncias, para a
execução da lei. Sublinha com toda a clareza
SCHWARTZ: 'A menos que o ato de delegação de
poderes contenha um padrão – limite ou orientação com
respeito ao poder conferido que se possa exercer – ele
será inválido ou nulo'. (FERREIRAFº, 2002, p. 164).
Assim, determinou-se ser lícito ao Congresso ditar planos e
estabelecer padrões de regulação geral, deixando a outros órgãos o
estabelecimento de regras subordinadas, dentro dos limites prescritos, e dos
fatos, aos quais o plano formulado pelo legislador é aplicável.7
Se, portanto, o Legislativo fixar standards 'definidos de
maneira inteligível e razoável que limitem e guiem a
ação dos órgãos aos quais é feita a delegação', é esta
válida. Se, porém, esses standards são formulados vaga
e imprecisamente, tal importaria numa abdicação dos
próprios poderes pelo Congresso e então a delegação
seria inconstitucional (FERREIRAFº, 2002, p. 165).
Ademais, a delegação, para que seja constitucional, deverá ser
temporária, pois caso contrário estaria configurada a rejeitada abdicação do
exercício da função, e não mera delegação. Essa temporariedade, têm-se
entendido, estará ausente quando o termo da delegação exceder a duração da
legislatura, pois aí o delegatário estaria delegando mais poderes do que tem.
Por outro lado, não fica a delegação restrita à pessoa ocupante do cargo que
recebeu a delegação, não importando em caducidade da delegação a
7
"We pointed out in the Panama Refining Company Case that the Constitution has never been
regarded as denying to Congress the necessary resources of flexibility and practicality,
which will enable it to perform its function in laying down policies and establishing
standards, while leaving to selected instrumentalities the making of subordinate rules within
prescribed limits and the determination of facts to which the policy as declared by the
Legislature is to apply. But we said that the constant recognition of the necessity and validity
of such provisions, and the wide range of administrative authority which has been developed
by means of them, cannot be allowed to obscure the limitations of the authority to delegate, if
our constitutional system is to be maintained. Id., 293 U.S. 388 , page 421, 55 S.Ct. 241."
A.L.A. Schechter Poultry Corporation v. United States, 295 U.S. 495 (1935).
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alteração do ocupante – qualquer ocupante do cargo, seja a título interino ou
permanente, pode fazer uso da delegação (CLÈVE, 1993, p. 203-204).
O caráter temporário da delegação suscita três
indagações. A primeira concerne à possibilidade de,
durante o prazo fixado para seu exercício, editar o
Presidente mais de uma lei sobre a mesma matéria. A
segunda, sobre a possibilidade de o Legislativo, durante
o prazo da delegação, editar lei ordinária, dispondo
sobre essa matéria. A terceira, que está muito de perto
ligada à segunda, é a de se saber se o Legislativo pode
desfazer a delegação, retirando-a antes de terminado o
prazo concedido para o seu exercício.
A resposta às três indagações deve ser afirmativa. Se a
delegação é por prazo certo, obviamente persiste
durante todo ele; desse modo não há por que não possa o
Presidente editar mais de uma lei, enquanto esse prazo
estiver em curso.
Por outra, a delegação não priva o Legislativo de
qualquer parcela de seu poder, nem lhe retira o exercício
deste. É simplesmente uma habilitação. Destarte, o
poder delegante não renuncia à faculdade de editar, ele
próprio, leis sobre a matéria delegada. E, igualmente,
nada impede que revogue essa delegação, se isso lhe
parecer conveniente (FERREIRAFº, 2002, p. 233).
Aqui, as leis delegadas existem, de forma implícita, desde a
Constituição de 1891 (BULOS, 2007, p. 971).
Explicitamente, contudo, as leis delegadas apenas
surgiram, em nosso país, com a Emenda Constitucional
n. 4/61 (art. 22, parágrafo único), que instituiu o
parlamentarismo, mediante ato adicional.
Revogada a Emenda Constitucional n.4/61, as leis
delegadas somente retornaram com a Carta de 1967
(art. 55), mantendo-se até hoje (BULOS, 2007, p. 971).
100
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A Constituição de 1967 foi o primeiro texto a adotar as duas formas
de delegação legislativa: a delegação interna, concedida a comissões do
Congresso, da Câmara ou do Senado; e a delegação externa, ao Presidente da
República (SAMPAIO, 1968, p. 43). Desse modo, o Legislativo "está
habilitado a delegar o poder de editar regras jurídicas novas, seja à comissão
parlamentar – delegação interna corporis, seja ao Poder Executivo" –
delegação propriamente dita.
Não se autoriza a subdelegação (CLÈVE, 1993, p. 199).
2.1 Delegação Interna
Na ordem constitucional anterior, a delegação interna podia ser
concedida à qualquer comissão das duas Casas, bem como à comissão mista
ou do Congresso, devendo ser deferida sempre à comissão especial, por força
do art. 56, da Constituição (SAMPAIO, 1968, p. 88-89).
Já a Constituição vigente não faz referência expressa à delegação
interna corporis ao dispor sobre a lei delegada (art. 68). Mas, segundo
Ferreira Fº (2002, p. 229), trata-se de defeito de técnica, visto que o art. 58,
§2º, I8 a admite. Essa delegação interna, porém, é diversa daquela prevista no
texto de 1967-69: o regimento de qualquer das casas do Congresso pode
dispensar os projetos sobre determinadas matérias de serem apreciados pelo
plenário.
Trata-se de mera simplificação do procedimento, pois "o projeto
dela resultante se apresenta como obra do respectivo corpo legislativo, em
cujo nome agiu a comissão" (SAMPAIO, 1968, p. 44).
8
"CF, art. 58, § 2º - Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I - discutir e
votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo
se houver recurso de um décimo dos membros da Casa".
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Para José Afonso (2006, p. 319), no entanto, não há delegação
interna no sistema constitucional vigente: haveria "competência legislativa
definitiva, na forma que se estabelecer nos regimentos internos das Casas do
Congresso Nacional" (AFONSO, 2006, p. 319); se delegação não é, seria
então habilitação legislativa (p. 321). Delegação haveria naquelas hipóteses
previstas no art. 91, §1º, I a III, do RISF (examinadas a seguir), que
extrapolariam o mandamento constitucional.
De fato, o sistema de habilitação legislativa difere da
delegação, pois, nesta, 'a faculdade legislativa é
renunciada pelo poder competente que a entrega a
outro'. No caso de habilitação, não há abdicação do
poder de legislar, porque o órgão habilitado fica sempre
na dependência do órgão habilitante, mesmo quando a
habilitação, como é o caso, fundamenta-se numa norma
geral. Trata-se de uma habilitação legislativa,
constitucionalmente estabelecida, cuja efetivação, no
entanto, depende de normas específicas das Casas do
Congresso Nacional, por via dos respectivos
regimentos internos (AFONSO, 2006, p. 321).
Dispõe o Regimento Interno do Senado Federal (RISF, art. 91, I e
II) que às comissões, no âmbito de suas atribuições, cabe, dispensada a
competência do Plenário, nos termos do art. 58, §2º, I, da CF, discutir e votar:
projetos de lei ordinária de autoria de Senador, ressalvado projeto de código;
projetos de resolução que versem sobre a suspensão da execução, no todo ou
em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo
Tribunal Federal (CF, art. 52, X). À comissão, por ato do Presidente do
Senado, ouvidas as lideranças (art. 91, §1º), poderá ser atribuída competência
para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: tratados ou acordos
internacionais (CF, art. 49, I); autorização para a exploração e o
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aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais
em terras indígenas (CF, art. 49, XVI); alienação ou concessão de terras
públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares (CF, art. 49,
XVII); projetos de lei da Câmara de iniciativa parlamentar que tiverem sido
aprovados, em decisão terminativa, por comissão daquela Casa; indicações e
proposições diversas, exceto: projeto de resolução que altere o Regimento
Interno, projetos de resolução a que se referem os arts. 52, V a IX, e 155, §§1º,
IV, e 2º, IV e V, da Constituição9; e proposta de emenda à Constituição.
Em qualquer desses casos, encerrada a apreciação terminativa, a
decisão da comissão será comunicada ao Presidente do Senado Federal para
ciência do Plenário e publicação no Diário do Senado Federal (§2º). Da
decisão da comissão cabe recurso, assinado por um décimo dos membros do
Senado, dirigido ao Presidente da Casa, para que a matéria seja apreciada
pelo Plenário do Senado (§3º).
Para Afonso (2006, p. 320), essas regras do RISF ultrapassam o
mandamento constitucional do art. 58, §2º, I, que só dá competência às
comissões para discutir e votar projetos de lei, "de modo que não parece
conformar-se com a Constituição a atribuição de competência para apreciar
9
CF, art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...); V - autorizar operações externas
de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos
Territórios e dos Municípios; VI - fixar, por proposta do Presidente da República, limites
globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios; VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito
externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas
autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; VIII - dispor sobre
limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e
interno; IX - estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...).
CF, art. 155, §1.º O imposto previsto no inciso I: (...); IV - terá suas alíquotas máximas
fixadas pelo Senado Federal; (...).§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...); IV - resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um
terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as
alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação; V - é facultado
ao Senado Federal: a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante
resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros; b)
fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva
interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da maioria absoluta e aprovada por
dois terços de seus membros; (...).
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terminativamente matérias de competência exclusiva do Congresso
Nacional que dependem de decreto legislativo, tais como as referidas nos ns.
I, II e III"10.
Já o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) traz
regras diferentes – o art. 24, II, estabelece que às comissões permanentes, em
razão da matéria de sua competência, e às demais comissões, no que lhes for
aplicável, cabe discutir e votar projetos de lei, dispensada a competência do
Plenário, salvo recurso para o Plenário11, e excetuados os projetos: de lei
complementar; de código; de iniciativa popular; de comissão; relativos à
matéria que não possa ser objeto de delegação (CF, art. 68, §1º); oriundos do
Senado, ou por ele emendados, que tenham sido aprovados pelo Plenário de
qualquer das Casas; que tenham recebido pareceres divergentes; em regime
de urgência. Prevê, ainda, que se aplicam à tramitação dos projetos de lei
submetidos à deliberação conclusiva das comissões, no que couber, as
disposições previstas para as matérias submetidas ao Plenário da Câmara
(§1º).
2.2 Delegação Externa
Quando falamos em delegação externa, a figura que encontramos
em nosso sistema constitucional é a lei delegada, espécie normativa
elaborada e editada pelo Presidente da República, nos limites de autorização
10
RISF, art. 91, §1º O Presidente do Senado, ouvidas as lideranças, poderá conferir às
comissões competência para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: I – tratados
ou acordos internacionais; II – autorização para a exploração e o aproveitamento de recursos
hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas; III – alienação ou
concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares; (...).
11
RICD, art. 132, § 2º Não se dispensará a competência do Plenário para discutir e votar,
globalmente ou em parte, projeto de lei apreciado conclusivamente pelas Comissões se, no
prazo de cinco sessões da publicação do respectivo anúncio no Diário da Câmara dos
Deputados e no avulso da Ordem do Dia, houver recurso nesse sentido, de um décimo dos
membros da Casa, apresentado em sessão e provido por decisão do Plenário da Câmara.
104
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prévia, expressa, e específica do Poder Legislativo (BULOS, 2007, p. 970;
ANDRÉ RAMOS TAVARES, 2007, p. 1133; MORAES, 2007, p. 662).
A lei delegada, todavia, não 'pegou' no Brasil. Isto se
explica pela facilidade que ensejava o decreto-lei no
Direito anterior e a medida provisória no vigente. É
lamentável que tal se dê, visto como a delegação não
importa numa abdicação do Congresso, que mantém um
controle prévio sobre o texto (FERREIRA Fº, 2002, p.
230; no mesmo sentido: FERREIRAFº, 2007, p. 170).
Deveras, vê-se que a maioria das leis delegadas que são objeto de
discussão no Judiciário foram editadas no nível estadual (em São Paulo não
há previsão constitucional – art. 21), onde é pouco frequente a previsão
constitucional de medidas provisórias. No plano federal foram promulgadas
11 leis delegadas entre setembro e novembro de 1962, e depois mais duas em
agosto de 1992.
2.2.1 Natureza e hierarquia da lei delegada
A questão da natureza da lei delegada e, por consequência, a sua
posição na hierarquia normativa, não é tão simples quanto possa parecer a
princípio.
A edição de lei delegada está subordinada à necessária existência
prévia de uma resolução legislativa, que a condiciona materialmente (CF, art.
68, §2º) e, em alguns casos, também há um condicionamento quanto à forma
(§3º). Assim temos que a resolução legislativa é fundamento de validade da
lei delegada.
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A hierarquia formal entre atos normativos há sempre que: a norma
superior ditar "os pressupostos de forma que a norma subordinada há de
respeitar" (CARVALHO, 2007, p. 229), o que envolve todo o processo de
elaboração do ato normativo, desde a sua gênese até o aperfeiçoamento do
ato.12
É a própria Constituição que traça os pressupostos de forma da lei
delegada, autorizando que a resolução determine que o produto da delegação
seja submetido à votação pelo Congresso. Assim, para que seja válida a lei
delegada, ela deverá atender aos pressupostos formais previstos na
Constituição e, eventualmente, na resolução legislativa que autorizou a sua
elaboração. Portanto, parece claro que há uma hierarquia formal entre
resolução legislativa e lei delegada.
Haverá hierarquia material "sempre que a regra subordinante
preceituar os conteúdos de significação da norma inferior", de modo que a
norma subordinada vai "colher na compostura semiológica da norma
subordinante o núcleo do assunto sobre o qual pretende dispor"
(CARVALHO, 2007, p. 229). Se o conteúdo da lei delegada deve ser
"especificado" pela resolução legislativa, parece-nos evidente haver uma
relação de hierarquia entre essas normas.
A conclusão lógica seria a de que a lei delegada é ato normativo
secundário, enquanto que a resolução legislativa em que se funda ato
normativo primário.
Sabemos que somente os atos normativos primários estão sujeitos
ao controle abstrato de constitucionalidade – CF, art. 102, I, a –, enquanto que
os atos normativos secundários ficam sujeitos apenas ao controle concreto de
12
106
Também há hierarquia formal quanto aos "esquemas de alteração ou modificação de umas
pelas outras; como também os meios de revogação parcial ou total (ab-rogação)"
(CARVALHO, 2007, p. 229). Mas não basta que diga, é preciso que tenha autoridade para
dizer.
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constitucionalidade. Mantendo a conclusão acima, teríamos que afastar a lei
delegada como suscetível de ser objeto de controle abstrato de
constitucionalidade.
No entanto, essa não nos parece ser a melhor solução. É inegável a
existência de hierarquia, tanto formal como material, entre a resolução
legislativa e a lei delegada que lhe resulta (SAMPAIO, 1968, p. 34). Porém,
em seu aspecto material, apesar de subordinada à resolução legislativa, a lei
delegada visa eminentemente ao exercício de função legislativa – inovação
no ordenamento jurídico, com a edição de normas gerais e abstratas; em seu
conteúdo e eficácia, a lei delegada é típico ato primário (FERREIRA Fº,
2002, p. 231; MORAES, 2007, p. 663; FERREIRA Fº, 2007, p. 170; CLÈVE,
1993, p. 197).13
Numa certa medida ela parece ato secundário. De fato,
(...) a lei delegada pressupõe, como condição de
validade, um ato primário individual do Congresso, que
é ato que opera a delegação e lhe marca os limites.
Destarte, de certo modo, a lei delegada desdobra um ato
primário individual, de maneira a sugerir seu
enquadramento entre os atos secundários, como os
regulamentos (FERREIRAFº, 2002, p. 230-231).
Estamos diante de uma situação esdrúxula: apesar de, a princípio,
não haver hierarquia entre os atos normativos primários, há uma relação de
subordinação entre a resolução legislativa que autoriza a delegação e a lei
delegada resultante. Isso, porém, não implica que uma se coloque acima dos
demais atos normativos, nem a outra abaixo – permanecem todos no mesmo
nível: "a lei delegada é um ato primário, derivado de pronto da Constituição,
13
Essa situação sui generis, levou-a a ser chamada de ato normativo subprimário
(COSTANTINO MORTATI apud CLÈVE, 1993, p. 197).
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embora condicionado" (FERREIRA Fº, 2002, p. 231), e como tal, sujeita ao
controle abstrato de constitucionalidade (BULOS, 2007, p. 974)14.
Essa conclusão é corroborada por Sampaio: "Lei delegada e
decreto-lei tanto estão no mesmo nível da lei ordinária que esta pode ser
revogada por aquêles dentro dos limites constitucionais" (1968, p. 34)15.
Note-se que, assim como as leis ordinárias, as leis delegadas resultam da
conjunção de vontade do Legislativo e do Executivo: "Não pode haver
nenhuma dúvida de que o Congresso pode ab-rogar, derrogar e alterar as leis
delegadas quando bem lhe parecer, do mesmo modo como age em relação às
outras leis" (SAMPAIO, 1968, p. 92).
Desse modo, a exorbitância dos limites traçados na resolução
legislativa implica não em ilegalidade, mas em inconstitucionalidade da lei
delegada (SAMPAIO, 1968, p. 34).
2.2.2 Objeto e limitações à delegação
A delegação deverá ser sempre limitada, de modo que deverá ser
especificado o seu conteúdo e os termos de seu exercício (CF, art. 68, §2º) –
"Ou seja, será indicada a matéria sobre a qual deverá versar a lei delegada e o
prazo durante o qual será lícito ao Presidente editar normas sobre essa
matéria" (FERREIRAFº, 2002, p. 232).
Assim, será inconstitucional a resolução legislativa de delegação
que não especificar a matéria a ser regulada, contaminando eventual lei
delegada produzida. Ainda, essa delimitação deve ser precisa e inequívoca,
sob pena de estar descumprido o preceito constitucional (FERREIRA Fº,
2002, p. 232-233).
14
Tanto a 'lei' delegante, como a lei delegada podem ser objeto de controle de
constitucionalidade ( CLÈVE, 1993, p. 213).
15
ALei Delegada nº 12, foi revogada por Medida Provisória – MPv nº 2215-10, de 31/08/2001.
108
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São indelegáveis (CF, art. 68, §1º): os atos da competência
exclusiva do Congresso Nacional (art. 49), e os da competência privativa da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (arts. 51 e 52); matérias
reservadas à lei complementar; organização do Poder Judiciário e do
Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; qualquer regra
jurídica sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, direitos
políticos, direito eleitoral; qualquer regra jurídica referente às leis
orçamentárias.
A indelegabilidade das competências privativas é
obviamente justificada pelo seu caráter. Trata-se de
disposições que, sobretudo, marcam os poderes de
controle e fiscalização geral do Congresso,
relativamente ao Poder Executivo, e, assim, não
poderiam ser entregues de modo algum ao próprio
fiscalizado.
Quanto à indelegabilidade da elaboração de normas
sobre a matéria acima indicada, mencionada nos incisos
do art. 52, §1º, justifica-se pela importância dessas
matérias já para o indivíduo, por lhe definirem direitos
dos mais altos, já para o próprio regime, por lhe
assegurar o funcionamento limpo e honesto
(FERREIRAFº, 2002, p. 231).
Sampaio aponta ainda na delegação de poder de reforma
constitucional uma limitação implícita, por conta da própria natureza desse
ato (1968, p. 45)16, que não resulta de exercício de função legislativa.
As vedações de delegação legislativa são, pois, bem
mais numerosas do que no efêmero parlamentarismo
republicano, quando elas só existiam para 'a criação de
tributos, a autorização de emissões do curso forçado e as
16
Sampaio também via objeção na delegação de matéria reservada à lei complementar mesmo
quando não havia limitação expressa no texto constitucional (1968, p. 45).
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matérias da competência exclusiva do Congresso
Nacional' (Lei Complementar de 17 de julho de 1962,
art. 34). A Emenda Constitucional nº 17, de 1965, ao
disciplinar a delegação legislativa interna, proibiu que
ela recaísse sôbre atos da competência exclusiva do
Congresso ou de qualquer de suas casas; organização
dos juízos e tribunais e garantias da magistratura;
nacionalidade, cidadania e direito eleitoral; matéria
orçamentária; minas, riquezas do subsolo e quedasd'água; estado de sítio (NELSON SAMPAIO, 1968, p.
17
44-45).
Clève (1993, p. 207) afirma que são indelegáveis as matérias que
impliquem autorização do Legislativo para o Executivo, tais como aquelas
referentes a autorização de despesas – CF, art. 167, III, V, VI, VIII, IX –, mas
nos parece que tais matérias estão entre aquelas de competência exclusiva do
Congresso Nacional, veiculadas por decreto legislativo, ainda que não
listadas no art. 49 da CF, o que já faz incidir a limitação expressa. Da mesma
forma, não há que se falar em delegação de competência para converter
medida provisória em lei – CF, art. 62 (cf. CLÈVE, 1993, p. 207).
17
110
Sob a vigência da Constituição de 1967, não havia restrição quanto aos direitos individuais,
ou à organização do Ministério Público (que então não possuía a autonomia em relação ao
Executivo que hoje tem). Não havia impedimento, explícito, para a delegação com o intuito
de se editar leis orçamentárias, mas Sampaio via aí uma limitação implícita, "tanto por sua
natureza como pelos dispositivos constitucionais que regem a sua elaboração. Por sua feição
de lei predominantemente autorizadora de atos executivos sôbre receitas e despesas
públicas, não se pode conceber que o Congresso delegue essa tarefa ao Executivo, que
equivaleria ao despautério de autorizá-lo a dar autorização a si mesmo. Toda uma seção da
Constituição dá rito especial à elaboração orçamentária, que ficaria sem finalidade se o
orçamento pudesse ser feito pelo Executivo, mediante delegação. Os preceitos dessa seção
impedem que o orçamento possa ser objeto sequer de delegação interna. Diga-se o mesmo
quanto às autorizações para abrir créditos suplementares e especiais. São atribuições do
Legislativo que ele não pode delegar. A Constituição proíbe a abertura deles 'sem prévia
autorização legislativa' (art. 64, §1º, c). Pela natureza de autorização, não se pode delegar o
consentimento para contrair dívida pública e para emissão de curso forçado" (1968, p. 45). A
Constituição de 1967 ainda objetava a delegação para o Executivo legislar sobre o sistema
monetário, direito civil e direito penal, e sistema de medidas; com a Emenda nº 1, essas três
últimas restrições não foram repetidas.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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[. . .] em linha de princípio, todos os atos do Congresso
que importem em atividade de controle do Legislativo
sobre o Executivo são insuscetíveis de delegação, sob
pena de se romperem os limites políticos e legais da
ação governamental, instaurando-se o regime de
onipotência e do arbítrio administrativo que o sistema
de freios e contrapesos visa justamente coibir
(CASTRO).18
Clève (1993, p. 207) inclui entre os direitos individuais, sendo,
então, matéria insuscetível de delegação, matérias relativas a direito penal,
pois estaria em questão o direito individual à liberdade de locomoção.
Admite, por outro lado, a delegação em matéria tributária, desde que a
matéria específica não seja sujeita a lei complementar ou resolução
legislativa. Justifica a sua posição afirmando que o princípio da legalidade
tributária não é direito individual, visto não estar incluso no art. 5º, da CF
(1993, p. 210-211)19.
Para Ferreira Fº (2002, p. 231-232), em relação à instituição ou
aumento de tributos (CF, art. 150, I), haveria uma limitação implícita,
considerando que lei deveria ser entendido em sentido estrito:
Consubstancia-se esse dispositivo uma reivindicação e
uma conquista que é mesmo anterior às democracias,
pois, como justamente salienta Pontes de Miranda,
'antes dela os povos a quiseram contra o Príncipe'.
Ora, tendo essa reserva de lei o caráter de limitação ao
Executivo, como sempre teve, é manifesto contra-senso
admitir sua delegação exatamente ao Executivo.
18
19
CASTRO apud CLÈVE, 1993, p. 207.
Defendem essa posição: Machado Bastos, Carvalho.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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Ademais, posto que não incluso no rol do art. 5º, o princípio da
legalidade tributária é, sim, garantia individual, constituindo, inclusive,
cláusula pétrea. No entanto, e o autor o admite, tal tese não encontra
ressonância na jurisprudência, visto que, até mesmo através de medida
provisória, se admitiu a instituição ou aumento de tributos – por todos: ADInMC nº 1417, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 07/03/1996 –, prática
posteriormente positivada através da EC nº 32/2001, que incluiu o §2º, ao art.
62, da CF.
3 Elaboração da Lei Delegada
A própria Constituição Federal traça as linhas mestras do processo
legislativo que culmina com a edição de lei delegada, com os detalhes
procedimentais previstos no Regimento Comum do Congresso Nacional. A
principal determinação é a que condiciona a edição de lei delegada pelo
Executivo à prévia e expressa autorização do Congresso, que é veiculada por
20
meio de resolução legislativa – não se admite delegação por meio de lei
21
ordinária:ADIn nº 1296-MC, rel. Min. Celso de Mello, j. 14/06/1995 .
20
No período parlamentarista – 08/09/1961 a 24/01/1963 –, o meio utilizado foi o decreto
legislativo.
21
"Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei estadual que outorga ao poder executivo a
prerrogativa de dispor, normativamente, sobre matéria tributaria - Delegação
legislativa externa - Matéria de direito estrito - Postulado da separação de poderes Princípio da reserva absoluta de lei em sentido formal - Plausibilidade jurídica Conveniência da suspensão de eficácia das normas legais impugnadas - Medida
cautelar deferida. - A essência do direito tributário - respeitados os postulados fixados pela
própria Constituição - reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei,
enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto
consubstanciado na Carta da República, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia
constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria
tributária. Considerações em torno das dimensões em que se projeta o princípio da reserva
constitucional de lei. - A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao
postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a
possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa
externa em favor do Poder Executivo. A delegação legislativa externa, nos casos em que se
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Como bem lembra José Afonso, não há propriamente um processo
legislativo da lei delegada, pois a sua elaboração, em si, não comporta atos de
iniciativa, nem votação, nem sanção, nem veto, nem promulgação. "Trata-se
de mera edição que se realiza pela publicação autenticada. Por isso não é
cabível falar-se em processo legislativo a respeito delas, mas de simples
procedimento elaborativo" (2006, p. 321).
Há, sim, um processo legislativo referente à sua fase prévia, que é
exatamente a resolução legislativa que outorga a delegação, conforme
previsto no art. 68, §2º, da CF. Essa resolução, como ato cuja produção se
exaure no âmbito do Congresso, não está sujeita a sanção ou veto
presidencial, sendo promulgada pelo Presidente do Senado Federal, na sua
apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio
formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga
parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser
validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de
formação não se ajusta a disciplina ritual fixada pelo art. 68 da Constituição. A vontade do
legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária,
objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de
competência normativa primária, revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica
no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa
constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo
da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva
constitucional de lei. - Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder
Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o
legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no
plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em
caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode
abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o
Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só
pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em consequência, não pode deslocar para a
esfera institucional de atuação do Poder Executivo - que constitui instância juridicamente
inadequada - o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas
categorias temáticas - (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de cálculo
tributário, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de
recolhimento dos tributos -, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua
própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder
Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae - tendo em vista o sistema
constitucional de poderes limitados vigente no Brasil - só pode residir em atos estatais
primários editados pelo Poder Legislativo." Ação extinta sem julgamento de mérito em
razão da revogação superveniente da norma impugnada, j. 21/09/1995.
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qualidade de Presidente da Mesa do Congresso Nacional (Regimento
Comum, art. 52, parágrafo único).
As resoluções de delegação legislativa diferem das
demais resoluções das Casas do Congresso Nacional.
As resoluções (...) são atos internos de cada uma das
Casas do Congresso Nacional, não são atos que
comportem elaboração bicameral. A única dessa
natureza é a resolução de delegação legislativa. Ora, o
caso, na verdade, é típico de decreto legislativo, que é
ato destinado a regular matéria de exclusiva
competência do Congresso Nacional. Embora a
delegação legislativa não esteja relacionada no art. 49
da CF, ela é matéria de exclusiva competência do
Congresso Nacional (AFONSO, 2006, p. 321-322).
Essa resolução legislativa é, na verdade, e a sua origem histórica o
confirma, uma lei, lei delegativa, atributiva de função legiferante (PONTES
DE MIRANDA, 1970, p. 158-159).
No silêncio do texto constitucional anterior, o Regimento Comum
atribuía, tanto ao Presidente da República como a 1/3 dos membros de
qualquer uma das Casas, o poder de iniciativa da resolução delegativa (art.
118).
Hoje, o texto constitucional é expresso ao limitar essa iniciativa ao
Presidente da República (art. 68, caput, da CF) – é a chamada 'iniciativa
solicitadora' (MORAES, 2007, p. 663); não pode o Legislativo impor uma
delegação, uma obrigação de legislar, ao Executivo (TEMER, 2006, p. 152).
Assim, cabe ao Executivo enviar mensagem dirigida ao Presidente do
Senado (art. 119, do Regimento Comum), acompanhada do projeto de
resolução habilitador de delegação (SAMPAIO, 1968, p. 91-92).
Recebida a proposta, o Presidente do Senado convocará sessão
114
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conjunta, a ser realizada em 72h, para que o Congresso Nacional tome
conhecimento dela – art. 119, do Regimento Comum. É, então, constituída
Comissão Mista para emitir parecer sobre a proposta (art. 119, §1º, do
Regimento Comum). O projeto de resolução é discutido, com possibilidade
de emendas (art. 120) – note-se que essa possibilidade de emendas deve ser
conciliada com a iniciativa exclusiva do Executivo, de modo que não poderá
ampliar a delegação, mas tão somente restringir o conteúdo da delegação ou
alterar os termos de seu exercício. Havendo emendas ao projeto, ele retorna à
Comissão para emitir novo parecer (art. 121). Publicado o parecer, é
convocada sessão conjunta para a votação do projeto (art. 121, parágrafo
único). Aprovada a resolução, será promulgada em 24h (art. 122), pelo
Presidente do Senado (art. 52, parágrafo único), comunicando-se ao
Presidente da República.
Afonso (2006, p. 322) entende que, com o pedido de delegação, o
Executivo já deveria apresentar o projeto da futura lei delegada, em razão da
possibilidade de o Congresso, além de conceder a delegação, exigir que o
projeto seja submetido a votação, feita em sessão conjunta, em turno único e
vedada qualquer emenda (CF, art. 68, §3º; Regimento Comum, art. 123).
Essa não nos parece a leitura mais correta dos textos normativos. Se a
resolução irá determinar um prazo para que o Executivo exerça a delegação,
não é razoável que se exija a apresentação de projeto de lei delegada
juntamente com a iniciativa solicitadora.
A resolução delegativa promulgada deverá especificar o conteúdo
da delegação, os termos para o seu exercício e fixará o prazo durante o qual a
delegação poderá ser exercida – é de 45 dias o prazo máximo para a
promulgação e publicação da lei delegada ou remessa do projeto elaborado
para apreciação pelo Congresso Nacional (art. 119, §2º, do Regimento
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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Comum)22. "O prazo pode ser um só, como podem ser dois ou mais os prazos,
com especial referência a cada conteúdo" (PONTES DE MIRANDA, 1970,
p. 159).
Comunicado da aprovação da resolução legislativa, o Executivo irá
elaborar a lei delegada – ou não, visto que não fica obrigado a legislar; abrese-lhe tão somente uma faculdade (AFONSO, 2006, p. 323; BULOS, 2007,
p. 972; MORAES, 2007, p. 664). Elaborada a lei delegada, o Presidente da
República promulga-a e manda publicá-la, salvo quando houver necessidade
de apreciação do projeto pelo Congresso (art. 123).
Ademais, o prazo não é preclusivo; poderá o Executivo optar por
elaborar mais de um texto dentro da matéria objeto de delegação, de modo
que o exercício da delegação não a esgota, desde que não exauridos limites
materiais da delegação, permanecendo válida enquanto viger o prazo
estipulado na resolução (FERREIRA Fº, 2007, p. 171; CLÈVE, 1993, p. 124
e 202-203). Ferreira Fº (2007, p. 208) não faz essa distinção entre
exaurimento ou não da matéria, entendendo simplesmente ser possível a
edição de mais de uma lei delegada durante o período de vigência da
delegação. Contrária é a posição de Bulos (2007, p. 972) e Moraes (2007, p.
664) que ressalvam apenas a hipótese de previsão expressa na própria
resolução autorizando a edição de mais de uma lei delegada. Essa foi a
solução dada pela Resolução nº 1, de 1992-CN, que autorizou a edição das
leis delegadas nº 12 e 13; já os Decretos Legislativos nº 8, 9, e 11, de 1962,
não trouxeram disposição semelhante e deram origem, respectivamente, às
Leis Delegadas nº 1, 2 a 7, e 8 a 11.
22
116
Não obstante, a Resolução nº 1, de 1992-CN, datada de 30/07/1992, estabeleceu prazo até
31/12/1992 para a promulgação e publicação das leis delegadas que autorizou. Os Decretos
Legislativos nº 8, 9, e 11, de 1962, não traziam previsão de prazo.
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Outrossim, tendo havido mera delegação de exercício da função
legislativa, e não renúncia, nada obsta a que, na vigência do prazo da
delegação, o Congresso Nacional, por meio de lei ordinária, discipline a
matéria objeto de delegação. Pode, inclusive, revogar a resolução delegativa
(FERREIRA Fº, 2007, p. 208; MORAES, 2007, p. 663; BULOS, 2007, p.
973; FERREIRAFº, 2007, p. 171; CLÈVE, 1993, p. 202).
Sendo o caso de apreciação pelo Congresso, apresentado o projeto
elaborado pelo Executivo, em 24h, o Presidente do Senado remeterá a
matéria à Comissão Mista, para emitir parecer em cinco dias sobre a
conformidade do projeto com a delegação (art. 124). O projeto é, então,
votado em globo, admitindo-se votação destacada de partes consideradas,
pela Comissão, em desacordo com o ato de delegação (art. 125). A doutrina
aponta essa situação como uma total inversão do processo legislativo
ordinário, colocando o Executivo como elaborador do texto normativo, e o
Legislativo detentor do poder de veto, "veto absoluto e total, uma vez que não
se pode apresentar emenda ao projeto de lei delegada" (SAMPAIO, 1968, p.
92).
Aprovado o projeto, "o Presidente da República efetivará a
promulgação e determinará sua publicação" (MORAES, 2007, p. 664). É
dispensada a sanção do Presidente da República, "porque o conteúdo do
projeto de lei delegada não se alterará" – "Não se veta, em conseqüência,
projeto de lei delegada. É ilógico pensar-se que o Presidente vetaria aquilo
que ele próprio elaborou" (TEMER, 2006, p. 153; no mesmo sentido:
CLÈVE, 1993, p. 200-201). Oposta é a posição de Celso de Mello23, para
quem a sanção presidencial se faz obrigatória, transformando o projeto
aprovado pelo legislativo em lei. Podendo sancioná-la, poderia também vetála; essa posição, no entanto, é isolada.
23
MELLO, apud CLÈVE, 1993, p. 201.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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Outrossim, entende parte da doutrina que ocorrendo a rejeição
integral do projeto de lei delegada, "este será arquivado, somente podendo
ser reapresentado nos termos do art. 67 da Constituição Federal" (MORAES,
2007, p. 664; no mesmo sentido: BULOS, 2007, p. 972). Clève discorda,
entendendo possível a apresentação de novo projeto, desde que no prazo da
delegação (1993, p. 202-203), visto que a rejeição não implica em revogação
da delegação, o que nos parece mais adequado à finalidade do instituto.
É a própria Constituição (art. 68, §3º) que estabelece o
procedimento de votação única, proibidas as emendas, de modo que a
resolução não pode dispor validamente de modo contrário; só pode optar em
determinar condicionar a apresentação do projeto de lei delegada para
votação ou não (PONTES DE MIRANDA, 1970, p. 159).
As votações, ante a ausência de disposição específica, são todas
tomadas por maioria simples – CF, art. 47.
Extrapolados os limites da delegação, cabe ao Congresso Nacional
sustar a lei delegada (CF, art. 49, V), naquilo em que extrapolar os limites da
delegação – a aprovação em votação não importa em convalidação do vício
de usurpação de função legislativa (CLÈVE, 1993, p. 213-214). "A medida
será tomada através de decreto legislativo, que terá efeitos ex nunc24, já que
este ato normativo não anula a lei delegada, mas apenas susta os seus efeitos
que exorbitem da delegação legislativa" (FERREIRA Fº, 2007, p. 171; no
mesmo sentido: MORAES, 2007, p. 664; BULOS, 2007, p. 973).
Ressalte-se que, sendo o controle da lei delegada feito pelo
Judiciário, em sede de controle abstrato ou concreto, os efeitos da decisão
seguirão a regra geral, produzindo-se ex tunc, desempenhando efeitos
retroativos (MORAES, 2007, p. 664; BULOS, 2007, p. 974).
24
118
A partir da publicação do decreto legislativo, cf. MORAES (2007, p. 664) e BULOS (2007,
p. 973).
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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Não havendo estipulação legal de termo para o exercício do poder
de 'veto legislativo', é de se concluir que não há prazo (CLÈVE, 1993, p. 213).
4 Medida Provisória vs. Lei Delegada
Como vimos no início deste trabalho, enquanto a lei delegada
traduz situação de delegação pelo Legislativo de sua função típica, a medida
provisória decorre de atribuição legislativa ao Executivo levada a cabo pelo
próprio constituinte. Isso nada mais é do que o vetusto e infame decreto-lei
sob nova roupagem, instrumento já duramente criticado sob o regime
constitucional anterior, inspirado em sua função e limites na constituição
italiana do pós-guerra, de conformação parlamentarista (HORTA, 2010, p.
540).
A lei, por definição, superada a ideia rousseauniana utópica de
vontade geral da nação, é produto de compromissos entre as diversas
correntes e tensões sociais e políticas representados no seio do Legislativo.
Longe de expressar a norma ideal, é a norma possível, resultante de cessões e
acordos entabulados no âmbito do jogo democrático, o que está ausente na
produção autocrática da medida provisória.
A medida provisória é, sim, um importante e necessário
instrumento para que o Governo possa ofertar à sociedade soluções jurígenas
céleres a situações de "relevância e urgência" e não para a produção ordinária
e cotidiana de normas primárias. A prática institucional nacional, no entanto,
desvirtuou esse instrumento, com o consentimento, por omissão, do próprio
Legislativo, bem como do Judiciário.
Assim foi que Presidência da República produziu 2.230 (!) medidas
provisórias entre a promulgação da Constituição de 1988 e a EC n. 32, de
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
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11.09.2001, que trouxe grande reformulação à matéria. Isso fora as
incontáveis reedições, e mais 500 desde então,25 em sua esmagadora maioria
sobre temas sem relevância e muito menos urgência, editadas simplesmente
por serem "mais convenientes para o Executivo" (AFONSO, 2007, p. 532),
apesar de o regime de urgência constitucional (CF, art. 64, §§2º a 4º), figura
hoje esquecida, ser meio hábil a encerrar com celeridade o processo
legislativo ordinário.
Acrescente-se, ainda, que o fato de as medidas provisórias não
apreciadas até o 45º dia, por força do disposto no art. 62, §6º, da CF,
trancarem a pauta de deliberações do Legislativo, o que, em face de sua
quantidade elevada, ocorre com infeliz frequência, obstando o exercício pelo
Legislativo de sua função típica, passando a ser mero referendador da
produção legislativa do Executivo.
5 Conclusões
Ao optar por editar atos normativos primários, desprovidos da
relevância e urgência que efetivamente o justificariam por meio de medidas
provisórias, o Executivo priva a sociedade do saudável e democrático debate
parlamentar sobre o tema no âmbito do órgão histórica e constitucionalmente
formado para eleger as políticas públicas a serem implementadas. O
Executivo passa, então, ele mesmo, a editar as normas primárias (gerais) e a
regulamentá-las, afastando-nos do modelo democrático originalmente
projetado pelo constituinte.
O argumento da celeridade do trâmite da medida provisória não
convence, pois também o regime de urgência previsto no art. 64 da CF provê
25
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Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Quadro/_Quadro%20Geral.htm
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um trâmite célere ao projeto de lei ordinária, o que também ocorria no
processo referente à resolução delegativa, visto que os parlamentares não
terão que debater as minúcias da regulamentação normativa, mas tão
somente seus limites.
A manterem-se as coisas em seu estado atual, relegado o
Legislativo à inoperância e à função burocrática de verificador (quando não
mero chancelador) das normas primárias produzidas por outro Poder,
configura-se grave crise institucional, com comprometimento do modelo
consagrado no texto constitucional de separação dos Poderes.
No mais das situações, constatada a inevitabilidade da produção
normativa pelo Executivo, é a lei delegada que permite o prévio debate e a
precisa limitação da atuação legislativa do Executivo. Isso a critério e
conveniência de seu legítimo detentor, o Legislativo, a respeito de
específicas matérias, concretizando o efetivo debate democrático plural por
parte da sociedade, e não simples imposição unilateral de vontades do
vencedor de eleição majoritária.
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Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010
123
JUSTICIABILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Filipe Madsen Etges1
RESUMO
O tema deste trabalho trata da crise enfrentada pela prestação jurisdicional
quando atua com foco na viabilização dos direitos sociais que dependem de
implementação de políticas públicas (de competência dos Poderes
Legislativo e Executivo) e sua legitimidade para tanto. A chamada
judicialização da política verificada através de uma postura ativa do Poder
Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, em campos
inicialmente restritos aos demais poderes do Estado, traz à tona um debate
sobre legitimidade, competência institucional, alocação e escassez de
recursos econômicos, escolhas políticas, entre tantos temas que permeiam
essa "crise". Assim, a problemática proposta pretende apresentar e discutir
critérios que possam (im)possibilitar uma postura "ativista" no campo das
políticas públicas.
Palavras-chave: Judicialização da Política. Direitos Sociais.
ABSTRACT
The theme of this work deals about the crisis faced by Judiciary while acting
with a focus on facilitation of social rights that depend on implementation of
public policies (of competence of the Legislative and Executive) and its
legitimacy to do so. The so-called judicialization of politics verified by an
active attitude of the Judiciary in the implementation of fundamental rights,
in fields initially restricted to the other branches of government, brings up a
debate about legitimacy, institutional competence, allocating scarce
resources, policy choices, among many themes that permeate this "crisis."
Thus, the problematic proposal aims to present and discuss criteria that can
(im) possible stance "activist" in the field of public policy.
Keywords: Judicialization of Politics. Social Rights.
1
Mestre em Constitucionalismo Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Email: [email protected].
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
125
J U S T I C I A B I L I D A D E
D A S
P O L Í T I C A S
P Ú B L I C A S
1 Notas Introdutórias: as posições doutrinárias sobre a possibilidade da
atuação "política" do Poder Judiciário
Doutrina e jurisprudência vêm afirmando há muito tempo que ao
juiz cabe tão somente o controle da legalidade do ato administrativo. Em
regra, apenas em hipóteses de violação dos limites impostos pela legalidade
haveria uma pequena margem de controle judicial. Não obstante tal
posicionamento, em face da visão de supremacia da Constituição, uma
discussão mais moderna tem tomado a pauta dos Tribunais em face da (não
rara) deficiência do Estado em implementar suas políticas públicas, as que
visem à concretização dos direitos de cunho social, frutos da segunda geração
de direitos fundamentais.
O tema, segundo Garcia2, ainda é muito polêmico, principalmente
pelo fato de que essa quebra de paradigma – possibilidade de o juiz substituir
o administrador público na condução de políticas públicas – encontra óbices
não somente jurídicos – como o princípio da separação e harmonia dos
poderes e o princípio da legalidade – mas sobretudo fáticos, como é o caso da
escassez de recursos financeiros do Estado.
Conforme Zagrebelsky3, no Estado de Direito típico do liberalismo
a garantia constitucional da atuação do Estado não poderia configurar-se
como atividade jurídica. Pelo contrário, deveria conceber-se em termos
políticos e atribuir competências a órgãos comprometidos e responsáveis
politicamente. A função judicial era incompatível com a política, uma vez
que lhe cabia somente a aplicação neutra da lei ao caso concreto. Entretanto,
com o declínio positivista e crescimento de importância dos princípios, no
2
GARCIA, Rafael Barreto. O Poder Judiciário e as Políticas Públicas. Revista dos Tribunais,
n. 879, jan. 2009, p. 64.
3
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta1995.
P. 112.
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Estado Constitucional Contemporâneo, a estrutura do direito modificou-se
representando consequências muito sérias para a jurisdição.
Assim, dado o caráter controvertido do tema, formaram-se
basicamente duas correntes de pensamento: uma defensora da
judiciabilidade dos direitos sociais e das políticas públicas e outra corrente
com posição mais cética e crítica sobre o assunto.
1.1 Corrente Defensora da Judiciabilidade dos Direitos Sociais e das
Políticas Públicas
A corrente defensora da judiciabilidade dos direitos sociais prega
que, em face do disposto no art. 5°, § 1°, da CF/88, todas as normas que
definem direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata,
razão pela qual não poderia o Judiciário se desviar da tarefa de concretizá-los,
ainda que seja necessária invasão na seara do mérito administrativo.
Ademais, sustenta-se que a própria eleição dos governantes não seria em si
um cheque em branco, podendo haver controle sobre sua atuação política
sempre que necessário, pelo Poder Judiciário4.
Nesse sentido, esta corrente propõe cinco aspectos básicos que
poderiam ser objeto de controle:
(1) a fixação de metas e prioridades, por parte do Poder
Público, em matéria de direitos fundamentais; (2) o
resultado final esperado das políticas públicas
vinculadas à realização dos direitos fundamentais, em
termos absolutos ou relativos; (4) a constatação do
alcance (ou não) das metas fixadas pelo próprio Poder
Público; e (5) a eficiência mínima na aplicação dos
5
recursos públicos destinados a determinada finalidade .
4
FREIRE JR. Américo Bedé. O controle judicial das políticas públicas. São Paulo: Ed. RT,
2005. P. 61.
5
GARCIA, 2009, op. cit., p. 68.
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Afirma-se, assim, que o gozo minimamente adequado dos direitos
fundamentais seria indispensável para o regular funcionamento da
democracia e, portanto, para a existência do próprio controle social das
políticas públicas. Caso contrário, sustenta-se que, não existindo respeito a
um conjunto básico de direitos fundamentais, dificilmente teriam os
governados condições de exercer sua liberdade de participar, de forma
consciente, no processo político democrático, bem como de participar do
diálogo no espaço público6.
Para os defensores da justiciabilidade das políticas públicas, o
dogma da intangibilidade do mérito do ato administrativo precisa ser
superado. Após a Constituição de 1988, o Direito Administrativo trilhou
novos rumos, flexibilizando-se a antiga lição que vedava ao juiz imiscuir-se
no chamado "mérito" do ato administrativo, antes reservado à oportunidade e
à conveniência do agente público. Hoje já tem assente que mesmo as escolhas
políticas devem estar harmonizadas às diretrizes constitucionais,
pressuposto de sua validade7.
Nesse quadro, Capelletti prega a elevação do Poder Judiciário à
efetiva igualdade com os demais poderes do Estado:
Eles devem de fato escolher uma das duas
possibilidades seguintes: a) permanecer fiéis, com
pertinácia, à concepção tradicional, tipicamente do
século XIX, dos limites da função jurisdicional, ou b)
elevar-se ao nível dos outros poderes, tornar-se, enfim,
o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador
8
mastodonte e o leviatanesco administrador .
6
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de
direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático.
Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, v. 3, jul-set, 2006. P. 54.
7
LUGON, Luiz Carlos de Castro. Ética na concretização dos direitos fundamentais. In:
SCHÄFER, J. (Org.). Temas polêmicos do constitucionalismo contemporâneo.
Florianópolis: Conceito, 2007. P. 337.
8
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? PortoAlegre: Sergio Fabris, 1993. P. 46-47.
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A doutrina constitucional brasileira destaca as cargas eficaciais
comuns a todas as normas de direito fundamentais, ou seja, existe igualdade
entre os direitos sociais e individuais quanto a sua justiciabilidade. Assim,
conforme Sarlet, não se pode negar o valor propriamente jurídico das normas
que tutelam os direitos sociais e seu caráter vinculativo aos órgãos do Estado.
Os argumentos da separação dos poderes, da reserva legislativa e as demais
objeções opostas à justiciabilidade dos direitos sociais devem ceder sempre
que esbarrarem no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou
nas hipóteses em que da análise dos bens constitucionais colidentes
(fundamentais ou não) resultar a prevalência do direito prestacional social9.
Segundo Klaus Stern10, com a possibilidade de o Poder Judiciário
realizar o exame de constitucionalidade, os juízes respectivamente
competentes receberam uma grande parcela de poder e responsabilidade,
sendo incluídos no processo político, pois decidem também sobre as leis do
Parlamento ou sobre as normas jurídicas do governo eleito pelo Parlamento.
Tal competência atende ao princípio democrático e à divisão de poderes.
Além disso, considera, dado que a Constituição é a norma jurídica suprema
do Estado, que nada é mais coerente do que colocar a defesa do direito
constitucional nas mãos do Poder Judiciário, mesmo porque, caso não tivesse
sido instituído controle judicial algum sobre a observância da Constituição, o
próprio órgão político agente, fosse o Parlamento ou Governo, decidiria
forçosamente se a Constituição teria sido ou não respeitada.
Ademais, a legislação vai precisar de sistemas de monitoramento
de resultados, que têm um caráter eminentemente político (portanto, para
9
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998. P. 320.
10
STERN, Klaus. O Juiz e a aplicação do Direito. In: GRAU, E. R.; GUERRA FILHO, W. S.
(Org.) Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo:
Malheiros, 2001. P. 512.
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além do campo meramente jurídico)11. Assim, é preciso que sejam criadas
condições para que os direitos sociais possam ser justiciáveis em situações
em que se justifique que o sejam – ou seja, quando os outros caminhos
tenham tido suas possibilidades esgotadas12.
Quando se fala em legitimidade para concretização dos direitos
fundamentais descritos na Constituição é necessário compreender que esta
não decorre exclusivamente do processo eletivo. Contemporaneamente, a
legitimidade política não se extrai imediatamente da vitória nas urnas, mas
sim do efetivo engajamento com as causas sociais que o político prometeu
defender e que deram causa ao seu triunfo eleitoral. Se não há o cumprimento
do programa ao qual se vinculou, não é possível afirmar sua legitimidade
pelo só fato de ter sido escolhido pelo voto popular. Assim, é correto sustentar
que "a legitimidade dos eleitos não advém do voto em si, mas da medida em
que cada um deles se torna digno do sufrágio recebido, pela efetiva militância
em favor das causas que anunciara em campanha"13.
A legitimidade do sistema de justiça para atuar na concretização
dos direitos sociais se daria, então, a partir de uma ideia dúplice de
representatividade. Seria a combinação entre representação política
(derivada do processo eleitoral) e representação funcional (estabelecida pela
Constituição). Tal conjectura expande a participação e a influência da
sociedade no processo político através de todos os meios disponíveis,
inclusive o sistema de justiça. A representação funcional equivaleria a
mecanismos de democracia direta, presentes na ideia de comunidade de
intérpretes da Constituição. Deste modo, não haveria uma substituição de
11
LIMA JR., Jayme Benvenuto. Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001. P. 115.
12
Idem, p. 120-121.
13
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da
legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para a sua
tutela. PortoAlegre: Livraria doAdvogado, 2006. P. 232.
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lugar da democracia, da esfera político-representativa para a de ordem
funcional, mas sim uma ampliação de representação democrática, posto que
a cidadania política daria, ao menos em tese, ao homem comum o poder de
participar do processo de criação das leis, enquanto a cidadania social
oportunizar-lhe-ia acesso, através de ações judiciais individuais ou coletivas,
ao processo de aplicação das leis14.
Para Courtis15, a suposição geral de que os Direitos Sociais não são
justiciáveis como categoria, em virtude de alguma impossibilidade inerente
de definição de seu conteúdo, parece ignorar a evidência de quase um século
de funcionamento de tribunais do trabalho e de jurisprudência maciça em
áreas como seguridade social, saúde ou educação perante tribunais de todas
as regiões do mundo.
Clémerson Merlin Cléve16, por sua vez, afirma que o Direito
Constitucional concebe os direitos fundamentais como dotados de eficácia
imediata, significando que eles podem ser, desde logo, invocados pelos
particulares perante o Poder Judiciário.
Assim, verificou-se que para boa parte da doutrina brasileira os
direitos fundamentais sociais podem ser contrapostos ao Estado pela via
judicial, que poderia, por sua vez, interferir nas políticas públicas, visando
assegurar tais direitos contidos na Constituição.
Entretanto, tal posicionamento deve ser olhado com cautela, pois é
necessário estabelecer até que ponto essa possibilidade criativa do juiz pode
adentrar nas atribuições dos outros poderes do Estado. Dito isto, é necessário
14
PORTO, 2006, op. cit., p. 235.
COURTIS, Christian. Critérios de Justiciabilidade dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais: uma breve exploração. In: ______. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e
direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 489.
16
CLÉVE, Clémerson Mérlin. O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos
fundamentais. In: SAMPAIO, J. A. L. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 391.
15
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verificar as ponderações em sentido contrário a um ativismo tão veemente do
Poder Judiciário.
1.2 As Posições Críticas quanto a Possibilidade da Atuação "Política" do
Poder Judiciário
Para parte significativa da doutrina, a tarefa de atuar na
concretização das políticas públicas, assumida pela judicatura, não se dá sem
maiores implicações. Várias críticas e ponderações são formuladas e alguns
autores até mesmo sustentam a total impossibilidade de tal atitude. Nesse
sentido, vamos verificar algumas formulações sobre o tema, que relativizam
essa postura judicial de promoção ilimitada dos direitos sociais.
Para Claudio Pereira Neto17, a atuação do Judiciário no campo
social representaria a usurpação de competências do Legislativo e do
Executivo. O Judiciário deveria apenas aplicar as normas legais que
disciplinam o modo como os direitos sociais devem ser providos pelo Estado.
Não lhe caberia determinar a execução de políticas públicas. Esse tipo de
provimento levaria ao "governo dos homens", não ao "governo das leis".
O papel do Poder Judiciário não é o de substituir o Poder
Legislativo, não é o de transformar "discricionariedade legislativa" em
"discricionariedade judicial", mas o de dirimir conflitos nos termos da lei.
Proferir sentenças que alterem a vontade legislativa ou administrativa,
mesmo sob o impacto dos fatos sociais mais tristes, como a possibilidade da
perda de uma vida ou falta de recursos para a compra de remédios, não é papel
do Judiciário. Este não cria dinheiro, ele redistribui o dinheiro que possuía
17
132
NETO, Cláudio Pereira de Souza. A Justicibilidade dos Direitos Sociais: críticas e
parâmetros. In: DIREITOS Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em
espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 520.
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outras destinações estabelecidas pelo Legislativo e cumpridas pelo
Executivo18.
A ideia de que os juízes, ao complementar as políticas públicas
realizadas pelo governo, estarão sempre auxiliando a prestação dos direitos
sociais e econômicos é equivocada, porque se baseia em uma premissa tão
simples quanto falsa, segundo a qual complementar é sempre algo positivo.
Isso poderia ser correto se a realização de direitos sociais não implicasse, em
todos os casos importantes, gastos públicos. Mas ela implica19.
Embora muitos sustentem que os direitos de primeira geração
também demandem recursos para a sua efetivação, os direitos sociais
distinguem-se, sim, dos direitos civis e políticos pelos maiores gastos que sua
realização pressupõe20. Isso porque os mesmos gastos necessários para a
garantia dos direitos civis e políticos são também necessários para a garantia
dos direitos sociais e econômicos, como aqueles gastos com a manutenção
das instituições políticas, judiciais e de segurança21.
A partir dessa constatação, não parece ser difícil perceber a
diferença que há – em termos de alocação de recursos públicos – entre
decisões judiciais que visem a garantir ou a realizar um direito civil ou
político, de um lado, e decisões que visem a realizar ou a garantir um direito
social ou econômico, de outro. Pagar remédios, construir hospitais, construir
escolas ou construir casas custa mais dinheiro do que exigir uma abstenção
18
SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserve do possível. In.
SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do
possível. PortoAlegre: Livraria doAdvogado, 2008. P. 171.
19
SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as Políticas Públicas: entre Transformação Social
e Obstáculo à Realização dos Direitos Sociais. In: DIREITOS Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008, p. 593.
20
Em sentido contrário ver HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of right: why
liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton and Company, 1999.
21
SILVA, 2008, op. cit., p. 593.
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estatal, sobretudo se partirmos do pressuposto de que os gastos institucionais
devem ser divididos por igual na conta comum de todos os direitos22.
A constatação de que os recursos, infelizmente, são escassos
traduz-se em limitação ao Poder Judiciário na implementação das políticas
publicas, uma vez que, à primeira vista, o gestor público é quem teria maior
conhecimento das finanças públicas e das carências sociais no todo
consideradas. Assim, haveria a indisponibilidade do provimento judicial, no
que foge aos direitos sociais integrantes do núcleo da dignidade da pessoa
humana23.
Embora muitos autores façam um grande esforço para demonstrar
"histórias de sucesso" na efetivação de direitos sociais por meio do
Judiciário, parecem tais histórias superestimadas, da mesma forma que é o
papel que o Judiciário desempenha nessa área. Assim como a conquista de
direitos civis e políticos foi uma conquista da sociedade civil, efetivada por
meios políticos, a implementação de direitos sociais e econômicos não vai ser
realizada de forma diversa24.
A própria independência do Ministério Público e do Judiciário, a
possibilidade de uma sociedade civil atuante e uma imprensa livre foram
conquistas eminentemente políticas, em grande parte resultantes da atividade
política legislativa, cujo resultado foi a Constituição de 88. Portanto, algumas
das características normalmente apontadas como "prova" da superioridade
22
SILVA, 2008, op.cit., p.593-594.
Por força da indigitada limitação de recursos, tem-se defendido que apenas o "mínimo
existencial" poderia ser garantido, isto é, apenas direitos sociais, econômicos e culturais
considerados mais relevantes, em face do caso concreto, por integrarem o núcleo da
dignidade da pessoa ou por decorrerem do direito básico da liberdade, impor-se-iam erga
omnes e seriam diretamente sindicáveis. LEAL, Rogério Gesta. A efetivação do direito à
saúde por uma jurisdição-serafim: limites e possibilidades. In:REIS, J. R. dos; LEAL, R. G.
(Org.). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos., Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2006. Tomo 6, p. 1533-1534.
24
SILVA, 2008, loc. cit., p. 592.
23
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do Judiciário em detrimento da característica "mundana" da prática política
são exatamente o resultado de procedimentos políticos, disputas partidárias e
negociações parlamentares25.
Também se pode apontar o estrangulamento dos canais
institucionais de acesso à formulação de políticas públicas e produção
normativa, conjugado com um arsenal técnico e oneroso de instrumentos
garantidores de direitos individuais, que acaba por privilegiar direitos de
minorias, não étnicas nem políticas, mas econômicas26.
Ou seja, o Judiciário provê os direitos sociais daqueles que detêm
condições de contratar um advogado e suportar os custos do litígio. Em que
pese exista, no Brasil, o instituto da assistência judiciária gratuita e o auxílio
da Defensoria Pública, o grande empecilho ainda é a falta de instrução da
maior parte da população brasileira, a impedir que acessem os seus direitos.
Desta maneira, o Poder Judiciário acaba por privilegiar os menos
necessitados.
A realização do fim social do Estado deve ser concebida como um
processo, pois quando desaparece a desigualdade mais patente,
materializam-se, diante de nossos olhos, novas situações de desigualdade
que antes não chamavam atenção. O âmbito das desigualdades em nível
material é potencialmente infinito, determinando a necessidade de um limite
na esfera de igualização promovida pelo Estado. Em um Estado de Direito,
não se pode pretender igualização absoluta, sob pena de dissolução totalitária
27
da sociedade .
25
OLIVEIRA, Cláudio Ladeira. Direito como integridade e ativismo judicial: algumas
considerações a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. In: MARTEL, Letícia
Campos Velho. (Org.). Estudos Contemporâneos de Direitos Fundamentais. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2009. P. 242.
26
CAMARGO E GOMES, Manoel Eduardo Alves. Apontamentos sobre alguns impactos do
projeto neoliberal no processo de formação de tutelas jurídico-políticas. In: DIREITO e
neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996. P.
119.
27
RODRÍGUEZ DE SANTIAGO, José María. La administración del Estado Social.
Madrid: Marcial Pons, 2007. P. 25.
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Segundo Passos, quando se defere poder sem que este poder seja
submetido a controles da correção de seu exercício, o julgador se tornará um
déspota intolerável, visto como livre e desembaraçado para fazer do direito
positivo gato e sapato:
Será um tirano que nem mesmo terá a grandeza dos
tiranos políticos, vulneráveis em sua visibilidade, mas a
pequenez de um tirano solerte que se esconde e se
dissimula na decisão que profere, a nível micro, quase
anônima pelo reduzido de sua visibilidade, protegido
em seus desvios funcionais pelo bonito discurso
imperativo da "independência" do julgador, como se
numa democracia houvesse independência aceitável
em face do verdadeiro soberano de todos – os
28
cidadãos .
Tendo em vista a contraposição entre os defensores de uma posição
mais ativa do Judiciário face às políticas públicas e aqueles que percebem tal
atuação com maiores ressalvas, é possível perceber que existem argumentos
fortes em prol das duas correntes. Assim, para que esse impasse não importe
em "desculpa" para o descumprimento dos direitos sociais indispensáveis à
condição humana, é necessário buscar critérios consensuais (ou ao menos de
subjetividade mais reduzida) para que o Poder Judiciário possa participar
desta tarefa que é dele, mas que também é do Poder Executivo e Legislativo e,
principalmente, da sociedade civil organizada.
Desta feita, em continuidade ao trabalho, serão analisados critérios
que possam contribuir para o intento acima explicitado, divididos em duas
partes: parâmetros materiais à justiciabilidade dos direitos sociais e critérios
processuais à justiciabilidade dos direitos sociais.
28
136
PASSOS, J. J. Calmon de. O magistrado, protagonista do processo jurisdicional? Revista
Brasileira de Direito Público - RBDP, Belo Horizonte, ano 7, n. 24, jan./mar., 2009. P. 16.
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2 Parâmetros Materiais à Justiciabilidade dos Direitos Sociais
Para auxiliar na realização das promessas constitucionais
promovidas pelas políticas públicas, o Poder Judiciário tem inegável tarefa
de ser o guardião constitucional, em especial em matéria de direitos sociais,
uma vez que estes são sempre os mais difíceis de serem implementados. Essa
dificuldade faz com que estes direitos sejam normalmente postergados,
esvaziando o conteúdo da Constituição. Se por um lado é inegável o
compromisso jurisdicional, por outro essa atuação implica um choque entre
os demais poderes estatais e até mesmo com a própria ideia de soberania
popular. Desta forma, a construção de parâmetros materiais pode contribuir
para uma atuação mais concatenada, do juiz, com a ordem constitucional
vista como um todo e com menor conteúdo de subjetividade, para que se
possa assegurar a supremacia da Constituição, mas não a hegemonia judicial.
É na busca sobre o debate destes critérios que avança o trabalho nos próximos
itens.
2.1 Possibilidade de Universalização da Medida
A atuação judiciária sobre as políticas públicas se legitima quando
a medida pode ser universalizada para todos os hipossuficientes. No contexto
atual, não é possível, por exemplo, que o Judiciário condene a Administração
a entregar uma casa para uma família, sob o argumento de que o direito à
moradia deve ser imediatamente aplicado. Não se justificariam, tampouco,
decisões que condenassem a Administração a empregar um desempregado,
sob o argumento de que é titular do direito ao trabalho. Tais medidas não são
passíveis de universalização, razão pela qual, ao concedê-las, o Judiciário
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violaria o princípio da igualdade. O atendimento das necessidades
individuais sem considerar a possibilidade de universalização da medida
para os hipossuficientes representa redistribuição de renda não informada
por critérios publicamente justificáveis29.
Muitas vezes o Judiciário acaba assegurando direitos que, diante
dos recursos disponíveis e da existência de outras necessidades igualmente
importantes, não teriam como ser universalizados. Ocorre que estas decisões
tendem a se multiplicar, comprometendo a racionalidade das políticas
públicas e criando implicitamente preferências para algumas pessoas sobre
bens escassos, fora de qualquer parâmetro ético ou jurídico30.
Sobre o tema, Leal alerta que:
Boa parte das demandas sociais precisam ser avaliadas,
ao menos em nível jurisdicional, em termos de aferição
axiológico normativa da emergência da demanda, aqui
entendida como avaliação sistêmico-constitucional da
questão que se apresenta, levando em conta não
somente o direito individual ou coletivo propriamente
dito, mas sua contextualização em face dos outros
sujeitos de direitos potencialmente impactados pelo
atendimento do seu interesse, notadamente sob a
perspectiva de limitação dos recursos coletivos para tal
31
mister .
Nesta universalização, deve ser levada em conta a prioridade para a
proteção dos mais necessitados, pois se os recursos são escassos, deve-se
priorizar a garantia dos direitos sociais para os mais pobres. Se o indivíduo é
29
NETO, 2008, op. cit., p. 540.
SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: alguns Parâmetros ÉticoJurídicos. In: DIREITOS Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 584-585.
31
LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais
sociais: os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009. P. 101.
30
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capaz de arcar com os custos de educação, saúde, etc., com recursos próprios,
não pode exigi-los do Estado perante o Judiciário. Observe-se, todavia, que a
hipossuficiência deve ser verificada no caso concreto. Se o jurisdicionado,
embora não seja pobre, não tem recursos para arcar com as prestações sociais
sem tornar inviável o atendimento de outras necessidades básicas, está também configurada a hipossuficiência32.
Assim, verificar a possibilidade de universalização da medida em
prol de todos os hipossuficientes, interessados no provimento da demanda,
serve de critério a ser observado na prestação, pela via jurisdicional, de
direito social proveniente de política pública. Além disso, essa
(im)possibilidade deve ser, necessariamente, fundamentada pelo juiz, da
mesma maneira que o Administrador está obrigado a motivar suas decisões
no campo discricionário.
2.2 Dever de considerar os direitos sociais em sua unidade
Cabe ao Judiciário, quando examina a omissão estatal na
concretização de determinado direito social, verificar a relação que o direito
mantém com o restante dos direitos sociais também garantidos pela ordem
constitucional brasileira. O fundamental é a garantia de uma vida digna, não
necessariamente a garantia da incidência do teor literal de todos os preceitos
de direito social. Os direitos sociais são, em diversos contextos,
intercambiáveis. Ao examinar demandas por prestações públicas, o
Judiciário deve conceber os direitos sociais como unidade, constituída em
33
torno das noções de hipossuficiência e de dignidade humana .
32
33
NETO, 2008, loc. cit., p. 539.
Idem, p. 541.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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Nessa linha, deve ser levado em conta, pelo juiz, que "a satisfação
de um problema imediato poderá inviabilizar centenas de outros tão
importantes e legítimos quanto este, haja vista que os recursos financeiros e
materiais para tanto, é inexorável, são finitos"34. A decisão judicial seria uma
atividade bipolar que pretende uma solução jurídica para um acontecimento
conflitivo, mas que deve valorar e integrar não só as exigências regulativas
do direito, como também o efeito social da decisão35.
Assim, uma das coisas que se podem exigir do Poder Público em
matéria de concretização dos direitos sociais é a obrigação de proteger as
partes mais vulneráveis da sociedade por meio de programas específicos de
prestação de direitos36, o que, infelizmente, impede o atendimento daqueles
que não necessitam de maneira mais latente, uma vez que:
[...] diante de uma escassez econômica que impeça que
todos possam ser satisfatoriamente atendidos ou
enquanto perdura uma situação de desigualdade tal que
muitos não possuem acesso a bens sociais básicos;
constitui uma desvirtuação da desigualdade o
oferecimento de serviços gratuitos à totalidade da
população quando isto resulta, por falta de recursos,
num serviço insuficiente a todos, deixando os
desprotegidos economicamente à mercê de uma
37
eventual impossibilidade de acesso . (Tradução livre.)
34
LEAL, 2009, op. cit., p. 1533.
PEÑA FREIRE, Antonio. La garantía en el Estado Constitucional de Derecho. Madrid:
Trotta, 1997. P. 228.
36
VAZ, Anderson Rosa. A cláusula de reserva do financeiramente possível como instrumento
de efetivação planejada dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Revista de
Direito Constitucional e Internacional. Revista dos Tribunais, ano 17, n. 66, p. 23,
jan./março 2009.
37
MÖLLER, MAX. Igualdade substancial e titularidade dos direitos sociais prestacionais.
Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 30, n. 63,
jan./jun. 2006. P. 151.
35
140
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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Nesse ponto, se observa, então, que vai ser legítimo ao Poder
Judiciário prover demandas sociais dependentes de políticas públicas quando
puder fundamentar levando em consideração a gama total de direitos sociais
envolvidos, bem como limitando o provimento àqueles que realmente
necessitam.
2.3 Prioridade para a opção técnica da Administração e prioridade para a
escolha mais econômica
As opções técnicas do administrador e do legislador devem ter
prioridade em relação à proposta pelo demandante na ação judicial. Por
exemplo, se o Estado oferece procedimento médico para determinada
patologia, não há, em regra, como o Judiciário determinar que arque com os
custos de outro procedimento desenvolvido para a mesma patologia, por ter
sido o prescrito pelo médico privado. Se o Estado inclui em sua lista
medicamento para o tratamento de determinada doença, o magistrado não
pode determinar que adquira outro, da preferência do médico do
demandante. Isso pode ser objeto de discussão no Judiciário, mas há
prioridade prima facie para a solução técnica apresentada pela
Administração Pública38.
O jurista não dispõe de instrumental técnico ou de informações
para levar a cabo o controle jurisdicional das políticas públicas. Além disto,
os indivíduos que vão ao Judiciário postular algum bem ou serviço em
matéria de direitos fundamentais nem sempre são provenientes das classes
menos favorecidas. As necessidades destes, em regra, não chegam aos
Tribunais nem são ouvidas pelos juízes, representando um deslocamento de
38
NETO, 2008, op. cit., p. 541-542.
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recursos das políticas públicas gerais – que, em tese, iriam para os que mais
precisam de forma direta – para as demandas específicas daqueles que detêm
informação e capacidade de organização39.
Nada obstante o Judiciário tenha meios para qualificar
tecnicamente suas decisões, a Administração dispõe de "capacidades
institucionais" mais apropriadas. A solução técnica da Administração deve,
contudo, ter sido apresentada previamente ao ajuizamento da ação, na forma
de política pública já institucionalizada. A formulação casuística de soluções
técnicas pelo Estado lhes reduz a confiabilidade e as vantagens comparativas
em relação às propostas pelo demandante40. Para Castro e Costa, em defesa do
asseguramento da possibilidade da Administração em estabelecer seus
argumentos técnicos:
Duas atitudes são imprescindíveis para o juiz: em
primeiro lugar, não olvidar as regras de imparcialidade
procedimental, assegurando a apresentação de
argumentos por parte da Administração e a produção de
provas que os sustentem; em segundo lugar, confrontar
a consistência de tais argumentos com a consistência da
fundamentação que pode ser exposta na decisão
judicial. Este juízo de ponderação eliminará muitas
hipóteses de alteração do mérito do ato administrativo,
em face da superioridade comparativa dos argumentos
41
expendidos pelaAdministração .
Da mesma maneira, o Judiciário deve optar pela solução mais
econômica, dentre as eficazes. Se, por exemplo, o jurisdicionado requer a
entrega de medicamento fabricado por determinado laboratório, mas há
39
BARCELLOS, 2006, op. cit., p. 127.
NETO, 2008, op. cit., p. 541-542.
41
CASTRO E COSTA, Flávio Dino de. A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas
públicas no Brasil. In: MONTESCO, C. J.; FREITAS, M. A. de; BORGES, M. de F. C.
(Org.). Direitos sociais na constituição de 1988: uma análise crítica vinte anos depois. São
Paulo. LTr, 2008. P. 167.
40
142
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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medicamento genérico, o Judiciário deve optar por este último. Se há vaga na
rede pública de ensino, o magistrado não deve determinar a matrícula de
aluno na rede privada. A escassez de recursos públicos cria essa obrigação
para o Poder Judiciário, até para que a medida possa ser universalizada. Se há
duas soluções técnicas adequadas para o mesmo problema, o magistrado
deve optar pela que demande menor gasto de recursos públicos42.
A possibilidade de controle da eficiência mínima das políticas
públicas envolverá a verificação do emprego adequado dos recursos no
contexto das políticas públicas, nesse sentido impedindo condutas
claramente ineficientes ou mesmo malversação criminosa do dinheiro
público43.
Assim, da mesma forma que o juiz está restrito a promover a
medida que atenda a necessidade constitucional-social do demandante
hipossuficiente mais econômica para o Estado, este vai estar, para garantir
que o magistrado fique dentro desse limite de atuação, obrigado a comprovar
que os recursos públicos estão sendo bem aplicados.
A verificação dos parâmetros materiais que condicionam o Poder
Judiciário na implementação de políticas públicas não esgota o rol de
compromissos que este deve assumir para reduzir a subjetividade de suas
decisões e ampliar seu caráter democrático. Desta forma, alguns critérios de
ordem processual vão colaborar no sentido de dar legitimidade para essa
atuação "ativista".
42
43
NETO, 2008, op. cit., p. 542.
BARCELLOS, 2006, loc. cit., p. 137.
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3 Critérios Processuais à Justiciabilidade dos Direitos Sociais
Os critérios que subsidiam a atuação judicial nas políticas públicas,
além de sua face material, também se consubstanciam por critérios
procedimentais, sem os quais a decisão do juiz seria inteiramente ilegítima e
interventora na esfera dos outros poderes constituídos.
Embora os direitos sociais sejam comumente identificados com
aspectos substantivos, também possuem inegável dimensão procedimental, a
qual constitui base sólida para prestação jurisdicional. A ideia de devido
processo legal foi originalmente concebida para a proteção de direitos civis
tradicionais, tal como o direito de propriedade. Entretanto, não há
impedimento conceitual que impeça a extensão de proteções procedimentais
a estes direitos. Garantias procedimentais podem adquirir múltiplas formas.
Podem ser colocadas como pré-requisitos para a adoção de certas medidas
gerais e políticas pelo Estado, estabelecer passos que o Estado está obrigado a
dar antes de conceder, negar ou expropriar indivíduos em particular ou
grupos de algum desses direitos ou também podem objetivar estabelecer as
bases para o controle administrativo ou judicial de decisões adotadas por
autoridades administrativas ou por outras autoridades políticas44.
Assim, o controle procedimental sobre esse tipo delicado de
decisão, que enseja amplo debate sobre sua legitimidade frente ao princípio
da separação de poderes45, é indispensável para conferir aceite social e
institucional para esta forma atuante de jurisdição.
44
45
144
COURTIS, 2008, op. cit., p. 495-496.
Mesmo porque, é razoável afirmar, com Streck, que a liberdade do legislador é mais restrita
quando relativa aos direitos de liberdade e mais ampla quando referente às liberdades
econômicas, de mercado ou prestações sociais, o que não quer dizer que os atos legislativos
e de governo, nestes casos, não devam estar conformados ao texto da Constituição e sua
materialidade. STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova
crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 99
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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3.1 Prioridade para as ações coletivas
O primeiro critério procedimental a ser abordado diz respeito à
possibilidade de o Poder Judiciário, e nesse sentido seria importante destacar
também a atuação do Ministério Público e Defensoria Pública, dar
preferência para solução dos conflitos acerca dos direitos sociais para as
ações de cunho coletivo.
Embora possam ocorrer decisões judiciais em litígios individuais –
como, de fato, vem ocorrendo –, há várias razões para que se priorizem as
ações coletivas, como destaca Neto:
(a) As decisões proferidas no âmbito de ações coletivas
garantem a universalização da prestação (...). (b) As
decisões proferidas em ações coletivas desorganizam
menos a Administração Pública. (...). (c) Nas ações
coletivas, é possível discutir com o cuidado necessário
os aspectos técnicos envolvidos (...). (d) A priorização
das ações coletivas estimula que o cidadão se mobilize
para a atuação política conjunta (...). (e) A priorização
de ações coletivas evita que apenas cidadãos que
possuam um acesso qualificado à justiça sejam
efetivamente destinatários de prestações sociais. (f) Nas
ações coletivas, é possível analisar, de modo mais
46
preciso, o impacto da política no orçamento .
Na tutela coletiva, os magistrados não têm como escapar de uma
reflexão que deveria ser realizada sempre que estivessem em jogo pretensões
sobre recursos escassos: o potencial de universalização do que foi pedido.
Não há como decidir uma ação civil pública que afete a todo um amplo
universo de pessoas sem considerar o seu efeito sobre as políticas públicas
em vigor e as verbas existentes. O impacto aqui é inequívoco e por isso tem de
46
NETO, 2008, op. cit., p. 543-544.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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ser enfrentado. O julgamento força uma análise de "macrojustiça", que
envolve a legitimidade do atendimento de determinados pleitos num quadro
de escassez de recursos47.
As ações coletivas são mais adequadas, pois os direitos sociais não
podem ser apropriados por um indivíduo em detrimento de toda a sociedade.
Este tipo de ação é que enseja a consideração dos efeitos da decisão para a
sociedade. Vários interesses em jogo podem ser ponderados com a
participação de vários entes políticos e sociais como se daria pelo instituto do
amicus curiae (ou seja, terceiros interessados na lide poderiam participar do
feito, trazendo cálculos, argumentos)48.
Nas ações individuais é muito mais fácil para o juiz "tapar o sol com
a peneira" e conceder "com o coração" qualquer prestação demandada, já que
os efeitos concretos de cada decisão sobre o orçamento público costumam ser
diminutos e existe todo um apelo emocional que inclina os magistrados a
decidirem com maior generosidade em favor das pessoas concretas, de carne
e osso, cujas carências e necessidades foram explicitadas no processo49.
Ademais, as ações coletivas tendem a possibilitar uma instrução
processual mais completa, franqueando ao juiz um maior contato com as
inúmeras variáveis envolvidas na implementação das políticas públicas de
atendimento dos direitos sociais, que tenderiam a ser negligenciadas nas
ações individuais50.
Assim, esse critério pode amparar a atuação jurisdicional acerca
das políticas públicas, pois essa preferência para as ações coletivas auxilia na
47
SARMENTO, 2008, op. cit., p. 584.
TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais:
uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. Direitos
Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008. P. 67.
49
SARMENTO, 2008, op. cit., p. 584-585.
50
Idem, p. 585.
48
146
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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garantia de outros critérios já apontados, como possibilidade de
universalização da medida e o dever de considerar os direitos sociais em sua
unidade.
3.2Atribuição do Ônus da Prova de que Não Tem Recursos àAdministração
Segundo esse parâmetro, o argumento da reserva do possível51, isto
é, de que a Administração não tem recursos para prover a demanda relativa
aos direitos sociais, somente será aceita pelo Judiciário quando puder ser
devidamente comprovada.
O argumento da reserva do possível não é admissível quando
formulado abstratamente. Contudo, se, no caso em exame, a Administração
prova que não possui recursos para universalizar a prestação, o magistrado
deve decidir pelo não provimento, nada obstante eventualmente estivesse
legitimado para determinar a providência requerida, considerando os
parâmetros materiais acima apresentados. É, todavia, a própria
Administração que tem a obrigação de provar não possuir os recursos
disponíveis para prover a prestação52.
Neste sentido já caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, conforme decisão proferida no Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário nº 410.715, com relatoria do Ministro Celso de Mello, em que
51
52
Sobre o assunto vide: LEAL, Rogério Gesta. A efetivação do direito à saúde por uma
jurisdição-serafim: limites e possibilidades. In: REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério
Gesta. (Org.). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2006. Tomo 6; VAZ, Anderson Rosa. A cláusula de reserva do
financeiramente possível como instrumento de efetivação planejada dos direitos humanos
econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São
Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, n. 66, jan.-mar,. 2009; SCAFF, Fernando Facury.
Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B.
(Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria
doAdvogado, 2008.
NETO, 2008, op. cit., p. 545.
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o Município de Santo André – SP foi obrigado a promover a inclusão de
crianças em creches e pré-escolas. Neste caso, apesar da determinação
judicial, ressaltou-se a possibilidade de o Estado ter comprovado
objetivamente que não dispunha de recursos para o atendimento da demanda,
o que não fez:
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos,
sociais e culturais – além de caracterizarem-se pela
gradualidade do seu processo de concretização –
depende, em grande medida, de um inescapável vínculo
financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias
do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a alegação de incapacidade econômica e
financeira da pessoa estatal, desta não se poderá
razoavelmente exigir, então, considerada a limitação
material referida, a imediata efetivação do comando
53
contido na Carta Política .
Para Vaz54, uma das coisas que certamente se podem buscar via
jurisdição é esta obrigação de prestar um padrão mínimo de direitos humanos
e, em caso de não cumprimento, provar que o máximo de recursos foi
utilizado de forma absolutamente eficiente.
Logicamente, mais do que deter o ônus de comprovar a falta de
recursos, a Administração deve manter suas contas de forma aberta e
transparente para que tal prova não possa ser "maquiada" para um caso
concreto, uma vez que a tecnicidade dos orçamentos públicos dificultaria sua
avaliação.
Ressalvadas algumas hipóteses bastante restritas, cujo sigilo seja
fundamental para o sucesso do plano de ação governamental, faltará com a
devida transparência administrativa a política pública que não seja
53
54
148
STF, RE-AgR 410.715, Rel. Ministro Celso de Mello, D.J. de 03.02.2006.
VAZ, 2009, op. cit., p. 23.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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construída com ampla divulgação e possibilitando a participação dos
cidadãos interessados55. Ou seja, a falta de transparência vai ensejar uma
possibilidade de maior controle por parte do Poder Judiciário, enquanto, do
contrário, havendo ampla divulgação na esfera pública, haverá maior
limitação ao poder jurisdicional frente à possibilidade de aferição da
pertinência da política na esfera social.
3.3Ampliação do diálogo institucional
A necessidade de ampliação do diálogo institucional talvez seja um
dos critérios mais importantes no sentido de legitimar a atuação "política" do
Poder Judiciário, uma vez que aproxima o diálogo jurídico do político,
travando dialética apta a propiciar uma decisão mais justa e concatenada com
a realidade social e com as prerrogativas da soberania popular.
A atuação jurisdicional dos tribunais constitucionais tem sido
criticada por alguns teóricos, visto que a legitimidade do Poder Legislativo,
em virtude de seu caráter eletivo e representativo, é maior do que a dos órgãos
que integram a jurisdição constitucional. Em virtude dessa legitimação
democrática é que as decisões importantes sobre conteúdos e valores, em
uma sociedade plural e complexa, deveriam caber ao primeiro, limitando-se
56
e restringindo-se a desta última .
No entanto, alguns autores contemporâneos sustentam a
regularidade da atuação sobre as políticas públicas desde que amparada no
55
OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise
hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In. SARLET, I. W.; TIMM, L. B.
(Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". Porto Alegre: Livraria
doAdvogado, 2008. P. 340.
56
LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta: reflexões sobre a
legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma
abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de Janeiro:
Lúmen Juris, 2007. P. 207.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010
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critério da ampliação do diálogo institucional. Como exemplo, Peter
Häberle, em "A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição", oferece,
como forma de legitimação deste tipo de atuação jurisdicional, uma
interpretação constitucional que seja realizada por uma sociedade aberta dos
intérpretes no sentido de que toda a sociedade deve participar deste processo.
A interpretação constitucional atual, segundo o autor, tem sido
realizada apenas pelos intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" e
aqueles participantes formais do processo constitucional. No entanto, todo
aquele que vive no contexto regulado por uma norma é, indireta ou até
mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. Assim, Häberle define os
intérpretes constitucionais em sentido lato: cidadãos e grupos, órgãos
estatais, o sistema público, a opinião pública, etc., mas ressalta que subsiste
sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em
geral, a última palavra sobre a interpretação57.
A ampliação do círculo dos intérpretes é consequência da
necessidade de integração da realidade no processo de interpretação. Desta
forma, a legitimação destas forças pluralistas da sociedade se dá uma vez que
representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição58. Isso
representa que "a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência
da teoria democrática". Portanto, "é impensável uma interpretação da
Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas"59
Esse locus privilegiado de atuação pode ser implementado através
da "criação e a consolidação de ações constitucionais específicas, [...]
permitindo uma participação direta dos cidadãos no questionamento de
57
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos interpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição.
PortoAlegre: SérgioAntônio Fabris, 1997. P. 13-14.
58
Idem, p. 33.
59
Idem,, p. 14.
150
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temas fundamentais à sociedade"60. Assim, a "abertura dos canais internos do
próprio Judiciário para com a comunidade e para com os argumentos trazidos
para dentro do processo" se torna imprescindível. Em se tratando de temas
constitucionais fundamentais, que afetam a sociedade, para uma
comunicação efetiva deve o magistrado "abrir espaços para o diálogo e,
principalmente, estar aberto a ele"61.
A partir dessa atuação legitimada pela participação popular, a
jurisdição constitucional fica autorizada a atuar valorativamente, pois sua
fundamentação não é mais somente baseada em "valores extraídos do senso
comum ou da convicção pessoal do juiz, [...] mas sim de uma jurisdição que
pauta suas decisões valorativas em processos abertos de discussão e de
conteúdo"62 .
Menelick aponta, no caso brasileiro, como instrumento de
ampliação dos intérpretes da Constituição, o nosso controle difuso de
constitucionalidade, pois representa "a compreensão da Constituição como
de autoria de todos nós"63, permitindo que todos sejamos intérpretes
autorizados da Constituição, uma vez que não se autoriza ao Legislativo ou
qualquer outro poder violar direitos fundamentais, podendo ser a questão
arguida e discutida por qualquer juiz no caso concreto.
A judicialização das políticas sociais depende de decisões
construídas mais horizontalmente, a partir da interlocução permanente entre
magistrados, administradores, técnicos, universidades e associações da
sociedade civil. Não raro se exigirá que o magistrado visite escolas e
hospitais e dialogue, no local, com os usuários e servidores64.
60
LEAL, 2007, loc. cit., p. 204.
LEAL, 2007, op. cit., p. 205.
62
Idem, p. 206.
63
NETTO, Menelick de Carvalho. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos
direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. (Org.) Jurisdição
Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 163.
64
NETO, 2008, op. cit., p. 546.
61
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151
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Assim, somente em uma sociedade em que a comunicação política
se dê de forma autônoma, com mecanismos de visibilidade plena e
includente, os institutos da democracia representativa ganharão força e
relevo. Desta forma, "o Parlamento resgata sua dimensão de formulador das
ações voltadas ao atendimento dos interesses comunitários"; o Poder
Executivo "mantém-se adstrito às suas funções concretizadoras do projeto de
vida eleito pela Sociedade" e o Judiciário, por fim, "opera sua condição
republicana, no sentido de dar guarida às regras do jogo das ações e tensões
vigentes no espaço público da vida cotidiana"65 .
Por tudo que foi visto, a crescente e ininterrupta abertura dos canais
institucionais do Poder Judiciário vai ser necessária para que este se coloque
como opção com respaldo democrático na concretização de políticas
públicas, constituindo-se em critério procedimental inafastável imposto à
jurisdição.
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matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle
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alguns impactos do projeto neoliberal no processo de formação de tutelas
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leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996.
65
152
LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na democracia contemporânea: uma perspectiva
procedimentalista, Porto alegre: Livraria doAdvogado, 2007. P. 62-63.
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O PRINCÍPIO DO CARÁTER NÃO AUTOMÁTICO DOS EFEITOS
DAS PENAS E A INADMISSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DOS
DIREITOS POLÍTICOS DO CONDENADO: DESCONSTRUÇÃO
DISCURSIVA E APROXIMAÇÃO COMPARATIVA COM O
EXEMPLO PORTUGUÊS
Salah Hassan Khaled Junior1
Fabrício Martinatto da Costa2
RESUMO
O presente artigo procura sustentar a hipótese de que a suspensão dos direitos
políticos do condenado é um resto anacrônico de uma concepção de pena que
é incompatível com os preceitos que delimitam o espaço legítimo de atuação
do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito. A partir de autores
como Salo de Carvalho, Luigi Ferrajoli e Jorge de Figueiredo Dias, a análise
aponta que o princípio do caráter não automático dos efeitos das penas
representa uma abertura dogmática que pode contribuir para a percepção do
quanto é imprescindível repensar a questão da cidadania e da própria
humanidade da população tragada pelo nosso sistema penal.
Palavras-chave: Direitos Políticos. Direitos Humanos. Direitos
Fundamentais. Direito Penal. Pena.
ABSTRACT
This article seeks to support the hypothesis that the suspension of political
rights of the offender is a remnant of an outdated conception of punishment
that is incompatible with the precepts that define the scope of legitimate
action of the punitive power in a democratic state of law. Using authors such
as Salo de Carvalho, Luigi Ferrajoli and Jorge de Figueiredo Dias, the
analysis reveals that the principle of the non-automatic nature of the effects of
the criminal sentences represents a dogmatic opening that can contribute to
the perception of how it is imperative to rethink the citizenship and the very
humanity of the people swallowed up by our criminal justice system.
Keywords: Political Rights. Human Rights. Fundamental Rights. Criminal
Law. Penalty.
1
Professor assistente de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História
(UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA). Bacharel em Ciências Jurídicas e
Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa
Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq).
2
Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – Furg. Bolsista de Iniciação
Científica. Bolsista do Programa de Bolsas Luso-Brasileiras Santander Universidades
(Universidade de Coimbra – Portugal). Monitor de Direito Penal. Membro do Grupo de
Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq).
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159
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1 Introdução
O presente artigo procura sustentar a hipótese de que a suspensão
dos direitos políticos do condenado é um resto anacrônico de uma concepção
de pena que é incompatível com os preceitos que delimitam o espaço legítimo
de atuação do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito.
Evidentemente o tema é polêmico, uma vez que a Constituição
Brasileira de 1988 estabelece de forma clara – em seu art. 15, inciso III – a
referida suspensão. Não bastasse a suspensão, esta é autoaplicável, sendo o
efeito consequência imediata e direta da decisão condenatória transitada em
julgado. Não é sequer necessária a manifestação expressa de sua incidência e
não há qualquer espécie de distinção quanto à modalidade da infração
cometida. A suspensão persiste enquanto durarem as sanções impostas ao
condenado, compreendendo, inclusive, o livramento condicional.
Apesar da disposição expressa, é urgente repensar a questão, pois a
fundamentação para a imposição desse efeito adicional da condenação penal
não pode ser extraída dos mandamentos político-criminais inseridos na Carta
Magna de 1988, uma vez que ela não expressa em trecho algum adesão a
nenhuma teoria dos fins pena. Tais teorias, como se sabe, têm um caráter
justificador da sanção penal – em sua forma absoluta ou relativa – e são elas
que fornecem os fundamentos que legitimam a imposição automática desse
efeito adicional da condenação. Diferentemente da Lei de Execução Penal
(Lei nº 7.210, de julho de 1984, conhecida como LEP) que claramente
estabelece um ideal ressocializador inspirado na ideia de prevenção especial,
na CF/88 encontramos uma preocupação com a limitação dos perversos
efeitos da pena, ou seja, com os meios empregados na sua execução, a partir
de uma perspectiva de nítida busca de redução de danos.
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Certamente que a restrição dos direitos políticos do condenado não
parece condizente com a preocupação com a redução dos efeitos perversos da
pena e também não parece condizente com o necessário respeito aos direitos
humanos e fundamentais em um Estado Democrático de Direito. Parece
haver aqui uma contradição irreconciliável na Carta Magna de 1988 entre o
núcleo axiológico-valorativo de respeito aos direitos fundamentais do
indivíduo e a previsão expressa de suspensão dos direitos políticos enquanto
efeito automático de imposição de sanção penal pelo Estado.
Até pouco tempo atrás, o problema se estendia aos presos
provisórios, que também eram impedidos de votar. O impedimento
conformava verdadeira violação ilegal de direitos fundamentais, pois, uma
vez que não foram condenados em definitivo, não haviam perdido os direitos
em questão. Na verdade trata-se de apenas mais um dos muitos problemas
vinculados ao desmedido incremento da utilização da prisão provisória, que
várias vezes acaba configurando uma espécie de pena antecipada e que no
caso em questão atingia – na prática e de forma ilegítima – os direitos
políticos do cidadão. Não é por acaso que nos últimos anos foi desencadeada
forte pressão por parte de organizações civis no sentido de viabilizar o direito
ao voto nestes casos – visto que sequer se encontrava juridicamente suspenso
–, que finalmente foi acolhida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por
meio da resolução número 23.219/10. Enfim, após experiências restritas e
pontuais de alguns Tribunais Eleitorais, como o do Rio Grande do Sul, neste
ano foram tomadas medidas concretas para viabilizar o direito ao voto, com a
assinatura de acordo de cooperação técnica com o TSE pelo presidente do
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Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF),
ministro Gilmar Mendes3.
É evidente que a iniciativa é mais do que louvável e assinala com
horizonte de expectativa de concretização do exercício dos direitos políticos
por parte de uma parcela da população que vinha sendo indevida e
ilegalmente impedida de exercê-los: a CF/88 explicitamente refere que a
suspensão somente é cabível em decorrência de decisão condenatória
transitada em julgado.
No entanto, como assinalado anteriormente, parece-nos necessário
avançar ainda mais: é urgente uma revisão crítica acerca da imposição desse
efeito em particular, o que leva, por sua vez, à consideração da eficácia e
efetividade dos limites que foram impostos ao poder punitivo do Estado.
Limites estes que muitas vezes não são devidamente observados pelo
legislador pátrio.
Nesse sentido, para desconstruir a previsão normativa de
suspensão dos direitos políticos é necessário (re)pensar a conformidade da
intervenção jurídico-penal no que se refere ao respeito aos direitos humanos e
fundamentais, desde premissas constitucionais condizentes com o projeto de
Estado Democrático de Direito delineado na CF/88.
A partir dessa problemática inicial, a análise aqui proposta utiliza o
direito e a doutrina de Portugal como horizonte de abertura diante de uma
questão que tem tido pouca atenção no cenário jurídico nacional. Uma
análise comparativa no âmbito da desconstrução dos pressupostos que
autorizam a imposição automática da perda de direitos políticos pode se
3
162
Além do TSE e do Ministério da Justiça, assinaram o protocolo de cooperação técnica com o
CNJ, a Defensoria Pública da União (DPU), a Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os conselhos nacionais
do Ministério Público; dos Direitos da Criança e do Adolescente; de Política Criminal e
Penitenciária; dos Defensores Públicos Gerais e dos Secretários de Justiça, Cidadania,
Direitos Humanos eAdministração Penitenciária.
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mostrar muito proveitosa, pois a comparação jurídica – ou direito comparado
– tem virtudes que lhe são muito peculiares, particularmente para irradiar
novas luzes em locais em que a familiaridade impede a constatação da
existência de limites discursivos.
2 Estabelecimento do Problema
A perspectiva de análise aqui empregada faz com que o tema da
suspensão dos direitos políticos do condenado criminalmente não possa ser
abordado sem que se faça referência ao problema da fundamentação dada
pela teoria das penas à imposição de sanções penais. O motivo dessa
consideração se encontra no fato de que é justamente essa fundamentação
que consubstancia a referida suspensão, pois, como referido anteriormente,
embora a mesma tenha previsão constitucional, não está adequada ao projeto
de Estado Democrático de Direito delineado na CF/88.
Nesse sentido, constata-se o desgaste das teorias justificantes das
penas, uma vez que estas não são mais compatíveis com um modelo de
Estado Constitucional embasado em uma concepção pluralista e complexa
da sociedade. Isso porque elas não informam satisfatoriamente os limites que
devem ser impostos à intervenção jurídico-penal, legitimando por vezes um
Direito Penal máximo e que desconsidera – muitas vezes de forma flagrante –
os direitos humanos.
De forma sucinta, pode ser dito que: as exigências de prevenção
geral negativa (de intimidação do corpo social) fazem de muitas condenações
algo exemplar, com verdadeiro caráter de pedagogia social; a prevenção
geral de caráter positivo, por sua vez, conforma uma intervenção estatal no
sistema de valores do indivíduo inaceitável em um Estado Democrático de
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Direito; as pretensões de prevenção especial positiva por meio da
ressocialização são mero mito no contexto penitenciário nacional; a ideia de
inocuização inerente à prevenção especial negativa flagrantemente viola
direitos humanos; por fim, a exigência de castigo inerente ao princípio
retributivo é incompatível com a dignidade da pessoa humana (apesar do
reconhecimento de que outra finalidade que não o castigo em si mesmo
atingiria essa dignidade). Por outro lado, as releituras contemporâneas da
prevenção geral fundamentadora – autopoiética, por muitos referida como
uma espécie de neoretribucionismo –
(JAKOBS, 2003, p.71-72) e
limitadora – que implica recepção de critérios de prevenção geral na teoria do
delito – (ROXIN, 2000, p.48-50) também têm problemas que exigiriam uma
análise mais extensa do que as dimensões do presente artigo comportam.
Necessário, portanto, modificar o âmbito da discussão: promover o
deslocamento de um discurso meramente legitimante para um discurso
crítico, ciente dos efeitos catastróficos que o poder punitivo produz e
objetivando a sua concreta limitação. O ponto de partida necessário para esse
deslocamento é o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana no
que se refere aos meios de execução da pena e a seus efeitos. O referido
princípio – e o irrenunciável respeito a ele – é essencial ao Estado
Democrático de Direito, ou melhor, à sua concretização para além de um
mero horizonte de expectativa. Portanto, trata-se de um limite inegociável ao
exercício arbitrário do poder punitivo que deve urgentemente alcançar
efetividade concreta.
Um dos fatores que demonstram essa urgência é a contradição entre
a atuação deficitária do Estado em termos de prestações sociais e sua
presença cada vez mais intensa em termos de repressão penal. A pretensão de
erigir uma sociedade saudável com base na repressão não pode ser mais do
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que uma ingenuidade evidente ou, pior ainda, produto de uma razão ardilosa.
O alto índice de exclusão social não tem como ser compensado por meio do
atendimento ao apelo midiático de endurecimento da atuação das agências de
punitividade e da legislação penal. Trata-se de um apelo que inclusive acaba
por provocar um sentimento de insegurança generalizado, que conduz a uma
intervenção jurídico-penal com alto índice punitivista. Essa intervenção
nitidamente autoritária caracteriza-se, sobretudo, por ignorar a exigência
constitucional de respeito a direitos fundamentais, tanto no processo como na
execução da pena. Nesse contexto, cada vez são maiores as exigências por
um Estado protetor, responsável pela manutenção da ordem social e pela
persecução aos indivíduos considerados como ameaça à sociedade, agora
categorizados como não-pessoas, os chamados inimigos (JAKOBS, MELIÁ,
2003).
Por outro lado, o movimento de hipertrofia da legislação penal –
resultante em grande medida das exigências midiáticas – acaba gerando
patologias e estimulando a difusão do direito penal exclusivamente
simbólico como messiânica promessa de concretização da tão sonhada – e
mítica – segurança. Assim, alicerçada numa concepção ilusória de que os
problemas de segurança pública podem ser resolvidos com a mera ameaça de
sanção penal, a lógica do direito penal máximo inverte e subverte o sentido do
próprio sistema penal, enquanto mecanismo restrito reservado à tutela dos
bens jurídicos mais importantes e das lesões mais graves a estes bens. O que
se vê, portanto, é uma política criminal de "garantia da liberdade" reduzida a
uma "política de segurança" que procura irrestritamente combater o crime
(RODRIGUES, 2002, p.150).
Para modificar ou ao menos atenuar o quadro acima descrito é
preciso reencontrar e repensar os fundamentos do Direito Penal para
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identificar o seu campo de atuação e sua função, a fim de reduzir os danos
que, inevitavelmente, ele provoca. Isso implica a consideração crítica de
limites discursivos que parecem conformar barreiras insuperáveis à
concretização de um Direito Penal orientado de acordo com as exigências de
um Estado Democrático de Direito. Assim, é imprescindível superar o
problema dos fins das penas e desenvolver um novo discurso dirigido aos
meios de execução e aos efeitos da pena, capaz de fundamentar uma atuação
penal comprometida com uma política de redução de danos e com a garantia
dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a própria concepção existente acerca dos direitos
humanos do condenado necessita ser repensada urgentemente. Para tanto,
torna-se essencial estabelecer o condenado como verdadeiro sujeito de
direitos, de modo que a pena a ele imposta possa ser entendida como sanção,
mas também como limite na imposição de quaisquer restrições adicionais a
direitos que não foram (e nem podem) ser objeto de restrição. A partir dessa
perspectiva, será possível refutar como ilegítimo qualquer efeito penal
moralizante, que coisifique ou reduza o criminoso a um patamar inferior ao
dos demais cidadãos, seja no momento da determinação da pena, seja na sua
execução. Nessa perspectiva, um Estado que considere o criminoso sujeito
de direitos é o passo inicial para tornar a intervenção jurídico-penal mais
condizente com a sua função primordial e original: a de constituir uma
barreira intransponível à incidência arbitrária do poder punitivo.
Saliente-se, nesse contexto, a importância da CF/88 para construir
uma renovada posição jurídica do condenado, desde o irrenunciável
princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, esse papel
constitucional somente pode ser cumprido quando não são impostas pelas
próprias normas constitucionais restrições aos direitos fundamentais do
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condenado que não se coadunam com o princípio em questão. Nesse sentido,
a imposição de restrição dos direitos políticos do condenado apenas contribui
para aprofundar sua estigmatização e dessocialização, reforçando a
construção discursiva da categoria de não-pessoa, isto é, o inimigo, algo
impensável e inadmissível em um Estado Democrático de Direito.
3 (Re)pensando a Sanção Penal a partir de uma Perspectiva de Redução
de Possíveis Danos
A necessidade de superação do limite discursivo dos fins das penas
pode ser sustentada a partir da incapacidade das teorias da pena em legitimar
exclusivamente sistemas penais mínimos, ou seja, compatíveis com o
Estado Democrático de Direito. As teorias da pena concebidas na
modernidade – assim como suas releituras contemporâneas – são mais aptas a
legitimar do que a questionar a incidência arbitrária do poder punitivo.
Ao fornecer fundamentação para as práticas punitivas, os discursos
justificadores da pena acabam por legitimar as mais diversas táticas de
intervenção penal, inclusive as mais autoritárias e maximizadas, o que
demonstra claramente a falência desses modelos incapazes de encontrar
alternativas ao sistema punitivo atual, que ainda (re)produz mais injustiças
do que justiças.
Nesse sentido, Carvalho constata que "o irrestrito e romântico
apego aos fundamentos punitivos revisitados na Ilustração, aliado à ausência
de problematização do fenômeno pena nas atuais sociedades complexas,
impedem às doutrinas dogmáticas e críticas do direito penal qualquer tipo de
ruptura e/ou refundação discursiva, visto recaírem em espécie de história
penalógica antiquária" (CARVALHO, 2006, p. 67). Diante dessa
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incapacidade, as doutrinas justificadoras acabam fortalecendo a ilusão de
tentar controlar por meio da imposição de sanções penais a agressividade e
paixões humanas, para conquistar uma condição social de convívio pacífico,
sem violências e delitos (CARVALHO, 2006, p. 68). A crença na aptidão do
sistema penal para promover segurança leva à incidência arbitrária do poder
punitivo, algo impensável num Estado Democrático de Direito calcado no
princípio da dignidade da pessoa humana, mas devidamente "mascarado" ou
"legitimado" discursivamente pelas funções de prevenção geral e especial da
pena, assim como por uma concepção de retribuição com nítido conteúdo
moral. Tudo isso indica a necessidade de superação da discussão travada por
séculos pelos penalistas em torno dos míticos fins da pena, para enfim,
reconhecer-se a aguda urgência de considerar os meios pelos quais ela é
executada. Segundo Carvalho, esse deslocamento implicaria que:
nenhuma finalidade universalista e totalizante
sobreviveria à crítica; nenhuma função restaria imune à
constatação da produção de violência unilateral quando
da imposição de estereótipos normalizadores em
pessoas concretas, de 'carne e osso', caracterizadas pela
alteridade. O meio, portanto, por representar incidência
de violência institucional no sujeito punibilizado,
deverá sempre ter mais importância que o fim
ideal(izado) da pena (CARVALHO, 2006, p. 71).
Portanto, temos que nos perguntar sobre os limites da pena num
Estado Democrático de Direito, no qual é exigido respeito aos direitos
fundamentais. Trata-se, portanto, da necessidade de (re)pensar o direito penal
a partir do binômio eficácia-humanidade, sendo que a intervenção penal
deverá dirigir-se, ao mesmo tempo e em igual relevância, para a tutela de bens
jurídicos e para garantia dos direitos fundamentais do condenado.
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Admitindo-se a impossibilidade de abandono das penas privativas de
liberdade no modelo de sociedade atual, temos que, ao menos, repensar a
forma com que elas são cumpridas e impostas para satisfazer o próprio ideal
de sociedade estabelecido pela CF/88. Para isso, torna-se imprescindível a
construção de um modelo capaz de demonstrar a necessidade do direito penal
e, ao mesmo tempo, reduzir os danos por ele infligidos caso seja
desmedidamente utilizado.
Nessa seara, Ferrajoli (1995, p. 332) propõe um modelo penalógico
mínimo orientado para a redução de danos: a pena deve ter como fim a
prevenção dos delitos e a prevenção de penas informais, evitando-se que
sanções criminais não amparadas pelo princípio da legalidade sejam
aplicadas. Mas isso não basta: é preciso que as penas causem o mínimo de
danos possíveis ao condenado. Ou seja, "além do máximo bem estar
possível aos não desviados, também o mínimo mal-estar necessário aos
desviados", reformulando-se, com essa perspectiva, o princípio ilustrado da
"pena mínima necessária" (FERRAJOLI, 1995, p. 332).
Somente assim é possível legitimar a atuação de um Direito Penal
mínimo. Como referido anteriormente, a exigência desmedida de prevenção
de delitos inevitavelmente dá margem ao incremento das sanções penais
correspondentes e inclusive à utilização de alguns indivíduos como
paradigmas de "justiça" por meio de punições "exemplares" que assumem
caráter de verdadeira pedagogia social. Por essa razão, estabelecer como
prioridade na execução da pena a garantia de fazer o mínimo mal possível ao
desviado significa reconhecer que o Direito Penal deve atuar dentro dos
limites estritos do respeito aos direitos fundamentais. Assim, a pena
funcionaria limitada pelas garantias e liberdades individuais e não seria mais
um mero instrumento na repressão de delitos, que visa à retribuição,
intimidação ou ressocialização.
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Mesmo que a proposição de Ferrajoli não abdique por completo da
fundamentação em torno dos fins da pena, ela representa um inegável avanço
discursivo, que pode conformar melhorias significativas na realidade
concreta. A principal consequência desse pensamento é que, apesar de
justificar a pena por meio de um utilitarismo reformado, Ferrajoli elabora
uma teoria normativa capaz de limitar e – em alguma medida – legitimar a
pena a partir de outro horizonte compreensivo. Ao definir um Direito Penal
orientado para a redução de danos, fica clara a intenção de rompimento com
todas as teorias que dirigem a pena exclusivamente para a prevenção de
novos delitos (seja por meio da prevenção geral ou especial) ou como mero
castigo (retribuição). Assim, torna-se evidente a ideia de pena como
fenômeno, como realidade empírica alheia ao direito, o que leva a definir este
(direito) como instrumento de contenção daquela (pena) (CARVALHO,
2008, p.149).
Fica explícita, também, a necessidade de se criarem mecanismos
executórios das penas compatíveis com a sua finalidade de redução de danos.
A estratégia para efetivamente limitar o poder punitivo consiste, portanto, em
modificar o foco da preocupação para conter os efeitos nefastos das penas na
realidade social, o que corrobora com a ideia de Carvalho, ao afirmar que
Na realidade das práticas penais, os princípios relativos
à punição, as formas de sanção estabelecidas e os
critérios de sua aplicação definem os contornos de
intervenção, ou seja, os limites das punições possíveis.
Necessário, portanto, abdicar da resposta ao "por que
punir?", direcionando esforços para delimitar o "como
punir?". A consequência do entrelaçamento entre a
perspectiva de abstinência dos discursos legitimadores
e a de determinação de critérios formais de controle da
interpretação, aplicação e execução das penas conforma
a projeção de uma política punitiva de redução de danos.
(CARVALHO, 2006, p. 70).
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O reconhecimento da pena como fenômeno e a projeção de um
direito penal orientado para a redução de danos evidenciam a necessidade de
afirmação dos direitos fundamentais do condenado. A partir desse horizonte
discursivo renovado, a aplicação e execução das penas devem considerar a
posição jurídica do condenado como verdadeiro sujeito de direitos,
garantindo a mínima restrição a seus direitos, o que certamente traria
reflexos quanto à inadmissibilidade de suspensão de seus direitos políticos.
4 O Problema da Inversão Ideológica do Discurso de Direitos Humanos e
o Papel da Constituição Brasileira de 1988 na Definição da Posição
Jurídica do Condenado
A violência discursiva legitimadora do autoritarismo penal se vale
até mesmo dos direitos humanos para justificar argumentativamente o
sofrimento imposto pelas práticas punitivas. Essa afirmação pode parecer
ousada, mas surpreendentemente, não é. No que se refere à proteção dos
direitos humanos do recluso, fica evidenciado um processo de
hierarquização, em que estes estão em posição inferior aos direitos que
protegem – ou supostamente protegem – o corpo social e o próprio Estado.
Essa hierarquização é fruto do fenômeno que Carvalho chama de
reversibilidade ou inversão ideológica do discurso dos direitos humanos.
Carvalho considera que
Os graus de reversibilidade do discurso e de inversão
ideológica do sentido histórico dos direito humanos no
campo das práticas punitivas são perceptíveis na maior
ou menor apropriação dos direitos da coletividade ou
uso dos direitos das instituições como justificativa às
lesões dos direitos fundamentais de indiciados, réus e
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condenados (pensando especificamente na questão
criminal). Não por outro motivo se pode notar nas
motivações dos atos de coação o esforço em tornar
natural a absorção dos interesses da coletividade pelo
Estado (penal) (CARVALHO, 2007, p.133).
Assim, desenvolve-se o sentimento de que as instituições punitivas
são titulares de direitos a que os cidadãos devem obrigação, o que leva –
numa ponderação de valores (na resolução de conflitos entre direitos
individuais e coletivos) – à preponderância dos interesses públicos ou do
Estado (CARVALHO, 2007, p.132). Para Carvalho, a máquina punitiva
estatal paradoxalmente utiliza-se do discurso dos direitos humanos para
justificar a desumanização das práticas punitivas:
Ao valorizar e legitimar a ruptura dos direitos dos
indivíduos e dos grupos sociais desde o discurso mesmo
dos direitos humanos, contrapondo indivíduos,
sociedade e/ou Estado, as instituições punitivas ocultam
a satisfação dos seus próprios interesses, dos desejos de
punição do lupus artificialis. Nestes casos é possível
diagnosticar em nível pleno o processo de
reversibilidade e inversão ideológica que
substancializam os Estados contemporâneos
(CARVALHO, 2007, p.133).
Assim, para considerar a posição jurídica do criminoso como
verdadeiro sujeito de direitos, é preciso, em primeiro lugar, negar o discurso
que justifica as práticas punitivas a partir de uma aparente (e inexistente)
hierarquização entre direitos individuais, sociais e coletivos. Tal negação
passa, essencialmente, pela retomada do projeto de secularização que visa o
reconhecimento de todos os seres humanos como humanos, afastando,
assim, os valores morais do direito penal, que fazem com que qualquer ser
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humano inadequado à moral punitiva possa ser concebido como incômodo
objeto a ser eliminado (CARVALHO, 2008, p.137).
Além disso, é preciso conceber e reconhecer os direitos humanos
como fruto de embates históricos. Ou seja, os direitos humanos não nascem
do reconhecimento formal do Estado: são fruto da luta dos sujeitos
(individuais e coletivos) contra os excessos do poder, no caso, do poder
punitivo. Assim, qualquer restrição dos direitos humanos ou intervenção
punitiva em nome das vontades institucionais que falsamente pretendem a
salvaguarda dos referidos direitos mostra-se ilegítima.
Assumir essa posição não significa negar a existência de um poder
punitivo, apesar de não admiti-lo como um direito de punir meta-jurídico,
anterior ao momento legislativo, mas sim como um "dever (indispensável,
inalienável por um lado, e limitado e vinculado por outro) da persecução
penal que cabe ao Estado, enquanto agente histórico do que Weber chamaria
de monopólio do poder punitivo legítimo" (BATISTA, 2007, p.108). Nesse
sentido, Brandão argumenta que não há propriamente um direito do Estado
de punir com a retirada de direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao
patrimônio, pois seria uma contradição reconhecer a existência de um direito
subjetivo do Estado a violar direitos subjetivos constitucionais do sujeito
(BRANDÃO, 2008, p.12). A solução para o impasse é o reconhecimento de
um dever estatal de punir diante de um crime, uma vez que se fazem
presentes os seus requisitos (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), o
que é muito diferente de um direito, pois enfatiza a existência de limites
rígidos ao exercício desse dever.
Ponderações como essas podem tornar possível um deslocamento
discursivo que permita fundamentar um sistema orientado para a redução dos
danos causados pelas práticas punitivas: um sistema em que o Estado tenha
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seu poder de punir devidamente limitado. A partir dessas premissas, a
garantia dos direitos humanos pode ser desvinculada das "vontades
institucionais" que uma concepção positivista parece consubstanciar, a partir
de leituras penais isoladas de fundamento constitucional e manifestamente
divergentes com pressupostos básicos de direitos humanos.
Nessa perspectiva, a posição jurídica do indivíduo-criminoso não
pode ser outra que não a de verdadeiro sujeito de direitos. Segundo
Rodrigues, como titular de direitos em relação ao Estado, o criminoso punido
possui um estatuto negativo e positivo. O estatuto negativo é aquele em que
se "devem evitar as consequências nocivas que advêm da privação de
liberdade o que, juridicamente, se traduz na proteção dos direitos dos
reclusos"; o estatuto positivo é aquele que, "pressupondo uma execução que
lhe deve ser 'útil', corresponde o dever de contribuir para a realização dos
objetivos pretendidos" (RODRIGUES, 1999, p. 60-61). Tem-se, portanto,
uma posição jurídica do condenado "por um lado, meramente 'negativa' –
analisa-se em direitos de liberdade ou de defesa – sendo, por outro lado,
'positiva', integrada por direitos a prestações, válidos enquanto direitos
subjetivos conhecidos por lei" (RODRIGUES, 1999, p. 61).
O que se quer dizer, afinal, é que além dos direitos não atingidos
diretamente pela intervenção estatal, existem outros que devem ser
promovidos e assegurados ao indivíduo por parte do Estado, não por mera
concessão deste, como já referido, mas porque todos devem ser
compreendidos como humanos e como cidadãos. Assim, apesar da existência
de um "estatuto específico" que garante a existência de uma "relação de vida
especial", não se legitima "qualquer limitação específica e implícita de
direitos fundamentais" (RODRIGUES, 1999, p.166).
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Uma possível intervenção sobre os direitos do criminoso punido,
segundo Rodrigues, só é possível "enquanto essa intervenção exprime a
própria essencialidade da execução ou é indispensável para assegurar sua
própria existência". (RODRIGUES, 1999, p.166) Ou seja, quando os direitos
do criminoso impedem a própria existência da execução penal, estes podem
sofrer uma intervenção, desde que o seu conteúdo essencial permaneça
intocado.
Não se pode admitir, portanto, que esse núcleo essencial do direito
seja atingido por finalidades metafísicas ou morais (ou seja, extraídas das
teorias das penas), absolutamente desconformes com o Estado Democrático
de Direito. Nesse sentido, fica definido um critério de exigibilidade e
proporcionalidade numa eventual limitação dos direitos.
Portanto, a partir da exigência de manutenção do conteúdo
essencial dos direitos humanos a partir de rígidos e estritos critérios de
necessidade, não se pode admitir restrições aos direitos fundamentais do
condenado, nomeadamente quanto ao objeto central deste artigo, qual seja, o
direito à participação na vida pública, materializado pela titularidade dos
direitos políticos. Poderia ser argumentado que com relação à suspensão dos
direitos políticos, em caso de sentença criminal transitada em julgado, não se
perderia o conteúdo essencial do direito à participação na vida pública, pois
não haveria a aniquilação do direito, mas tão-somente sua suspensão.
Todavia, não parece correta tal posição. A violação do conteúdo essencial do
direito à participação na vida pública ocorre porque a suspensão é
injustificada sob a ótica dos limites que devem ser impostos à atuação do
Estado Democrático de Direito. O caráter temporal da violação do direito não
tem relação alguma com a violação do seu conteúdo essencial. O que importa
aqui são os motivos que levam à restrição dos direitos políticos do
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condenado. Não se pode admitir, portanto, que o conteúdo essencial dos
direitos fundamentais seja afetado por motivações ilegítimas ou injustas
(CANOTILHO, 2003, p. 458-461).
Nesse contexto, é preciso analisar o papel crucial que uma
constituição deve ter, no sentido de frear as restrições impostas pelo poder
punitivo aos direitos fundamentais do condenado. Função esta que é por
vezes renegada pela Carta Brasileira de 1988, que ainda guarda em seu
âmago resquícios de uma tendência criminalizadora, incompatível com os
princípios que ela mesma erigiu para a construção do Estado Democrático de
Direito Brasileiro.
A importância das cartas constitucionais na defesa da posição
jurídica do condenado como sujeito de direitos advém de uma necessidade de
modificação da atuação dos institutos penais dos Estados Liberal e Social. No
Estado Democrático de Direito há uma pretensão de estabelecer limites mais
rígidos à intervenção do Estado na vida dos indivíduos.
Essa nova ideia de Estado expressa nas declarações políticas
contemporâneas parte do pressuposto de que o homem deve ser tratado como
tal, independentemente de sua posição ou do papel por ele desempenhado na
sociedade. Essa nova "função estatal" demonstra claramente a incorporação
por parte das constituições contemporâneas de uma nova dimensão do
princípio da secularização, que considera a complexidade e o pluralismo da
sociedade. Nesse contexto, a Constituição Brasileira de 1988 passou a definir
um programa político-criminal correspondente com o Estado Democrático
de Direito que estatuiu, tendo este como fundamento a cidadania e a
dignidade da pessoa humana (Art. 1º, da CF/88).
No que diz respeito à execução penal, parece nítido que o programa
político-criminal definido pela CF/88 só pode ser orientado pelo princípio da
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dignidade da pessoa humana, limitando a atuação dos aparelhos punitivos e
garantindo ao condenado a condição de verdadeiro sujeito de direitos, que
não pode mais ser visto como mero objeto da execução.Assim, é inaceitável a
situação narrada por Carvalho, que relata que "depois de prolatada a sentença
penal condenatória, o apenado ingressa em ambiente desprovido de
garantias. Desta forma, a decisão judicial condenatória exsurge como
declaração de 'não-cidadania', como formalização da condição de apátrida do
autor do fato-crime" (CARVALHO, 2008, p.154).
Portanto, a suspensão aos direitos políticos do condenado, imposta
pela CF/88, mostra-se desarrazoada e contraditória com os princípios que ela
mesma erigiu para delinear o Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Pode-se concluir, assim, que o art. 15, inciso III, da CF/88, ao suspender os
direitos políticos em caso de condenação criminal transitada em julgado,
nega ao condenado o conteúdo de sua posição jurídica, dada por aquela
concepção de direitos fundamentais fundada na ideia de secularização e
humanidade inerente ao conceito de Estado Democrático de Direito.
Significa, pois, negar a cidadania do condenado, retornando-se àquele
estágio em que se pretendia, em nome da defesa da sociedade, excluir o
criminoso do corpo social e, por consequência, de seus direitos.
Necessária, pois, a urgente revisão da norma constitucional, a fim
de termos uma política criminal verdadeiramente orientada para uma
redução de danos. Danos esses provocados pelo Estado, que deve sempre
buscar um equilíbrio entre atuar para proteger os direitos e liberdades
fundamentais e respeitar a tais direitos quando aplica e executa sanções
penais. Nas palavras de Maillard, pede-se ao Estado
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que não seja forte senão para se abster de o ser. Isso
explica, sem dúvida, que ele concentre suas
intervenções na ordem pública mínima, o que lhe
permite satisfazer a exigência de proteção que emana da
sociedade, deixando ainda aos seus membros a
autonomia que eles requerem e que lhes é reconhecida
através da promoção dos direitos do homem
(MAILLARD, 1994, p. 115).
Assim, só o mínimo de liberdade deve ser retirado para promover a
referida "proteção", sendo que a preocupação primordial do Estado deve
girar em torno da defesa dos direitos humanos e fundamentais. E nesse
contexto, certamente, os direitos políticos não podem ser negados ao
condenado, a fim de respeitar aquele "mínimo" de restrição a ser imposto,
atuando o Estado na sua função primeira de defesa dos direitos do homem. Se
assim não for o Estado Democrático de Direito estará apenas perpetuando
uma tradição de práticas punitivas autoritárias, excluindo o condenado em
nome da defesa da sociedade, negando sua condição jurídica de sujeito de
direitos e, por consequência, sua cidadania.
5 O Princípio do Caráter não Automático dos Efeitos das Penas e a
Inadmissibilidade de se Restringir os Direitos Políticos do Condenado: o
exemplo português
Além de negar a posição de sujeito de direitos do condenado
criminalmente, a suspensão dos direitos políticos, nos termos do art. 15, III da
CF/88, caracteriza-se como um verdadeiro efeito automático das penas (ou
da condenação). Conforme o Tribunal Constitucional Português, os efeitos
das penas "traduzem-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode
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deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de
Direito democrático, designadamente reserva judicial, princípio da culpa,
princípio da proporcionalidade da pena, etc." (DIAS, 2009, p.159).
Assim, o princípio do caráter não automático dos efeitos das
penas surge no sistema jurídico-penal português com a função de determinar
que não possa resultar das penas efeitos puramente mecanicistas. Proíbe-se,
com isso, que de uma condenação penal possa resultar, como consequência
automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, sem
necessidade de se efetuar um juízo que pondere, na situação concreta, a
adequação e necessidade da produção desses efeitos. A recepção e
incorporação desse princípio no contexto jurídico brasileiro não pode mais
tardar. Suas virtudes enquanto mecanismo de redução de potenciais danos
aos direitos dos condenados criminalmente é mais do que evidente.
Por outro lado, suas virtudes dogmáticas também são formidáveis,
embora não sejam tão evidentes. Observe-se que na verdade, ao estabelecerse um nexo consequencial necessário entre a aplicação de uma pena e a perda
de direitos civis, profissionais ou políticos, alguns dos princípios que devem
ser considerados na aplicação das penas devem também estar presentes na
aplicação daquelas restrições de direitos, nomeadamente os princípios da
culpabilidade, da necessidade e da proporcionalidade. Necessário, portanto,
um juízo que avalie os fatos praticados e pondere a adequação e a necessidade
de sujeição do condenado a essas medidas, não podendo estas ser impostas
por simples força da condenação penal (MIRANDA, MEDEIROS, 2005, p.
337-338). Portanto, pode ser percebido que o princípio em questão se
coaduna com princípios que são absolutamente inerentes ao Direito Penal de
um Estado Democrático de Direito. Inclusive pode ser dito que ele acrescenta
a tais princípios novos nuances de complexidade e concretude, sem jamais
submetê-los a qualquer espécie de violência conceitual ou discursiva.
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Pode-se dizer, com isso, que o princípio do caráter não
automático dos efeitos das penas inclusive fundamenta-se em dois
princípios básicos e inerentes à concepção de um sistema penal orientado
para a defesa dos direitos humanos e fundado no Estado Democrático de
Direito: o princípio da culpabilidade como limite da pena e o princípio
político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e
criminógeno das penas.
Necessária uma ponderação, ainda que sucinta, de cada um dos
princípios acima descritos, a titulo de complementaridade e maior
embasamento dos argumentos aqui desenvolvidos.
5.1 Princípio da culpabilidade como limite da pena
O conceito de culpabilidade utilizado na determinação do limite da
pena deve traduzir, segundo Figueiredo Dias, "a exigência de que a vertente
pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção"
(DIAS, 2009, p. 217). Já está presente nesta exigência uma ideia de
culpabilidade funcionalizada ao sistema, na medida em que ela deve cumprir
uma função limitadora da intervenção estatal, apelando inexoravelmente
para a dignidade da pessoa do agente do fato ilícito-típico. O conceito de
culpabilidade, mais do que definir uma censurabilidade jurídica, deve
determinar qual o conteúdo material que realmente pode exercer essa função
limitadora. Em outras palavras, o conceito material de culpabilidade dirá o
que, efetivamente, deve ser censurado: o fato? A inobservância da norma? A
personalidade manifestada no fato?
Para definir o conteúdo material da culpabilidade, Figueiredo Dias
recorre à liberdade da pessoa como o pressuposto a ser perseguido. A tese da
culpabilidade da pessoa considera o homem "não indivíduo abstracto e
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isolado, 'cidadão de dois mundos', mas Pessoa concreta e situada, Homem
socializado, no sentido de que vive em um mundo de que é, assim, aquilo que
através da acção objectiva no mundo e que o mundo subjectiva nele" (DIAS,
2007, p. 522). Afasta-se, assim, o paradigma moderno do homem livre e
racional, considerando-se uma noção mais realista e concreta da vivência
humana. Assim, o homem "só existe no campo da ação" e a ele são oferecidas
uma série de possibilidades que, no plano da ação, parecem ser definidas pelo
livre-arbítrio (uma noção sempre problemática), mas que, no plano da
existência, são definidas pelo próprio ser e sentido:
[...] a eleição da acção concreta, determinada pela
elevação de um motivo possível a motivo real em razão
da preferência do sentido ou do valor a que apresenta
para o agente na sua auto-realização, tem que ser
reconduzida a uma decisão através da qual o homem se
decide a si mesmo, criando o seu próprio ser ou
afirmando a sua própria essência. O homem determina a
sua acção através da sua livre decisão sobre si mesmo
(DIAS, 2007, p.524).
A partir dessa perspectiva, Figueiredo Dias conforma uma
"liberdade daquele que tem de agir assim por ser como é" (DIAS, 2007, p.
524), o que define a personalidade do homem. Afasta-se da culpabilidade a
censurabilidade sobre o "poder de agir de outra maneira", pois a liberdade
não está condicionada ao livre-arbítrio, mas à própria existência do ser, que se
perfaz nas ações realizadas. Não cabe ao Direito Penal decidir se o indivíduo
poderia ou não agir de outra maneira, pois essa capacidade está ligada a sua
liberdade de decisão que, por sua vez, define o seu ser. De acordo com essa
perspectiva, o que ocorre é a violação de um dever de conformação ao
Direito e não de um poder de agir de maneira diversa (DIAS, 2007, p. 524).
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É essa razão de censurar que dá o substrato necessário para definir
a culpabilidade como o limite inultrapassável da pena, respeitando sempre a
liberdade do agente e a sua dignidade. A culpabilidade, portanto, no âmbito
da determinação da medida da pena, atua como limite máximo desta, que não
poderá em caso algum ser ultrapassado. Acentua Figueiredo Dias que é pela
via da culpabilidade que se considera, para a medida da pena, todas as
consequências do ilícito-típico, nomeadamente no Código Penal Português
de 1982, "o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade
de suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres imposto ao
agente (art. 72.º-2)" (DIAS, 2009, p. 239), excluindo, para efeitos de medida
da pena, quaisquer consequências atípicas ou extratípicas do fato.
Verifica-se, portanto, que ao se atribuir um efeito automático à
pena, como a suspensão dos direitos políticos, corre-se o risco de ultrapassar
os limites impostos pela culpabilidade na determinação da sanção criminal.
Se é à violação ao dever de conformação ao Direito que deve ser dirigida a
censurabilidade da culpabilidade, então é neste sentido que a pena deve ser
limitada. Suspender os direitos políticos automaticamente em decorrência de
condenação criminal significa, portanto, negar o juízo de culpabilidade
enquanto limite que deve ser verificado na atribuição de uma pena ao agente,
demonstrando-se esta suspensão ilegítima e excessiva, desrespeitosa da
própria dignidade do indivíduo.
5.2 Princípio da luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e
criminógeno das penas
O princípio em questão também é absolutamente central à
pretensão de estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, pois
representa a assunção de um dever de luta contra os efeitos perniciosos e
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perversos da intervenção jurídico-penal, que foram denunciados, sobretudo,
pela criminologia contemporânea de autores como Baratta, Becker e
Goffman, entre outros (HASSEMER e MUNÕZ CONDE, 2008, p.105-115).
A estigmatização como instrumento de reação social que distingue
o "homem normal" do "delinquente" foi percebida e consolidada enquanto
categoria de análise pela perspectiva criminológica interacionista ou do
labeling approach. O fenômeno criminal, para essa teoria, também necessita
ser analisado sob a perspectiva das ações promovidas pelas instâncias de
reação e controle, pois o crime não é algo em si mesmo; nem o criminoso o é
por natureza. São os processos sociais que determinam a qualidade delitiva
da conduta e de seu autor. Assim, a metodologia adotada pelo labeling, que
apontou para um déficit quantitativo e, sobretudo, qualitativo entre a
delinquência potencial (ou secreta) e a registrada (ou "conhecida pela
polícia") permitiu concluir que o que os delinquentes têm em comum – o que
sobretudo, os caracteriza – é, acima de tudo, apenas a resposta das
instituições de controle, que estigmatizam e rotulam os indivíduos
retrospectivamente como criminosos.
Potencializada pelas práticas punitivas estatais, a interpretação
retrospectiva resulta na criação de um "estigma" de criminoso imposto ao
indivíduo. Trata-se de um mecanismo que procura identificar o criminoso e
enquadrá-lo, interpretando a biografia do indivíduo "em termos de
consciência e unicidade – a tendência para acreditar que ele revela, com este
ato [o crime], o que afinal, sempre foi [um criminoso]" (DIAS, ANDRADE,
1997, p. 348). Uma vez adquirido o estigma o indivíduo é excluído do corpo
social e após ter sido tragado pelo sistema penal, será tratado eternamente
como delinquente. Dessa forma, potencializa-se a distância social em relação
ao delinquente, estreitando a sua margem de oportunidades "legítimas"; em
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segundo lugar, provoca-se a conformação por parte do indivíduo às
expectativas estereotipadas da sociedade, a autorrepresentação como
desviante e a assunção de uma espécie de "carreira" de delinquente que,
muitas vezes, é irreversível (DIAS,ANDRADE, 1997, p. 352-353). Portanto,
eis aí uma contradição aparentemente insuperável do sistema, que exprime
de forma aguda a falha em reintegrar segregando: um sistema que propondo
ressocializar somente dessocializa, isto é, aprofunda a distância do indivíduo
em relação à sociedade.
Evidencia-se, portanto, a necessidade de se evitar a profanação do
eu sofrida pelo criminoso ao adentrar nas instituições totais a que é
submetido. E uma das poucas maneiras de se conseguir isso é reformular o
sentido de se punir o indivíduo, racionalizando e controlando efetivamente o
poder punitivo estatal. É preciso, portanto, considerar o condenado como
humano, como um cidadão, em nenhum sentido diferente das demais
pessoas. É preciso, em suma, reconhecer e efetivar os direitos fundamentais
do condenado, de modo a não violar sua subjetividade e cidadania, buscando
sempre reduzir o abismo imposto entre ele e a sociedade da qual foi
segregado.
Assim, parece claro que a admissão da suspensão dos direitos
políticos do condenado apenas reforça o caráter dessocializador,
estigmatizante e criminógeno das penas, o que certamente não é desejável e
nem sequer aceitável face ao irrenunciável respeito à dignidade da pessoa
humana que deve caracterizar as práticas punitivas em um Estado
Democrático de Direito.
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6 Considerações Finais
A partir da compreensão da pena como fenômeno, não é admissível
que a ela sejam vinculadas justificações teleológico-positivas, legitimando
uma atuação punitiva que procure torná-la eficaz a qualquer custo "para o
bem da sociedade".
Por isso, é preferível e mais útil mudar a perspectiva do problema
das penas: do "por que punir?" ao "como punir?". Assim, a importância que
passa a ser dada à determinação e execução da pena permite ações mais
especificamente dirigidas à redução dos danos que o Direito Penal
inegavelmente traz, limitando verdadeiramente o poder punitivo estatal. As
medidas concretas que foram adotadas neste ano para garantir o exercício dos
direitos políticos por parte dos presos provisórios é um passo na direção
certa. No entanto, é necessário ir ainda mais além e rever a própria previsão
constitucional de suspensão dos direitos políticos em função de condenação
criminal transitada em julgado.
Nesse contexto, fica evidente que a proteção aos direitos
fundamentais do condenado pelas legislações contemporâneas necessita ser
efetivada por uma política de redução de danos que deve ser assumida pelo
Direito Penal. Ou seja, uma política criminal consciente dos danos que
provoca tem de fixar limites às formas de punição, restringindo a atuação
punitiva do Estado frente aos direitos fundamentais do condenado, de forma
a manter intocado o conteúdo essencial desses direitos.
Assumindo o papel que lhe cabe na contemporaneidade, uma
constituição tem de ser mais do que meramente uma carta de intenções. É ela
que deve dar o substrato necessário para efetivar e garantir os direitos
fundamentais do condenado. Por essa razão, uma interpretação
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constitucional não pode admitir uma atuação excludente, efetivada por
normas constitucionais que desrespeitam os princípios pilares do Estado que
a própria CF/88 erigiu.Ao suspender os direitos políticos dos condenados por
sentença criminal transitada em julgado, a norma constitucional não procura
outra coisa que não marcar o indivíduo com o selo da criminalidade e afastálo da sociedade, reafirmando seu caráter de indivíduo irracional e, logo, não
apto a contratar. Trata-se de uma concepção de homem e de
representatividade cujo prazo de validade já expirou. Sua aplicação é
inteiramente anacrônica e incompatível com o horizonte de construção de um
Estado Democrático de Direito.
A proibição do exercício dos direitos políticos do condenado de
forma automática à condenação criminal vai além da medida da
culpabilidade do agente, ferindo o princípio basilar de um Direito Penal
conscientemente limitado: nullum pena sine culpa. A proibição
constitucional, enfim, baseia-se na crença ultrapassada e inaceitável de um
inimigo da sociedade que deve ser excluído e segregado. É, ao final, a crença
de que existem indivíduos indignos de conviver em sociedade que acaba
fazendo com que seja negada cidadania ao condenado criminalmente, o que
apenas aprofunda o abismo em que se encontra um grupo que tem tanta
dificuldade em dar visibilidade ao suplício que experimenta nos calabouços
medievais que nós vergonhosamente chamamos de prisões. Nesse sentido, o
princípio do caráter não automático dos efeitos das penas pode representar
uma abertura dogmática que efetivamente contribua para a percepção do
quanto é imprescindível repensar a questão da cidadania e da própria
humanidade da população tragada pelo nosso sistema penal.
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REGRAS ELEITORAIS E PARTIDOS POLÍTICOS
Guilherme Andres Martinez Perin1
RESUMO
Neste artigo, discutimos a questão de como regras eleitorais influenciam o –
ou são influenciadas pelo – sistema partidário. Partindo das conhecidas "leis
de Duverger", apresentamos alguns trabalhos que rediscutem estas
premissas, ou apresentam outras explicações para a formação do sistema
partidário.Apresentamos também trabalhos que auxiliam na compreensão de
como as regras eleitorais podem ser relevantes para que haja representação
política mais baseada em termos partidários ou na reputação pessoal dos
políticos. Por fim, apresentamos algumas perspectivas que, a partir deste
estudo da bibliografia do tema, podem colaborar para a discussão de
propostas de reforma política para o Brasil.
Palavras chave: Regras Eleitorais. Partidos Políticos. Eleições.
ABSTRACT
This paper discusses the question of how electoral rules influence (or are
influenced by) the party system. Using the known "Duverger's laws", we
present some papers that rediscuss these premises, or present other
explanations to the formation of the party system. We also present papers that
help the understanding of how the electoral rules may be relevant to
constitute a political representation based on parties or the personal
reputation of the politicians. Finally, through this bibliographic study of the
subject, we present some perspectives that may contribute to the discussion
of proposals for political reform in Brazil.
Keywords: Electoral Rules. Political Parties. Elections.
1 Introdução
Este presente trabalho tratará de uma questão cara à Ciência
Política: as implicações das regras eleitorais sobre o sistema partidário. A
preocupação com este assunto aparece há muito tempo na Ciência Política,
1
Formado em Ciências Sociais pela UFRGS. Mestrando do Programa de Pós-graduação em
Ciência Política da UFRGS. Email: [email protected]
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ainda mais se considerarmos que por trás desta questão está implícita a
preocupação com o bom governo, ou em outras palavras, com o melhor
arranjo institucional para uma democracia funcionar de forma estável e
satisfatória. O artigo está dividido em dois eixos principais. Primeiramente,
propomo-nos a discutir, partindo das proposições de Duverger, como as
regras eleitorais podem ser significativas para o sistema partidário, ou se
clivagens sociais são o que definem este sistema, através do estudo de Cox
(1997) e Tavares (1994). Ainda nesse ponto, procuramos apresentar o estudo
de Colomer (2003), que defende que a relação causal entre regras eleitorais e
sistemas partidários poderia ser contrária àquela proposta por Duverger, ou
seja, os partidos que promoveriam mudanças nas regras eleitorais através de
comportamento estratégico para diminuir os riscos de derrota.
Na segunda parte deste trabalho, procuramos mostrar como regras
eleitorais podem, ou não, ser relevantes para promover representação sobre a
forma dominante de reputação individual dos candidatos ou reputação
partidária, e quais as implicações que isto pode levar para as democracias
poliárquicas.
Estas questões se mostram extremamente atuais no campo da
Ciência Política em nosso país, principalmente porque a discussão de uma
possível reforma política está constantemente sendo colocada na agenda
pública, seja nas instâncias de poder ou mesmo na mídia. Muito se fala que
eventuais problemas políticos no Brasil são decorrentes de uma combinação
de regras eleitorais que provocariam instabilidade à nossa democracia. Com
base na discussão que apresentamos a seguir, procuramos ajudar a avançar
nessa discussão da necessidade de melhoramentos institucionais para o caso
brasileiro.
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2As Leis de Duverger: um marco no institucionalismo
Quando tratamos da influência das regras eleitorais sobre qualquer
sistema partidário se faz necessária menção às famosas "Leis de Duverger",
principalmente, no que se refere as suas duas mais importantes proposições,
que são as seguintes:
- O sistema majoritário de um só turno tenderia a uma composição
bipartidária.
- O sistema majoritário de dois turnos, assim como a representação
proporcional, tenderia a uma composição multipartidária.
(DUVERGER, 1954)
Estas duas proposições operariam através de dois efeitos, chamados
por Duverger de "efeito mecânico" e "efeito psicológico". O primeiro referese à tendência presente em todos os sistemas eleitorais em funcionamento nas
democracias de favorecer os maiores partidos e prejudicar os menores. E o
segundo refere-se ao estímulo ao comportamento estratégico dos eleitores
para não desperdiçar seu voto para com os partidos sub-representados na
eleição anterior. (NICOLAU, 1996).
O trabalho desse autor é ainda hoje revisitado por um grande
número de cientistas políticos preocupados com as implicações que as regras
eleitorais têm sobre o sistema partidário. A seguir, veremos como alguns
destes autores reexaminam essa questão.
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3APerspectiva Institucionalista e Sociológica de Cox
Cox (1997), em seu livro Making Votes Count, destaca a existência
de duas linhas teóricas distintas no estudo de sistemas de votação de massa. A
primeira refere-se àquela com origem na economia matemática e na filosofia,
agora localizada nos três diferentes campos da escolha pública, da escolha
social e da análise espacial (Arrow, Buchanan and Tullock, Downs). A
segunda, dominada por sociólogos e cientistas políticos (Duverger, Rae,
Sartori, Lijphart), seria aquela menos formal, mais empírica e normativa,
ainda que mantenha a preocupação teórica. (COX, 1997)
Para Cox, as leis de Duverger levantaram grande polêmica no meio
acadêmico pelo seu "determinismo institucional", uma vez que as diferentes
estruturas de clivagens sociais de uma dada sociedade parecem, em seu
trabalho, pouco importar para os resultados nos sistemas partidários, em
detrimento das regras eleitorais. Por outro lado, muitos estudiosos colocaram
a questão num sentido contrário, ou seja, sob a forma de um determinismo
social, onde as clivagens sociais seriam as responsáveis pela determinação da
configuração partidária de uma determinada sociedade, com pouca
influência das regras eleitorais.
É com esta questão, de em qual grau as duas visões podem ser
reconciliadas ou sintetizadas, que Cox está preocupado em seu trabalho. Nas
palavras do próprio autor: "Alguma reconciliação entre as perspectivas
institucionalistas e sociológica é certamente possível na controvérsia sobre
se o sistema eleitoral causa o sistema partidário ou vice-versa". (COX, 1997,
p.17, tradução do autor). Ou seja, para Cox, as duas visões não são
excludentes. O fato de a estrutura social afetar a formação e competição dos
partidos não exclui a perspectiva de que a estrutura eleitoral também exerça
pressão sobre a configuração partidária.
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Para comprovar sua teoria, Cox irá testar a hipótese de que apenas
clivagens sociais determinam o número de partidos competindo em um
sistema eleitoral. Para isso, o autor verifica o caso de 15 países que têm
representação bicameral com diferentes regras eleitorais para eleição de
membros nas duas casas e testa-os para descobrir se o número de partidos
efetivos nestas duas casas é semelhante (como seria de se esperar caso regras
eleitorais não fossem importantes), controlando, portanto, a variável de
diversidade social. Como esperado, o resultado que o autor encontra é de
variação no número de partidos representados na câmara alta e na câmara
baixa em um mesmo país, dando pistas para confirmar a influência das regras
eleitorais no sistema partidário, confirmando, ainda, na maioria dos casos, as
próprias previsões do autor de que se determinado sistema aplicado em uma
das casas faria aumentar ou diminuir o número de partidos em relação à outra.
Resgatando o estudo de outros autores, Cox irá ainda mostrar que a
lei de Duverger, de que sistemas majoritários de turno único tenderiam ao
bipartidarismo, depende da distribuição geográfica dos votos. Ou seja, se
numa determinada região de um país com este tipo de regra eleitoral há uma
clivagem social importante, então um terceiro partido pode conseguir
representação relevante, a mesma ressalva que Tavares (1994) faz com
relação à essa lei. O autor ainda corrobora com o estudo de OrderShook e
Shvetsova que observaram que
o número de partidos em um sistema
proporcional aumenta no mesmo sentido que aumenta a diversidade social,
ao mesmo tempo em que a adoção deste sistema em uma sociedade
homogênea não apresenta os mesmo resultados.
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O autor então argumenta que
Considerando, tanto as estruturas de clivagem social
como a estrutura eleitoral, existem três estágios para
considerar quando se leva em conta a concentração de
votos ou cadeiras observáveis em democracias. O
primeiro estágio é a tradução de clivagens sociais em
preferências partidárias. O segundo estágio é a tradução
dessas preferências partidárias em votos. O terceiro
estágio é a tradução de votos em cadeiras. (COX, 1997,
p. 26, tradução do autor)
Para Cox, em alguns modelos institucionalistas esse primeiro
estágio não é explorado.
Voltando à questão da primeira proposição de Duverger, Cox
argumenta que esta é válida no nível distrital, mas não no nível nacional.
Perguntado-se o porquê desta tendência à bipartidarização em um sistema
majoritário, com distrito de magnitude (M) 1, o autor responde que isso se
deve a dois tipos de concentração de recursos importantes. Primeiramente, há
a ação das elites, que quando conseguem coordenar suas ações, distribuem o
seu endosso e contribuições principalmente a dois candidatos, aumentando a
chance de eleição, e dando aos eleitores uma opção binária. Já quando essa
coordenação falha, o próprio voto estratégico dos eleitores costuma
bipolarizar a eleição, novamente para minimizar as chances de derrota.
Para Cox, qualquer sistema eleitoral costuma apresentar a
tendência de que os eleitores tenham uma racionalidade instrumental que
limite o número de reais competidores. Assim, sistemas proporcionais
apresentariam M+1 candidatos com reais chances de se eleger. O mesmo
ocorreria em sistemas majoritários com dois turnos, uma vez que eleitores
votariam estrategicamente orientados já no 1º turno da eleição (o que
contraria a segunda proposição de Duverger).
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Voltemos agora à proposição principal deste trabalho de Cox, a de
que o número de partidos competitivos em um sistema eleitoral seria o
resultado da função interativa entre diversidade social e permissividade
eleitoral. No capítulo 11 de seu livro, Cox propõe elaborar um modelo
econométrico interativo que contenha, ao mesmo tempo, variáveis de
heterogeneidade social e de estrutura eleitoral.
Aplicando testes de regressão para 54 países com eleições entre
1980-90, Cox apresenta resultados que demonstrariam para o autor que "o
número efetivo de partidos parece depender do produto entre
heterogeneidade social e permissividade eleitoral, mais do que ser uma
função aditiva entre estes dois fatores."(COX, 1997, p. 221). Em outras
palavras, para o autor, um sistema poderia tender ao bipartidarismo tanto por
ter um forte sistema eleitoral quanto por apresentar poucas clivagens. E um
sistema pode tender ao multipartidarismo com a elevação do produto das
clivagens sociais e permissividade do sistema eleitoral.
Por fim, cabe aqui enfatizar que se por um lado Cox parece
comprovar sua ideia inicial de que ambos fatores - institucional e sociológico
- são importantes para determinar a configuração partidária em uma dada
sociedade, o autor não se compromete em afirmar se uma dessas perspectivas
teria um fator preponderante sobre a outra.
Tavares (1994) compartilha com Cox a opinião de que nem as
instituições políticas nem as regras eleitorais são tão determinantes à
configuração partidária de dada sociedade que possam ser postas como leis
universais e tampouco análises de cunho economicista ou sociologista
podem compreender toda a causalidade da questão.
O autor afirma que nesse campo é inviável edificar generalizações
científicas capazes de serem colocadas na forma de leis universais. Quanto à
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primeira lei de Durverger, Tavares afirma que sistemas majoritários de um só
turno constituem "uma (não a) condição necessária do bipartidarismo
estrito". (TAVARES, 1994, p. 247) O autor chama a atenção para o fato de que
há fortes evidências de que sistemas majoritários de turno único estão
associados ao bipartidarismo, mas destaca que este sistema está
particularmente associado e condicionado à tradição e cultura política anglosaxônica.
Já quanto à segunda lei, aceita a pretensão de universalidade de que
a representação proporcional exclui a possibilidade do bipartidarismo estrito,
mas por outro lado, afirma com base nos exemplos da Áustria, Irlanda e em
parte da Alemanha, que "a representação proporcional não constitui nem
condição suficiente, nem condição necessária para a emergência de terceiros
partidos independentes com condições de vencer eleições gerais, quer o
multipartidarismo". (TAVARES, 1994, p. 246). Em suma, o que o autor
afirma é que regras eleitorais podem frear ou acelerar mudanças nos sistemas
partidários, mas, para que haja transformações de fato, são necessárias
condições rigorosamente sociais que não podem ser substituídas por
provisões institucionais.
4 Colomer e a Inversão da Causalidade nas Leis de Duverger
Como vimos, Cox defende o argumento de que tanto as clivagens
sociais como a estrutura eleitoral influenciam a consolidação do sistema
partidário, enquanto que Colomer, no artigo "Son los partidos los que eligen
sistemas eletorales (o las leyes de Duverger de cabeza abajo)" vai defender o
argumento de que possivelmente o número de partidos possa explicar o
sistema eleitoral adotado em determinado país. Ou seja, como o próprio
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nome do artigo indica, há, neste argumento, uma inversão na causalidade
apontada nas leis de Duverger. Se por um lado o autor não nega que
determinadas regras eleitorais ofereçam incentivos para certas configurações
do sistema partidário, por outro, ele argumenta que "justamente porque os
sistemas eleitorais têm importantes conseqüências sobre a formação do
sistema partidário, caberia supor que são escolhidos por atores políticos já
existentes em seu próprio interesse". (COLOMER, 2003, p. 39, tradução do
autor).
Para chegar a este argumento, Colomer parte das premissas de que
tanto eleitores quanto candidatos disputam eleições sempre com a intenção
de ganhar, e que atores políticos têm aversão ao risco. Assim, em condições
de alta incerteza quanto à distribuição dos apoios e, consequentemente,
quanto aos resultados dos pleitos, os partidos tenderiam a procurar mudar as
fórmulas eleitorais para sistemas mais inclusivos, de modo que diminuam as
chances de derrotas eleitorais absolutas. Continuando nesse raciocínio,
Colomer defende que sistemas majoritários (em que o vencedor leva tudo)
apresentariam mais riscos para atores políticos do que sistemas de
representação proporcional. O tamanho do distrito, das assembleias (câmara
alta e câmara baixa) e do coeficiente eleitoral colocariam, ainda, o interesse
dos pequenos partidos (que buscam aumentar sua representação) em
oposição aos grandes partidos (que buscam manter o status quo).
Concordando com Cox, Colomer afirma que em sistemas
proporcionais os partidos pequenos têm a possibilidade de alcançar
representação. Assim, o ator racional pode optar pela coordenação
(coligação) ou pela apresentação de candidatura própria, que provavelmente
será eficaz em alcançar cargos. Entretanto, em sistemas majoritários, a falta
de coordenação poderia levar partidos e grupos sociais significativos a serem
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derrotados em eleições e a ficarem sem representação. Quando muitos
eleitores têm seus votos desperdiçados, e atores políticos relevantes não
conseguem romper a barreira para alcançar a representação, a insatisfação
aumenta e pode levar a um ambiente de pressão por mudanças nas estruturas
eleitorais. Neste sentido, seria de se esperar que sistemas majoritários
multipartidários tenderiam a adoção de sistemas proporcionais, e que isso
fosse possível de se observar ao longo do tempo, mais do que a adoção de
sistemas majoritários em democracias proporcionais.
Neste ponto, o estudo de Colomer adquire um caráter quase que
determinista e evolucionista, já que o autor identifica três estágios de
evolução de regras eleitorais que seriam adotados a partir do momento em
que há uma falha no anterior: o primeiro seria os de regras de unanimidade
(comum em pequenas comunidades); o segundo o majoritário, que aparece
com o surgimento dos partidos políticos modernos; e o último o sistema
proporcional, que ocorreria quando nenhum partido consegue estar seguro de
ganhar a maioria dos votos.
Dessa forma, Colomer estabelece alguns critérios, advindo do
número efetivo de partidos, em que certas democracias tenderiam a adotar
um sistema proporcional, abandonando o sistema majoritário, e testa essa
hipótese em diversos casos. Para ele, quando o número de partidos efetivos
assumisse valor maior que quatro, nenhum partido teria a garantia de
alcançar 50 por cento dos votos mais um. Assim, seria mais racional a adoção
de um sistema proporcional para evitar os riscos de derrotas eleitorais. Em
suma, quanto maior este valor maior seria a tendência para a adoção desse
sistema.
Em seus testes empíricos com os casos de 87 países, desde o século
XIX, Colomer encontra 37 casos de mudança de regime eleitoral majoritário
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para regimes eleitorais proporcionais, sendo que a média do número de
partidos efetivos na eleição anterior à mudança de sistema foi de 3,9 (3,7 para
sistemas majoritários de um turno só). Para Colomer, o resultado desmente a
lei de Duverger que indica que sistemas majoritários de um turno só
tenderiam a manter sistemas bipartidários. Os dados ainda mostram que, para
cada aumento de um no valor do número efetivo de partidos além de dois, há
um aumento de 27% na probabilidade de se adotar um sistema proporcional.
Colomer ainda observa que, em eleições recentes, países com
sistemas majoritários apresentaram, em média, números superiores de
partidos efetivos do que tinham quando adotaram esses sistemas, o que o leva
a concluir que haveria grande possibilidade de mais países migrarem para o
sistema proporcional.
Por fim, resumindo os achados de sua pesquisa, Colomer apresenta
quatro conclusões para seu trabalho: 1) que o estabelecimento de regras
eleitorais majoritárias para primeiras eleições ocorreria devido à
configuração política previamente existente, dominada por poucos partidos;
2) sistemas multipartidários já existiriam antes da adoção de regras eleitorais
proporcionais, sendo, portanto, mais uma causa do que uma consequência da
mudança; 3) eleições imediatamente seguintes a mudança de um sistema
majoritário para um proporcional tendem a confirmar, mais do que aumentar,
a configuração multipartidária previamente existente; 4) o número efetivo de
partidos tende a aumentar a longo prazo em qualquer sistema, criando
pressões para a adoção de modelos mais inclusivos de regras eleitorais.
Sobre este último ponto, o autor não explica com base em dados
empíricos o porquê dessa tendência de aumento no número de partidos
efetivos em democracias encontrado em seu trabalho, mas faz algumas
sondagens de duas possíveis causas, que seriam: falhas de coordenação em
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regras majoritárias para formar poucas candidaturas, e o surgimento de novas
lideranças políticas que abordam diferentes temas e promovem novas
alternativas políticas ao eleitorado. Se resgatarmos a ideia de Cox, podemos
sondar (sem qualquer comprovação empírica) que as pressões para o
surgimento de sistemas multipartidários e, consequentemente, a adoção de
regras eleitorais proporcionais, também poderiam vir de uma possível
crescente heterogeneização da sociedade de forma a ampliar as clivagens
sociais existentes. As fortes ondas de imigração em vários países do mundo,
combinadas com a crescente organização de grupos minoritários como
ambientalistas e feministas, entre outros, poderiam ser causadoras dessas
mudanças. Desta forma, as clivagens sociais poderiam gerar a alteração da
configuração partidária e, neste caso, exercerem suficiente pressão para
sobrepor-se à pressão do sistema eleitoral.
5 Reputação Partidária e Reputação Pessoal em Diferentes Sistemas
Eleitorais
Fórmulas eleitorais são importantes não só para determinar como
será a configuração partidária, mas também determinam quais os métodos
que definirão a distribuição de cadeiras. Com base nisso, trataremos agora do
segundo eixo temático a que nos propomos neste trabalho: o de como os
sistemas eleitorais podem determinar se a representação terá ênfase maior na
reputação dos partidos políticos ou na dos próprios candidatos, e de como
isso pode interferir na qualidade da democracia.
Os autores Carey e Shugart (1996) irão tratar justamente deste tema
no artigo "Incentives to cultivate a personal vote: a rank ordering of
electoral formulas". Os autores acreditam que há uma frequente tensão entre
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interesses partidários eleitorais e o interesse eleitoral individual dos
parlamentares ou candidatos ao legislativo. Os incentivos para os candidatos
assumirem uma postura mais personalista ou para que recaia uma
importância maior sobre a reputação partidária dependerá de determinadas
regras eleitorais vigentes em cada poliarquia. Carey e Shugart analisam a
premissa de muitos outros autores (Sartori, Taagepera e Shugart, Ames) de
que sistemas de lista aberta apresentam maiores incentivos para que
candidatos invistam em sua reputação pessoal do que sistemas de lista
fechada. Através de quatro indicadores, os autores estabelecem um ranking
entre diversos países. Este ranking vai dos casos em que a reputação
partidária é predominante até aqueles em que praticamente apenas a
reputação pessoal dos candidatos será determinante na competição eleitoral.
Três das variáveis utilizadas pelos autores são tricotomizadas, ou
seja, recebem valores 0, 1 ou 2, sendo 0 para incentivos mais partidários e 2
para incentivos mais personalistas. A primeira variável é o controle da
direção partidária na formação das listas deste partido (ballot). Esta tem valor
0 quando os líderes partidários determinam a ordem da lista, e os eleitores não
podem indicar preferências; 1 quando os líderes partidários apresentam a
lista, mas os eleitores podem distribuir preferências; e 2 quando os líderes
partidários não controlam o acesso à lista e os eleitores votam em qualquer
candidato.
A segunda variável é o mecanismo de transferência de votos (pool),
que mensura se e como os votos são transferidos. Assim, o valor 0 ocorre
quando há transferência de votos em todo o partido; 1 quando há
transferência de voto no nível subpartidário; e 2 quando não há transferência
de votos.
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A terceira variável (votes) refere-se ao número e ao tipo de voto que
o eleitor faz em dado sistema eleitoral. Ela assume valor 0 quando o eleitor dá
um voto ao partido; 1 quando o eleitor vota em múltiplos candidatos; e 2
quando o eleitor dá seu voto abaixo do nível partidário. A partir dessas três
primeiras variáveis, os autores estabeleceram um ordenamento dos países
conforme o valor dado à reputação pessoal ou partidária. Foram encontrados
13 diferentes tipos de configuração nos casos selecionados, indo desde
sistema em que as três variáveis apresentam valor 0, ou seja, a reputação
partidária é máxima, até sistemas onde as três variáveis apresentam valor 2,
em que a importância da reputação pessoal dos candidatos é muito alta.
A quarta variável não é tricotomizada como as demais, uma vez que
ela se refere à magnitude dos distritos. De acordo com os autores, esta
variável irá afetar o valor da reputação pessoal dos candidatos dependendo do
valor que assumir a variável ballot.
Shugart e Carrey colocam que a
importância da magnitude dos distritos para a reputação pessoal não é uma
novidade na Ciência Política, onde o mainstream estaria no argumento de que
quanto menor o distrito mais incentivos terá o político para investir na sua
reputação pessoal. Isso em virtude do incentivo à prática do pork-barrel 2 e de
políticas distributivistas, uma vez que o candidato tem o interesse em manter
uma base eleitoral naquela região geograficamente limitada em que é
disputada a eleição. Por outro lado, quanto maior a magnitude e, portanto,
maior o distrito, menos incentivos deste tipo haveria aos políticos, uma vez
que sua base seria geograficamente muito ampla.
Os autores argumentam que concordam com essa premissa, mas
apenas quando ballot tivesse um valor igual a 0, ou seja, quando não há
competição intrapartidária. Para os demais casos, e aí está a grande novidade
2
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A expressão pork-barrel está ligada a políticas que rendem benefícios localizados, como
recursos, obras, e cargos públicos, de forma que se aproxima da prática do clientelismo.
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deste estudo, quanto maior a magnitude maior seria o incentivo para o
político investir na sua reputação pessoal em detrimento da reputação
partidária. Isso ocorreria porque, em sistemas com competição
intrapartidária, o candidato precisará se distinguir dos demais candidatos,
não só daqueles que são ideologicamente diferentes dele, mas também
daqueles semelhantes ideologicamente a ele, de seu próprio partido3. Assim,
sistemas de lista fechada apresentariam maiores incentivos à reputação
personalista quanto menor for o distrito, e sistemas de lista aberta
apresentariam maiores incentivos ao investimento na reputação pessoal por
parte dos políticos quanto maiores forem os distritos.
Apesar destas interessantes conclusões colocadas acima a que
chegaram os autores, o seu trabalho careceria de relevância teórica se não
viesse acompanhado de uma discussão de como incentivos a um ou outro tipo
de reputação podem afetar a democracia. Shugart e Carey acreditam que,
quando a reputação pessoal dos candidatos tem mais importância, há uma
tendência maior à utilização dos políticos do pork-barel, enquanto "quando a
reputação partidária é mais relevante, as políticas públicas poderiam ser mais
eficientes, no sentido de que, neste caso, os eleitores votariam com base em
propostas de políticas amplas e, no outro, com base em propostas de
benefícios particularistas." (CAREY, SHUGART, 1996, p. 434, tradução
própria). Ainda haveria a possibilidade de que sistemas que dão alto valor à
reputação pessoal poderiam levar os políticos a estarem mais propensos às
práticas de corrupção, uma vez que seria grande o gasto dos candidatos para
conquistar os eleitores em bases particularistas, criando incentivos para que
estes busquem fontes de financiamentos que ultrapassem a barreira da
legalidade.
3
Este seria o caso do Brasil e neste sentido costuma-se aferir que "o sistema eleitoral brasileiro
ocupa uma das mais altas posições no que se refere ao valor atribuído pelos políticos a sua
reputação individual". (KUSCHNIR, CARNEIRO, SCHMITT, 1998).
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Neste mesmo sentido, Tavares (1994) é opositor da lista aberta.
Para o autor, a lista fechada e bloqueada "fortalece nos sistemas
proporcionais a auto-identidade, a coesão e a disciplina partidária, bem como
o regime de partidos, essenciais à democracia representativa." (TAVARES,
1994, p. 42). A lista aberta, por outro lado, além de enfraquecer a coesão, a
disciplina e a identidade partidária, teria o efeito perverso de favorecer a
competição intrapartidária. Sua vantagem residiria na possibilidade do
eleitor apontar a intensidade de sua preferência, mas para o autor esta
condição seria satisfeita caso se optasse por um sistema de lista fechada com
possibilidade de voto preferencial.
David Samuels (1997), entretanto, destaca que, mesmo em sistemas
eleitorais centrados no candidato como o brasileiro, partidos podem optar por
investir no coletivismo em detrimento do individualismo para maximizar
suas chances eleitorais. Isto ocorreria não apenas em virtude de padrões
ideológicos mais definidos, mas, também e principalmente, no caso de
partidos sem acesso a patronagem e a grandes montantes de financiamento (o
exemplo do autor é o PT na primeira metade da década de 90). O autor ainda
afirma que estratégias eleitorais de todos os partidos seriam, na maioria das
vezes, mistas, tendendo ao individualismo, mas nunca de maneira
estritamente personalista.
6 Efeitos das Listas Partidárias sobre a Competição Partidária
Conforme vimos anteriormente, muitos autores compartilham da
premissa de que sistemas eleitorais de lista fechada beneficiam os partidos no
sentido de lhes imputar maior força de organização, enquanto sistemas de
lista aberta (preferenciais) os fragilizariam, uma vez que as lideranças
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partidárias teriam pouco controle sobre o acesso a cargos legislativos.
Sistemas de voto preferenciais teriam, portanto, como consequência disso, o
incentivo a estratégias baseadas na reputação pessoal e em comportamentos
particularistas dos políticos no âmbito legislativo (causando baixa disciplina
e coesão partidária) viabilizadas por políticas de cunho distributivista. Isto
teria um efeito nocivo à eficiência da democracia no sentido de prejudicar o
accountability exercido pelos eleitores, incentivar práticas de corrupção e
promover instabilidade democrática. Neste sentido, o artigo de Marenco dos
Santos (2006) "Regras eleitorais importam? Modelos de listas eleitorais e
seus efeitos sobre a competição partidária e o desempenho institucional"
analisa se esta hipótese se confirma empiricamente.
Analisando 51 casos nacionais com regras de representação
proporcional (28 de lista fechada e 23 de lista preferencial), Marenco dos
Santos procura "examinar o impacto exercido pelo voto preferencial sobre a
dinâmica dos sistemas partidários (número de partidos efetivos, turnout e
volatilidade eleitoral) e o desempenho institucional (accountability e
corrupção)". (SANTOS, 2006, p. 722).
Os resultados que os testes do autor apresentam indicam a ausência
de uma correlação entre listas preferenciais e uma fragilização partidária,
como se esperaria tendo em vista boa parte da literatura. A adoção de uma
lista preferencial estaria apenas moderadamente correlacionada a um
aumento no número de partidos efetivos; a relação entre voto preferencial e
participação eleitoral foi positiva e significativa a 10%; e uma possível
correlação entre lista preferencial e maior volatilidade eleitoral não foi
encontrada.
Quanto ao desempenho institucional, novamente não se observa
qualquer desvantagem dos países que adotam lista aberta em relação àqueles
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que adotam lista fechada, ao menos no que se refere aos indicadores do autor:
accountability e corrupção4. Inclusive, a correlação é positiva, no caso do
accountability, para lista aberta com 1% de significância, e, também, para as
notas atribuídas quanto a presença de corrupção. Entretanto, quando se
controlam as variáveis tempo de existência dos partidos e PIB per capita, a
correlação deixa de ser significativa, o que para o autor acaba "indicando a
inexistência de relação entre modelo de lista eleitoral proporcional,
estabilidade partidária e desempenho institucional." (SANTOS, 2006, p.
741). O desenvolvimento econômico se mostrou um forte indicador de
melhor desempenho institucional, como mostra a forte correlação
encontrada entre as duas variáveis. Isto para o autor indicaria que "bem-estar
social e incremento na renda, ao ampliar o acesso a informações e recursos de
monitoramento, podem ampliar a capacidade de responsabilização pública e
inibir fenômenos de corrupção". (SANTOS, 2006, p. 741)
O autor ainda chama a atenção para a correlação - também
encontrada em seu estudo - entre a idade média dos partidos e menores
índices de volatilidade eleitoral, o que poderia significar que,
independentemente do tipo de lista adotado, o tempo é um aspecto
determinante para que o eleitor adquira informação mais ampla sobre as
legendas partidárias e tenda a votar de maneira menos errática e mais
partidarizada. Enfim, as conclusões do autor apontam para a baixa
importância do tipo de listas adotadas por poliarquias quando controladas as
variáveis de desenvolvimento econômico e antiguidade dos partidos.
Contraria o argumento de muitos autores, inclusive Shugart e Carey, de que a
competição intrapartidária possa ser considerada responsável por fragilidade
dos partidos políticos e déficits no desempenho institucional.
4
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O autor utiliza os índices do World Bank referente a essas variáveis.
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7 Institucionalização Partidária em Democracias menos Desenvolvidas
Em uma linha semelhante ao estudo anterior, mas com outro tipo de
conclusão, Mainwaring e Torcal (2006) tratam de avaliar a
institucionalização partidária em democracias e semidemocracias menos
desenvolvidas. O argumento dos autores é de que o sistema partidário nestas
democracias está menos institucionalizado que nas democracias industriais
avançadas.
Assim como Marenco dos Santos, os autores encontraram alta
correlação entre desenvolvimento econômico (PIB per capita), mas também
social (IDH), e menores índices de volatilidade. Entretanto, o estudo de
Mainwaring e Torcal afirma que em países menos desenvolvidos não se
observa uma tendência significativa de diminuição da volatilidade ao longo
do tempo (o Brasil seria uma exceção nesse ponto), que se manteriam em
valores elevados por diversas eleições.
Outro resultado apresentado no trabalho desses autores é que em
democracias menos desenvolvidas os eleitores utilizariam menos o voto
ideológico e mais o voto personalista, ao contrário do que ocorreria em países
mais desenvolvidos. Em outras palavras, a conexão entre posição ideológica
dos eleitores e seus políticos preferidos é fraca. Os autores acreditam que a
valoração do líder sem fatores marcantes ideológicos e programáticos
demonstra personalismo e afeta o accountability.
Isto acontece, defendem eles, porque, nos países com melhores
índices de desenvolvimento econômico e social, os partidos representariam
clivagens sociais e seriam veículos de integração social e política de massa
dos novos cidadãos, desde o tempo conseguinte à segunda guerra mundial, o
que não ocorreu nos países menos desenvolvidos. Os autores corroboram
com as teorias que veem no incentivo à reputação pessoal um efeito nocivo à
democracia, pois isto abriria espaço para candidaturas populistas.
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Para responder a questão de porque o voto personalista seria
preponderante nas democracias menos desenvolvida,s Mainwaring e Torcal
apontam para quatro razões: 1) pela importância da sequência histórica na
construção de um partido, sendo que, em muitas democracias menos
desenvolvidas, a TV se tornou um fenômeno de massas antes que os partidos
se enraizassem na sociedade, de forma que os candidatos podem mandar suas
mensagens diretamente aos eleitores pela TV sem a necessidade de vínculos
fortes com partidos bem desenvolvidos; 2) fraca performance dos regimes
em muitas democracias menos desenvolvidas, que levaram ao descrédito dos
eleitores em relação aos partidos governantes; 3) em muitas dessas
democracias, os partidos são muito difusos programaticamente, ocorrendo
mudanças radicais das posições de um partido em temas centrais; 4) o voto
personalista é mais forte em sistemas presidencialistas – o que ocorre em
muitas das democracias menos desenvolvidas economicamente – que em
sistemas parlamentaristas.
Por fim, os autores apontam as seguintes conclusões: a principal
diferença entre sistemas partidários em democracias de países com
industrialização avançada e democracias menos desenvolvidas poderia ser
sinteticamente captada por diferenças nos níveis de institucionalização,
independentemente do número de partidos e da polarização ideológica do
sistema. Haveria, portanto, duas consequências de sistemas partidários
fracamente institucionalizados: 1) maior grau de incerteza em respeitos às
conseqüências eleitorais (possibilidade de autoritarismo); 2) fraca
institucionalização afetaria negativamente o accountability. Em contextos
onde os partidos desaparecem e aparecem com frequência, onde a
competição entre eles é ideologicamente e programaticamente difusa, e onde
as personalidades ofuscam os partidos, o accountability encontra um
ambiente adverso.
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Destacamos aqui, que Mainwaring e Torcal, não apontam que
determinadas regras eleitorais – como adoção de determinado tipo de listas possam ser mais benéficas ou maléficas para o aumento da preponderância da
reputação pessoal dos candidatos, com exceção da adoção de sistemas
parlamentaristas que fortaleceriam a institucionalização partidária.
Tampouco apontam possíveis soluções para que os países com baixa
institucionalização partidária possam sair deste ciclo. O ponto alto do
trabalho é que os autores chamam a atenção, em concordância com o trabalho
de Marenco dos Santos, que o desenvolvimento econômico (e no trabalho de
Mainwaring e Torcal também o social, através do indicador IDH), está
associado a melhores resultados do ponto de vista do fortalecimento dos
laços ideológicos entre partidos e eleitores, o que derivaria, segundo eles, de
um contexto histórico de criação das legendas partidárias ocorrido
diferentemente nos dois casos.
8 Conclusões
O tema discutido neste trabalho, como se pode observar, é bastante
amplo e encontra-se distante da possibilidade de qualquer consenso. Se por
um lado parece claro que regras eleitorais importam, por outro parece ainda
nebuloso tecer qualquer afirmação de que estas têm prevalência sobre outros
fatores, como destacou, por exemplo, Cox em relação à interpretação
sociológica referente às clivagens sociais. Além disso, leis como as cunhadas
por Duverger são constantemente alvo de reexames, que colocam em cheque
seu caráter determinista, demonstrando que tentativas de estabelecer leis
universais para a matéria é uma tarefa bastante complicada. Por outro lado, os
estudos comparativos continuam sendo uma tarefa primordial para
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compreender e avançar neste campo da Ciência Política, pois contribuem
com a possibilidade de se estabelecer quais as relações causais (e o seu
sentido como destaca o estudo de Colomer) e quais os aspectos significativos
para as regras eleitorais e sistemas partidários.
Entretanto, cremos que podemos levantar algumas sondagens ou
hipóteses com base no que foi visto neste trabalho. Primeiramente, parecenos que perspectivas deterministas de que uma determinada regra é melhor
ou pior do que outra, como, por exemplo: listas fechadas promoveriam
melhores resultados do que listas abertas, carecem de uma comprovação
empírica relevante, uma vez que os resultados mostrados aqui não indicam
este tipo de relação. Segundo, se incentivos à reputação pessoal dos
candidatos não são desejáveis por todos os motivos já citados pelos autores
acima, parece-nos que isso dependa menos de regras eleitorais adotadas e
mais de uma configuração histórica de formação partidária em cada país.
Neste sentido, receitas normativas de como deve ser a engenharia
institucional para melhorar o desempenho das democracias em diversos
países parecem ter pouca relação com a realidade. Não é de se estranhar que
atualmente vemos, muitas vezes, sendo colocados na forma de propostas
"milagrosas" modelos de configuração de regras eleitorais que deveriam ser
adotadas através da reforma política das instituições de nosso país.
Acreditamos que, mais do que uma reforma que mude completamente as
regras do jogo, em uma democracia que apresenta boa dose de estabilidade
política como a nossa, talvez ajustes para problemas pontuais poderiam ser
mais indicados.
Muitos foram os autores que indicaram o Brasil como um caso de
combinação de regras eleitorais "explosivas" que nos condenaria à
instabilidade política, principalmente devido à debilidade dos partidos
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políticos brasileiros em termos de coesão e disciplina (LIMA JÚNIOR, 1993;
MAINWARING, 2001; AMES, 2003, entre outros). Entretanto, as previsões
mais pessimistas se mostraram infundadas. Mesmo carente de ajustes e com
determinados problemas ainda não resolvidos a pleno, nossa democracia
caminha rumo à uma estabilidade pouco esperada pelos críticos de nosso
sistema eleitoral. A passagem sem maiores sobressaltos por um impeachment
presidencial e pela constante alternância de poder, tanto em nível federal,
estadual e municipal ao longo dessas duas décadas, são fortes indicadores
disto.
Um mito bastante difundido no Brasil é o de que os partidos seriam
poucos disciplinados no Congresso, com os parlamentares agindo como free
riders. Estudos recentes mostram justamente o contrário. O grau de
disciplina partidária é relativamente alto para todos os partidos. Figueiredo e
Limongi (1999) mostram que, se os partidos são fracos na arena eleitoral, eles
são fortes congressualmente. Isto se deve à centralização dos trabalhos nas
mãos dos partidos e ao grande poder imputado aos líderes partidários através
do regimento interno da Câmara, de forma a inibir estratégias individualistas
por parte dos parlamentares. Desta forma, os partidos, mesmo que
possivelmente pouco coesos, apresentam alto grau de disciplina. Como
consequência dessa disciplina, o governo, ao formar uma coalizão, teria certa
dose de previsibilidade quanto aos resultados do jogo político.
Por fim, mesmo que o estudo de Mainwaring e Torcal aponte para a
manutenção da volatilidade eleitoral ao longo do tempo em países menos
desenvolvidos, ainda, sim, acreditamos que, concomitantemente com a
melhora de índices econômicos e sociais, o tempo possa ser um caminho para
o estabelecimento de padrões estáveis em democracias ainda pouco
institucionalizadas, no que se refere à configuração partidária.
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IMPACTO DA COLIGAÇÃO EM ELEIÇÕES PROPORCIONAIS:
O CASO DA CÂMARA DE VEREADORES DE PELOTAS
1
(1988-2008)
Alvaro Augusto de Borba Barreto2
RESUMO
O trabalho promove um estudo de caso, centrado no impacto da coligação
sobre a distribuição de cadeiras nas eleições para a Câmara de Vereadores de
Pelotas (RS), de 1988 a 2008, em um total de seis disputas. Compara como
ficaria a distribuição de vagas se não houvesse coligação, quais partidos
seriam beneficiados e quais seriam prejudicados, bem como procura
identificar as motivações para que esse recurso seja adotado, seguindo o
modelo analítico da escolha racional.
Palavras-chave: Coligação. Câmara de Vereadores de Pelotas. Eleições
(1988-2008).
ABSTRACT
This work presents a case study about the impact of the coalition on the
distribution of seats in the elections for the Chamber of Councilmen of
Pelotas (RS), from 1988 to 2008. It shows how this distribution would be if
there were no coalitions. It also intends to identify the motivations for the
adoption of this artifice.
Keywords: Coalition. Chamber of Councilmen of Pelotas; Elections (19882008).
1 Introdução
A legislação eleitoral brasileira permite que os partidos utilizem-se
3
da coligação para concorrerem a cargos definidos pelo sistema proporcional.
1
O trabalho é parte do projeto de pesquisa "Impacto das coligações nas eleições municipais de
Pelotas (RS) – 1988-2004", que conta com financiamento do CNPq (Edital 61/2005).
2
Professor do Instituto de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em
História pela PUCRS.
3
O texto utiliza indistintamente os termos "coligação" e "aliança" para indicar a união formal
de dois ou mais partidos com vistas a participar de uma eleição, embora SCHMITT (2005, p.
11-12) registre que eles se distinguem quanto ao momento da história eleitoral brasileira:
"aliança" constou nas normas entre 1950 e 1965, e "coligação", a partir de 1985.
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Quando isso acontece, embora não apareçam unidos no boletim de voto e o
eleitor não vote diretamente em uma coligação, eles deixam de contar
separadamente e, para efeito de distribuição de cadeiras, tornam-se um
concorrente único, razão pela qual os votos são somados para essa legenda
virtual. As eventuais vagas conquistadas são distribuídas conforme a
colocação e o total de votos obtidos pelos candidatos dessa aliança,
independentemente do partido a que pertençam. Logo, nada impede que o
partido X seja responsável pela maior parte dos votos da coligação, por
conseguinte tenha colaborado majoritariamente para a obtenção das
cadeiras, e venha a ficar sem representação. A razão está no fato de os
candidatos desta legenda não terem sido bem votados na lista, ao contrário do
que aconteceu com os do partido Y, o outro membro da parceria. Ressalve-se
que as coligações têm efeito meramente eleitoral e não implicam
compromissos para o exercício dos mandatos. Por isso, formalmente, o
partido Y nada deve ao partido X.
Vários autores têm destacado esta situação como uma distorção
que modifica a representação política, prejudica a vontade do eleitor e
colabora decisivamente para a fraqueza, inautenticidade e inorganicidade
dessas instituições. (ASSIS BRASIL, 1931; TRIGUEIRO, 1959; SOARES,
1964; POMPEU DE SOUZA, 1964; OLIVEIRA, 1973; SOUZA, M. C. C.,
1976; LIMA JÚNIOR, 1983 e 1993; SANTOS, 1986, 1987 e 2003; DIAS,
1991; MAINWARING, 1991; SOUZA, A., 1992; TAVARES, 1992 e 1998;
SAMUELS, 1997; DALMORO e FLEISCHER, 2005) Contudo, poucos
desses estudos avançaram para além das apreciações teóricas e buscaram
demonstrar empiricamente o impacto causado pela coligação ou, como
afirma SCHMITT (2005, p. 11), poucos devotaram ao tema alguma pesquisa
sistemática, ainda que a questão tenha sido mencionada em inúmeros
trabalhos.
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Esta é a proposta do presente texto, que promove um estudo de
caso, centrado no impacto da coligação sobre a distribuição de cadeiras nas
eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas (RS), de 1988 a 2008, o que
abarca todos os seis pleitos ocorridos no atual período pluripartidário em que
a coligação estava autorizada4. O trabalho também procura identificar as
motivações para que esse recurso seja adotado, seguindo o modelo da escolha
racional, ao partir da perspectiva de que ele constitui norma institucional
vigente e, consequentemente, torna-se uma alternativa cogitada pelos atores
ao formularem as estratégias eleitorais. (SOARES, 2001; LAVAREDA,
1991)
Pelotas possui, atualmente, cerca de 240 mil eleitores e constitui o
terceiro maior colégio eleitoral do Rio Grande do Sul. Principal município da
chamada zona sul do estado, possui uma população estimada de 350 mil
habitantes. A Câmara foi composta por 21 cadeiras desde o início da análise
até o final da legislatura 2001-04, tendo agora 15 vagas, em função da
mudança na composição dos legislativos municipais, realizada pela Justiça
Eleitoral. Os dados referentes aos pleitos de 1996 a 2008 foram obtidos no
site do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, e aqueles relativos
a 1988 e a 1992, no jornal "Diário Popular". Informações complementares
foram buscadas em notícias da imprensa.
O trabalho está dividido em quatro seções. A primeira é de ordem
descritiva: apresenta a relação de concorrentes e de coligações nas eleições,
discrimina essas alianças e as legendas delas participantes. A seção dois
simula como ficaria a distribuição de cadeiras se não houvesse coligação. Na
4
Na eleição de 1982, a coligação estava proibida, em obediência ao art. 105 do Código
Eleitoral de 1965 (Lei 4.737, de 15 jul. 1965). A medida foi reafirmada no inciso IV do art. 19
da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (5.682, de 21 jul. 1971), preservada na norma que
restabeleceu o pluripartidarismo (Lei 6.767, de 20 de dez. 1979) e na que estabeleceu as
regras específicas para o pleito de 1982 (Lei 6.978, de 19 jan. 1982). As alianças foram
permitidas pela EC-25, de maio 1985, consagrada pela nova redação do já citado art. 105 do
Código Eleitoral, estabelecida pelo art. 3 da Lei 7.454, de 30 dez. 1985.
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seguinte, apontam-se as estratégias adotadas pelos partidos que decidiram se
coligar, notadamente aqueles que foram afetados por tal escolha. Finalmente,
analisam-se as motivações pelas quais as legendas aceitam participar deste
jogo.
2 Identificação do Fenômeno
O quadro 1 traz a relação dos partidos que disputaram as eleições
para a Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008,
discriminados entre aqueles que participavam de coligação e os que estavam
avulsos. No total, 25 legendas participaram dos pleitos (PT, PL, PCdoB, PP5,
PFL-DEM6, PSB, PSDB, PTB, PMDB, PDT, PCB, PPS7, PRN, PST, Prona,
PV, PTdoB, PMN, PHS, PR, PRB, PTC, PTN, PSC e Psol).
1988
PT
PL
PCdoB
PP
PFL
PSB
PSDB
PCB
PTB
1992
PT
PL
PCdoB
PP
PFL
PSB
PSDB
PPS
PMDB
PRN
1996
PT
PL
PCdoB
PTB
PPS
PV
PDT
2000
PT
PL
PCdoB
PP
2004
PT
PL
PCdoB
PP
PFL
PV
PSDB
PTdoB
PMN
PHS
PMDB
PDT
PST
PDT
PTB
Prona
PMDB
PP
PFL
PSB
PSDB
PRN
PMDB
PDT
PTB
PSB
PSDB
PFL
PTdoB
PPS
PV
PMDB
PDT
PTB
PSB
PPS
11
14
13
13
15
Não coligados
Coligados
Sit.
Total
2008
PTB
PR
PMDB
PP
DEM
PPS
PSDB
PTdoB
PTC
PHS
PRB
PTN
PSC
PV
PDT
PCdoB
PSB
PMN
PSol
PT
20
Quadro 1 – Partidos que disputaram as eleições para a Câmara de Vereadores
de Pelotas, no período 1988-2008.
5
Para simplificar, utiliza-se PP como a uma única denominação para referenciar a entidade
que, ao longo desse período, foi identificada também como: PDS, PPR e PPB.
6
DEM, abreviatura de Democratas, é a nova denominação adotada pelo PFL.
7
Neste trabalho, consideram-se PCB e PPS como dois partidos distintos.
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O quadro 2 discrimina as 20 coligações realizadas nas eleições para
a Câmara de Vereadores de Pelotas, entre 1988 e 2008, das quais participaram
22 diferentes legendas, nesse total incluídas as 14 que estiveram
representadas ou garantiram representação na Câmara (PMDB, PP, PDT, PT,
PFL-DEM, PL, PSB, PTB, PSDB, PCdoB, PTdoB, PPS, PRB e PCB8), além
de: PRN, PV, PMN, PHS, PR, PTC, PTN e PSC, que nunca conquistaram
vaga. Portanto, a coligação é um recurso utilizado pela quase totalidade dos
partidos: apenas PST, Prona e PSol nunca participaram de alianças9.
1988
PT
PSB
1992
PT
PPS
PSB
1996
PT
PPS
PV
2000
PT
PCdoB
2004
PT
PL
PCdoB
PP
PL
PFL
PTB
PP
PL
PTB
PL
PP
PL
PP
PV
PSDB
PCB
PCdoB
PMDB
PSDB
PCdoB
PDT
PCdoB
PFL
PRN
PTdoB
PMN
PHS
PFL
PSDB
2008
PMDB
DEM
PP
PTB
PRB
PSDB
PTC
PTN
PHS
PSC
PTdoB
PPS
PR
Quadro 2 – Coligações que disputaram as eleições para a Câmara de Vereadores
de Pelotas, no período 1988-2008.
3 Simulações de Resultado
Pretende-se, a partir de agora, simular como ficaria a distribuição
de cadeiras entre os partidos, se não houvesse coligações e eles contassem
unicamente com as suas próprias votações. Apesar da condição hipotética, o
mérito dessas simulações está em fornecer indicadores que permitem
8
Dentre todos, o PCB é o único a nunca ter se elegido. Ele ganhou representação logo após ter
sido legalizado, em 1985, a partir da migração de um vereador do PMDB, tendo permanecido
na Câmara até 1986.
9
Entretanto, eles só concorreram uma vez: PST e Prona, em 1992, e PSol, em 2008.
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dimensionar o impacto que as coligações tiveram na distribuição de cadeiras
entre os partidos e, assim, subsidiar a interpretação sobre os efeitos que
provocam.
Para realizar as simulações, as primeiras medidas foram: acessar o
resultado oficial dos pleitos e detalhar os cálculos de distribuição de cadeiras
feitos pela Justiça Eleitoral (quantas cadeiras cada partido ou coligação
obteve pelo cociente partidário e quantas foram conquistadas pela
distribuição de sobras). O passo seguinte foi discriminar a votação de cada
um dos partidos que compunha as coligações, o que serviria de base para as
diferentes combinações a serem efetivadas. Depois, considerou-se que a
coligação estivesse proibida em todos os pleitos. Logo, os cálculos de
distribuição de cadeiras levaram em conta os votos de cada partido
isoladamente, preservados os parâmetros legais da época.10 Finalmente, o
novo panorama de distribuição de vagas foi comparado com o oficial (tab. 1).
Tabela 1 - Número oficial de cadeiras de vereadores conquistadas pelos
partidos, em Pelotas, no período 1988-2008, e projeção de como
11
ficaria essa distribuição, se não houvesse coligação
Partido
PMDB
PP
PDT
PT
PFL
PL
PCdoB
PTB
PSDB
PSB
PTdoB
PPS
PRB
Total
1988
6
5
5
2
2
1
21
Proj.
6
5
5
2
3
21
1992
4
5
4
2
2
1
1
1
1
21
Proj.
4/5
5
4
2
2/3
2
1
21
1996
3
3
3
4
2
2
1
2
1
21
Proj.
3
3
5
4
2
1
2
1
21
2000
3
3
3
4
2
1
1
1
2
1
21
Proj.
3
4
3
4
2
1
1
2
1
21
2004
2
3
3
2
1
2
1
1
15
Proj.
2
3
4
2
2
1
1
15
2008
2
2
1
4
1
1
1
2
1
15
10
Proj.
1
3
1
5
1
2
2
15
Logo, os votos em branco foram contabilizados como válidos nos pleitos de 1988 a 1996, e
desconsiderados nas eleições subsequentes.
11
As mudanças estão marcadas em cinza, com o intuito de facilitar a identificação.
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Essa simulação mostra o quanto o instituto da coligação modifica o
cenário da distribuição de vagas: o resultado seria diferente em todos os
pleitos. No total, 10 cadeiras seriam redistribuídas: três em 2008, duas em
1992 e em 1996, uma em 1998, em 2000 e em 2004. Cinco foram os partidos
beneficiados: PL (cinco cadeiras, de 1988 a 2008), PCdoB (duas, 19921996), mais PMDB, PTB e PRB (uma cada, 2008). Dentre as legendas que
cederam cadeiras, o cenário é mais diversificado: PP (2000 e 2008), PT
(2004-2008), PDT (1996) e talvez PFL (1992-1996) cederam duas vagas,
mais PTB (1992), PSDB (2000), além de, talvez, PMDB (1992), que
cederam uma cadeira12.
Eleição
1988
1992
1996
2000
2004
2008
Perderia
PL (1)
PCdoB (1)
PL (1)
PCdoB (1)
PL (1)
PL (1)
PL (1)
PMDB (1)
PTB (1)
PRB (1)
Ganharia
PFL (1)
PTB (1)
PFL ou PMDB (1)
PDT (2)
PP (1)
PT (1)
PT (1)
PP (1)
PSDB (1)
Quadro 3 – Partidos que ganhariam e perderiam vaga em relação ao resultado
oficial, na Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008,
se não houvesse coligação.
12
A dúvida é oriunda da seguinte situação: sabe-se o total de votos de legenda da coligação nos
pleitos de 1988 e de 1992, mas não foi possível identificar o número exato desse tipo de
sufrágio que cada participante recebeu. Decidiu-se, então, distribuí-lo na proporção de votos
nominais que cada partido obteve. Exemplifica-se: em 1992, os candidatos do PMDB
contribuíram com 69,2%, os do PSDB com 26% e o do PCdoB com 4,8%. Logo, o PMDB
recebeu 3.318 dos 4.975 votos de legenda da coligação, o PSDB 1.247 e o PCdoB 230. O
problema está no fato de que este cálculo, embora baseado em um critério razoável, é uma
projeção e pode distorcer os resultados oficiais. O risco se mostrou potencialmente
significativo em apenas uma situação: na distribuição de cadeiras relativas a 1992, o PFL
ficaria com uma nova vaga, considerando-se o critério adotado; contudo, se o PMDB
somasse 620 votos a mais do que lhe foi atribuído, a vaga passaria a ser dele. Frente à
ausência de certeza, resolveu-se considerar a hipótese de que a vaga poderia ter sido tanto de
um quanto de outro.
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Deve-se destacar, também, que o recurso da coligação colaborou
decisivamente para a ampliação no número de partidos que conquistaram
espaço formal na Câmara: sem ela, haveria menos legendas representadas,
em todos os pleitos. Da mesma forma, colaborou para o crescimento no
número efetivo de partidos, como indica o quadro 4. Se ela não fosse adotada,
o índice seria sempre menor (cerca de 5% a 25%, dependendo do pleito).
Eleição
Número absoluto
Sem coligação
Com coligação
5
6
7
9
8
9
9
10
7
8
7
9
1988
1992
1996
2000
2004
2008
Número efetivo
Sem coligação
4,45
5,88 / 5,58
6,39
7,34
5,77
5,00
Com Coligação
4,64
6,38
7,73
8,01
6,82
6,81
Quadro 4 – Comparação entre o número absoluto e efetivo de partidos que
elegeriam vereador em Pelotas, a cada pleito, no período 19882008, se não houvesse coligação, e o daqueles que elegeram
efetivamente.
4 As Estratégias dos Partidos cuja Escolha pela Coligação Produziu
Efeito
Para os partidos beneficiados, o fato possui dois significados: a
ampliação daquela(s) cadeira(s) já conquistada(s) ou a obtenção de
representação.
No primeiro caso, ocorrido em duas oportunidades, a legenda
participante de aliança tinha votação suficiente para conquistar a(s) vaga(s),
se concorresse sozinha. Contudo, aumentou a representação graças ao fato de
estar coligada.
Em 1996, o PL fez 1,1 vezes o cociente eleitoral, o que lhe daria
uma cadeira. Porém, ele concorreu ao lado do PTB, união que totalizou duas
vagas. Como os dois candidatos individualmente mais votados eram do PL,
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ele veio a ocupar as cadeiras, embora o PTB tenha colaborado com 45% dos
votos. Isso não significa que quem cedeu a vaga tenha sido o parceiro, pois,
sem o recurso da coligação, o PTB não superaria a cláusula de exclusão
(atingiu 93% do cociente eleitoral). Nesse caso, a segunda cadeira garantida
pelo PL foi retirada de outra agremiação, o PDT.
Já o PMDB, em 2008, somou 1,03 vezes o cociente eleitoral e
também conseguiria uma cadeira. Entretanto, a aliança que formou com o
DEM amealhou três vagas, das quais ele ocupou duas, ao apresentar dois
candidatos líderes de votação na listagem. Como o parceiro também venceu a
cláusula de exclusão (1,08 vezes o cociente eleitoral) e garantiria a vaga por
suas próprias forças, a que o PMDB ocupou foi cedida por um concorrente. A
dificuldade é determinar quem foi este partido (PT, PP ou PSDB), visto que
no pleito houve três vagas redistribuídas por conta das coligações.
O segundo cenário é o mais comum, tendo envolvido oito dos 10
casos. PL, PCdoB, PTB e PRB superaram a cláusula de exclusão ao
participarem de coligação. Em outras palavras: sem a coligação, estas
legendas não fariam parte da Câmara; coligadas, garantiram representação,
embora tenham somado poucos votos. O quadro abaixo apresenta o
percentual do cociente eleitoral que esses partidos atingiriam com a votação
própria.
Partido
PL
PL
PL
PL
PCdoB
PCdoB
PTB
PRB
Eleição
1988
1992
2000
2004
1992
1996
2008
2008
% do CE
67
89
30
36
23
36
74
34
Quadro 5 – Percentual do cociente eleitoral atingido isoladamente pelos
partidos que obtiveram representação na Câmara de Vereadores
de Pelotas porque concorreram em coligação, no período 19882008.
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A maior incidência dessa situação não surpreende. Como a
legislação brasileira estabelece a obtenção de uma cadeira (ou seja, atingir o
quociente eleitoral) como cláusula de exclusão, ela estimula a buscarem a
coligação todos aqueles partidos que têm a conquista de representação como
um objetivo importante e, ao mesmo tempo, sabem que sozinhos não vão
superar esse limite. Sem a utilização desse instrumento, PCdoB e PRB nunca
teriam elegido um vereador, enquanto PL obteria vaga em apenas uma
oportunidade13, o que parece consagrar a afirmação de NICOLAU (1996, p.
105), segundo a qual, a legislação estimula o advento da figura dos "partidos
de coligação", aqueles que não têm votos para atingir o cociente eleitoral,
mas garantem representação devido à votação de outras legendas.
Além disso, como aponta SOARES (2001, p. 157), o valor de estar
representado é alto para as legendas, pois certos benefícios independem, ou
dependem pouco, das vagas adicionais que elas venham a obter (proposição
de projetos, direito ao uso da palavra e de manifestações públicas, acesso à
mídia ou aos recursos financeiros inerentes ao exercício da representação
política formal). Logo, em termos de utilidade, o intervalo que vai de
nenhuma (zero) a uma cadeira é maior do que qualquer um dos intervalos
subsequentes.
No entanto, propor a coligação não é indicador da maior ou menor
capacidade do partido para montar estratégias que visem a atingir os
objetivos traçados, é preciso considerar, também, quem ele busca como
parceiro.
SOARES (2001, p. 150) pondera que outro partido pequeno é
vantajoso, quando a adição de votos for suficiente para superar o cociente
eleitoral, desde que a votação do parceiro não seja concentrada, isto é, um
candidato dele não apareça como o mais votado da lista, o que faria com que
amealhasse a vaga – o que será observado adiante.
13
224
O PTB teria garantido representação em três pleitos (1992, 2000 e 2004).
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A outra opção é aliar-se a um partido grande. Nesse caso, o melhor
parceiro é aquele que soma muitos votos, os quais estão bem distribuídos
entre os principais candidatos, ou seja, que não possui muitos nomes
individualmente bem votados, pois isso torna mais viável que a pequena
legenda venha a ocupar uma vaga, desde que se sirva da estratégia de
concentrar os sufrágios em um único concorrente.
No pleito de 1988, o PL esteve ao lado de PP, PFL e PTB. Esta
união liderou o pleito com 37,2% do total de votos nominais, dos quais 57%
foram obtidos pelo PP, enquanto o PL não passou de 9,1%. A coligação
garantiu oito vagas, assim distribuídas: cinco para o PP, duas para o PFL e
uma para o PL. Quatro anos depois, o partido fez parceria com o PP. Ela
obteve 23,6% do total de votos nominais e seis cadeiras. Contudo, o PP
colaborou com 80% do total. Na distribuição de vagas, o primeiro ocupou
cinco e o PL uma. Ele repetiu a mesma coligação, no pleito de 2000, para a
qual o PP agregou mais de 92% e ficou com três das quatro cadeiras
conquistadas. Na eleição de 2004, o PL voltou a se servir da mesma estratégia
e, coligado com PT e PCdoB, garantiu uma vaga. A aliança liderou o pleito e
amealhou quatro cadeiras, das quais três foram para o PT, que somou 85% do
total.
O PCdoB uniu-se a PMDB e a PSDB, em 1992, coligação que
obteve 25,6% dos votos nominais e conquistou seis cadeiras. O PMDB
contribuiu com 69,2% e ficou com quatro vagas, o PSDB com 26%, tendo
obtido uma cadeira, enquanto o PCdoB, com 4,8%, também foi contemplado
com uma. Em 1996, o partido esteve coligado com o PDT, parceria que fez
19,9%, o que redundou em quatro cadeiras. Dessas, três foram ocupadas pelo
PDT e uma por ele (25%). Entretanto, o primeiro totalizou cerca de 91% dos
votos da coligação.
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Eleição
1988
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Partido
PL
PP
PFL
PTB
PL
PP
PCdoB
PMDB
PSDB
PCdoB
PDT
PL
PP
PL
PT
PCdoB
PTB
PP
PRB
PMDB
DEM
1992
1992
1996
2000
2004
2008
2008
E M
% votos
9,1
57,0
33,7
0,2
20,0
80,0
4,8
69,2
26,0
9,0
91,0
7,8
92,2
10,6
85,3
4,1
22,2
67,6
10,3
48,6
51,4
E L E I Ç Õ E S
% cadeiras
12,5
62,5
25,0
16,7
83,3
16,7
66,7
16,7
25,0
75,0
25,0
75,0
25,0
75,0
25,0
50,0
25,0
66,7
33,3
P R O P O R C I O N A I S
Diferença
+3,4
+5,5
-8,7
-0,2
-3,3
+3,3
+11,9
-2,5
-9,3
+16,0
-16,0
+17,2
-17,2
+14,4
-10,3
-4,1
+2,8
-17,6
+14,7
+18,1
-18,1
Quadro 6 – Comparação entre o percentual de votos e de cadeiras obtidas pelos
participantes de coligação, quando estes foram beneficiados com
vagas, no período 1988-2008
No que tange às legendas que teriam perdido vaga em função das
coligações, também há duas situações. Na primeira figuram aquelas que as
cederam para parceiros da aliança; na outra, as que as perderam para legendas
participantes de outra coligação e que, sozinhas, não teriam superado o
cociente eleitoral.
A primeira é a mais comum: manifestou-se em seis dos 10 casos,
sendo que, em cinco oportunidades, quem cedeu foi o principal ou único
parceiro: PMDB (1992)14, PDT (1996), PP (2000), PT (2004) e PP (2008). Na
eleição de 1988, o PFL deixou de obter uma vaga, entregue ao PL. O único
diferencial em relação aos anteriores é que, no caso, o principal partido da
coligação era o PP (quem somou mais votos e tinha o candidato a Prefeito) e
ele permaneceu com as mesmas cinco vagas que obteria se concorresse
isoladamente.
14
226
Em relação à dúvida exposta na nota 10, está-se considerando que o PMDB teria cedido a
vaga. Se a vaga fosse do PFL, deveria ser incluída no outro cenário, o qual somaria cinco
ocorrências.
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A outra situação ocorreu em quatro oportunidades: PTB (1992),
PDT (1996), PT e PSDB (ambos em 2008). Os dois primeiros deixaram de
ocupar uma vaga cada, ambas repassadas ao PL, quando este não estava
coligado com nenhum deles. Na prática, o PL foi beneficiado pela votação da
coligação, visto que isoladamente não superaria a cláusula de exclusão. Em
1992, o PTB concorreu sozinho, somou 1,4 vezes o cociente eleitoral e
obteve uma cadeira. Se o PL for retirado da disputa (eliminado do rateio por
não ter atingido o cociente eleitoral), ele ganharia uma segunda vaga na
distribuição de sobras. Na eleição seguinte, a mesma situação atingiria o
PDT, que somou 28.585 votos e conquistou três cadeiras15. No pleito de 2008
fica mais difícil determinar quem foi o beneficiado, como já foi destacado.
Entretanto, os contemplados foram: PTB, PRB ou PMDB.
5 Por queAceitar o Jogo
Sendo este o panorama, a questão passa a ser: por que os partidos
permitem que esta transferência de cadeiras seja mantida, principalmente no
caso daqueles que cedem vagas?16 Não cabe alegar que os partidos a
desconheçam, afinal, obedece às regras que fundam o sistema eleitoral
brasileiro e não constitui efeito inesperado. Logo, a compreensão do
fenômeno passa pela própria racionalidade dos atores, o fato de que a tomada
de decisões e a formulação de estratégias são realizadas sob a perspectiva de
obtenção de algum tipo de vantagem, seja em si mesma, seja em comparação
com aquilo que cada ator projeta ser a estratégia de ação dos outros
(vantagem relativa ou impedimento que o outro obtenha ganho).
15
Lembra-se que, pelo rateio de sobras, o PDT garantiria cinco vagas. Além dessa, transferida
ao PL, ele teria cedido uma segunda cadeira, da qual se beneficiaria o PCdoB, companheiro
dele na coligação.
16
SCHMITT (1999, p. 34) faz o mesmo questionamento em relação às eleições para a Câmara
de Deputados.
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Quando as pequenas legendas propõem coligação aos partidos
maiores, elas têm a expectativa de obter um espaço formal que, sozinhas,
sabem que não teriam condições de atingir. E vão mais além: montam
estratégias que buscam maximizar o aproveitamento dos votos dos parceiros
para transformá-los em cadeira, quais sejam: lançar poucos candidatos e/ou
centrar a campanha em um único nome, com vistas a concentrar a votação.
Vejam-se os sete casos em que a tática funcionou17. Na eleição de
1988, a aliança PP-PFL-PL-PTB tinha 95 candidatos, dos quais 12 eram do
PL. O concorrente mais votado deste partido ficou em quinto lugar na lista e
garantiu uma das oito cadeiras da coligação. O segundo colocado, entretanto,
obteve a 29ª colocação. Em 1992, o PL também apresentou 12 candidatos,
enquanto o PP, 43. O mais votado da coligação acabou sendo do PL, mas o
segundo colocado do partido ficou em 13º lugar, sem contar que três dos
inscritos por ele somaram menos de 75 votos. No mesmo pleito, a tática do
PCdoB foi ainda mais explícita: coligado com PMDB e com PSDB, ele
preferiu lançar apenas um candidato, em uma lista formada por 65 nomes.
Este ficou em quarto lugar, e obteve uma das seis cadeiras da coligação.
Quatro anos depois, o PCdoB repetiu a fórmula: voltou a coligar com um
partido forte, dessa vez o PDT, e inscreveu apenas dois candidatos numa
listagem de 24 nomes. Obteve uma vaga, pois um desses candidatos foi o
terceiro na coligação e o outro ficou na 18a colocação.
Na eleição do ano 2000, o PL concorreu com três candidatos,
enquanto o PP tinha 37. O mais votado do PL obteve a quarta colocação na
lista, o que valeu a vaga. O segundo foi o 18o colocado. Em 2004, o PL
17
228
Há exemplos de coligação de legenda pequena com outra de mais expressão que não
redundaram na obtenção de vaga para ela: PSB com PT, em 1988; PSB e PPS com PT; PRN
com o PFL, ambos em 1992; PV e PPS com o PT, em 1996; PCdoB com PT, em 2000 e em
2004; PV com PDS, em 2004; PR com PPS, em 2008; e PTC, PTN, PHS, PTdoB e PSC com
o PSDB, em 2008.
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apresentou cinco nomes contra 18 do PT, principal parceiro.18 Um desses
garantiu a vaga para o partido, ao obter a terceira maior votação da coligação.
O segundo candidato do PL foi o 16o. Pondera-se que outros dois foram os
menos votados da listagem, com 158 e 89 votos, respectivamente. No pleito
mais recente, o PRB repetiu a tática: apresentou apenas dois candidatos,
emplacou o quarto mais votado da coligação com o PP-PTB, que conquistou
quatro cadeiras.
As legendas maiores, por sua vez, são sabedoras dessa estratégia,
bem como da probabilidade de que ela venha a ser bem sucedida. Mais do que
isso: esta possibilidade é o recurso que elas oferecem para as pequenas, ao
lado da perspectiva de virem a constituir o governo e a ocuparem cargos de
secretaria ou outros de escalão inferior da administração municipal. Por isso,
quando aceitam este tipo de coligação, as grandes concordam com o risco de
ceder cadeiras e, consequentemente, de renunciar a uma parcela de espaço
político formal na Câmara de Vereadores. Tal concordância baseia-se em um
cálculo político, no qual o benefício que as legendas pequenas oferecem a
elas aparece como mais significativos do que o custo a ser pago para
viabilizar tal negociação.
A moeda de troca das pequenas é, do ponto de vista afirmativo, o
apoio à chapa majoritária liderada pelas grandes, o tempo no Horário
Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e a perspectiva de ampliar a base
de apoio na Câmara, quando do exercício do governo. Do ponto de vista
negativo, é a eliminação da possibilidade de que esse mesmo capital seja
utilizado pelos adversários das legendas maiores.
O ganho das grandes é a expectativa de que, com esse apoio, elas
estarão melhor estruturadas para a conquista do Executivo. Como destaca
LAVAREDA (1991, p. 115-6), elas aceitam as coligações proporcionais
18
O PCdoB, terceiro participante da coligação, inscreveu dois candidatos. No total, a Frente
Popular tinha 25.
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frequentemente por motivos rigorosamente estranhos aos pleitos
proporcionais: funcionam como instrumento de barganha para amealhar o
apoio das pequenas legendas nos pleitos majoritários, aqueles em que mesmo
um pequeno contingente de votos orientados por um partido pequeno pode
ser vital nas urnas, ou mesmo antes, pois emprestam aparência de maior força
e ajudam a viabilizar candidaturas.
Nesse sentido, não é totalmente procedente a afirmação de
TAVARES (1998, p. 167), segundo a qual:
coligações interpartidárias em eleições proporcionais
por voto uninominal terminam gerando aleatoriamente
inúmeras distorções, entre as quais a superrepresentação de partidos minúsculos, ao prover-lhe
mesmo um único assento parlamentar, em prejuízo do
partido maior na coligação, pois, em última instância,
nenhum dos parceiros é realmente prejudicado, embora
um ou outro possa vir a arcar com algum ônus ao final
do processo, principalmente se não ganhar a disputa
para Prefeito. Trata-se de uma negociação em que cada
um espera obter vantagens e sabe o que pode e precisa
oferecer ao outro para que o acordo seja selado.
O autor tem razão, porém, se for observado que a maximização de
ganhos é, proporcionalmente, maior para as legendas pequenas. Isso porque,
ao apoiar um partido grande, elas renunciam a um ganho possível, mas
bastante improvável: vencer a eleição para Prefeito. Em contrapartida, obtêm
como dividendo a ampliação da possibilidade de garantir espaço político na
Câmara de Vereadores (e no futuro governo, se a coligação for vitoriosa), o
que, em condições normais, também seria pouco provável, face à limitada
inserção delas no eleitorado. Com diz SOARES (2001, p. 150), "[. . .] o
partido pequeno, com votação total inferior ao cociente eleitoral e sem
perspectiva de representação, é o caso limite da racionalidade da aliança
eleitoral. Nada tem a perder, só tem a ganhar".
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Na mesma linha, o que as grandes chamam de ganhos efetivos –
eleger o Prefeito – implica um jogo de soma zero, em que só há um vencedor.
E chegar a tal vitória exige arcar com custos altos e correr muito mais riscos,
inclusive o de perder (ou deixar de ganhar) a disputa e, ainda, o de vir a ocupar
menos espaço do que poderia na Câmara.19
Em resumo: a lógica de ação das legendas grandes é
autoexcludente, enquanto a das pequenas, como opera em um espaço político
maior (constituído por 21 ou 15 cadeiras, no caso específico), permite que
vários atores sejam contemplados. Por outro lado, os benefícios à disposição
das grandes são maiores, quando elas vencem, a tal ponto de elas se
permitirem jogar com o número de cadeiras que poderiam conquistar, com
vistas a tornar esta vitória mais viável. Prevalece, assim, a máxima de quanto
mais riscos, mais ganhos.
A explicação apresentada anteriormente não abrange a totalidade
das coligações válidas para a disputa de Prefeito e de vereadores ocorridas em
Pelotas, embora envolva os casos mais significativos. É preciso considerar
aquelas em que figuram partidos de grandeza equivalente.
Há duas formadas apenas por partidos pequenos: "Frente Popular",
em 1988, que reuniu PSDB, PCdoB e PCB; e "Aliança Acorda Pelotas", em
2004, composta por PTdoB, PMN e PHS. Elas não venceram o pleito para
Prefeito (aliás, ficaram em último lugar) e não conquistaram cadeira, ou seja,
não foram capazes de vencer a cláusula de exclusão, dada a restrita expressão
dos participantes. Como afirmam DALMORO e FLEISCHER (2005, p. 94),
não é possível concentrar aquilo que não se tem.
19
Não surpreende verificar que as legendas que elegeram o prefeito e historicamente são as que
elegeram mais vereadores (PMDB, PDS, PDT e PT), jamais tenham coligado entre si.
(BARRETO, 2008).
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Conforme SOARES (2001, p. 146), essas coligações são do tipo
"jogar de graça": se os participantes concorressem sozinhos, não teriam a
perspectiva de obter representação, logo, se a união não redundasse em
sucesso, não perderiam; ao somarem forças, havia a perspectiva de,
eventualmente, obter alguma vaga. Já foi destacado o quanto a perspectiva de
conquista da primeira (ou da única) vaga é estratégica para as legendas, seja
por que ela equivale à cláusula de exclusão na legislação eleitoral brasileira,
seja em relação ao espaço formal de atuação política que ela proporciona.
Pode-se especular, portanto, que aquele partido que se imagina
mais perto de amealhar essa possível vaga, teria mais estímulos para propor a
coligação. Essa situação não modifica a condição dos demais, que não
arriscariam nada com a aliança, haja vista que não tinham a expectativa de
qualquer ganho formal. Cabe perguntar, entretanto, a motivação para que
esses partidos pequenos, ao contrário dos que foram vistos anteriormente,
não tivessem procurado se coligar com as legendas que tinham a perspectiva
de vencer a disputa para Prefeito, visto que, assim, poderiam ganhar espaço
na futura administração e/ou uma cadeira de vereador.
As razões para tais atitudes podem estar baseadas em aspectos
ideológicos ou em uma racionalidade de perspectiva mais ampla, menos
centrada em resultados imediatos. É o caso do PSDB, em 1988: recém
fundado e ainda em processo de estruturação na cidade, ao estabelecer uma
candidatura própria a Prefeito, o partido tinha a ganhar em termos de
divulgação da sigla, além de procurar consolidar-se junto à opinião pública e
ao eleitorado como uma opção à esquerda do espectro político, porém
dissociada da alternativa liderada pelo PT, tanto que a coligação encabeçada
por ele serviu-se de uma denominação "Frente Popular".
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Em 2004, não parece ter preponderado a lógica partidária, e sim a
pessoal: José Luiz Porto Ferreira lançou-se candidato a Prefeito como forma
de tornar o nome dele conhecido, com vistas a disputas futuras, ou de reforçar
a base no Sindicato dos Comerciários, no qual exerce a presidência há várias
gestões. Filiado ao PMN, tendo apoio de outras duas legendas pequenas, sem
estrutura partidária e praticamente sem tempo no HGPE, ele estaria fadado ao
fracasso. Porém, como candidato, teve acesso aos debates de rádio e TV,
ocasião em que pode formular um discurso que destoava daquele
apresentado pelos demais candidatos, com um tom "radical" em nome da
classe trabalhadora, contudo não necessariamente vinculado às opções
tradicionais de esquerda.
Essa não é a situação de outras três coligações, ambas referentes a
partidos que poderiam ser classificados como de médio/grande porte: PTB e
PL, em 1996; PFL e PSDB20, em 2004; e DEM e PMDB, em 2008. Com
experiência em disputas municipais, já tendo elegido vereadores, eles uniram
forças com a expectativa de obterem ganhos correspondentes, os quais não
seriam atingidos, se concorressem sozinhos.
Ressalva-se que elas não atingiram o objetivo de vencer a eleição
para Prefeito (chegaram em terceiro lugar), bem como que, na disputa para
vereador, não houve proporcionalidade entre os parceiros na distribuição de
dividendos: PL e PFL concentraram as cadeiras conquistadas, PTB e PSDB
não obtiveram nenhuma; enquanto o PMDB ficou com duas vagas e o DEM
com uma, apesar de ter somado mais votos que o parceiro. Nos três casos,
quem deixou de ganhar vaga foi o partido que liderava a chapa majoritária,
enquanto os beneficiados tinham o candidato a vice.
20
Em 2004, deixara a condição de partido pequeno em âmbito municipal, já tendo elegido o
vice-prefeito (1992), e obtido quatro cadeiras de vereador (uma em 1992, duas em 1996 e
uma em 2000).
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Nesse sentido, parece prevalecer a explicação apresentada no caso
da união entre legendas grandes e pequenas: quem espera lucrar na eleição
para vereador, abre mão da candidatura majoritária e oferece apoio a quem
ambiciona vencer para o Executivo; este, por sua vez, corre o risco de perder
espaço na Câmara, na expectativa de atingir os ganhos muito mais amplos do
cargo de Prefeito.
6 Conclusão
O trabalho procurou analisar, por intermédio de uma investigação
empírica, o impacto das coligações para a distribuição de cadeiras na Câmara
de Vereadores de Pelotas. Seguindo a orientação da escolha racional, viu-se a
situação dos partidos pequenos (que têm motivações para buscarem a
coligação) e a dos grandes (que aceitam a aliança, notadamente com essas
legendas menores, em razão da disputa majoritária).
Observou-se que a coligação foi determinante para a ampliação no
número de partidos que conquistaram representação, em cada eleição do
período 1988-2008, ou seja, tem contribuído decisivamente para que o
sistema partidário pelotense seja fragmentado. Esclarece-se que o sistema
não possui essa característica unicamente por causa da coligação, porém, a
possibilidade de os partidos servirem-se dela favorece para que a
fragmentação seja mais intensa.
Da mesma forma, o texto teceu considerações a respeito dos
motivos para que seja adotada, os quais podem ser resumidos ao fato de que
os partidos esperam obter algum tipo de vantagem, quando se unem a
outro(s). O tipo de conveniência pode mudar, conforme a grandeza, as
pretensões em relação à disputa majoritária ou, ainda, a estratégia para a
eleição proporcional de cada um.
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