ESTUDOS Legislativos novembro 2010 ano 4 nº4 Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul MESA Presidente: Dep. GIOVANI CHERINI - PDT 1º Vice-Presidente: Dep. MARQUINHO LANG - DEM 2º Vice-Presidente: Dep. NÉLSON HÄRTER - PMDB 1º Secretário: Dep. PEDRO WESTPHALEN - PP 2º Secretário: Dep. LUIS AUGUSTO LARA - PTB 3º Secretário: Dep. PAULO BRUM - PSDB 4º Secretário: Dep. ADÃO VILLAVERDE - PT ESCOLA DO LEGISLATIVO Presidente: Dep. ADÃO VILLAVERDE Direção: CÁRMEN LÚCIA DA SILVEIRA NUNES Coordenação da Divisão de Publicações: VANESSA ALBERTINENCE LOPEZ 2 0 1 0 2 0 1 0 do Assembleia Legislativa Estado do Rio Grande do Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan Divisão de Publicações Ano Porto Alegre 4 – N.º 4 – 2010 Sul Revista Estudos Legislativos – Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul Porto Alegre Ano 4 – N.º 4 – 2010 Publicação oficial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, conforme Resolução nº 2942/2005 ISSN: 1980-2951 Periodicidade: anual Editora Responsável Profª. Drª. Sinara Porto Fajardo Conselho Editorial Prof. Dr. Alfredo Culleton - Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Prof. Dr. Enrique Serra Padrós – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Prof. Dr. Luís Gustavo Mello Grohmann - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Prof. Dr. Ingo Sarlet - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Prof. Dr. José Luís Bolzan de Moraes - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Prof. Dr. Manuel Calvo García - Universidad de Zaragoza - UNIZAR – Espanha Prof. Ms. Marco Antonio Karam Silveira – Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - ALERGS Profª. Drª. Maria Luisa Gastal - Universidade Nacional de Brasília - UNB Prof. Dr. Rildo Cosson - Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados - CEFOR Profª. Drª. Teresa Picontó Novales - Universidad de Zaragoza - UNIZAR - Espanha Prof. Dr. Vladimir Araújo - Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul - ALERGS Prof. Ms. Wremyr Scliar - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Comissão Editorial Cármen Lúcia da Silveira Nunes - Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan Fernando Guimarães Ferreira - Procuradoria MariaAvelina Fuhro Gastal - Superintendência Legislativa Marinella Peruzzo - Superintendência de Comunicação Social Sinara Porto Fajardo - Superintendência Geral Sônia Domingues Santos Brambilla - Superintendência de Comunicação Social VanessaAlbertinence Lopez - Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan Pareceristas ad hoc Esp. André Leandro Barbi de Souza Dra. Denise Fagundes Jardim Esp. Isabel Fuhro Zanotta Ms. Juliano Heinen Ms. Marcos Jorge Catalan Dra. Maria José Azevedo do Canto Dra. Maria Palma Wolff Esp. Patrícia Lucy Machado Couto Dr. Paulo Leivas Dra. Sandra Martini Vial Supervisão de Língua Portuguesa Edison Soares Guerreiro Hilda Pedrollo Marinella Peruzzo Vanessa Albertinence Lopez Supervisão Técnica Sônia Domingues Santos Brambilla – CRB 10/1679 Divisão de Biblioteca Projeto Gráfico: André Sardá e Sérgio Santos Diagramação: Sérgio Santos Projeto da Capa: André Sardá e Sérgio Santos Divisão de Comunicação Visual da Assembleia Legislativa Foto da Capa: Luiz Guerreiro / Painéis de Vasco Prado na fachada do Palácio Farroupilha, desde o Memorial do Legislativo. Endereço para correspondência Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan Praça Marechal Deodoro, nº 101 – Solar dos Câmara Cep. 90010-900 Porto Alegre/RS – Brasil Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia permissão da editora responsável. Normas para apresentação de trabalhos: www.al.rs.gov.br Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l'échange. Pídese canje. Venda proibida. Revista Estudos Legislativos / Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul ; coordenação Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan. – Ano 4, n. 4, 2010. – PortoAlegre: CORAG, 2010- ---v. Anual. ISSN: 1980-2951 Publicação oficial da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, conforme Resolução n.º 2.942 de 8 de julho de 2005. 1. Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. 2. Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan. 3. Política – Periódico. 4. Poder Legislativo – Periódico. 5. Direito – Periódico. I. Título. CDU 342.52 (05) CDU: edição média em língua portuguesa Biblioteca Borges de Medeiros / ALRS E S T U D O S L E G I S L A T I V O S SUMÁRIO EDITORIAL...................................................................................11 ARTIGOS ....................................................................................... 15 Confiança, virtude e perdão como fontes do direito Ricardo de Macedo Menna Barreto e Leonel Severo Rocha .....17 Os subterrâneos do senso comum teórico dos juristas Fernando Guimarães Ferreira......................................................41 Cidadania procedimental: a idealização habermasiana no execício legislativo Carolina Salbego Lisowski e Santiago Artur Berger Sito ..........71 Lei delegada Marcelo Azevedo Chamone...........................................................95 Justiciabilidade das políticas públicas: desafios e possibilidades Filipe Madsen Etges ....................................................................125 O princípio do caráter não automático dos efeitos das penas e a inadmissibilidade de suspensão dos direitos políticos do condenado: desconstrução discursiva e aproximação comparativa com o exemplo português Salah Hassan Khaled Junior e Fabrício Martinatto da Costa ..........159 Regras eleitorais e partidos políticos Guilherme Andres Martinez Perin .............................................189 Impacto da coligação em eleições proporcionais: o caso da Câmara de Vereadores de Pelotas (1988-2008) Alvaro Augusto de Borba Barreto...............................................215 E S T U D O S L E G I S L A T I V O S EDITORIAL A Revista Estudos Legislativos vem se firmando, pouco a pouco, como um veículo de propostas cientificamente válidas no panorama dos debates políticos e jurídicos contemporâneos em torno do parlamento. Neste volume, apresenta-se um conjunto abrangente e representativo de artigos que tratam de temas da filosofia do direito, da democracia, do processo legislativo e do sistema eleitoral. Ricardo de Macedo Menna Barreto e Leonel Severo Rocha refletem sobre fundamentos simbólicos do direito, determinantes para a construção do social e para a formação das estruturas do sistema jurídico que se constitui na modernidade. Fernando Guimarães Ferreira busca aprofundar a compreensão do fenômeno jurídico, sustentando que o discurso científico, supostamente nãoideológico, conduz a um discurso jurídico igualmente cínico e salientando a necessidade de uma reflexão crítica e desalienante das estruturas de poder do campo do Direito. Carolina Salbego Lisowski e Santiago Artur Berger Sito observam aspectos da teoria habermasiana que devem ser considerados para que o legislativo brasileiro acolha a voz dos destinatários das normas, reputando-os como sujeito-autor e efetivando, assim, o exercício real da democracia. Marcelo Azevedo Chamone examina o processo legislativo da lei delegada, propondo que este instrumento normativo possa substituir, com fortes benefícios à democracia, o uso abusivo da medida provisória, na medida em que, diante da inevitabilidade da produção legislativa do Executivo, permite este tipo de norma um debate amplo e plural. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 11-13, 2010 11 E S T U D O S L E G I S L A T I V O S Filipe Madsen Etges entra no debate da crise enfrentada pela prestação jurisdicional quando atua com foco na viabilização dos direitos sociais que dependem de implementação de políticas públicas, propondo que a judicialização das políticas sociais deve passar por decisões construídas mais horizontalmente, a partir da interlocução permanente entre magistrados, administradores, técnicos, universidades e associações da sociedade civil. Salah Hassan Khaled Junior e Fabrício Martinatto da Costa sustentam que a suspensão dos direitos políticos do condenado é um resto anacrônico de uma concepção de pena incompatível com o Estado Democrático de Direito, defendendo uma abertura dogmática que contribua para repensar a questão da cidadania e da própria humanidade da população prisional. Guilherme Andres Martinez Perin discute as implicações das regras eleitorais sobre o sistema partidário, afirmado que perspectivas deterministas carecem de comprovação empírica relevante e que receitas normativas parecem ter pouca relação com a realidade, diante dos índices econômicos e sociais do país. Alvaro Augusto de Borba Barreto apresenta um estudo de caso centrado na distribuição de cadeiras nas eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas/RS, examinando as motivações e as consequências das coligações na fragmentação do plenário. Acima de tudo, esta edição é em homenagem a Joaquin Herrera Flores, jovem e brilhante membro do Conselho Editorial da Revista Estudos Legislativos, que no dia 2 de outubro de 2009 faleceu em Sevilha, na Espanha. Desde o primeiro volume desta Revista, o Professor Joaquin 12 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 11-13, 2010 E S T U D O S L E G I S L A T I V O S manifestou, no discurso e na prática, seu entusiasmo e sua disposição de sempre colaborar. A ele, nosso reconhecimento e nossa promessa de honrar seu trabalho com o contínuo aperfeiçoamento deste projeto. Sinara Porto Fajardo, Editora Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 11-13, 2010 13 Artigos CONFIANÇA, VIRTUDE E PERDÃO COMO FONTES DO DIREITO Ricardo de Macedo Menna Barreto¹ Leonel Severo Rocha² RESUMO Este texto busca observar a confiança a partir de um conto oriundo da Terra Santa, onde o soberano detentor do direito de vida e morte de seus súditos se submete ao poder da palavra dada. A partir daí, percebe-se como a confiança opera em três dimensões (pessoal, social e sistêmica) para a produção do sentido da justiça. A confiança sistêmica, nesse contexto, é determinante para a formação das estruturas do sistema jurídico positivo que se constituirá na modernidade. Palavras-chave: Confiança Sistêmica. Direito. Literatura. ABSTRACT This text seeks to observe the trust from a story coming from the Holy Land, where the holder of the sovereign power of life and death over his vassals subjected to the power of the word. From there, it is perceived as the trust operates in three dimensions (personal, social and systemic) to produce the sense of justice. Systemic trust in this context is crucial for the formation of the structures of the legal system positive that will be in modernity. Keywords: Systemic Trust. Law. Literature. ¹ Mestrando em Direito pela UNISINOS - Bolsista CAPES. Membro do Grupo Teoria do Direito – CNPq/UNISINOS. Integrante do Projeto de Pesquisa Direito Reflexivo e Policontextualidade. ² Dr. EHESS - Paris-França e Pós-Dr. UNILECCE - Itália. Professor Titular da UNISINOS. Líder do Grupo Teoria do Direito – CNPq/UNISINOS. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 17 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 1 Introdução A confiança tem uma presença silenciosa em todas as interações sociais. (Abdul-Rahman) A confiança é um mecanismo privilegiado para a produção de sentido no Direito, sendo um importante pressuposto simbólico para a construção do social. Daí o estudo da confiança ser de suma importância para 4 se cruzar o umbral³ que envolve questões jurídico-sociais complexas . Na 5 presente análise, propõe-se a releitura de um antigo e ilustrativo conto que ³ Umbral é o espaço de significação constituído pelas sombras que invadem o habitante. 4 Algumas dessas questões, notadamente no âmbito da dogmática contratual, já foram observadas em momentos anteriores. Para tanto, ver: MENNA BARRETO, R; ROCHA, L. S. Confiança nos Contratos Eletrônicos: uma Observação Sistêmica. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 7, n. 2, p. 409-425, jul./dez. 2007 e MENNA BARRETO, R.. Contrato Eletrônico como Cibercomunicação Jurídica. Revista DIREITO GV, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 443-458, jul-dez, 2009. 5 Em um momento propício, por se falar muito em Direito e Literatura, traz-se um admirável conto que contempla, no entendimento dos autores dessa análise, uma relação sistêmica de confiança em toda sua complexidade. Sobre Direito e Literatura, ver especialmente as contribuições de OST, François. Raconter la Loi. Aux sources de l'imaginaire juridique. Paris: Odile Jacob, 2004, o posterior Sade et la Loi. Paris: Odile Jacob, 2005 e o recente Traduire. Défense et illustrations du multilinguisme (Ouvertures). Paris: Fayard, 2009. Aliás, a relevância da proposta levou François Ost a ministrar regularmente um módulo de Direito e Literatura na Universidade Saint Louis, em Bruxelas. Uma visão privilegiada do Direito interpretado a partir da Literatura encontra-se também no livro de POSNER, Richard. Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998. Igualmente, poder-se-iam citar GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: ensaio de síntese teórica. Coleção Direito e Arte, organizada por Leonel Severo Rocha e Germano Schwartz. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008 e AMADO, Juan Antonio Garcia. A Lista de Schindler. Sobre Abismos que o Direito Dificilmente Alcança. Tradução de Ricardo Menna Barreto e Germano Schwartz. Coleção Direito e Arte, organizada por Leonel Severo Rocha e Germano Schwartz. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Finalmente, vale observar que a utilização de contos arábicos (envolvendo camelos!), para a observação do Direito moderno, parece ser uma interessante e construtiva metáfora. Nesse sentido, destaca-se o já conhecido artigo de LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: do sentido de uma análise sociológica do Direito. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR. Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004 e a igualmente válida tentativa de DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e Memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 18 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O demonstra como a confiança opera em distintos âmbitos do sentido. Na história, serão observadas as três dimensões da confiança. Uma observação sistêmica da confiança depende de investigações tanto em nível comportamental como de sistemas sociais. O autor do conto trabalha com três tópicos argumentativos básicos para a elaboração do texto: a confiança, a virtude e o perdão. Isso permite que se estabeleça uma equivalência funcional metalinguística com as metáforas da confiança. Esse ponto foi dividido, 6 portanto, em três partes : confiança pessoal, confiança social e confiança sistêmica, buscando, com isso, observar a complexa relação de confiança surgida entre os personagens. 7 Passar-se-á, pois, ao conto. Seu autor é J. E. Hanauer , um religioso cristão que viveu boa parte da vida na Terra Santa. Hanauer, a partir de fragmentos da tradição oral muçulmana, narra uma antiga história que, na 8 ausência de um título , será assim nomeada ... 6 É um tanto curioso que o número três se encontre, simbolicamente presente, na obra de diferentes autores. Por exemplo, para Luhmann, são três as dimensões de sentido: temporal, social e prática (LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984). Na lógica das formas de Spencer-Brown, são três os valores que constituem uma operação de reprodução: a indicação (ou espaço marcado), o espaço não marcado e a operação de separação do espaço marcado do não marcado (SPENCERBROWN, G. Laws of Form. New York: E. P. Dutton, 1979). Já para Peirce, na semiótica, o signo (ou representamen) está ligado a três coisas: o fundamento, o objeto e o interpretante (PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 46). Isso para citar apenas três exemplos. Uma explicação possível para o sentido do número três é dada por Carl G. Jung (citando Eduard Zeller): "A unidade é o primeiro elemento do qual surgem todos os outros números, é nela, portanto, que devem estar juntas todas as qualidades opostas dos números: o ímpar e o par; o dois é o primeiro número par, o três é o primeiro número ímpar e também perfeito, porque é no número três que aparece, pela primeira vez, um começo, um meio e um fim". Conforme ZELLER, Eduard. Die Philosophie der Griechen. 2. ed. Tübingen e Leipzig, 1856-68, p. 292, in: JUNG, C. G. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 7. 7 HANAUER, J. E. Mitos, Lendas e Fábulas da Terra Santa. São Paulo: Landy, 2005. 8 Importante destacar que Hanauer não nomeia todos os contos e histórias contidos no livro, daí a ideia de nomear o conto. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 19 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 2 E a Confiança não Pereceu... Camelo e Morte. "Certa vez, um rebanho de camelos passava por um pomar cujo proprietário estava sentado sobre uma cerca de pedra, quando um dos animais agarrou um dos ramos de uma árvore, rompendo-o com os dentes. Vendo isso, o proprietário do pomar pegou uma pedra e lançou-a contra o camelo, sendo tão preciso em sua pontaria, que o animal caiu morto. Diante de tal cena, o dono do camelo, furioso com a perda, pegou a mesma pedra e lançou-a contra o proprietário do pomar, matando-o imediatamente. Tomado de horror pelo seu ato, o dono do rebanho fugiu, mas foi alcançado pelos filhos do homem morto. Voltando à cena da tragédia, próxima ao acampamento do Califa Omar ibn el Khattab, os filhos do morto, não querendo ouvir falar em indenização, exigiram que o dono dos camelos - que alegava ter agido sob provocação - fosse decapitado." O Julgamento. "Era de costume, naquela época, que a execução do criminoso se desse imediatamente após a condenação à pena de morte. O procedimento era o seguinte: uma pele – conhecida como nut'a - era estendida na presença do monarca, onde a pessoa a ser decapitada se ajoelhava sobre ela com as mãos para trás. O carrasco, colocado por trás do condenado com sua espada desembainhada, clamava em voz alta: 'Ó Comandante dos Crentes, está realmente decidido que fulano deixe este mundo?' Se o Califa respondesse 'sim', o executor repetia a pergunta novamente. Permanecendo a decisão, na terceira e última vez, se o monarca não revogasse a resposta, o prisioneiro era decapitado." 20 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O A Promessa. "Diante dessa situação, o condenado, vendo a morte próxima, pediu encarecidamente ao Califa que lhe desse três dias de folga para ir à sua tenda, situada em uma localidade distante, a fim de organizar situações familiares, jurando que retornaria em três dias. O Califa assentiu, dizendo que, na hipótese de ele faltar com a palavra, ele deveria encontrar um infeliz para morrer no seu lugar. Diante de uma multidão de desconhecidos, o pobre homem viu a nut'a sendo trazida pelo executor, que já se preparava para amarrar-lhe as mãos, quando o imputado, então, gritou desesperadamente: “Será que a raça dos homens virtuosos não mais existe?” A Virtude. "Fez-se silêncio absoluto. Ao repetir a pergunta, eis que surgiu o nobre Abu Dhur, um dos sohabas, companheiros do Profeta. Dando um passo adiante, Abu Dhur pediu ao Califa permissão para ser o eventual substituto do condenado. O monarca aceitou, alertando-o de que pagaria com a própria vida no caso de o assassino não retornar no prazo previsto. O condenado foi libertado e sumiu em desabalada correria em poucos instantes. Três dias após o episódio, o homem não retornara e, não acreditando que ele o faria, o Califa ordenou que Abu Dhur pagasse a penalidade. Em meio a choros e lamentações dos parentes do nobre, iniciou-se o "procedimento" de execução. Por duas vezes, o executor fez a fatídica pergunta ao governante, que respondeu com um severo 'sim'. Antes que a (terceira) pergunta fatal fosse feita, alguém gritou: A Confiança. 'Parem, em nome de Alá: vejam quem vem correndo!' A um sinal do Califa, o carrasco parou e, para surpresa de todos, o homem Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 21 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O condenado à morte, três dias antes, aproximava-se correndo. Praticamente sem fôlego e desfalecendo, o homem gritou: 'Louvado seja Alá'. Em resposta, o monarca questionou: 'Tolo, por que retornou? Caso tivesse fugido, o seu substituto teria morrido no seu lugar, e você estaria livre'. Respondeu o homem: 'Eu retornei não só para provar que a raça dos virtuosos não desapareceu, mas para provar que a raça dos homens confiáveis ainda existe'. 'Por que você não foi embora de vez?' Insistiu o monarca, incrédulo. 'Como eu lhe disse, ó Califa, voltei para provar que a raça dos homens confiáveis não pereceu.' 'Explique-se', afirmou o Califa. 'Algum tempo atrás, uma pobre viúva veio até mim e me pediu para guardar alguns objetos de valor. Como eu tinha que viajar a negócios, levei estas comigo para o deserto e as escondi sob uma grande rocha, em um local onde ninguém, além de mim, poderia encontrá-las. Lá estavam os pertences da viúva quando fui condenado a morrer. Se minha vida não tivesse sido poupada por alguns dias, eu teria morrido com meu coração pesado, pois o conhecimento do esconderijo morreria comigo, a mulher estaria irreparavelmente prejudicada, e meus filhos teriam ouvido a viúva amaldiçoar minha memória, sem meios para esclarecer-lhe meu trágico fim. Porém, agora que solucionei essa questão pessoal e devolvi à mulher seus objetos de valor, estou pronto para morrer com o coração leve.' Ao ouvir isso, Omar virou-se para Abu Dhur e lhe perguntou: 'Este homem é seu amigo ou parente?' Wallahi! Respondeu Abu Dhur: 'Eu lhe asseguro, ó Califa, que eu jamais havia posto os olhos sobre ele até três dias atrás.' 'Então, por que você foi tão tolo a ponto de arriscar sua vida? Pois, se ele não tivesse retornado, eu determinaria que você morresse no lugar dele.' 22 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 'Eu fiz isso apenas para provar que a raça dos homens virtuosos não desapareceu, respondeuAbu Dhur.'" O Perdão. "Ao receber essa resposta, o Califa permaneceu um tempo calado; então, virando-se para o homem ajoelhado, declarou: 'Eu o perdoo, pode ir.' 'Por que, ó Califa', perguntou um velho e honrado xeique. Omar respondeu: 'Porque, como ficou provado que a raça dos virtuosos e dos homens de confiança não desapareceu, só me resta demonstrar que a raça dos homens clementes e generosos ainda está viva. Por isso, não só perdoo este homem, como pagarei o resgate da sua vida com meus próprios recursos'". 3As Três Dimensões da Confiança Entende-se que o conto acima narrado possui entrelaçamentos designativos suficientes para a estruturação de uma relação que contemple a confiança em sua tridimensionalidade. 3.1 Primeira Dimensão: Confiança Pessoal Encontra-se, no misticismo chinês de Lao Tse, uma sábia e inspirada frase que resume muito bem a primeira dimensão da confiança: "Se não confiares o suficiente nas pessoas, elas não poderão confiar-te nada". Essa 9 frase, do Tao Te King , dá importantes pistas acerca da primeira dimensão da confiança. Nela o indivíduo precisa confiar em sua própria confiança em 9 TSÉ, Lao. Tao Te King. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989, p. 71. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 23 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O outra pessoa, atribuindo à (sua) confiança a habilidade para motivar os outros. Tal habilidade (reflexiva) pode ser comparada à característica 10 capacidade que o indivíduo tem de pensar sobre seus próprios pensamentos . Pois bem, observa-se que, em certa passagem do conto, o homem condenado à morte, tomado de um sentimento de completo desespero, pede ao Califa "três dias de folga para ir à sua tenda, que ficava em uma localidade 11 distante, para organizar questões familiares" . Esse pedido poderia soar a um estranho como um total disparate. Entretanto, diante da proximidade do fatídico momento, o homem, para conseguir um voluntário que se dispusesse a (eventualmente!) perder a cabeça em seu lugar, precisaria confiar na existência de uma comunidade fundada na virtude da palavra. Não obstante, para tanto, precisaria confiar em sua confiança: essa era uma condição interna para que o dono dos camelos obtivesse a confiança do Califa Omar. A confiança, operando nesse nível, pode ser entendida inicialmente como um mecanismo interno, reflexivo. Só depois, exterioriza-se e alcança outro indivíduo (segunda dimensão da confiança). Destaca-se que, para Luhmann, "solamente su propia confianza original le ofrece la posibilidad de proponerla como una norma de que su confianza no debe ser quebrantada, y 12 de este modo, traer al otro a su lado" . Naquele momento, a morte por decapitação pareceria, para os incrédulos, como certa para o dono dos camelos. A assimetria de poder absoluto na dialética entre o Amo e o Súdito, isto é, entre Califa Omar e o condenado, só teve seu rumo desviado porque o dono dos camelos, ante a decapitação, foi impulsionado por um ato de audácia da razão (reflexivo) 10 LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 120. HANAUER, J. E. 2005, op. cit., p. 118. 12 LUHMANN, 1996, op. cit., p. 74. 11 24 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 13 gerador da confiança. Poder-se-ia até afirmar: uma confiança em si mesmo . Essa "confiança na confiança" é requisito necessário para que se chegue à segunda dimensão da confiança. Uma vez se estabelecendo a confiança nessa segunda dimensão, houve a possibilidade da ocorrência de um desfecho diferente daquele para o qual a situação inicialmente apontava. Aliás, a partir de estímulos oriundos da psicologia social, percebe-se que desfechos sempre possuem dois componentes: recompensas e custos. "As recompensas referem-se a todos os aspectos positivos do desfecho (alegrias, prazeres, deleites etc.), e os custos, a todas as características negativas (esforços exigidos, embaraço, frustração, perda de prestígio ou 14 estima etc.)” . Vale observar que, por vezes, o indivíduo, diante de situações limítrofes, não consegue equacionar internamente o resultado (fazendo a avaliação entre recompensas e custos), não obstante, os desfechos trarão sempre esses dois componentes. Por isso, tanto a virtude como a confiança permitem iluminar as sombras da tragédia. A "recompensa" do dono dos camelos, naquelas circunstâncias, foi demonstrar que ele também era confiável e virtuoso. E vivo! Quanto aos custos: ele, a partir daí, sempre saberá que a impetuosidade pode gerar a morte. O desfecho deste conto, pela ótica da psicologia social, fica, portanto, o seguinte: a confiança é a melhor maneira para se encontrar uma saída, mesmo onde ela tinha tudo para inexistir. Destaca-se, assim, uma característica marcante da confiança: para 13 A expressão "confiança em si mesmo", de acordo com a matriz sistêmica, refere-se às condições internas necessárias para que se construa a confiança, que são condições igualmente dotadas de complexidade. Falando em termos funcionais: a confiança em si mesmo corresponde à disponibilidade de mecanismos internos para a redução de complexidade, isto é: de recursos internos disponíveis que, "no caso de uma desilusão da confiança, podem ser colocados em ação, assumindo a tarefa de redução da complexidade e solução de problemas" LUHMANN, 1996, loc. cit., p. 139. 14 HARRISON, Albert A. A Psicologia como Ciência Social. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1975, p. 396. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 25 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O Luhmann, a confiança só é possível em uma situação em que o eventual dano pode ser maior do que a vantagem procurada. Confiar é necessário apenas se um possível mau resultado fizesse o indivíduo pesar sua ação, pois, de outro 15 modo, o que se teria seria uma simples esperança . Percebe-se, na leitura do conto, que a atitude confiante do dono dos camelos foi sopesada, provavelmente oscilando entre a precipitação e a coragem. 3.2 Segunda Dimensão: Confiança Social Como se observou, em um primeiro momento, o condenado fez-se reflexivo confiando em sua confiança. Em outras palavras: conseguiu efetivamente reduzir a complexidade em nível interno (psíquico). Mas isso não significa que estão preenchidos os requisitos necessários para caracterização de uma relação social de confiança, na qual figuram 16 necessariamente dois polos: alter e ego . Nesse caso, Alter precisa (a partir da confiança em sua própria confiança – primeira dimensão) confiar na confiança que ego possui nele. É isso que possibilita que alter baseie seus 17 planos de ação na confiança de ego . De certa forma, tanto no âmbito individual como no social, está (ainda) se falando de relações humanas. Tais relações orientam-se através de previsões. Para Watzlawick, Beavin e 15 LUHMANN, Niklas. Familiarity, Confidence, Trust: Problems and Alternatives. In: GAMBETTA, Diego (org.) Trust: Making and Breaking Cooperative Relations, Electronic Edition, Department of Sociology, University of Oxford, Chapter 6, pp. 94-107, 2000. Disponível em: http://www.sociology.ox.ac.uk/papers / luhmann94-107.pdf Acesso em: 21 de jul. de 2008, p. 98. 16 Luhmann já demonstrou a complexidade advinda da interação entre alter e ego, observando, com isso, a dupla contingência das relações sociais, em: LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 17 LUHMANN, 1996, op. cit., p. 120. 26 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 18 Jackson, da Escola de Palo Alto , "toda previsão está relacionada, de uma ou 19 outra maneira, com o fenômeno da confiança" . No conto, o dono dos camelos, ao prometer voltar, obteve a confiança do Califa Omar e de Abu Dhur, conseguindo os três dias necessários para a resolução de questões familiares. O voto de confiança do Califa dado ao condenado foi determinante para a tal resolução de problemas. Por trás das aparências, sabe-se que todo procedimento decisório apresenta outras razões. Alguns dos aspectos que motivaram o dono dos camelos a fazer tal pedido podem ter sido ignorados inicialmente pelo Califa (uma vez que não se pode participar da consciência do outro). Ainda assim, tal fato não impediu, absolutamente, que este último outorgasse confiança. O referencial mais concreto que o dono dos camelos fornecia ao Califa e aos demais presentes, naquele momento, era a estranha necessidade de passar "três dias fora para organizar as tais questões familiares". Porém, o fato mais importante para o Califa, foi possuir um substituto para perder a cabeça no lugar do condenado. Esta corresponsabilidade, fiança, gerou uma confiança social ao difundir entre os presentes a importância do Direito em atender aos compromissos pretéritos. Isso estruturou um relacionamento comunicativo estabelecendo a possibilidade de troca de papéis entre as pessoas, de modo temporário. Isto é, 18 Palo Alto é uma pequena cidade situada no estado americano da Califórnia, onde, bem próximo dali, se encontra a Universidade de Stanford. Igualmente próximo, encontra-se o hospital psiquiátrico da Veterans Administration, no qual Gregory Bateson trabalharia a partir de 1949. Dez anos depois, em 1959, o psiquiatra Don Jackson funda, em Palo Alto, o Mental Research Institute, no qual Paul Watzlawick trabalharia a partir de 1962, e que viraria referência mundial em termos de pesquisa envolvendo psicologia, psiquiatria, linguística, cibernética e comunicação. Para um interessante histórico acerca da Escola de Palo Alto, recomenda-se a obra de WINKIN, Yves (Org.). La Nueva Comunicación. Selección de textos de Bateson, Birdwhistell, Goffman, Hall, Jackson, Scheflen, Sigman e Watzlawick. 4. ed. Barcelona: Editorial Kairós, 1994. 19 WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H.; JACKSON, Don D. Pragmática da Comunicação Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo: Cultrix, 2000, p. 204. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 27 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O ego pode ocupar o lugar de alter – mesmo que sob o fio da espada – desde que 20 isso possa ser revertido. Finalmente, essa relação de "dupla confiança" foi incrementada com o surgimento da figura do nobre sohaba Abu Dhur, como se perceberá no ponto seguinte. Perceber-se-á, igualmente, como a inclusão de Abu Dhur e de alguns elementos simbólicos nesse episódio possibilitaram a estruturação de uma relação de confiança sistêmica. 3.3 Terceira Dimensão: Confiança Sistêmica A confiança sistêmica se relaciona com os meios de comunicação simbolicamente generalizados, sendo uma característica própria de sociedades complexas, diferenciadas. Não obstante o fato de o conto em questão situar-se, ao que tudo indica, em um passado muito distante, ele possui os elementos necessários para a observação de uma relação de confiança sistêmica. Diante de um alto grau de complexidade no mundo, supõe-se uma multiplicidade de processos seletivos, o que faz com que a confiança sistêmica surja como uma forma efetiva de redução de complexidade. Por isso, para Luhmann, só se pode garantir "un mundo presente y simultáneo, si la selección puede presentarse no sólo como resultado de las propias acciones, sino también como la selectividad de otros que es simultánea y 21 presente" . Para esclarecer-se o que se afirmou acima, faz-se necessário, inicialmente, tecer breves considerações sobre o que vem a ser os meios de comunicação simbolicamente generalizados, categoria fundamental para se 20 21 28 Aconfiança do condenado na confiança do Califa e vice-versa. LUHMANN, 1996, op. cit., p. 82. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O preencherem os requisitos de uma relação de confiança sistêmica. Segundo Luhmann, é diante da crescente complexidade e consequente diferenciação funcional da sociedade moderna que surgem os meios de comunicação simbolicamente generalizados. Conforme esse sociólogo, tais meios são mecanismos adicionales al lenguaje cotidiano, que son códigos de selección simbólicamente generalizados, cuya función es proveer la capacidad de transmisión intersubjetiva de los actos de selección, a través de 22 condenas más largas o más cortas . Esses meios são normalmente exemplificados como a verdade, o poder, o amor e o dinheiro. Eles possibilitam a formação de estruturas, aliviando, dessa forma, a elevada contingência existente em sociedade. Sob essa ótica, a contingência incrementada por meio da linguagem exige dispositivos suplementares que, na forma de códigos simbólicos adicionais, 23 dirijam a transmissão, de forma efetiva, da complexidade reduzida . No tocante a esses meios comunicativos, vale trazer as palavras de Luhmann e De Giorgi: "Tuttavia non si tratta né semplicemente di linguaggi particolari né di media della diffusione, ma di un tipo di media di genere diverso: di 24 un'altra forma, di un altro genere di distinzione, di un diverso codice" . No conto em análise, pode-se dizer que a virtude, a promessa, a 22 Idem, ibidem, p. 82. LUHMANN, Niklas. Complejidad y Modernidad: de la Unidad a la Diferencia. Edición e traducción de Josetxo Beriain y José María García Blanco. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 104. 24 LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della Società. Milano: FrancoAngeli, 1994, p. 106. (Todavia não se trata nem simplesmente de linguagem particular, nem de meios de difusão, mas de um tipo de meio de gênero diverso: de outra forma, de outro gênero de distinção, de um código diverso). Tradução livre. 23 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 29 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O confiança e o perdão são as metáforas que permitem que os meios de comunicação desbloqueiem o sentido. Com isso, já se pode perceber que o estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica não se funda somente em indivíduos, mas, sim, na confiança que estes depositam em tais mecanismos e, consequentemente, em um sistema. Os indivíduos que confiam nesses meios estão diretamente participando de um sistema, mesmo que "inconscientemente." "Al cambiar la confianza personal por la confianza en el sistema, el proceso de aprendizaje se hace más fácil, pero el control es más difícil", 25 afirma Luhmann . Isso significa que quem confia em tais mecanismos não pode corrigi-los, todavia, precisa manter a confiança, como se estivesse coagido; não obstante, institucionalizada a confiança, cria-se uma espécie de 26 certeza equivalente . Mesmo diante desse caráter paradoxal da confiança no sistema, tal possibilidade se apresenta um tanto vantajosa em um cenário de crescente complexidade social. Sai-se de uma contingente vinculação com um indivíduo em específico, uma vez que não existe só uma, mas, sim, várias decisões individuais vinculadas a um mecanismo que, por sua vez, está vinculado à formação das estruturas de um sistema. A virtude , observada aqui como meio de comunicação simbolicamente generalizado, desempenha um papel primordial, pois se encontra presente no estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica, existindo inclusive (quando for o caso) concomitantemente com outros meios, tais como o dinheiro ou o poder. Partilhando essa concepção sistemista da confiança, Abdul-Rahman 25 26 30 LUHMANN, 1996, op. cit., p. 86. Idem, ibidem, p. 86. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O afirma que a "System Trust, or Impersonal Trust, refers to trust that is not based on any property or state of the trustee but rather on the perceived properties or reliance on the system or institution within which that trust 27 exists. The monetary system is one such example" . Pois bem, feitas essas considerações acerca dos meios de comunicação simbolicamente generalizados e da confiança sistêmica, é possível voltar agora a atenção ao conto de Hanauer. Primeiramente, é preciso considerar que a confiança é o meio predominante naquela curiosa relação entre o condenado à morte (proprietário dos camelos), o Califa Omar e o nobre Abu Dhur. Ora, para Luhmann, a confiança é o meio que atua como portador da redução de complexidade intersubjetiva. Assim, "la confianza solamente es posible donde la verdad es posible, donde la gente puede llegar a un acuerdo acerca 28 de alguna entidad dada que es obligatoria para una tercera parte" . No caso em questão, isso significa que era necessário que todos estivessem com sua orientação voltada à verdade, sendo essa uma condição imprescindível para se erigir uma relação sistêmica de confiança. Note-se, desse modo, que há três polos nessa relação: o proprietário dos camelos, Califa Omar eAbu Dhur. O Califa precisou acreditar que as orientações do condenado e do nobre sohaba Abu Dhur eram verdadeiras. Sistemicamente falando, o símbolo da verdade facilita o entendimento e, desse modo, a redução da complexidade, com a oferta de um significado que a terceira parte também 27 ABDUL-RAHMAN, Alfarez; HAILES, Stephen. Supporting Trust in Virtual Communities. In: HAWAII INTERNATIONAL CONFERENCE ON SYSTEM SCIENCES, 33, 2000. Proceedings..., p. 3. Disponível em: http://ieeexplore.ieee.org. Acesso em: 23 de jul. de 2008. (Confiança no sistema ou confiança impessoal refere-se à confiança que não se baseia em qualquer estado da propriedade ou do administrador, mas, sim, sobre a percepção das propriedades ou a dependência do sistema ou instituição, com a confiança que existe. O sistema monetário é um desses exemplos). Tradução livre. 28 LUHMANN, 1996, loc. cit., p. 88. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 31 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O 29 poderia considerar como uma posição correta . Se o Califa Omar ibn el Khattab fosse avaliar todas as possibilidades, incorporando em seu horizonte 30 as contingências do futuro , ele possivelmente não permitiria a viagem de três dias e, muito menos, a substituição de ego por alter. Por isso, pode-se afirmar que o monarca reduziu complexidade com sua confiança, abstraindo 31 de seu horizonte as possibilidades de frustração futuras com esse ato . 32 Nessa linha de ideias, caso se quisesse citar, sem grande rigor, Jung , ter-se-iam três imagens arquetípicas no inconsciente coletivo que cristalizariam a confiança: o Perdão, na figura do Califa, a Virtude, em Abu Dhur e a Promessa, personificada no dono dos camelos. O inconsciente coletivo habitado pela confiança poderia estruturar temporalmente a dimensão de produção de narrativas coerentes. Isso explica por que Abu Dhur, mesmo com enormes chances de "perder a cabeça" – uma vez que o nobre sohaba não tinha ao menos uma relação de familiaridade com o condenado – tinha confiança. Aliás, com Luhmann, considera-se aqui que "familiarity is an unavoidable fact of life; 33 trust is a solution for specific problems of risk" . Diante desse enigma, surge a pergunta: o que levou Abu Dhur a correr tal risco? Pois bem, a ausência de uma relação de familiaridade reforça a hipótese de que sua confiança não se fundava na pessoa do condenado, senão no valor social que se erigia naquela relação. 29 LUHMANN, 1996, op. cit.,, p. 89. Por exemplo: a possibilidade de o proprietário dos camelos não retornar, de Abu Dhur ser um amigo querendo "livrar a cara" do condenado, ou até mesmo de o sohaba fugir etc. 31 Importante destacar: "abstraindo" as possibilidades de frustração, não as eliminando. Independentemente de tal decisão, o futuro, obviamente, continuaria sendo incerto. 32 JUNG, C. G. OsArquétipos e o Inconsciente Coletivo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 33 LUHMANN, 2000, op. cit., p. 101. (Familiaridade é um fato incontornável da vida; confiança é uma solução para os problemas específicos de risco). Tradução livre. 30 32 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O O proprietário dos camelos, por sua vez, precisava igualmente confiar na virtude, isto é, na existência de homens virtuosos. Nesse sentido, partiu dele, de certo modo, um acordo intersubjetivo entre as partes. Destacase que não se está caindo em um "subjetivismo inobservável" ao afirmar isso, senão observando um mecanismo de redução de complexidade. Conforme Luhmann, "si tal reducción ocurre a través de un acuerdo intersubjetivo, produce conocimiento garantizado socialmente, que es de este modo 34 experimentado como verdadero . Além da virtude, o perdão surge como um dos elementos centrais no 35 desfecho do conto. Aliás, na obra de François Ost , o perdão é considerado uma das quatro características do Tempo do Direito (sendo as outras três a memória, a promessa e o questionamento). Perdão, nessa ótica, não significa simplesmente esquecer, mas implica selecionar o que se vai esquecer. É o perdão que faz o conto, ao final, tomar um rumo surpreendente. Califa Omar ibn el Khattab recebe uma verdadeira lição sobre confiança e virtude: um homem retornando resolutamente em direção à morte, "para provar que a raça dos homens confiáveis não pereceu"; o outro, tendo arriscado a própria vida "para provar que a raça dos homens virtuosos não havia desaparecido". Restava, assim, ao Califa, detentor do direito de vida e morte de seus súditos, demonstrar que a "raça dos homens clementes e generosos ainda estava viva". Com o perdão, o Direito, então, se cristaliza: só pode existir Direito em uma sociedade a partir do momento em que nela se 36 inscreve o perdão . 34 LUHMANN, 1996, op. cit., p. 54. OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Odile Jacob, 1999. 36 ROCHA, Leonel Severo. A Construção do Tempo pelo Direito. In: ANUÁRIO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNISINOS: mestrado e doutorado. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2003. 35 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 33 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O De todo modo, era a confiança que operava em todas as dimensões de sentido, fazendo com que a relação entre os papéis se despersonalizasse notadamente a partir da segunda dimensão (alter/ego). Significa afirmar que as orientações dos três personagens não se dirigiam aos "sentimentos" ou mesmo às "consciências" de cada um, mas, sim, à virtude e à verdade que se erigia naquela relação social.Apropósito, a verdade, em última análise (frisese: sistêmica), é uma só: aquela que reduz a complexidade do mundo. Finalmente, vale destacar que uma perspectiva social ligada à 37 confiança sistêmica se aproxima da ideia defendida por Hannah Arendt e 38 retomada por Claude Lefort sobre a interpretação da obra literária no tempo a partir do questionamento que ela provoca no leitor. Isso relaciona a interpretação da obra com a invenção do novo e de outro tipo de forma de sociedade ligada à política. A política como possibilidade de criação comunitária de um sentido sistêmico de confiança. 4 Considerações Finais Pretendeu-se, neste ensaio, demonstrar a passagem simbólica da confiança pessoal para o nível sistêmico, ilustrada com o conto oriundo da Terra Santa. Para tanto, procurou-se, analiticamente, observar como se estruturam e se interpenetram essas três dimensões da confiança, intentando, com isso, demonstrar a predominância da terceira dimensão (sistêmica) nas relações sociais da sociedade moderna. 37 38 34 ARENDT, Hannah. The Human Condition. University of Chicago Press, 1958. Já se falou anteriormente que a democracia é uma invenção (LEFORT, Claude. L'invention democratique: les limites de la domination totalitaire. Paris: Fayard, 1981.) e que a análise ́ dessa matriz pode ser auxiliada por um estudo comparativo do pensamento político de Hannah Arendt e de Merleau-Ponty. In: ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 179. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O A confiança, a virtude e o perdão são, de fato, aspectos simbólicos que surgem como fontes do Direito. A confiança sistêmica, nesse contexto, é determinante para a formação das estruturas do sistema jurídico positivo que se constituirá na modernidade. Não obstante, em um cenário de pósmodernidade, a confiança pode ser observada como um mecanismo que permite que o sistema jurídico se erija e se auto-reproduza sistemicamente. Despersonalizada, a confiança possibilita a estruturação de relações jurídicas em um cenário de extrema e crescente complexidade. Viu-se, no conto apresentado, que diante do risco, a virtude surge como um igualmente importante mecanismo de construção do social. É o perdão, no entanto, que fecha esta tríade simbólica, cristalizando um dos aspectos fundantes do Direito. Ora, só existe Direito em uma sociedade, a partir do momento em que nela se inscreve o perdão. Enfim, foi notadamente o aspecto sistêmico da confiança que se procurou ilustrar com o conto da Terra Santa. O Proprietário dos Camelos, Califa Omar e Abu Dhur são, possivelmente, personagens de ficção. No entanto, entende-se que o significado dos papéis constitui um elemento simbólico que transpõe o conto, comunicando não só a sutileza, mas também 39 toda complexidade de uma relação de confiança . 39 A questão da confiança será redimensionada no século XXI pelo aumento da complexidade social. Pretende-se, em um próximo artigo, a partir da ideia de autopoiese e "Obstáculo 3-D", ampliar o foco dessa observação. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 35 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O REFERÊNCIAS ABDUL-RAHMAN, Alfarez; HAILES, Stephen. Supporting Trust in Virtual Communities. In: HAWAII INTERNATIONAL CONFERENCE ON SYSTEM SCIENCES, 33, 2000. Proceedings... Hawaii, 2000. Disponível em: http://ieeexplore.ieee.org.Acesso em: 23 de jul. de 2008. AMADO, Juan Antonio Garcia. A Lista de Schindler: sobre abismos que o Direito dificilmente alcança. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. (Coleção Direito e Arte). Tradução de Ricardo Menna Barreto e Germano Schwartz. ARENDT, Hannah. The Human Condition. University of Chicago Press, 1958. DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e Memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: ensaio de síntese teórica. 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Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 37 C O N F I A N Ç A , V I R T U D E E P E R D à O C O M O F O N T E S D O D I R E I T O OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Odile Jacob, 1999. ________. Raconter la Loi. Aux sources de l'imaginaire juridique. Paris: Odile Jacob, 2004. ________. Sade et la Loi. Paris: Odile Jacob, 2005. ________. Traduire. Défense et illustrations du multilinguisme (Ouvertures). Paris: Fayard, 2009. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. POSNER, Richard. Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998. ROCHA, Leonel Severo. A Construção do Tempo pelo Direito. In: ANUÁRIO do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003. _________. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005. SPENCER-BROWN, G. Laws of Form. New York: E. P. Dutton, 1979. TSÉ, Lao. Tao Te King. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989. 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Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 17-39, 2010 39 OS SUBTERRÂNEOS DO SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS1 Fernando Guimarães Ferreira2 RESUMO O texto trabalha a necessidade de uma visão complexa para uma efetiva compreensão do fenômeno jurídico, propondo uma articulação introdutória entre as ideias de Warat sobre o papel ideológico da argumentação na construção da dogmática jurídica - referencial teórico do estudo - com as concepções de Sloterdijk e Zizek, acerca da mecânica pela qual o discurso transmitido pela linguagem, influenciado por uma razão cínica, vigente em uma sociedade do espetáculo, concretizador de "pré-leituras" do real (Sloterdijk), é acolhido pelos juristas por meio de um processo de identificação imaginária ao discurso cínico (Zizek), dando consistência aos sensos comuns teóricos (Warat). Palavras-chave: Senso Comum Teórico. Razão Cínica. Identificação Imaginária. ABSTRACT The text suggests a complex vision for an effective understanding of legal phenomenon, proposing an introductory articulation between Warat's ideas about the ideological role of argumentation in construction of dogmatic legal – our theoretical reference - with the conceptions of Sloterdijk and Zizek, about the mechanics by which the speech transmitted by language, influenced by a cynical reason, prevail in a society of the spectacle, creator of "reads" of real (Sloterdijk), is accepted by the jurists through a process of imaginary identification to the cynical discourse (Zizek), giving consistency to theoretical common sense (Warat). Keywords: Theoretical Common Sense. Reason Cynical. Imaginary Identification. 1 2 O tema do presente estudo teve origem em comentário proferido pelo Prof. Dr. Albano Marcos Bastos Pepe, na palestra "O legado da racionalidade cartesiana", proferida em 20 de abril de 2006, no XIII Núcleo de Estudos Avançados (A filosofia no direito) do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ/RS). Procurador da Assembleia Legislativa do RS, Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Conselheiro Científico da Escola Brasileira de Gestão Pública. Mestre em Instituições do Direito do Estado pela PUCRS. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 41 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S 1 Introdução As abordagens produzidas pela ciência em geral - incluindo o campo do Direito - são pautadas, usualmente, por uma tradição racionalcartesiana extremada, ou seja, realizam um exame reducionista do fenômeno, a partir de suas individualidades, deixando, muitas vezes, de compreendê-lo em sua verdadeira complexidade, nas inter-relações estabelecidas entre suas individualidades, produzindo, assim, seguidas falhas de compreensão. A superação estaria na adoção de uma abordagem complexa - adequada a uma sociedade igualmente complexa e em transformação -, com o rompimento do paradigma reducionista, com a busca de novas significações, amparadas em uma compreensão transdisciplinar dos fenômenos. Reconhecendo a natureza complexa da sociedade humana, apenas uma leitura transdisciplinar, uma articulação entre os saberes, permitirá a adequada construção de compreensões e soluções aos fenômenos jurídicos. Luís Alberto Warat (2004, p. 27), constatando a necessidade de ser realizada uma abordagem complexa sobre a produção do "saber jurídico institucionalmente sacralizado", propõe, em artigo publicado originalmente em 1982, uma trajetória analítica que denomina de "conhecimento" ou "pensamento crítico do Direito", na qual pretende, com a utilização de diferentes marcos conceituais, flexível e problematicamente relacionados, construir uma compreensão das "condições históricas de elaboração e os vários sentidos sociais dos hábitos teóricos aceitos como o discurso competente dos juristas", apresentando, assim, uma "proposta revisionista dos valores epistemológicos [...] que regulam o processo de constituição das verdades jurídicas consagradas", concretizada "a partir do reconhecimento dos limites, silêncios e funções políticas da epistemologia jurídica oficial". O 42 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S deslocamento epistêmico proposto por Warat (2004, p. 28) objetiva, em uma inversão propositiva, o primado da política sobre a razão e a experiência, de forma que a "análise das verdades jurídicas exige a explicitação das relações de força que formam domínios de conhecimento", o que não é realizado pela ortodoxia epistemológica do Direito, preocupada, essencialmente, com o "enclausuramento lógico referencial dos discursos produzidos em nome da Ciência" - resultando em uma "alienação do conhecimento científico em sua expressão material, como acontecimento significativo, politicamente determinado" -, reduzindo, como consequência, as significações a meros conceitos. O saber crítico do Direito propõe a "substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de significações" e a "introdução da temática do poder como forma de explicitação do poder social das significações proclamadas científicas", permitindo a construção de uma "história das verdades", onde seja possível a identificação dos "efeitos políticos das significações na sociedade". A crítica proposta por Warat (2004, p. 29) está precisamente em sua constatação de que a objetivação decorrente da ortodoxia epistemológica do Direito acarreta o "[. . .] esvaziamento do núcleo conceitual" do discurso produzido, "o qual passa a ser um mero significante em um contexto fragmentado de conotações", de forma que é subtraída a função referencial das relações conceituais, "tornando-as abertas aos efeitos do poder" e impedindo, especialmente, a detecção dos seus efeitos políticos. É exatamente a esses discursos competentes da Ciência e da epistemologia jurídicas, "forjados na práxis jurídica", que Warat dá o nome de "senso comum teórico dos juristas". Warat, em seus estudos, critica, sobremaneira, a ideologização da dogmática jurídica, enquanto forma de alienação, ressaltando a função fundamental de persuasão desempenhada pela argumentação jurídica, na medida em que a vida quotidiana dos Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 43 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S profissionais do direito se desenvolve por meio da utilização contínua da linguagem, objetivando demonstrar a necessidade imperiosa de ser realizada uma ruptura do modelo dogmático tradicional. O objetivo do presente estudo, diante de sua proposta inicial de ser adotada uma visão complexa para a compreensão do fenômeno jurídico, é apresentar uma articulação introdutória, no campo do direito, entre as ideias de Warat - referencial teórico adotado - e as de Sloterdijk e Zizek, especificamente pela exposição da mecânica pela qual o discurso transmitido pela linguagem - influenciada esta por uma razão cínica (Sloterdijk), vigente no seio de uma sociedade do espetáculo (em que as possibilidades de crítica do real restam reduzidas), produz esta (a linguagem) uma mistificação tendente à concretização de "pré-leituras" do real, impeditivas da correta percepção da realidade social pelos integrantes dessa mesma sociedade - é acolhido pelos juristas por meio de um processo de identificação imaginária ao discurso cínico, como leciona Zizek, terminando por dar consistência aos sensos comuns teóricos (Warat), os quais traduzem a percepção da realidade, fazendo com que os operadores do direito adotem, enquanto fundamentos da construção racional de suas decisões, ideias e conceitos que conduzem a conclusões aparentemente justas, mas que, na verdade, podem estar distantes dos princípios estabelecidos pelo texto constitucional. Essa articulação visa à desalienação do discurso jurídico, principalmente diante do mito da pureza kelseniana. Para o cumprimento dessa tarefa, seguiremos a seguinte estruturação: em primeiro, abordaremos a necessidade de ser adotado o pensamento complexo no campo do direito, diante da constatação da insuficiência do atual modelo dogmático adotado pela Ciência do Direito; em segundo, são lançadas, como referencial teórico deste estudo, as lições de Warat a respeito 44 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S do papel ideológico da argumentação na construção da dogmática jurídica e do senso comum teórico; em terceiro, a noção de racionalidade cínica e de identificação imaginária aos ditames desta falsa consciência ilustrada; e, por fim, as conclusões propostas. 2 AInsuficiência do Modelo Dogmático A dogmática jurídica tradicional, de viés positivista, demonstra-se atualmente insuficiente para realizar uma adequada formação dos profissionais do direito. Urge, por consequência, a elaboração de uma alternativa que supere as limitações do ensino contemporâneo, formador de operadores do direito cada vez mais despreparados para a correta percepção e competente solução das questões sociais a eles apresentadas, marcadas estas por uma crescente complexidade (hipercomplexidade dos fenômenos sociais). O reflexo dessa problemática se revela, por exemplo, na multiplicidade de decisões diametralmente opostas produzidas pelo Poder Judiciário para situações concretas absolutamente idênticas, sob o argumento de que o magistrado julga conforme a sua consciência (problema da discricionariedade judicial). Neste aspecto, Lênio Streck (2010, p. 95) propõe que "[. . .] para uma teoria ser pós-positivista, é necessário superar o 'decido conforme minha consciência'"3, com o estabelecimento de padrões hermenêuticos que, dentre outros princípios, estabeleça "[. . .] condições hermenêuticas para a realização de um controle da interpretação 3 "Em síntese – e quero deixar isso bem claro -, para superar o positivismo, é preciso superar também aquilo que o sustenta: o primado epistemológico do sujeito (da subjetividade assujeitadora) e o solipsismo teórico da filosofia da consciência (se desconsiderar a importância das pretensões objetivistas do modo-de-fazer-direito contemporâneo, que recupera, dia a dia, a partir de enunciados assertóricos, o 'mito do dado'). Não há como escapar disso. Apenas como a superação dessas teorias que ainda apostam no esquema sujeito-objeto é que poderemos escapar das armadilhas positivistas.” Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 45 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S constitucional (ratio final, a imposição de limites às decisões judiciais)". Conforme o autor (STRECK, 2010, p. 96), a "[. . .] superação do positivismo implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial", ou seja, "no enfrentamento do solipsismo da razão prática". Os estudos de Streck, frisa-se, na hermenêutica jurídica, são fundamentais. A proposta para a superação dessa problemática consiste no efetivo rompimento da visão unidisciplinar típica do dogmatismo de cunho positivista, uma vez que o direito, enquanto ciência humana e social, não pode ser compreendido como um ente autônomo à sociedade ao qual é aplicado. Torna-se necessário libertar o ensino jurídico dos modelos políticos subliminarmente impostos (ideologia), os quais tendem à perpetuação de um dogmatismo abstrato, dissociado da realidade, replicador do "[. . .] mito de que o sistema jurídico tem respostas para todas as questões apresentadas pela sociedade" (FAGUNDEZ, 1997). Urge que o operador do direito adote uma visão integradora - dialógica - aos mais diversos campos científicos que com ele tenham pontos de contato, numa prática transdisciplinar. Luiz Fernando Coelho (1997) aponta a "[. . .] necessidade de se repensar totalmente a educação jurídica, procurando incentivar nossos jovens juristas a formarem nova mentalidade, não se submeterem a uma visão estritamente profissional de um segmento alheio ao todo e alienado dos problemas sociais", propondo o surgimento de "uma mentalidade voltada para o futuro, no meio daqueles que, além de juristas, são cientistas sociais e cidadãos", e que, assim, permita a "construção de uma sociedade livre, de homens verdadeiramente livres, porque não alienados". Paulo Roney Ávila Fagundez (1997)4, citando Boaventura de Souza Santos, menciona que a "ciência pós-moderna deverá transformar os seus processos de investigação, 4 46 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. Portugal: Cortez. 2001 apud Paulo Roney Ávila Fagundez, 1997, p. 223. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S de ensino e de extensão". O autor, para tal, propõe três princípios: a) "a prioridade da racionalidade moral-prática e da racionalidade estéticoexpressiva sobre a racionalidade cognitivo-instrumental"; b) "a dupla ruptura epistemológica e a criação de um novo senso comum"; e, c) "a aplicação edificante da ciência no seio das comunidades interpretativas". Em um pequeno texto, Leonel Severo Rocha (2003, p. 40-44) aponta que "somente uma nova matriz teórica transdisciplinar pode nos ajudar na reconstrução da teoria jurídica contemporânea, até então impotente para a compreensão e observação dos acontecimentos deste início de século". A revolução epistemológica de cunho transdisciplinar, apregoada pelos autores supra referidos, propõe o rompimento com a "departamentalização dos campos de racionalidade dominantes" (ROCHA, 2003, p. 40-44), permitindo um interrelacionamento amplo entre o sistema jurídico e a história, fertilizando o campo para uma nova hermenêutica – não-relativista e constitucionalmente vinculada -, voltada para uma interpretação do sistema jurídico comprometida com a efetivação das promessas da modernidade. 3 O pensamento de Warat O autor, com extrema profundidade, aborda, em diversas de suas obras, a temática da função ideológica da argumentação, enquanto mecanismo de convencimento (mistificações impeditivas da compreensão da realidade), denunciando o efeito de realidade determinado pela persuasão decorrente da linguagem, na hipótese de o discurso verossímil encontrar adequação às formas axiológicas predominantes, como aponta, não contradizendo a ideologia dos destinatários desse discurso. Como resultado, realiza o autor crítica à teoria do direito e do ensino jurídico tradicional, Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 47 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S salientando a ideologização da dogmática jurídica como forma de alienação. 3.1 Senso Comum Teórico dos Juristas Adotando-se ainda o pensamento de Warat, torna-se necessário fazer referência ao que ele denomina de "senso comum teórico" dos juristas, sendo este constituído por um conjunto de representações, noções, crenças, mitos e mistificações que governam, disciplinam e condicionam ideologicamente – as atitudes cotidianas dos juristas em relação ao processo judiciário e a sua produção teórica, criando a falsa noção de que é esse conjunto teórico-ideológico que, na prática jurídica, permite a produção de decisões ou significações socialmente legitimáveis, quando, em verdade, constitui um "sistema de conhecimentos que organiza os dados da realidade, pretendendo assegurar a reprodução dos valores e práticas predominantes" (WARAT, 1979). Para ele, o senso comum teórico "não deixa de ser uma significação extra-conceitual no interior de um sistema de conceitos, uma ideologia no interior da Ciência, uma 'dóxa' no interior da episteme", trata-se de uma "episteme convertida em 'dóxa', pelo programa político das verdades, executado por meio da práxis jurídica" (2004, p. 30). É necessário esclarecer que, consoante os conceitos utilizados por Warat, a dóxa seriam as "opiniões comuns", constituída "por um conglomerado de argumentos verossímeis, formados a partir das representações ideológicas, das configurações metafísicas e das evocações conotativas", enquanto que a episteme, o "conhecimento científico", o "saldo, logicamente purificado" dos fatores constituintes da dóxa (WARAT, 2004, p. 29). A cientificidade proposta pelos epistemólogos para a Ciência deveria realizar a efetiva diferenciação entre os campos da dóxa e o da 48 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S episteme - mito da neutralidade da Ciência -, sendo que, no entanto, quando "esta concepção de racionalidade científica é apropriada na práxis jurídica", as "opiniões comuns" não deixam de se manifestar, razão pela qual "o conhecimento científico do direito termina sendo um acúmulo de opiniões valorativas e teóricas que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme" (WARAT, 2004, p. 29-30). Como decorrência, a própria atividade profissional do direito acaba por reivindicar, para si, miticamente, um lugar de neutralidade e pureza purificação metodológica -, em realidade inexistente. O autor constrói o conceito a partir da noção de pensamento crítico, entendido este como um agir opositor que, por meio de diferentes marcos conceituais, pretende "compreender as condições históricas de elaboração e os vários sentidos sociais dos hábitos teóricos aceitos como o discurso competente dos juristas", visando a estabelecer uma nova formulação epistemológica sobre o conhecimento jurídico "sacralizado", cujas significações são reduzidas a meros conceitos (WARAT, 1979). O discurso crítico proposto por Warat pressupõe a superação do sistema de controle conceitual pela compreensão do sistema de significações e a introdução da noção de poder como mecanismo de explicação do poder social das significações, até então proclamadas científicas, de forma a possibilitar o desvelamento do discurso de objetivação dogmático, o qual, em que pese justificado em uma teorização dita imparcial e apolítica, está condicionado por pressuposições ideológicas5. O senso comum teórico 5 "Reivindicamos, até aqui, a necessidade de instaurar, para o conhecimento crítico do direito, uma epistemologia das significações como substituição ou complementação da atual epistemologia dos conceitos. Esta última não permite, por um lado, discutir o sentido político do saber do direito, já que os conceitos são construídos pela razão como uma tentativa de suprimir das ideias seus vínculos com as representações ideológicas ou metafísicas e com suas relações com o poder. [...] Em certo sentido, podemos dizer que, mediante o jogo estratégico dos conceitos, estes são reaproveitados pelo senso comum dos juristas, convertidos, novamente, em significações, quer dizer, em signos, de múltiplas evocações conotativas." (WARAT, 2004, p. 31) Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 49 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S pretende, como já dito, apontar para a impossibilidade de ser produzido um discurso teórico puro no campo das ciências humanas, especialmente no do direito. A epistemologia tradicional, segundo o autor, procura, equivocadamente, "resolver, idealmente, as relações conflitantes entre a teoria e a práxis jurídica, ignorando, fundamentalmente, o valor político do conhecimento na práxis" (WARAT, 1979), propondo um saber puro como teoria, o que permitiria a contaminação da práxis por essa pureza, "criando a ilusão de uma atividade profissional pura". Como resultado da percepção decorrente do pensamento crítico, urge a adoção de "uma epistemologia das significações como substituição ou complementação da atual epistemologia dos conceitos", uma vez que estes são "construídos pela razão como uma tentativa de suprimir das ideias seus vínculos com as representações ideológicas ou metafísicas e com suas relações com o poder" (WARAT, 1979). O autor aponta que a inter-relação entre a "região das crenças ideológicas"6, a "região das opiniões éticas"7, a "região das crenças epistemológicas"8 e a "região dos conhecimentos vulgares"9 influi, 6 "Estaríamos aqui falando as concepções do mundo que possuem os cientistas, ou seja, das ideias que ajustam o indivíduo às condições de existência." Seriam, pois, "os elementos representativos da realidade, que, independentemente da vontade dos cientistas, dominam suas consciências, influindo na formação do capital cultural da prática teórica". (WARAT, 2004, p. 34) 7 Dentro do processo de formação do espírito científico, as opiniões éticas "forçam critérios de racionalidade, pelos quais a desrazão surge como um desajuste em relação aos padrões morais vigentes", sendo que, em função disso, se explora uma "identificação falaciosa entre a razão e a ética", permitindo, assim, ao juristas, "legitimar o sistema de decisões legais como expressão estereotipada de uma racionalidade eticamente determinada". (WARAT, 2004, p. 34) 8 Dizem "respeito às evidências fornecidas pela prática institucional dos cientistas". São os "hábitos intelectuais que regulam as condições de produção do conhecimento, como também, das interpretações vulgarizantes dos conceitos, fruto de suas desvinculações dos marcos teóricos sistemáticos em que foram produzidos". Conclui o autor afirmando que estas se relacionam com a "crença na eficiência do método para produzir a objetividade e a verdade". (WARAT, 2004, p. 34) 9 Esta é a "atividade intelectual do homem comum, resultante da percepção imediata e da utilidade do saber", podendo ser compreendida, igualmente, como "as imagens cotidianas que criam a ilusão de uma realidade composta de dados claros, transparentes, que podem ser interpretados, com segurança, mediante uma razão comandada pela intuição". (WARAT, 2004, p. 34) 50 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S "consciente ou inconscientemente, na formação do espírito jurídico", produzindo um saber "que provocando conotativamente a opacidade das relações sociais, afasta os juristas da compreensão do papel do direito e do seu conhecimento na sociedade" (WARAT, 2004). A própria construção do senso comum teórico se daria por um movimento dialético: no primeiro momento, haveria uma dóxa (hábitos significativos); no segundo, a construção de uma episteme, a partir da aplicação de processos lógicos purificadores; e, no momento final, teríamos o senso comum teórico, "dado pela reincorporação dos conceitos nos hábitos significativos" (WARAT, 2004, p. 31), dando início, assim, a um novo movimento dialético, tal como descrito. Como resultado, o discurso da episteme se revela ideológico, ou seja, "um discurso transfigurado em elemento mediador de uma integração, ilusoriamente, não conflitiva, das relações sociais" (2004, p. 31). Sinteticamente, o senso comum teórico seria construído: a) por uma "série móvel de conceitos", desconectados das teorias que os produziram; b) por um "arsenal de hipóteses vagas" e até mesmo contraditórias; c) por "opiniões costumeiras"; d) por "premissas não explicitadas e vinculadas a valores"; e, por fim, e) por "metáforas e representações do mundo" (2004, p. 32). Esses elementos, em que pesem suas inconsistências intrínsecas, conduzem a uma uniformidade conceitual um sistema de verdades - sobre "o direito e suas atividades institucionais", supostamente "construída em luta contra as representações costumeiras e que, no entanto, volta como um grau diferente dessas mesmas representações" (2004, p. 32). Importante aduzir que esse sistema de verdades "não está vinculado a conteúdos, mas sim a procedimentos legitimadores, determinantes para o consenso social", consenso esse Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 51 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S produzido em um processo onde o sentido conceitual é substituído por evocações estereotipadas, dando, assim, origem a um "processo de apropriação institucional dos conceitos10, cuidadosamente elaborado, para exercitar o poder dos significados" (p. 32), onde são produzidas "versões das teorias ajustadas às crenças, e representações e interesses legitimadas pelas instituições", ou, em outras palavras, é estabelecida uma interpretação estereotipada dos conceitos (com a reconstrução dos conceitos e critérios epistemológicos), "polissemicamente controlada", a partir do discurso apropriado, "com clara função legitimadora" (p. 33). Warat procura, sinteticamente, no "senso comum teórico dos juristas", enquanto conjunto heterogêneo de hábitos semiológicos de referência, "explicitar uma condição de significação para os discursos jurídicos" (2004, p. 31). 3.2 O Papel Mistificador daArgumentação Jurídica O extraordinário e acelerado desenvolvimento das tecnologias massificadoras da informação e da comunicação no final do século XX, tendentes a transformar a experiência humana em linguagem e comunicação, associado à ampliação dos regimes democráticos, nos quais a palavra, e não mais a força ou a violência, assume papel preponderante como instrumento de ação política, evidenciam a recente necessidade de as ciências humanas e a filosofia se debruçarem sobre os fenômenos da comunicação e da linguagem, ressaltando que a preocupação prático-teórica do homem com a linguagem remonta à tradição filosófica grega, a qual forneceu os princípios fundamentais sobre os quais a linguagem tem sido estudada até os nossos 10 52 Que o autor também denomina de "recuperação institucional do trabalho epistemológico" (WARAT, 2004, p. 32). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S dias. No final do século XIX, a problemática do estudo da linguagem enquanto fenômeno tipicamente humano deu origem a três disciplinas distintas: a) a lógica (p.ex., Wittgenstein); b) a linguística (p.ex., Saussure e Chomsky); e, c) a filosofia da linguagem (p.ex., Ricoeur, Habermas e Perelman). Em que pese as discordâncias entre os representantes dessas três disciplinas, tornou-se consensual que a linguagem desempenha três funções fundamentais: a) a comunicação indicativa/referencial de fatos e estados de coisas; b) a expressão da subjetividade e do pensamento; e, c) a persuasão do interlocutor. Interessa, aqui, o exame da função de persuasão do interlocutor e a mecânica pela qual ela produz, efetivamente, efeitos de convencimento, conferindo aspecto de realidade (representação sobre o real) a fatos ou ideias que não correspondem a um extrato de veracidade. Para Warat, esse processo de dominação da consciência dá-se por meio de "processos determinados de persuasão", em que são utilizados silogismos erísticos (falaciosos), visando a produzir conclusões equivocadamente adequadas às premissas que as sustentam. Em outras palavras, argumentos habilmente manipulados constituem um meio de dominação ideológica, principalmente no discurso jurídico. Importa-nos, agora, expor suas críticas à argumentação jurídica, visto que esse processo de validação de argumentos não identificados com uma realidade concreta - que Zizek, como veremos, denomina como identificação imaginária à razão cínica - ocorre diuturnamente no âmbito do direito. 3.3 Crítica àArgumentação Jurídica Os profissionais do direito, talvez mais que em outras atividades, Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 53 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S realizam seus misteres por meio de um signo comunicante – a palavra, tanto escrita como oral -, produzindo uma argumentação que visa, finalisticamente, a interpretar o direito por meio de processos determinados de persuasão, criando efeitos de convencimento. O grande problema está em que essa produção argumentativa se utiliza, muitas vezes, na produção de sentidos, de silogismos falaciosos, impondo ao eventual receptor da mensagem comunicativa efeitos de realidade, de forma que este, em relação a essa significação transmitida, deve sempre adotar uma visão necessariamente crítica. Warat (1994), ao propor, em sua crítica, uma leitura ideológica da argumentação jurídica, enquanto instrumento de ligação entre um sistema de poder e um sistema de comunicações, afirma, corretamente, que "as práticas argumentativas do judiciário, da dogmática jurídica e das escolas de direito são manifestações concretas da ideologia dos juristas" (1994, p. 94). De tal forma, o argumento não seria mais do que um raciocínio que coloca "um conjunto de signos informativos, em função do poder", transformando a "mensagem linguística em ideologia", num sutil processo de sujeição e uniformização das relações sociais. Em face dessa realidade, infelizmente cada vez mais invisível, não se pode conceber um adequado estudo dos sistemas de comunicação vigentes na sociedade sem uma profunda e desmitificante preocupação quanto ao funcionamento ideológico dos argumentos, bem como da própria teoria da argumentação, uma vez que Warat concebe o argumento enquanto vinculação da persuasão à ideologia. Assim, os argumentos, em seu aspecto ideológico, seriam produtores de um efeito de reconhecimento, de ilusão quanto à demonstração de algo que, em realidade, não se está comprovando, numa inversão do real que objetiva obter a aceitação e principalmente a adesão dos receptores em relação àquilo que se 54 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S pretende convencer, produzindo-se uma homogeneização dos valores. No pensamento de Aristóteles, por exemplo, a argumentação é constituída por raciocínios estabelecidos a partir de silogismos retóricos, ou seja, de opiniões (premissas) geralmente aceitas, de forma que o conteúdo aduzido pelo transmissor produz, no receptor, um efeito de adequação a esses valores universalizados e a consequente adesão deste ao raciocínio exposto. Importante esclarecer que no pensamento aristotélico há uma contraposição entre o raciocínio argumentativo (não-demonstrativo), constituído por uma lógica do pensamento não-formalizável, e o raciocínio lógico-formal (demonstrativo). Este último raciocínio ocorre quando são devidamente apresentados todos os pressupostos iniciais e suas regras lógicas de derivação, enquanto que o primeiro é amparado num conhecimento vulgarizado, em crenças generalizadas da população, de forma que ocorre a aceitação da conclusão proposta em função de um efeito de adequação entre essa conclusão e o "pensamento popular de base" (1994, p. 97). Assim, o raciocínio argumentativo tende tão-somente à persuasão do receptor e não à efetiva demonstração da conclusão apresentada como verdadeira, sendo, de tal modo, desvinculado da realidade concreta, da verdade, vinculando-se à verossimilhança, conceituada por Warat como "uma correspondência entre um enunciado e um corpo de opiniões geralmente aceitas" (1994, p. 97), produzindo, assim, um efeito representativo de verdade ou realidade. Warat alerta que devemos ter muito cuidado com a adoção acrítica de uma divisão maniqueísta entre os raciocínios demonstrativos e persuasivos ou entre verdade e verossimilhança, visto que, muitas vezes, nos raciocínios demonstrativos, verificamos, em suas conclusões, premissas ou pressupostos epistemológicos, evidentes mistificações, em que se persuade afirmando operar com a verdade, quando se está produzindo apenas um Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 55 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S efeito de realidade. Aponta o autor, ainda, o paradoxo de a verdade buscar auxílio na verossimilhança, uma vez que a elaboração de um problema da verdade demanda, em seu processo, uma elaboração teórica ou linguística, cujo controle dá-se em termos exclusivamente discursivos, mesmo que voltados à formação exclusiva de raciocínios eminentemente demonstrativos, resultando sempre em um "efeito de realidade, que servirá para reconhecer nossas representações sobre o real" (1994, p. 98) (verossimilhança), transformando-se em verdade quando vinculado ao processo social de desenvolvimento humano, sofrendo, por consequência, enquanto dado social e histórico, as transformações impostas pela história. A verossimilhança, assim, não pode ser atualmente considerada como processo de produção de uma persuasão, mas como gerador de um efeito de realidade crível, decorrente da utilização de pontos de vista intuitivamente aceitos, tornando-se psicologicamente aceitos, uma vez que "as relações sociais produzem as ideias, ilusões e representações que regulam os critérios da intuição" (1994, p. 98). Ou seja, a recepção socialmente dominante (opinião geralmente aceita) da intuição resultante da verossimilhança acarreta a persuasão psicológica do argumento utilizado, em outras palavras, a aceitação de uma conclusão se dá, no processo argumentativo, a partir das opiniões dominantes, revelando, segundo Warat, o caráter ideológico da teoria da argumentação, permitindo sua utilização como forma de alienação, realizando formas específicas de controle social, reproduzindo, numa função socializadora latente, valores previamente estabelecidos. Como resultado dessa noção, Warat conclui que a argumentação, para produzir efeitos de persuasão, não deve apenas buscar alcançar um efeito de verossimilhança, de adequação ao senso comum, mas principalmente, mesmo que indiretamente, "um efeito de adequação axiológica em relação ao valor resguardado pela 56 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S crença que habilitou o raciocínio" (1994, p. 99), entendida esta como manifestação "standard" das ideologias. Revela-se importante considerar que, diante de tais considerações, o jurista, ao utilizar as formas jurídicas de argumentação, tem de se preocupar, que estas produzam um efeito de adequação valorativa em relação às crenças sociais e jurídicas dos destinatários, sendo considerados, portanto, significativamente legítimos se não contradisserem, como aponta Warat, as "formas axiológicas predominantes" que constituem a ideologia dos destinatários. De tal forma, a ideologia seria o "tribunal" pelo qual seria possível aferir o grau de eficácia ou ineficácia de um determinado argumento jurídico, razão pela qual a argumentação jurídica sempre tende a operar como instrumento de reprodução acrítica dos valores predominantes. Warat, a partir de suas conclusões e do reconhecimento da evidente possibilidade de certas teses da dogmática jurídica serem ditadas não por enunciados teóricos, mas por enunciados retóricos, amparados por um efeito de adequação valorativa, afirma que a moderna teoria da argumentação deve ser fundada "sobre a tentativa de leitura dos argumentos e dos discursos teóricos como ideologia" (1994, p. 101). Michele Borba, resumindo o pensamento de Warat, afirma que a persuasão ocorre quando o emissor da mensagem manipula "um conjunto completo de crenças, representações e valores, com a finalidade de provocar o conjunto de relações associativas que determinam a aceitação, por parte do receptor, dos pontos de vista do emissor", lançando mão, inclusive, de "estereótipos que representam um tipo de signos a partir dos quais a sociedade condensa e comunica os condicionantes ideológicos do sistema central de seus valores". Esse é o mecanismo psicossocial utilizado pelo discurso alienante, socialmente sacralizado, e que se constitui em noção essencial para a devida Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 57 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S compreensão do conceito de "senso comum teórico dos juristas", estabelecido por Warat11. Como resultado, cria-se campo fértil para a autorreprodução do conhecimento jurídico existente, já devidamente filtrado por parâmetros ideológicos, dificultando a criação do novo. 3.4 Crítica a Kelsen A mistificação quanto ao suposto caráter não-ideológico e puro do direito, que ainda permeia grande parte da dogmática jurídica, foi apontada por Marcelo Minghelli (2001, p. 93-104), em estudo no qual crítica a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen à luz das lições de Warat. Conforme Minghelli, Kelsen adotou um princípio metodológico da pureza, requisito determinante da autonomia da Ciência Jurídica, permitindo, assim, a criação de uma "teoria geral do Direito que tem como objetivo descrever o que e como é o Direito, não existindo a procura por uma justificação, explicitação, ou mesmo por uma desclassificação do mesmo" (2001, p. 95). De tal modo, o conhecimento jurídico seria voltado unicamente ao direito, o qual não admitiria influências interdisciplinares, tais como da sociologia, da ética e da teoria políticos, visto que seriam fatores exteriores e, portanto, a ele estranhos. Importante ressaltar que o núcleo teórico da dogmática jurídica existente na época da elaboração da Teoria Pura do Direito era carregado de significações produzidas pelo Direito Natural, ideologicamente destinadas a legitimar um determinado ordenamento 11 58 Importante mencionar que a noção de Warat é trabalhada, de diferentes formas, por vários outros autores, entre eles Tércio Sampaio Ferraz (astúcia da razão dogmática) e Pierre Bordieu (habitus). A "astúcia da razão dogmática" de Ferraz, como resume Lênio Streck, constitui "um deslocamento ideológico-discursivo", no qual "os problemas do universo fenomênico são catapultados para o mundo das abstrações/idealizações". Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S jurídico, o que, na visão de Kelsen, impediria a construção de uma ciência jurídica comprometida com a verdade. Para superar essa realidade, Kelsen, utilizando-se dos critérios do positivismo científico, estabeleceu um novo paradigma refratário a essas "influências ideológicas produzidas pelo núcleo teórico da dogmática jurídica norteado pelo Direito Natural" (MINGHELLI, 2001, p. 96), construindo uma teoria que "exclui de seu objeto toda ideologia e prática política, qualquer contribuição proveniente da filosofia da justiça, da moral, da religião e, ainda, crenças, princípios e categorias que regulam a constituição das ciências causais, como também as pseudo-categorias do pensamento jurídico-clássico" (WARAT, 1995, p. 157). Entendia Kelsen que a tradição do Direito Natural, por adotar a ideia de justiça como fundamento de validade do direito positivado, possuía uma proposta ideológica de fundamentação metafísica e política do critério de validade, razão pela qual, rompendo com essa tradição, buscou produzir um fundamento de validade objetivo, uma norma fundamental gnoseológica, com a qual seria possível a superação dos apelos de fundamentação metafísica e valorativa. Assim, consoante a teoria de Kelsen, "um determinado ordenamento jurídico terá como fundamento último de validade objetiva a sua conformidade com a norma hipotética e fundamental da ordem jurídica" (1995, p. 157), tendo como resultado que a validade de todo o ordenamento jurídico funda-se em si próprio. A crítica de Warat aponta que o princípio da pureza metodológica, utilizado por Kelsen, criou uma falsa e perigosa ilusão de objetividade, exatidão e imparcialidade do discurso jurídico produzido, uma vez que a dogmática jurídica realizou um processo de recuperação ideológica da Teoria Pura do Direito, ou seja, aquela, por meio de mecanismos de argumentação, segundo o entendimento de Warat, redefiniu os sentidos críticos, Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 59 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S readaptando-os, novamente, à função de representação ideológica dos discursos tradicionais (1995, p. 161). A apropriação institucional dos conceitos, segundo Warat, terminou por retirar das "categorias pertencentes às matrizes kelsenianas", "através de lentos mecanismos redefinitórios", todas as suas "singularidades teóricas", fundindo "os conceitos kelsenianos às representações jusnaturalistas", bem como aos "princípios liberais, aspirações transcendentais, fenomenológicas, neopositivistas e até, em muitos casos, com um Hegel inconsciente e estereotipadamente assimilado" (2004, p. 33)12. O pensamento de Kelsen, na visão de Minghelli (2001, p. 98), não só limita a compreensão do fenômeno jurídico "como também encobre a função social da ciência jurídica negando a relação da influência existente entre o processo de produção de significações produzidas pelos órgãos institucionais politicamente determinados e o processo de produção de significações da Ciência do Direito determinado de maneira objetiva e neutra". O mito da neutralidade científica, conforme Minghelli (2001, p. 98), escondendo a relação existente entre a ciência e a política, "obscurece e camufla as teorias sociais e políticas, facilitando a sua inserção e cristalização no domínio da ciência dominante". Ciente dessa realidade, Warat afirma que uma Ciência do Direito verdadeiramente crítica deve revelar qual a sua função social, entendendo-a como "um sistema institucionalizado de produção, consumo, distribuição e censura do saber jurídico influenciado pelas relações com a sociedade global, sendo que estas relações devem ser exteriorizadas" (MINGHELLI, 2001, p. 98). Como resultado da recuperação ideológica da Teoria Pura do 12 60 Como exemplo, Warat aponta que "o sentido conceitual da identidade kelseniana, entre Direito e Estado, é convertido em uma fórmula estereotipada que conota o caráter ético do Estado, impedindo, aparentemente, de agir fora da imaculada gaiola das normas positivas" (2004, p. 32) Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S Direito - pedra fundamental, mas não exclusiva do positivismo jurídico -, e do senso comum teórico resultante, o operador do direito é posto diante de uma realidade de significações não sujeita a críticas e que terminam por conduzir e condicionar o seu processo de conhecimento, transformando-o em mero repetidor dos conhecimentos ideologicamente reconhecidos como válidos e impedindo-o de conhecer os pressupostos lógico-epistemológicos desses conhecimentos, ou seja, do fenômeno jurídico em sua integralidade. Assim, a dogmática jurídica de viés positivista adquire caráter autorreplicante. Os estudos de Warat contribuem, de forma fundamental, para a compreensão dos mecanismos ideológicos atuantes no mito de neutralidade e objetividade da dogmática jurídica tradicional (positivista), revelando "as ideologias e as contradições de um sistema que não acompanha a realidade social" (MINGHELLI, 2001, p. 104). 4 Razão Cínica e Identificação Imaginária É neste ponto que se pretender realizar, efetivamente, a articulação de saberes, apontando o papel da identificação imaginária como forma de proliferação de valores ideológicos, associado ao equívoco dos operadores do direito de não reconhecerem o caráter ideológico da dogmática jurídica, criando ambiente propício a que o discurso cínico seja recebido e assumido como socialmente justificado. Os operadores do Direito provenientes de um sistema de ensino voltado à mera replicação do conhecimento já produzido - alienado de seu caráter ideológico -, sem maiores preocupações quanto ao desenvolvimento de novos conhecimentos, não possuem as condições para a devida Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 61 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S compreensão do fenômeno social, sendo impossível a estes reconhecer, por exemplo, que as relações na nossa sociedade contemporânea são ditadas, como afirma Antônio Mendonça, por um "signo da impostura perversa", ou seja, por um imaginário coletivo dominado pela "razão cínica" e por uma "identificação imaginária a essa razão cínica". A noção de "razão cínica" foi estabelecida por Peter Sloterdijk13, sendo posteriormente incorporada pelo psicanalista Slajov Zizek à psicanálise contemporânea, especificamente no estudo do campo lacaneano do gozo (a "razão cínica" seria o "gozo perverso da sociedade contemporânea"). O seu conceito possui conteúdo oposto ao do "kynisme" grego, caracterizado este pela "apropriação cínica que as pessoas que estão em desacordo com determinada ordem social" (MENDONÇA, 1999) fazem da ideologia oficial, podendo ser apresentados como maiores exemplos, no âmbito nacional, a obra de Machado de Assis e "Macunaíma" de Mário de Andrade, repletas de críticas corrosivas, irônicas, parodísticas e desconstituidoras da ideologia oficial. Seria a razão cínica, portanto, diferentemente do cinismo auto-defensivo, a "hipocrisia, a impostura exposta na forma sublime do 'bom-mocismo' pela ideologia oficial, que, então, dissimula o seu caráter perverso" (MENDONÇA, 1999). A obra "Crítica da razão cínica", de Sloterdijk, como aponta Mendonça, faz uma crítica da ideologia por meio de uma paródia à "Crítica da razão prática", de Kant ! que propõe uma teoria moral de uma sociedade idealizada, pautada pela razão e pela liberdade, apontando que a razão cínica seria uma característica cultural marcante da sociedade pós-moderna. O autor transforma a sentença teológica do livre arbítrio cristão ("Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem"), e a célebre frase de Karl Marx ("Disso eles não 13 62 A expressão foi inicialmente utilizada em sua obra Kritik de Zynischen Vernunft, publicada em 1983, ainda inédita no Brasil. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S sabem, mas o fazem"14), na elocução "eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem", denunciando que, frequentemente, a elite ! considerada em seu aspecto mais abrangente adota uma ideologia de conveniência, supostamente humanista e libertária, para praticar atos de tirania e perversão, ou seja, em nome da realização do bem-estar coletivo é realizado, em verdade, ato cujos resultados não correspondem a essa pretensa finalidade. A ideologia, para a razão cínica, desempenharia um papel eminentemente dissimulador e deformante das relações sociais. Sloterdijk estabeleceu, em sua teoria, o modo de funcionamento da razão cínica, enquanto que Zizek identificou esse comportamento distorcido, dentro de um ponto de vista psicanalítico, na ordem da perversão, no sentido de constituir uma impostura, uma manipulação agressiva, embora dissimulada, com desrespeito a todo e qualquer fundamento ético, alcançando limites preocupantes, quando patrocinada pelo modo de organização do sistema social. Zizek, com fundamento nas reflexões de Freud na "Psicologia das Massas e Análise do Ego", bem como em Lacan, examina a identificação egoica da sociedade à razão cínica, diante de uma manipulação performática, frequentemente governamental, realizada por meio da mídia, das identificações simbólicas da sociedade, ocasionando distorções em suas percepções valorativas. Assim, na sociedade pósmoderna, as grandes narrativas de legitimação, interpretantes da sociedade, entraram em decadência, sendo superadas por uma cultura do "show business", em que a mídia exerce uma função estratégica, passando a interpretar o mundo por meio de "personalidades atraentes", conferindo à 15 massa o papel de "maioria silenciosa" . Para a sociedade do espetáculo, o que 14 "Sie wissen das nicht, aber sie tun es.” As grandes narrativas de legitimação emancipatória, em especial o marxismo, procuravam interpretar o mundo e, então, modificá-lo, o que é afastado pela "performance" da razão cínica, que procura desacreditar e desatualizar tais narrativas, substituindo-as por uma cultura banalizada, em que ocorre, igualmente, a banalização da violência e da sexualidade. 15 63 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S importa é a performance e o espetáculo na mídia e não o conteúdo da mensagem. O que ganha relevo é o reconhecimento identificatório, em que o indivíduo se identifica, imageticamente, por semelhança egoica, com a "imagem" apresentada, independentemente dos valores a ela subjacentes, num culto à banalização da cultura. A violência, p. ex., é vista, pela mídia, como apelo ao sensacional, transformando-se em uma mercadoria a ser explorada, face ao seu caráter performático. Estamos diante de um "cenário de engaiolamento das possibilidades de reinvenção política e cultural numa sociedade dominada pelo mercado livre" (MENDONÇA, 1999), decorrente de uma suposta inevitabilidade da história, tese já defendida pelo discurso neoliberal e subliminarmente difundida pela mídia mundial. De tal forma, os limites de indignação restam limitados por uma comunicação uniformizada e dominada por uma lógica orientada pela razão cínica e, como leciona Flávio Bertelli, "onde não há espaço para existir uma tensão que possa dialetizar uma relação na prática, fica o supereu, reinando sozinho, e onde o supereu reina, o sujeito se avassala", tendo em vista que a dita sabedoria cínica é fundada na negação da negação pervertida. Bertelli propõe uma complementação à frase de Sloterdijk que, a seu juízo, deveria ser: "eles sabem muito bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas eles, mesmo assim, continuam a fazê-lo".Arazão cínica, assim, não é fruto da ignorância, mas sim do conhecimento, de um conhecimento voltado a uma determinada finalidade de natureza "gananciosa", revelante do caráter eminentemente hobbesiano da natureza humana, em que é ressaltado um profundo desprezo pela condição humana. A ilusão, a fantasia ideológica preconizada pela razão cínica procura "estruturar", ao seu sabor, a realidade social, de forma que precisamos encontrar formas superiores de indignação 64 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S que superem a lógica do cinismo e que reinventem a utopia. Forçoso, no entanto, reconhecer, infelizmente, que, apesar de vivermos sob a égide de um Estado de Direito, supostamente garantidor e promotor do pleno desenvolvimento e exercício dos direitos fundamentais do cidadão, nosso dia-a-dia é povoado por uma retórica - quando não demagógica inconscientemente fundada em uma identificação imaginária com valores, mitos, representações e crenças que, em realidade, negam um verdadeiro conceito de cidadania. 5 Conclusões Na medida em que a moderna sociedade do espetáculo padroniza, de forma unilateral, quais valores devem ser seguidos por todos os substratos da sociedade, e que a ausência de uma reflexão mais aprofundada impede o desvelamento do caráter alienante desses valores, mascaradores de uma falsa consciência, cinicamente construída (frequentemente), não haveria de ocorrer de forma diversa quanto aos operadores do direito, os quais, enquanto membros dessa mesma sociedade alienada, são igualmente influenciados pelo discurso científico, supostamente não-ideológico, sendo assim inconscientemente controlados por pré-concepções que terminam por impedir uma compreensão efetiva do real - da apropriação institucional dos conceitos pelo discurso da Ciência do Direito, alegadamente neutro e puro -, conduzindo, assim, à (re)produção de um discurso jurídico ideologicamente vinculado a esses valores cinicamente transmitidos. Na medida em que esses valores são incorporados à mente humana pelo processo de identificação imaginária ou egoica - que faz paralelo com conceito de "apropriação institucional dos conceitos" de Warat -, não se pode afastar a decorrência de Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 65 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S que essa dimensão mistificadora, por meio de condicionantes interpretativos, impede a construção de um raciocínio jurídico efetivamente vinculado aos valores estabelecidos pela Constituição, mas a valorações intermediadas por meio de processos de construção significativas, ideologicamente estabelecidos. Warat (2004, p. 33) propõe uma metodologia reflexiva de superação do "senso comum teórico" pela seguinte análise epistemológica: a) "através de uma reflexão sobre a relação do sistema de conotação com a prática jurídica", e b) "através de uma leitura preocupada com a explicitação das funções sociais do saber jurídico". Seria, para tal, fundamental a substituição do "egocentrismo textual" - compreensão de que as normas jurídicas seriam determinantes plenas do sentido normativo - pelo "princípio da heteronímia significativa", com a leitura crítica do direito que viabilize a consequente explicitação das "funções sociais do saber jurídico", ou seja, para a efetiva "compreensão do papel efetivo do direito e do seu conhecimento na sociedade". Voltando ao título do presente trabalho, este se justifica, no âmbito de uma análise transdisciplinar, na compreensão de que o senso comum teórico definido por Warat encontra um suporte "subterrâneo" - e sua fonte replicadora - no processo de acobertamento ideológico realizado pela dinâmica da identificação imaginária, que, falsamente, confere caráter nãoideológico a um discurso jurídico comprometido com valores uniformizados pela sociedade do espetáculo, pretensamente refreadora do caráter dialético do desenvolvimento humano. O professor Albano Pepe, ao se referir a um "subterrâneo do senso comum teórico", não fazia menção a uma interação psicanalítica, tal como propõe Zizek sobre a crítica de Sloterdijk, mas à percepção de que deveria existir um mecanismo replicador – de recuperação ideológica - pelo qual o senso comum era reiteradamente adotado, ao longo 66 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S do tempo. O discurso cínico conceituado por Sloterdijk não tem o poder, isoladamente, de produzir tal efeito replicador, sendo necessária a interferência de uma outra instância - metajurídica -, a qual permite a infestação do racional por esse discurso, qual seja a identificação imaginária. Essa é a percepção inovadora que o pensamento complexo permite construir. Temos, assim, que superar o paradigma de uma metodologia clássica do ensino jurídico, propondo sua revolução, por meio de uma metodologia voltada à formação transdisciplinar do operador do direito, permitindo que o fenômeno jurídico seja examinado diante de outros saberes, dando espaço à criação de novas percepções, inviáveis hoje diante das limitações da ciência do direito. Não se pode deixar de referir, ao perscrutar sobre o pensamento crítico do Direito e a necessidade de construção de uma nova epistemologia jurídica, a importância dos estudos desenvolvidos por Lênio Streck, em especial as obras "Verdade e Consenso" e "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise", bem como a recente "O que é isto – decido conforme minha consciência?". Streck, por exemplo, sinteticamente, na última obra mencionada, por meio de percepções diversas, extremamente sofisticadas e originais, expõe a permanência da influência do positivismo jurídico no imaginário dos operadores dando origem esta a uma mecânica onde a discricionariedade positivista, risco de solapar nossa ainda iniciante democracia. Podemos aduzir, a partir de Warat, que o senso comum teórico dos juristas, por seu "processo de apropriação institucional dos conceitos", constitui em um dos suportes fundamentais do hoje preocupante ativismo judicial, eminentemente arbitrário e antidemocrático, razão pela qual deve ser superado. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 67 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S Ad ultimum, a questão central do presente estudo foi a de salientar a inarredável necessidade de ser adotada uma reflexão crítica, desalienante do caráter intrinsecamente ideológico do saber jurídico institucionalmente sacralizado, aparentemente purificado pela Ciência do Direito, uma vez que os processos, anteriormente explicitados, de recuperação institucional do positivismo jurídico e de identificação imaginária à razão cínica, permitem o estabelecimento de manipulações significativas, no campo do Direito, pelas estruturas de poder, compreendido este termo em seu espectro mais abrangente. REFERÊNCIAS BERTELLI, Flávio Eustáquio. Eu não falei? PsicoMundo Argentina, fevereiro 2002. Disponível em: <http://www.psicomundo.com /argentina/asanblea/comentarios/falei.htm>. Acesso em: 16 jun. 2004. BORBA, Michele Brás. 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Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 69 O S S U B T E R R  N E O S D O S E N S O C O M U M T E Ó R I C O D O S J U R I S TA S ______. O que é isso: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2010. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: epistemologia jurídica da modernidade. PortoAlegre: SérgioAntonio Fabris Editor, 1995. ______. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei: temas para uma reformulação. PortoAlegre: SérgioAntonio Fabris Editor, 1994. ______. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese, 1979. ______. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: EPISTEMOLOGIA e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. P. 27-34. 70 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 41-70, 2010 CIDADANIA PROCEDIMENTAL: A IDEALIZAÇÃO HABERMASIANA NO EXERCÍCIO LEGISLATIVO Carolina Salbego Lisowski1 Santiago Artur Berger Sito2 RESUMO O presente artigo propõe uma investigação acerca da importância e dos desdobramentos do conceito de cidadania no seio da teoria habermasiana discursiva de direito procedimental. A tentativa de resgatar tal conceito perpassa por um duto maior: o remontar próprio da ciência jurídica, em sua totalidade, regatando-se parte a parte de contextos contingentes. Ao cabo, este estudo não fica restrito ao fazer jurídico, tendo em vista que o sistema social complexo, policontextural, acabam por atingir também, e de forma especial, as práticas legislativas. Compreender como a cidadania foi concebida e sua importância para absorver o que é, como funciona e quem exerce o direito é crucial. Poder e soberania tornam-se contrapontos a serem postos de frente com a cidadania, a fim de que se possa compreender os desafios não só do judiciário como também do legislativo, ambos atuando em tempos de globalização. Palavras-chave: Cidadania. Legislativo. Habermas. ABSTRACT This article proposes a research about the importance and ramifications of the concept of citizenship within the Habermas's discursive theory of procedural law. The attempt to rescue such a concept exists within a larger study: the reconstructing of Law science, in its entirety, saving its parts of the contingent contexts. Although this study is not restricted to the legal aspect, since the complex social system, policontextural, achieving also, specially, the legislative practice. To understand how citizenship was conceived and its importance to absorb what, how and who exercises the right is crucial. Power and sovereignty become counterpoints to be put in front to citizenship so that we can understand the challenge not only the judiciary but the legislature, acting both in times of globalization. Keywords: Citizenship. Legislature. Habermas. 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria.Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano. 2 Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano e do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 71 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A 1 Introdução Jürgen Habermas ocupou-se extensivamente em construir uma teoria discursiva para resgatar, pós 2ª Guerra Mundial, os destroços da razão que provaram não sustentar a segurança de um sistema político normativo. Em sua teoria, os direitos subjetivos e a elaboração legislativa ocupam um local de destaque, pois delimitam a liberdade subjetiva que desenha o papel do cidadão dentro do sistema de direitos moderno. Visando a reconstruir esse caminho (da liberdade subjetiva), Habermas traz o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão3, in verbis: "IV - Alei é a expressão livre e solene da vontade geral; ela é a mesma para todos, quer proteja, quer castigue; ela só pode ordenar o que é justo e útil à sociedade; ela só pode proibir o que lhe é prejudicial."4. [sem grifos nos originais] Percebe-se o quanto este artigo da Declaração tem conexão com a ideia kantiana de princípio geral do direito. A liberdade de um sujeito é garantida até onde não prejudique a liberdade coletiva circundante. John Rawls, em seu primeiro princípio da justiça, estatui que: "[. . .] todos devem ter o mesmo direito ao sistema mais abrangente possível de iguais liberdades fundamentais"5. O conceito de lei vem ao encontro de tal aspecto, eis que exterioriza características como generalidade e abstração. 3 Trata-se de documento carregado de profunda carga axiológica. Representa, sinteticamente, a luta empreendida pelo terceiro estado francês, pela igualdade solapada da massa social, que pesadamente sustentou o clero e a nobreza num contexto de extrema desigualdade prérevolução francesa, datada de 26 de agosto de 1789. 4 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/ anthist/dec1793.htmAcesso em: 28/03/2008, às 17h. 5 RAWLS, John apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 114. 72 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A 2ACidadania e a Formulação das Leis: o sujeito autor-destinatário Um círculo envolve essa sistemática paradoxalmente: o mesmo sujeito de direito que goza de liberdade conforme a lei é o responsável pelo exercício de seu poder de soberania popular, ao produzir a lei. Deste ponto de vista se explica a legitimidade pela legalidade. O direito só é legítimo quando produzido legalmente (ou seja, dentro dos trâmites procedimentais delineados pela lei) e só há produção de leis se oriundas de uma iniciativa (popular) legítima (direitos políticos). Habermas ressalta que o processo legislativo precisa desse componente democrático acentuado até a última instância para a formação de um composto legal fruto de um entendimento dos sujeitos acerca de sua convivência. É neste instante, então, que se pode traçar as primeiras linhas do desafio do exercício legislativo demandado em frente à complexa sociedade que se apresenta. Imperioso, nesse instante, voltar-se atenção ao que se tem sobre cidadania. Expõe José Murilo de Carvalho6, citando Bryan S. Turner, que existem diferenças nas formas de constituição e na aquisição, por assim dizer, de cidadania, sendo que, inicialmente, podem-se apontar dois eixos, os quais, posteriormente, sub-rogam-se em quatro tipos distintos de cidadania. A existência de dois eixos justifica-se, uma vez que representam naturezas distintas de formação da condição cidadã, sendo uma "de baixo para cima e outra de cima para baixo"7, ambas as direções tendo em vista o sentido em que as opera essa constituição: de baixo para cima refere-se a uma cidadania marcada por lutas populares, a fim de conquista e estabelecimento de um Estado Democrático de Direito. Já a cidadania que se constrói no 6 TURNER, Bryan, apud CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: Tipos e Percursos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996. p. 1. 7 CARVALHO, 1996, op. cit., p. 1. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 73 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A sentido oposto, por sua vez, mantém relação com a dicotomia entre público e privado, viés esse a que Habermas alude quando aborda a um espaço do fazer legítimo. Sobre esse sentido de construção, bem explana Carvalho: A cidadania pode ser adquirida dentro do espaço público, mediante a conquista do Estado, ou dentro do espaço privado, mediante a afirmação dos direitos individuais, em parte, sustentados por organizações 8 voluntárias que constituem barreiras à ação do Estado . Expostas essas primeiras possibilidades para identificar a origem da cidadania, além, por óbvio, das características idiossincráticas a cada formulação, o autor apresenta a segunda partição, a qual advém dos dois eixos, mas que origina quatro diferentes concepções de cidadania, as quais podem ser conquistadas: a) de forma ascendente, de baixo para cima, no espaço público; b) no mesmo sentido, porém dentro da esfera privada; c) a contrário senso, no sentido de cima para baixo, no espaço público, e como exemplo bastante claro, nessa concepção, a ideia de universalização dos direitos; d) por fim, de forma descendente, no espaço privado, estabelecida por meio de uma lealdade recíproca entre Estado e cidadão. Mais interessante que se tentar configurar, especificamente, a forma de cada uma dessas cidadanias é, justamente, perceber o quão amorfa e, por isso, complexa - de ser compreendida dentro de um aspecto estático e definitivo. Percebe-se, a partir dessas definições, que delimitar cidadania apenas como a "qualidade de um sujeito dotado de direitos políticos e sociais" obsta, em grande parte, a carga que "ser cidadão" tem em si. A cada forma e processo de constituição, a cidadania constrói-se de maneira particular e carrega consigo toda a carga ideológica que a fez emergir, a qual, em nenhum momento, pode ser desconsiderada. 8 74 CARVALHO, 1996, op. cit., p. 1. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A Como já citado, interessa-se Habermas pela constante conexão entre autonomia privada e pública e a relação do sujeito com o fazer público legislativo, especialmente. Mesmo ao tratar do direito subjetivo do cidadão, o filósofo alemão trata de recordar como Savigny conceituara autonomia privada: "o poder que compete à pessoa singular: uma região onde domina a sua vontade – e domina com nosso consentimento"9. A autorização coletiva para um sujeito usufruir sua liberdade é uma componente da autonomia pública na autonomia privada, no sentido de autorização. Só em Kelsen que direito subjetivo em geral tornou-se alvo de proteção pleno, garantindo ao sujeito a faculdade de exercê-lo. Mesmo após a 2ª Guerra Mundial, com a queda da "confiabilidade" do direito estritamente liberal, as conotações entre autonomia privada e moral não se sustentaram. O liberalismo rejuvenesceu e recupera espaço nas construções estatais, tornando-se pano de fundo de uma capitalização vociferante da realidade econômica mundial. O direito subjetivo foi "desfigurado por um modo de ler individualista"10, esquecendo-se do suporte que o reconhecimento social dá ao indivíduo. São esses direitos que os indivíduos atribuem-se reciprocamente chamados de direito objetivo (autonomia pública). Com vistas ao direito objetivo, Habermas passa a tentar legitimar o direito positivo, ou seja, aquele produzido via procedimentos democráticos de produção de leis. A democracia do procedimento, por sua vez, resgata sua legitimidade na soberania do povo. As primeiras considerações partem da doutrina kantiana do direito. Kant enumera três princípios (da moral, do direito e da democracia – que 9 SAVIGNY, Friedrich Carl Von apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. V I. P. 116. 10 HABERMAS, Jürgen. 2003, op. cit., V.1, p. 120. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 75 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A chama de modo de governo republicano) que Habermas compreende em um só, qual seja, o da autolegislação. Esse conceito, explica Habermas, é uma reação à frustrada tentativa de Hobbes em esquematizar um contexto jurídico legitimado subjetivamente. Frustrada, porque Hobbes, ao desenhar o estado de natureza e engendrar o contrato (instrumento burguês-liberal) social como forma de ceder parcela da liberdade subjetiva a um escolhido, falhou em perceber que as posturas determinantes de tais atitudes dos partidos envolvidos eram orientadas pelo sucesso e não pelo entendimento. 3Alteridade e Reciprocidade: cidadania reconstrutiva Essa troca de lógica empurra Habermas a prescrever as únicas condições pelas quais é necessário passar para se atingir uma cooperação protegida, de fato. A primeira trata da reciprocidade. Os sujeitos precisariam compreender o que seja " assumir a perspectiva de um outro e a considerar-se a si mesmos na perspectiva de uma segunda pessoa"11, ou seja, a condição de alternância do sujeito em seus papéis enunciativos de sentido. Trata-se, no reconhecimento de si, de constituir-se enquanto sujeito por meio da alteridade. Em segundo lugar, os contratos deveriam poder ser parciais, fechados entre sujeitos e partidos, para estes, num segundo momento, repassar liberalidades naturais. Kant compreendeu, desta caminhada hobbesiana, que os direitos subjetivos não poderiam buscar na construção burguês-liberal um ideal de fundamentação. A chave do assunto residiria no contrato. Falando sobre a soberania, Kant afirmou: "Aqui, porém, não é possível o ato volitivo de nenhuma outra vontade a não ser a de todo o povo 11 76 HABERMAS, Jürgen. 2003, op. cit., v.1, p. 124. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A (uma vez que todos determinam sobre todos e, portanto, cada um determina sobre si mesmo): pois ninguém pode ser injusto consigo mesmo."12 A fundamentação de um direito moderno, atualmente, requer discursos mais eficazes e concretos, como os direitos humanos e a soberania popular. Habermas concebeu-os separadamente, dentro de suas particularidades. Kant e Rousseau procuraram compreender um modo que a teoria moral-cognitiva dos direitos humanos e a teoria ético-voluntária da soberania popular "se interpretassem mutuamente"13. Kant, mais pelo lado liberal dos direitos humanos, enquanto Rousseau, mais pelo lado republicano, da soberania popular. Habermas aproxima os conceitos da seguinte forma: o sistema jurídico precisa funcionar sob a ótica de um ordenamento preciso e bem construído, como bem já se constatou na trajetória das construções jurídicas. As leis de tal sistema exigem, no seu processo de criação, a adoção de uma sistemática procedimental democrática, para permitir que os sujeitos de direito ditem, conforme suas ações orientadas pelo entendimento recíproco de algo no mundo, o conteúdo normativo e figurem livremente deste como autores (exercício liberal de usufruto da soberania popular). Já os direitos humanos podem ser vastamente pesquisados e entendidos como substrato informador do conteúdo jurídico destas produções democrático-soberanas. Só assim a mutualidade das interpretações será ainda possível. Com o emprego de faculdades é que se transformarão comunidades inteiras de pessoas em autênticos cidadãos exemplarmente considerados. Esse é o princípio aglutinado da autolegislação. O cerne do princípio reside no "conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é 12 13 KANT, I. apud HABERMAS, 2003. loc. cit., p. 127. HABERMAS, 2003. loc. cit., p. 134. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 77 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade, e não através de leis gerais."14 Compreender os destinatários dos direitos os próprios autores é a ideia chave deste ponto. É nesse ponto, então, que já se pode apontar que não basta uma representação simbólica, em uma democracia que também se torna simbólica. E isso acontece se a reduzirmos somente ao direito ao voto. Muito mais do quer poder votar – o que, sem dúvida, representa a coroação do estado democrático – a democracia, pensada a partir dessa concepção de autotutela, impõe ao poder legislativo o dever de garantir aos cidadãos o verdadeiro direito à participação e a criação normativa. Para tanto, Habermas afirma que "são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais"15 [sem grifos nos originais]. Quando emprega a palavra válidas, o filósofo alemão pretende legitimar a norma jurídica construída num contexto participativodemocrático. Só tal premissa consegue debruçar sobre a norma a presente qualidade. Essa validade justifica a imposição e as coerções na desobediência. Se tal validade não estivesse presente, inócua seria a norma construída sem a devida carga democrático-legislativa. Essa norma se dirige a determinados sujeitos que fazem parte de uma comunidade jurídica que Habermas já delimitou como destinatários e são, portanto, aqueles que serão atingidos direta e indiretamente pela aplicação judicial e social da norma. É nesse sentido, então, que se coadunam legislativo e judiciário, aquele garantindo a participação dos tutelados na criação legislativa, e este, reconhecendo ou não a legitimidade da norma em cada caso concreto. 14 15 78 HABERMAS, 2003. op. cit., p. 137. Idem, p. 142. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A Na função de reguladora das relações intersubjetivas, a norma atinge, imparcialmente, sujeitos de direitos que precisam obedecer. Precisam porque o codex institucionalizado desenha sanções, diferente do codex moral não institucionalizado. O discurso racional é momento do agir comunicativo e da atuação dos atores, como bem se refere Habermas, do ato de constituir legitimamente. Do somatório de sujeitos imbricados em discursos orientados pelo entendimento, diante de posturas participativas, a comunicação atinge seu ápice, acolhendo e distribuindo contribuições, informações e argumentos, sempre simetricamente16. Nesse mesmo sentido, Carvalho lança luzes sobre o que seria essa relação indispensável entre Estado e cidadão, na qual este agiria como a pedra de toque à efetiva atuação daquele. Segundo o autor, "estadania" é a expressão que, exatamente, nomeia essa interligação, uma vez que se refere à "afirmação cívica da cidadania"17, ou seja, considera a cidadania junto ao estado e não apenas em face ao sujeito que, supostamente, a possua. 16 Tal aspecto merece maior atenção. A simetria exige que o contexto comunicativo considere os sujeitos de direitos igualmente. Proposições emitidas por sujeitos precisam ser admitidas, consideradas, contraditadas e utilizadas em igualdade. Caso contrário haveria justificada iminência de instabilidade pela errônea distribuição da atenção coletiva. Os pressupostos do agir comunicativo, dessa forma, impulsionam os sujeitos a serem considerados simetricamente. Este termo posiciona no centro da discussão os parâmetros do entendimento, impedindo que venham a pender para qualquer dos posicionamentos polarizados. A simples possibilidade de permitir um posicionamento parcial esvazia o agir comunicativo de credibilidade, depreciando sua legitimidade como instância reguladora da ação humana (em última instância, da ação social). Tanto Rawls como Savigny são exemplos dessa simetria quando afirmam que é direito de todos iguais liberdades subjetivas. 17 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. P.225 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 79 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A 4 Possibilidades deAção em Face ao Proposto Enfim, como instrumentalizar essa produção válida de normas de ação nos contextos de sociedades complexas? A resposta habermasiana caminha no princípio da democracia. Habermas entende que o princípio da democracia "destina-se a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito"18. Termos, nesse momento, a volta de autolegislação, agir comunicativo e validade para explicar o porquê do princípio da democracia. Tal princípio não fundamenta ações subjetivas e, por tal razão, tem um caráter muito mais formal do que material. Ou melhor: sua materialidade consiste em desenhar formalidades. A democracia é tida como uma componente crucial de auto-organização de uma comunidade que pretende ter como válido o objeto legislado. As responsabilidades do princípio democrático são: garantir aos sujeitos de direito sua efetiva participação, garantir a simetria das contribuições sem distinção alguma, garantir contextos comunicativos capazes de permitir a extensiva utilização da razão comunicacional coletiva e orientar a produção do próprio direito19, dentro de contextos dialógicos. Habermas ressalta um aspecto de agir: ele precisa ser livre e partir da vontade desinteressada do sujeito de direito. Apoiado em Klaus Günther, o filósofo alemão faz uso do conceito de "liberdade comunicativa", ou seja, a liberdade de posicionar-se ante os proferimentos que levantam pretensões de validade lançados nos discursos por sujeitos considerados "adversários". No verso dessa liberdade reside o dever do singular que levantou o argumento a 18 19 80 HABERMAS, 2003. op. cit., p. 145. A última função merece comentário. O princípio da democracia, além de garantir contextos de utilização e exercício do agir comunicativo, precisa determinar os rumos e caminhos do direito. Habermas menciona que não basta a democracia garantir acesso e institucionalizar opiniões. Ela precisa proporcionar a forma que as regras jurídicas adotarão, em face dos contextos modificativos da atualidade. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A necessidade de produzir um discurso plausível de justificação e de defesa argumentativa de sua pretensão de validade. Nesta senda, Habermas sepulta o egoísmo originário que Kant dissimulou no princípio da democracia. Mesmo que o sujeito de direito não vislumbre teleologicamente resultado favorável à sua pessoa, em uma decisão moldada comunicativamente, ele pode simplesmente concordar. A racionalidade que o procedimento evoca é capaz de congregar até o agir orientado pelo sucesso (individual), pois verifica num médio ou longo prazo um entendimento comunicacional (sucesso coletivo). Ou seja, a liberdade comunicativa permite que os sujeitos venham a se excluir do processo, mesmo sem justificar-se, simplesmente pelo fato de não acreditarem na sistemática da divisão social do trabalho. Ela carrega o direito à indiferença20. Estabelece-se, aqui, uma situação em que o silêncio constitui sentidos outros que não o desconhecimento, por exemplo. Não se pode pensar, nesse caso, que "quem cala consente". O indivíduo tem ainda o direito de renunciar a essa liberdade, em face à discricionariedade individual que possui. Na retomada do princípio do discurso, Habermas explica que direito e princípio da democracia só restam separados momentaneamente. Da mixagem entre princípio do discurso e liberdades subjetivas surge a forma jurídica contemporânea, a qual, institucionalizada, produz o princípio da democracia. Os conceitos de forma jurídica (não-institucionalizada) e princípio do discurso (substrato da forma jurídica) constroem a base 20 Deste direito à indiferença tratou José Joaquim Gomes Canotilho em seu "Brancosos" e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Nesta obra comenta a legitimidade dos atos daqueles sujeitos que usufruem seu direito político do voto depositando na urna uma cédula completamente em branco (por isso chamado de "partido dos brancosos"). Seja pela descrença, pela falta de opção, ou qualquer outro motivo, o eleitor tem o direito de abster-se de contribuir e tal direito considera-se legítimo. Essa liberalidade é justamente um exemplo da liberdade comunicativa que Günther e Habermas tratam. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 81 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A semântica de qualquer ordem jurídica que se considera legítima. Para Habermas, esta mistura produz três categorias de direitos: 1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; 2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros de direito; 3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual.21 O primeiro tem influência de Savigny e Rawls, como já elucidado. Todos os sujeitos devem possuir a maior liberdade individual possível, desde que seja igual para todos. Essa premissa guarda relação com a simetria dos participantes do agir comunicativo que orienta os processos de autolegislação em uma comunidade de sujeitos agregados voluntariamente, autores destinatários e destinatários autores. O segundo tópico versa acerca desse caráter voluntário de participação dos eventos de uma determinada comunidade de direito. Não se trata de voluntarismo na estruturação, na produção ou na aplicação das normas. O caráter voluntário reside apenas na participação ou não da comunidade, ou seja, na subordinação ou não de determinado sujeito aos ditames estatuídos, aceitos e produzidos por aqueles que legitimamente impuseram à ordem da forma com a qual se apresenta. O sujeito precisa de um direito à autoexoneração, do contrário é ferido em sua autonomia de cidadão. Sendo manifestamente contrário aos conteúdos cogentes do seu ordenamento local, nada pode impedir o sujeito de outro local procurar. A 21 82 HABERMAS, 2003, op.cit., p. 159. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A vida em sociedade exige do sujeito a aceitação de parâmetros e medidas e, caso configure-se nisso um descompasso, este não pode ser fator de sofrimento e sim de reflexão. O terceiro direito diz respeito aos direitos fundamentais de acesso à justiça e do devido processo legal. Desde que o estado de natureza foi abandonado e o Estado Nacional monopolizou o exercício de dizer o direito, os sujeitos precisaram lançar mão de manifestações públicas para ver seus conflitos dirimidos. O acesso à Justiça passou a ser a forma que o cidadão tem para ver sua pretensão, ao menos, apreciada. O devido processo legal é a garantia de que interesses ilegítimos não partiriam sua pretensão em exequível e impossível. Por certo, se o Estado Nacional retirou dos senhores feudais a possibilidade de dizer o direito, também precisaria manter um canal de comunicação entre partes e juiz. Essa categoria tem um cunho procedimental nítido. Percebe-se que o procedimento assume um fator mediador, diferente do que muitas vezes se pensa, que comunica instâncias afastadas pelos interesses contingentes à época. Um sujeito desprovido da atenção jurisdicional espacialmente e temporalmente é objeto de fácil manipulação e sujeição.Adominação se torna algo "corriqueiro". Verifica-se que Habermas procurou elencar os elementos sem os quais qualquer ordem jurídica é ilegítima, em qualquer condição espaçotemporal. Por exemplo: o direito da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da vida, da integridade física, da liberalidade, da escolha da profissão são todos desdobramentos do direito geral às liberdades subjetivas iguais. Da mesma forma, a proibição de extradição e de cassação de direitos políticos (dos quais se permite apenas a suspensão) é desdobramento do direito de ter um status geral de um membro de uma associação livre de Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 83 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A sujeitos de direito. Todas as garantias processuais são seguranças dos sujeitos à livre apreciação de sua pretensão manifestada em processo judicial (ex.: non bis in idem, proibição de tribunais de exceção, independência funcional do juiz, devido processo legal etc.) As três categorias desenham sujeitos determinados à autolegislação. Mesmo como destinatários das normas, precisam sentir-se autores, razão pela qual Habermas formula uma quarta categoria: "Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo."22 A quarta categoria diz respeito ao princípio da democracia. Todo cidadão precisa, voluntariamente, saber que seu direito de participar é exercitável, especialmente em condições simétricas de comunicação, ao menos em parte, para formular um ordenamento efetivamente legítimo, ou seja, mais comprometido com os ideais delineados em sociedade, conforme pretensões de validade criticáveis e, principalmente, sustentáveis em níveis de argumentação e fundamentação diferenciados. Novamente lançam-se luzes à ideia de autolegislação: destinatários como autores e autores como destinatários, e outros conceitos reaparecem para justificar contextos de agir comunicativo. Quando trata do quarto direito fundamental, Habermas desenha essa transformação de "teórico que ensina os civis a se entenderem e a se reconhecerem em seus direitos reciprocamente" para "os civis se autocompreendendo, assumindo sua autonomia através da linguagem pré23 selecionada do direito, de autores e não só de destinatários de direitos" . Neste ponto Habermas faz um interessante levantamento: ele alega que ao se 22 23 84 HABERMAS, 2003, op.cit.p. 159. HABERMAS, 2003, op.cit., p. 163-4. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A abandonarem as esferas do "eu" e do "tu", é preciso abandonar a pretensão de entender e avaliar os sujeitos de direito a partir da nossa visão. Ou seja, são os próprios sujeitos de direito que são capazes de eleger seus valores e que têm a titularidade de transformar princípio do discurso em princípio da democracia. Desde que haja racionalidade no iter, exteriorização simétrica de liberdades comunicativas e aplicação de princípio do discurso orientado pelo entendimento, haverá uma construção legítima de direitos24 por meio do legislativo. Por fim, Habermas descreve a quinta categoria de direitos: "Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados anteriormente"25. Esta categoria trata de uma busca pela igualdade material. Trata-se de pensar a sociedade como um seio solidário, disposto a ajudar os mais necessitados espontaneamente. As condições de vida passam a ser objetivo de diversos órgãos que prestam serviços de cunho filantrópico. Para permitir um uso e gozo pleno dos primeiros quatro direitos elencados anteriormente, mister se faz que os sujeitos tenham possibilidades de chegar a posições diversificadas, independentemente de limitações econômicas. As exigências taxativas das categorias anteriores produzem esse quinto termo, com ordens de caráter formal, ou preventivo, em relação aos sujeitos. 24 Embora, neste trecho não apareça a palavra "etnocentrismo", a ideia é por demais presente. Toda história da ciência antropológica foi e é no sentido de afastar-se do conceito segregador e injusto do etnocentrismo. Em termos gerais, etnocentrismo é o instrumento humano de ler/ver o outro a partir de valores próprios, ou seja, uma incapacidade de considerar o outro como um todo (homem + cultura). O conceito melhor trabalhado encontra-se em ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Col. Primeiros Passos.) Com base neste equívoco, durante anos a Antropologia produziu ideologia, e não ciência. A corrente evolucionista por muito tempo neste caminho andou. Mas foi Franz Boas que deu início ao processo de extirpação desse câncer do seio antropológico. Nasceu, neste ponto histórico, o conceito de relativismo. Habermas faz uso da ferramenta relativista, no trecho em tela. 25 HABERMAS, 2003, op.cit., p. 160. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 85 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A Habermas, contudo, reconhece que a simples teoria e a fundamentação destas categorias de direitos são incapazes de sustentar sozinhas as complexidades encobertas pelo agir orientado pelo entendimento, com posturas participativas, visando a um processo de autolegislação à luz da efetiva cidadania, seja ela como for constituída. É necessário que o componente Estado faça parte desta imbricação, para contribuir e problematizar a sistemática de democraticamente legislar de si mesmo para si mesmo. 5 Considerações Finais Poder-se-ia falar em um direito procedimental no Brasil atual sem ferir os ânimos exaltados pela luta contra o positivismo jurídico? A corrente procedimental do direito regula a facticidade da necessidade de uma "segurança jurídica" e a validade da correção jurisdicional por meio de um sistema normativo compreendido sistematicamente. Isso se deve à observância prioritária da ordem legal, eis que essa representa o ideal democrático, comunicativamente construído, em ampla construção produzida por sujeitos de direito emissores de atos de fala em certa proximidade de condições argumentativa. Daí a confusão (ou não, conforme se verá) erigida por aqueles que consideram o procedimentalismo com longa manus do positivismo. Assim, a dúvida trazida acima, de fato, justifica-se. Tanto, que Luiz Moreira afirma: No entanto, estes processos políticos de formação e institucionalização da vontade democrática dos cidadãos, livres e iguais, são necessários, mas não 86 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A suficientes para a efetivação da liberdade. A sua circunscrição nos limites da faticidade procedimental instituída pelo ordenamento jurídico pouco ou nada difere das formulações do positivismo ou do normativismo jurídico – dado que resultaria no abandono de uma instância crítica ou regulativa –, uma vez que assumiríamos, agora sim, uma posição dogmática em sentido estrito.26 Se Habermas pretendesse alongar a percepção exegéticonormativista, não teria reconstruído o direito, como sistemática interpretativa, tampouco pretenderia uma via capaz de solidificar uma certa correção jurisdicional. Simplesmente optaria pela via kelseniana de direito conforme a lei. O recorte axiológico produz uma certeza (dogmática) que mascara um resultado correto, mas que, ao menos, produz "certa" segurança jurídica. Atualmente o modelo encontra seu declínio, principalmente pelo fato de ser incapaz de produzir, efetivamente, seu desiderato justificador. Mas a ideia habermasiana não pretendeu esses trilhos. A terceira 27 via sempre foi seu objetivo, e tal pensamento fica claro no seguinte trecho: O direito formal burguês e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos mais bem-sucedidos na moderna história do direito, continuando a ser fortes concorrentes. Interpretando a política e o direito à luz da teoria do discurso, eu pretendo reforçar os contornos de um terceiro paradigma do direito, capaz de absorver os outros dois. 26 MOREIRA, Luiz. Direito, Procedimento e Racionalidade. In: MOREIRA, Luiz. (org.) Com Habermas, Contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004. p. 196. 27 Denomina-se terceira via a opção de Habermas por afastar-se, primordialmente, do paradigma liberal-burguês, por entendê-lo insuficiente para os padrões complexos e principiológicos da pós-modernidade, e também do paradigma social (comunitarista), de funções distributivas e protetivas. O Estado Liberal e o Estado Social são nítidas opções abandonadas. A terceira via (Estado Democrático de Direito) é o objetivo final. Sua implementação seria o berço perfeito para a construção e administração de todos seus conceitos e hipóteses, até aqui expostas. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 87 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A Eu parto da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do direito.28 Ou seja, Habermas reconhece e parte dessas duas paradoxais compreensões da ciência jurídica para reconstruir o direito, a partir dele mesmo. Utilizando esses pressupostos, Habermas oferta a terceira via, para regular a tensão entre a facticidade e a validade, interna e externamente ao direito. Mesmo assim, se é possível considerar o positivismo como um derradeiro fim do procedimentalismo, então é preciso compreender as limitações do próprio positivismo em si. Desse ponto em diante, aplicável a doutrina de Lenio Luiz Streck, cujo maior mérito é, sem dúvida, perceber e enumerar as razões da inaplicabilidade da teoria discursiva habermasiana (e, de forma mais ampla, a insuficiência do positivismo jurídico) no Brasil. A incapacidade brasileira de absorver a contingência teórica de Habermas se revela de muitas formas, e destas tratar-se-á a partir de agora. Que o procedimentalismo alimenta-se do dogmatismo, Habermas deixa claro, quando afirma que: esta ideia [procedimentalismo] é 'dogmática' num sentido sui generis. Pois nela se expressa uma tensão entre facticidade e validade, a qual é 'dada' através da estrutura lingüística das formas da vida sócio-culturais, as quais nós, que formamos nossa identidade em seu 29 seio, não podemos eludir. O que não resta claro é esse sentido sui generis que Habermas menciona. Até onde se pode perceber, o dogmatismo referido tem as mesmas 28 29 88 HABERMAS, 2003, op.cit., p. 242. HABERMAS, 2003, op .cit., p. 190. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A características de qualquer outro dogmatismo, ou seja, pré-determinando comportamentos e interpretações, esquivando-se da realidade delineadora de casos concretos, eis que pretensiosa ao ponto de pré-julgar os fatos, antes de compreendê-los. Para o filósofo alemão, o grande mérito de sua teoria está no fato de superar a necessidade de pré-determinação daquilo que é bom, ou ideal, para a sociedade, como faziam os paradigmas liberais e sociais. A única formalidade está na observância do procedimento para a construção de uma materialidade comprometida com a coletividade. Seu conteúdo não é o mais importante. Aliás, nem importante é30. O importante é que a tensão entre facticidade e validade resta apaziguada por um contexto estrutural linguístico, das formas de vida sócio-culturais, que permitem aos sujeitos identificarem-se com aquilo que são e com aquilo que defendem. Porém, Streck é perspicaz quando ataca o dogmatismo, pois engendra contra tal compreensão a culpa pela indeterminabilidade do direito. Os contextos normativos que pretendem a completude do ordenamento não o fazem sem recorrer às conjunturas principiológicas. Recorda-se que completude é "a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para cada caso. Tendo em vista que a ausência de uma norma costuma 31 ser chamada de 'lacuna', 'completude' significa a 'ausência de lacunas'" . Mas a suprema dificuldade de previsão de todas as ocasiões é ressaltada por Perelman: 30 Tanto é verdade que Habermas cita: "One of the distinctive features of this approach is that the outcome of the legislative process becomes secondary. What is important is whether it is deliberation – undistorted by private power – that gave rise to that outcome." In: SUNSTEIN, Cass R. apud HABERMAS, 2003, op .cit., p. 342. Tradução livre: (Uma das características desta abordagem é que o resultado do processo legislativo torna-se secundária. O importante é saber acerca da deliberação - não falseada pelo poder privado - que deu origem àquele desfecho.) 31 BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. P. 259. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 89 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A Para construir um instrumento perfeito, o sistema de direito deveria ter todas as propriedades exigidas de um sistema formal, a um só tempo completo e coerente: seria necessário que para cada situação dependente da competência do juiz houvesse uma regra de direito aplicável, que não houvesse mais que uma, e que esta regra fosse isenta de toda ambiguidade.32 Neste trecho, Perelman salienta todas as características pretensamente abarcadas pelo positivismo jurídico, quais sejam: a completude, a unidade e a coerência e Habermas, mesmo intencionado a quebrar tal barreira, nela apenas se soma. Veja-se, por exemplo, que não há como pretender construir uma nova ordem (legal) para um modelo (brasileiro) de tamanhas desigualdades sociais. Talvez o maior obstáculo à proliferação conceitual da teoria discursiva habermasiana no Brasil resida justamente nesse ponto, qual seja: sendo a democracia representativa alvo de tantas críticas33, é natural que o simples observar do procedimento legislativo não represente suficiente garantia acerca da materialidade do ordenamento, principalmente porque o contexto positivista (e seus defeitos) não seria(m) sequer abalado(s) por tal teoria. Lenio também aponta importante deficiência do positivismo neste trecho: A toda evidência, tais questões devem ser refletidas a partir da questão que está umbilicalmente ligada ao Estado Democrático de Direito, isto é, a concretização de direitos, o que implica superar a ficcionalização 32 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.33-34. 33 Especialmente trabalhadas no Capítulo 7 de: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. 90 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A provocada pelo positivismo jurídico no decorrer da história, que afastou da discussão jurídica as questões 34 concretas da sociedade. Conclui-se que positivismo e procedimentalismo não são sinônimos. São entes apartados. Mas a separação não é tão visível, é mais transparente e opaca. Exige perceptibilidade. Os juristas e legisladores do Brasil, nesse ínterim, precisam mesurar as aplicabilidades habermasianas, mas antes disso, compreendê-las. Sem dúvida, não se deixa de reconhecer a coerência da proposta trazida por Habermas e torna-se quase difícil não se filiar ao ideal da autotutela, pensando que "aquele que deve obedecer a regra também deve formulá-la". Contudo, o que obsta a aplicação da teoria habermasiana, como um todo, nas nossas condições de produção, é justamente essa ilusão de iguais condições discursivas, por exemplo, na qual deveriam situar-se os atores sociais. É notório que o contexto brasileiro não permite essa aproximação, tendo em vista a sua situação geopolítica de discrepâncias sociais e econômicas – logo, participativas. Contudo, de qualquer forma, no encerramento desta breve exposição, não se deixa de propor que a teoria habermasiana seja considerada, ao menos quando trata da autolegislação enquanto requisito de uma democracia efetiva. Assim, adequado às condições da produção legislativa brasileira, o legislativo deve considerar a voz dos destinatários das normas. Este é autor e destinatário, tendo-se em mente que aquele que agirá socialmente, sob a égide de uma lei, é legitimado a participar da sua elaboração. Ou seja, trata-se, na verdade, do exercício real da democracia. 34 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. P. 1-2. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 91 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A REFERÊNCIAS BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: Tipos e percursos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996. ___________. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. V. I. _________. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. MOREIRA, Luiz. Direito, Procedimento e Racionalidade. In: MOREIRA, Luiz. (Org.) Com Habermas, Contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Col. Primeiros Passos). 92 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 C I D A D A N I A P R O C E D I M E N TA L : A I D E A L I Z A Ç Ã O H A B E R M A S I A N A STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 71-93, 2010 93 LEI DELEGADA Marcelo Azevedo Chamone1 RESUMO A função legislativa é em geral desenvolvida pelo Poder Legislativo, podendo ser exercida pelos demais por atribuição da própria Constituição ou por delegação, das quais, no sistema brasileiro, temos a 'medida provisória' e a 'lei delegada' como exemplos típicos, aquela utilizada de forma abusiva e esta figura praticamente esquecida. Palavras-chave: Delegação de Função Legislativa. Processo Legislativo. Lei Delegada. ABSTRACT The legislative function in general is developed by the Legislative, but may be exerted by Executive and Judiciary by attribution of the Constitution itself or by delegation, of which, in the Brazilian system, we have the 'provisional measure' and the 'delegated law' as typical examples, that one abusively used and this figure practically forgotten. Keywords: Delegation of Legislative Powers. Legislative Process. Delegated Law. 1 Introdução O presente trabalho trata do processo legislativo de criação da lei delegada, de acordo com bases e limites traçados pela Constituição Federal, buscando exaurir os principais temas correlacionados com a matéria. Inicia-se com uma breve exposição sobre a função legislativa e a sua delegabilidade, para, em seguida, tratar de todos os seus aspectos processuais no sistema brasileiro, com base nos textos legais e em pesquisa doutrinária especializada. Este instrumento normativo, infelizmente subutilizado, poderia 1 Analista Judiciário do TRT2. Mestre em Direito. Professor de Direito Constitucional em cursos de pós-graduação. Email: [email protected] Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 95 L E I D E L E G A D A substituir, com fortes benefícios à democracia, o uso abusivo da infame medida provisória, como será visto em tópico específico. 2 Delegação da Função Legislativa A função legislativa, exteriorizada pelo ato legislativo – "declaração unilateral da vontade estatal expressa e exteriorizada por escrito, que dispõe sobre a criação, modificação ou extinção de normas jurídicas abstratamente gerais" (MEEHAN)2 – é exercida de forma típica pelo Poder Legislativo; essa é a função cujo exercício é característico deste Poder. Assim, temos que a regra geral é a indelegabilidade da função típica – tal regra vinha expressa no texto da Constituição de 1967, em seu art. 6º, parágrafo único3, e não foi repetida no texto vigente, mas é consenso na doutrina (SAMPAIO, 1968, p. 44; TEMER, 2006, p. 152; CLÈVE, 1993, p. 191) Porém, como meio de assegurar a independência recíproca, sabemos ser possível o exercício atípico dessa função pelos demais Poderes, o que pode ocorrer por atribuição do próprio texto constitucional ou por ato do Legislativo, que é quem ordinariamente detém o poder de legislar. Assim é que ao Judiciário cabe prolatar as ditas 'sentenças normativas' (CF, art. 114, §2º), e ao Executivo editar Medidas Provisórias (CF, art. 62) e Leis Delegadas (art. 68). Quando esse exercício atípico encontra assento na Constituição, diz-se tratar-se de legiferação permitida. Quando depende de ato concessivo do Congresso, legislação consentida (FERREIRA Fº, 2002, p. 160). Nesse último caso temos a delegação, que é retirar parcela de atribuições de um 2 3 96 MEEHAN apud KILDARE CARVALHO, 2007, p. 65. Essa mesma regra já fora prevista nos textos de 1934 (art. 3º, §1º), e de 1946 (art. 36, §2º). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A Poder para entregá-lo a outro Poder, segundo a definição de Temer (2006, p. 152). Essa delegação pelo Legislativo de sua função típica ao Executivo surgiu da necessidade de adoção de medidas jurígenas céleres, o que não se faz possível através do processo legislativo ordinário, em razão da necessidade que lhe é inerente de possibilitar debates entre as diversas correntes políticas. Assim, já na era do Estado de Direito e repartição das funções estatais, tal necessidade se fez presente especialmente em épocas de crise, sobretudo de crise econômica. Registremos [. . .] a tendência universal para a expansão da legislação delegada, independente do sistema governamental, se parlamentar ou presidencialista, embora o clima do govêrno de gabinete lhe seja mais propício. Reproduzamos as razões dessa expansão, resumidas no Relatório clássico sôbre o assunto, apresentado, em 1932, pelo Committee on Minister 4 Powers , da Grã-Bretanha: 1) falta de tempo do Parlamento, pela sobrecarga de matérias; 2) caráter técnico de certos assuntos; 3) aspectos imprevisíveis de certas matérias a ser reguladas; 4) exigência de flexibilidade de certas regulamentações; 5) possibilidade de fazerem-se experimentos através da legislação delegada; 6) situações extraordinárias ou de emergência. Cremos que se pode aduzir um motivo político ponderável, embora de menor pêso na GrãBretanha do que em outros países: o interêsse dos próprios membros do Legislativo de fugirem à responsabilidade de medidas impopulares, como aumento de tributos e restrições econômicas, a fim de evitar desfavoráveis reações do seu eleitorado (SAMPAIO, 1968, p. 42-43). 4 "The system of delegated legislation is both legitimate and constitutionally desirable for certain purposes within certain limits and under certain safeguards". Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 97 L E I D E L E G A D A Na verdade, seria mesmo possível dizer que os governantes – exercentes da função executiva – raramente abandonaram o hábito absolutista, tanto que a prática de legislação delegada já chegou a ser chamada de 'novo despotismo'5. Não se contentam em executar as políticas delimitadas pelo Legislativo – representantes do soberano legitimados para tanto –, desejando eles mesmos estabelecer as políticas a serem perseguidas. Assim, mesmo quando não há previsão de delegação da função legislativa ao executivo, o Executivo invariavelmente se arvora a produzir normas legais, seja por conta própria ou através de delegação sem previsão constitucional, e, assim, foi em nossa história desde os tempos imperiais (SAMPAIO, 1968, p. 43). Nos Estados Unidos, não foi diferente: a Supreme Court, sobretudo à época do 'New Deal' se viu obrigada a construir uma jurisprudência sobre o tema, diferenciando delegação de abdicação; enquanto aquela não violaria a Constituição, esta, sim, seria inconstitucional. O critério elementar, segundo 6 Edwin Corwin , é indagar se "os poderes delegados podem ser recuperados sem o consentimento de quem os recebeu". Tal critério, porém, é manifestamente insuficiente. A ele se tem de somar outro, mais preciso e mais importante, que é o dos padrões (standards). Entende a Suprema Corte, conforme é de sua jurisprudência reiterada, que é a essência do Poder Legislativo 'especificar as condições e os padrões que devem governar o Presidente, ou qualquer departamento da administração na sua área particular de atividade'. Tal cerne o congresso não pode delegar. Todavia, fixado esse cerne, pode o Legislativo confiar ao Executivo, por delegação, o poder de editar as regras 5 6 98 Lord Hewart of Bury. The new despotism, 1929. CORWIN apud GONÇALVES, Manuel, 2002, p. 163-164. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A necessárias, conforme as circunstâncias, para a execução da lei. Sublinha com toda a clareza SCHWARTZ: 'A menos que o ato de delegação de poderes contenha um padrão – limite ou orientação com respeito ao poder conferido que se possa exercer – ele será inválido ou nulo'. (FERREIRAFº, 2002, p. 164). Assim, determinou-se ser lícito ao Congresso ditar planos e estabelecer padrões de regulação geral, deixando a outros órgãos o estabelecimento de regras subordinadas, dentro dos limites prescritos, e dos fatos, aos quais o plano formulado pelo legislador é aplicável.7 Se, portanto, o Legislativo fixar standards 'definidos de maneira inteligível e razoável que limitem e guiem a ação dos órgãos aos quais é feita a delegação', é esta válida. Se, porém, esses standards são formulados vaga e imprecisamente, tal importaria numa abdicação dos próprios poderes pelo Congresso e então a delegação seria inconstitucional (FERREIRAFº, 2002, p. 165). Ademais, a delegação, para que seja constitucional, deverá ser temporária, pois caso contrário estaria configurada a rejeitada abdicação do exercício da função, e não mera delegação. Essa temporariedade, têm-se entendido, estará ausente quando o termo da delegação exceder a duração da legislatura, pois aí o delegatário estaria delegando mais poderes do que tem. Por outro lado, não fica a delegação restrita à pessoa ocupante do cargo que recebeu a delegação, não importando em caducidade da delegação a 7 "We pointed out in the Panama Refining Company Case that the Constitution has never been regarded as denying to Congress the necessary resources of flexibility and practicality, which will enable it to perform its function in laying down policies and establishing standards, while leaving to selected instrumentalities the making of subordinate rules within prescribed limits and the determination of facts to which the policy as declared by the Legislature is to apply. But we said that the constant recognition of the necessity and validity of such provisions, and the wide range of administrative authority which has been developed by means of them, cannot be allowed to obscure the limitations of the authority to delegate, if our constitutional system is to be maintained. Id., 293 U.S. 388 , page 421, 55 S.Ct. 241." A.L.A. Schechter Poultry Corporation v. United States, 295 U.S. 495 (1935). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 99 L E I D E L E G A D A alteração do ocupante – qualquer ocupante do cargo, seja a título interino ou permanente, pode fazer uso da delegação (CLÈVE, 1993, p. 203-204). O caráter temporário da delegação suscita três indagações. A primeira concerne à possibilidade de, durante o prazo fixado para seu exercício, editar o Presidente mais de uma lei sobre a mesma matéria. A segunda, sobre a possibilidade de o Legislativo, durante o prazo da delegação, editar lei ordinária, dispondo sobre essa matéria. A terceira, que está muito de perto ligada à segunda, é a de se saber se o Legislativo pode desfazer a delegação, retirando-a antes de terminado o prazo concedido para o seu exercício. A resposta às três indagações deve ser afirmativa. Se a delegação é por prazo certo, obviamente persiste durante todo ele; desse modo não há por que não possa o Presidente editar mais de uma lei, enquanto esse prazo estiver em curso. Por outra, a delegação não priva o Legislativo de qualquer parcela de seu poder, nem lhe retira o exercício deste. É simplesmente uma habilitação. Destarte, o poder delegante não renuncia à faculdade de editar, ele próprio, leis sobre a matéria delegada. E, igualmente, nada impede que revogue essa delegação, se isso lhe parecer conveniente (FERREIRAFº, 2002, p. 233). Aqui, as leis delegadas existem, de forma implícita, desde a Constituição de 1891 (BULOS, 2007, p. 971). Explicitamente, contudo, as leis delegadas apenas surgiram, em nosso país, com a Emenda Constitucional n. 4/61 (art. 22, parágrafo único), que instituiu o parlamentarismo, mediante ato adicional. Revogada a Emenda Constitucional n.4/61, as leis delegadas somente retornaram com a Carta de 1967 (art. 55), mantendo-se até hoje (BULOS, 2007, p. 971). 100 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A A Constituição de 1967 foi o primeiro texto a adotar as duas formas de delegação legislativa: a delegação interna, concedida a comissões do Congresso, da Câmara ou do Senado; e a delegação externa, ao Presidente da República (SAMPAIO, 1968, p. 43). Desse modo, o Legislativo "está habilitado a delegar o poder de editar regras jurídicas novas, seja à comissão parlamentar – delegação interna corporis, seja ao Poder Executivo" – delegação propriamente dita. Não se autoriza a subdelegação (CLÈVE, 1993, p. 199). 2.1 Delegação Interna Na ordem constitucional anterior, a delegação interna podia ser concedida à qualquer comissão das duas Casas, bem como à comissão mista ou do Congresso, devendo ser deferida sempre à comissão especial, por força do art. 56, da Constituição (SAMPAIO, 1968, p. 88-89). Já a Constituição vigente não faz referência expressa à delegação interna corporis ao dispor sobre a lei delegada (art. 68). Mas, segundo Ferreira Fº (2002, p. 229), trata-se de defeito de técnica, visto que o art. 58, §2º, I8 a admite. Essa delegação interna, porém, é diversa daquela prevista no texto de 1967-69: o regimento de qualquer das casas do Congresso pode dispensar os projetos sobre determinadas matérias de serem apreciados pelo plenário. Trata-se de mera simplificação do procedimento, pois "o projeto dela resultante se apresenta como obra do respectivo corpo legislativo, em cujo nome agiu a comissão" (SAMPAIO, 1968, p. 44). 8 "CF, art. 58, § 2º - Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa". Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 101 L E I D E L E G A D A Para José Afonso (2006, p. 319), no entanto, não há delegação interna no sistema constitucional vigente: haveria "competência legislativa definitiva, na forma que se estabelecer nos regimentos internos das Casas do Congresso Nacional" (AFONSO, 2006, p. 319); se delegação não é, seria então habilitação legislativa (p. 321). Delegação haveria naquelas hipóteses previstas no art. 91, §1º, I a III, do RISF (examinadas a seguir), que extrapolariam o mandamento constitucional. De fato, o sistema de habilitação legislativa difere da delegação, pois, nesta, 'a faculdade legislativa é renunciada pelo poder competente que a entrega a outro'. No caso de habilitação, não há abdicação do poder de legislar, porque o órgão habilitado fica sempre na dependência do órgão habilitante, mesmo quando a habilitação, como é o caso, fundamenta-se numa norma geral. Trata-se de uma habilitação legislativa, constitucionalmente estabelecida, cuja efetivação, no entanto, depende de normas específicas das Casas do Congresso Nacional, por via dos respectivos regimentos internos (AFONSO, 2006, p. 321). Dispõe o Regimento Interno do Senado Federal (RISF, art. 91, I e II) que às comissões, no âmbito de suas atribuições, cabe, dispensada a competência do Plenário, nos termos do art. 58, §2º, I, da CF, discutir e votar: projetos de lei ordinária de autoria de Senador, ressalvado projeto de código; projetos de resolução que versem sobre a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 52, X). À comissão, por ato do Presidente do Senado, ouvidas as lideranças (art. 91, §1º), poderá ser atribuída competência para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: tratados ou acordos internacionais (CF, art. 49, I); autorização para a exploração e o 102 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas (CF, art. 49, XVI); alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares (CF, art. 49, XVII); projetos de lei da Câmara de iniciativa parlamentar que tiverem sido aprovados, em decisão terminativa, por comissão daquela Casa; indicações e proposições diversas, exceto: projeto de resolução que altere o Regimento Interno, projetos de resolução a que se referem os arts. 52, V a IX, e 155, §§1º, IV, e 2º, IV e V, da Constituição9; e proposta de emenda à Constituição. Em qualquer desses casos, encerrada a apreciação terminativa, a decisão da comissão será comunicada ao Presidente do Senado Federal para ciência do Plenário e publicação no Diário do Senado Federal (§2º). Da decisão da comissão cabe recurso, assinado por um décimo dos membros do Senado, dirigido ao Presidente da Casa, para que a matéria seja apreciada pelo Plenário do Senado (§3º). Para Afonso (2006, p. 320), essas regras do RISF ultrapassam o mandamento constitucional do art. 58, §2º, I, que só dá competência às comissões para discutir e votar projetos de lei, "de modo que não parece conformar-se com a Constituição a atribuição de competência para apreciar 9 CF, art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...); V - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; VI - fixar, por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; VIII - dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno; IX - estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...). CF, art. 155, §1.º O imposto previsto no inciso I: (...); IV - terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal; (...).§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (...); IV - resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação; V - é facultado ao Senado Federal: a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros; b) fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da maioria absoluta e aprovada por dois terços de seus membros; (...). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 103 L E I D E L E G A D A terminativamente matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional que dependem de decreto legislativo, tais como as referidas nos ns. I, II e III"10. Já o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) traz regras diferentes – o art. 24, II, estabelece que às comissões permanentes, em razão da matéria de sua competência, e às demais comissões, no que lhes for aplicável, cabe discutir e votar projetos de lei, dispensada a competência do Plenário, salvo recurso para o Plenário11, e excetuados os projetos: de lei complementar; de código; de iniciativa popular; de comissão; relativos à matéria que não possa ser objeto de delegação (CF, art. 68, §1º); oriundos do Senado, ou por ele emendados, que tenham sido aprovados pelo Plenário de qualquer das Casas; que tenham recebido pareceres divergentes; em regime de urgência. Prevê, ainda, que se aplicam à tramitação dos projetos de lei submetidos à deliberação conclusiva das comissões, no que couber, as disposições previstas para as matérias submetidas ao Plenário da Câmara (§1º). 2.2 Delegação Externa Quando falamos em delegação externa, a figura que encontramos em nosso sistema constitucional é a lei delegada, espécie normativa elaborada e editada pelo Presidente da República, nos limites de autorização 10 RISF, art. 91, §1º O Presidente do Senado, ouvidas as lideranças, poderá conferir às comissões competência para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: I – tratados ou acordos internacionais; II – autorização para a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas; III – alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares; (...). 11 RICD, art. 132, § 2º Não se dispensará a competência do Plenário para discutir e votar, globalmente ou em parte, projeto de lei apreciado conclusivamente pelas Comissões se, no prazo de cinco sessões da publicação do respectivo anúncio no Diário da Câmara dos Deputados e no avulso da Ordem do Dia, houver recurso nesse sentido, de um décimo dos membros da Casa, apresentado em sessão e provido por decisão do Plenário da Câmara. 104 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A prévia, expressa, e específica do Poder Legislativo (BULOS, 2007, p. 970; ANDRÉ RAMOS TAVARES, 2007, p. 1133; MORAES, 2007, p. 662). A lei delegada, todavia, não 'pegou' no Brasil. Isto se explica pela facilidade que ensejava o decreto-lei no Direito anterior e a medida provisória no vigente. É lamentável que tal se dê, visto como a delegação não importa numa abdicação do Congresso, que mantém um controle prévio sobre o texto (FERREIRA Fº, 2002, p. 230; no mesmo sentido: FERREIRAFº, 2007, p. 170). Deveras, vê-se que a maioria das leis delegadas que são objeto de discussão no Judiciário foram editadas no nível estadual (em São Paulo não há previsão constitucional – art. 21), onde é pouco frequente a previsão constitucional de medidas provisórias. No plano federal foram promulgadas 11 leis delegadas entre setembro e novembro de 1962, e depois mais duas em agosto de 1992. 2.2.1 Natureza e hierarquia da lei delegada A questão da natureza da lei delegada e, por consequência, a sua posição na hierarquia normativa, não é tão simples quanto possa parecer a princípio. A edição de lei delegada está subordinada à necessária existência prévia de uma resolução legislativa, que a condiciona materialmente (CF, art. 68, §2º) e, em alguns casos, também há um condicionamento quanto à forma (§3º). Assim temos que a resolução legislativa é fundamento de validade da lei delegada. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 105 L E I D E L E G A D A A hierarquia formal entre atos normativos há sempre que: a norma superior ditar "os pressupostos de forma que a norma subordinada há de respeitar" (CARVALHO, 2007, p. 229), o que envolve todo o processo de elaboração do ato normativo, desde a sua gênese até o aperfeiçoamento do ato.12 É a própria Constituição que traça os pressupostos de forma da lei delegada, autorizando que a resolução determine que o produto da delegação seja submetido à votação pelo Congresso. Assim, para que seja válida a lei delegada, ela deverá atender aos pressupostos formais previstos na Constituição e, eventualmente, na resolução legislativa que autorizou a sua elaboração. Portanto, parece claro que há uma hierarquia formal entre resolução legislativa e lei delegada. Haverá hierarquia material "sempre que a regra subordinante preceituar os conteúdos de significação da norma inferior", de modo que a norma subordinada vai "colher na compostura semiológica da norma subordinante o núcleo do assunto sobre o qual pretende dispor" (CARVALHO, 2007, p. 229). Se o conteúdo da lei delegada deve ser "especificado" pela resolução legislativa, parece-nos evidente haver uma relação de hierarquia entre essas normas. A conclusão lógica seria a de que a lei delegada é ato normativo secundário, enquanto que a resolução legislativa em que se funda ato normativo primário. Sabemos que somente os atos normativos primários estão sujeitos ao controle abstrato de constitucionalidade – CF, art. 102, I, a –, enquanto que os atos normativos secundários ficam sujeitos apenas ao controle concreto de 12 106 Também há hierarquia formal quanto aos "esquemas de alteração ou modificação de umas pelas outras; como também os meios de revogação parcial ou total (ab-rogação)" (CARVALHO, 2007, p. 229). Mas não basta que diga, é preciso que tenha autoridade para dizer. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A constitucionalidade. Mantendo a conclusão acima, teríamos que afastar a lei delegada como suscetível de ser objeto de controle abstrato de constitucionalidade. No entanto, essa não nos parece ser a melhor solução. É inegável a existência de hierarquia, tanto formal como material, entre a resolução legislativa e a lei delegada que lhe resulta (SAMPAIO, 1968, p. 34). Porém, em seu aspecto material, apesar de subordinada à resolução legislativa, a lei delegada visa eminentemente ao exercício de função legislativa – inovação no ordenamento jurídico, com a edição de normas gerais e abstratas; em seu conteúdo e eficácia, a lei delegada é típico ato primário (FERREIRA Fº, 2002, p. 231; MORAES, 2007, p. 663; FERREIRA Fº, 2007, p. 170; CLÈVE, 1993, p. 197).13 Numa certa medida ela parece ato secundário. De fato, (...) a lei delegada pressupõe, como condição de validade, um ato primário individual do Congresso, que é ato que opera a delegação e lhe marca os limites. Destarte, de certo modo, a lei delegada desdobra um ato primário individual, de maneira a sugerir seu enquadramento entre os atos secundários, como os regulamentos (FERREIRAFº, 2002, p. 230-231). Estamos diante de uma situação esdrúxula: apesar de, a princípio, não haver hierarquia entre os atos normativos primários, há uma relação de subordinação entre a resolução legislativa que autoriza a delegação e a lei delegada resultante. Isso, porém, não implica que uma se coloque acima dos demais atos normativos, nem a outra abaixo – permanecem todos no mesmo nível: "a lei delegada é um ato primário, derivado de pronto da Constituição, 13 Essa situação sui generis, levou-a a ser chamada de ato normativo subprimário (COSTANTINO MORTATI apud CLÈVE, 1993, p. 197). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 107 L E I D E L E G A D A embora condicionado" (FERREIRA Fº, 2002, p. 231), e como tal, sujeita ao controle abstrato de constitucionalidade (BULOS, 2007, p. 974)14. Essa conclusão é corroborada por Sampaio: "Lei delegada e decreto-lei tanto estão no mesmo nível da lei ordinária que esta pode ser revogada por aquêles dentro dos limites constitucionais" (1968, p. 34)15. Note-se que, assim como as leis ordinárias, as leis delegadas resultam da conjunção de vontade do Legislativo e do Executivo: "Não pode haver nenhuma dúvida de que o Congresso pode ab-rogar, derrogar e alterar as leis delegadas quando bem lhe parecer, do mesmo modo como age em relação às outras leis" (SAMPAIO, 1968, p. 92). Desse modo, a exorbitância dos limites traçados na resolução legislativa implica não em ilegalidade, mas em inconstitucionalidade da lei delegada (SAMPAIO, 1968, p. 34). 2.2.2 Objeto e limitações à delegação A delegação deverá ser sempre limitada, de modo que deverá ser especificado o seu conteúdo e os termos de seu exercício (CF, art. 68, §2º) – "Ou seja, será indicada a matéria sobre a qual deverá versar a lei delegada e o prazo durante o qual será lícito ao Presidente editar normas sobre essa matéria" (FERREIRAFº, 2002, p. 232). Assim, será inconstitucional a resolução legislativa de delegação que não especificar a matéria a ser regulada, contaminando eventual lei delegada produzida. Ainda, essa delimitação deve ser precisa e inequívoca, sob pena de estar descumprido o preceito constitucional (FERREIRA Fº, 2002, p. 232-233). 14 Tanto a 'lei' delegante, como a lei delegada podem ser objeto de controle de constitucionalidade ( CLÈVE, 1993, p. 213). 15 ALei Delegada nº 12, foi revogada por Medida Provisória – MPv nº 2215-10, de 31/08/2001. 108 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A São indelegáveis (CF, art. 68, §1º): os atos da competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49), e os da competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (arts. 51 e 52); matérias reservadas à lei complementar; organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; qualquer regra jurídica sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, direitos políticos, direito eleitoral; qualquer regra jurídica referente às leis orçamentárias. A indelegabilidade das competências privativas é obviamente justificada pelo seu caráter. Trata-se de disposições que, sobretudo, marcam os poderes de controle e fiscalização geral do Congresso, relativamente ao Poder Executivo, e, assim, não poderiam ser entregues de modo algum ao próprio fiscalizado. Quanto à indelegabilidade da elaboração de normas sobre a matéria acima indicada, mencionada nos incisos do art. 52, §1º, justifica-se pela importância dessas matérias já para o indivíduo, por lhe definirem direitos dos mais altos, já para o próprio regime, por lhe assegurar o funcionamento limpo e honesto (FERREIRAFº, 2002, p. 231). Sampaio aponta ainda na delegação de poder de reforma constitucional uma limitação implícita, por conta da própria natureza desse ato (1968, p. 45)16, que não resulta de exercício de função legislativa. As vedações de delegação legislativa são, pois, bem mais numerosas do que no efêmero parlamentarismo republicano, quando elas só existiam para 'a criação de tributos, a autorização de emissões do curso forçado e as 16 Sampaio também via objeção na delegação de matéria reservada à lei complementar mesmo quando não havia limitação expressa no texto constitucional (1968, p. 45). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 109 L E I D E L E G A D A matérias da competência exclusiva do Congresso Nacional' (Lei Complementar de 17 de julho de 1962, art. 34). A Emenda Constitucional nº 17, de 1965, ao disciplinar a delegação legislativa interna, proibiu que ela recaísse sôbre atos da competência exclusiva do Congresso ou de qualquer de suas casas; organização dos juízos e tribunais e garantias da magistratura; nacionalidade, cidadania e direito eleitoral; matéria orçamentária; minas, riquezas do subsolo e quedasd'água; estado de sítio (NELSON SAMPAIO, 1968, p. 17 44-45). Clève (1993, p. 207) afirma que são indelegáveis as matérias que impliquem autorização do Legislativo para o Executivo, tais como aquelas referentes a autorização de despesas – CF, art. 167, III, V, VI, VIII, IX –, mas nos parece que tais matérias estão entre aquelas de competência exclusiva do Congresso Nacional, veiculadas por decreto legislativo, ainda que não listadas no art. 49 da CF, o que já faz incidir a limitação expressa. Da mesma forma, não há que se falar em delegação de competência para converter medida provisória em lei – CF, art. 62 (cf. CLÈVE, 1993, p. 207). 17 110 Sob a vigência da Constituição de 1967, não havia restrição quanto aos direitos individuais, ou à organização do Ministério Público (que então não possuía a autonomia em relação ao Executivo que hoje tem). Não havia impedimento, explícito, para a delegação com o intuito de se editar leis orçamentárias, mas Sampaio via aí uma limitação implícita, "tanto por sua natureza como pelos dispositivos constitucionais que regem a sua elaboração. Por sua feição de lei predominantemente autorizadora de atos executivos sôbre receitas e despesas públicas, não se pode conceber que o Congresso delegue essa tarefa ao Executivo, que equivaleria ao despautério de autorizá-lo a dar autorização a si mesmo. Toda uma seção da Constituição dá rito especial à elaboração orçamentária, que ficaria sem finalidade se o orçamento pudesse ser feito pelo Executivo, mediante delegação. Os preceitos dessa seção impedem que o orçamento possa ser objeto sequer de delegação interna. Diga-se o mesmo quanto às autorizações para abrir créditos suplementares e especiais. São atribuições do Legislativo que ele não pode delegar. A Constituição proíbe a abertura deles 'sem prévia autorização legislativa' (art. 64, §1º, c). Pela natureza de autorização, não se pode delegar o consentimento para contrair dívida pública e para emissão de curso forçado" (1968, p. 45). A Constituição de 1967 ainda objetava a delegação para o Executivo legislar sobre o sistema monetário, direito civil e direito penal, e sistema de medidas; com a Emenda nº 1, essas três últimas restrições não foram repetidas. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A [. . .] em linha de princípio, todos os atos do Congresso que importem em atividade de controle do Legislativo sobre o Executivo são insuscetíveis de delegação, sob pena de se romperem os limites políticos e legais da ação governamental, instaurando-se o regime de onipotência e do arbítrio administrativo que o sistema de freios e contrapesos visa justamente coibir (CASTRO).18 Clève (1993, p. 207) inclui entre os direitos individuais, sendo, então, matéria insuscetível de delegação, matérias relativas a direito penal, pois estaria em questão o direito individual à liberdade de locomoção. Admite, por outro lado, a delegação em matéria tributária, desde que a matéria específica não seja sujeita a lei complementar ou resolução legislativa. Justifica a sua posição afirmando que o princípio da legalidade tributária não é direito individual, visto não estar incluso no art. 5º, da CF (1993, p. 210-211)19. Para Ferreira Fº (2002, p. 231-232), em relação à instituição ou aumento de tributos (CF, art. 150, I), haveria uma limitação implícita, considerando que lei deveria ser entendido em sentido estrito: Consubstancia-se esse dispositivo uma reivindicação e uma conquista que é mesmo anterior às democracias, pois, como justamente salienta Pontes de Miranda, 'antes dela os povos a quiseram contra o Príncipe'. Ora, tendo essa reserva de lei o caráter de limitação ao Executivo, como sempre teve, é manifesto contra-senso admitir sua delegação exatamente ao Executivo. 18 19 CASTRO apud CLÈVE, 1993, p. 207. Defendem essa posição: Machado Bastos, Carvalho. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 111 L E I D E L E G A D A Ademais, posto que não incluso no rol do art. 5º, o princípio da legalidade tributária é, sim, garantia individual, constituindo, inclusive, cláusula pétrea. No entanto, e o autor o admite, tal tese não encontra ressonância na jurisprudência, visto que, até mesmo através de medida provisória, se admitiu a instituição ou aumento de tributos – por todos: ADInMC nº 1417, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 07/03/1996 –, prática posteriormente positivada através da EC nº 32/2001, que incluiu o §2º, ao art. 62, da CF. 3 Elaboração da Lei Delegada A própria Constituição Federal traça as linhas mestras do processo legislativo que culmina com a edição de lei delegada, com os detalhes procedimentais previstos no Regimento Comum do Congresso Nacional. A principal determinação é a que condiciona a edição de lei delegada pelo Executivo à prévia e expressa autorização do Congresso, que é veiculada por 20 meio de resolução legislativa – não se admite delegação por meio de lei 21 ordinária:ADIn nº 1296-MC, rel. Min. Celso de Mello, j. 14/06/1995 . 20 No período parlamentarista – 08/09/1961 a 24/01/1963 –, o meio utilizado foi o decreto legislativo. 21 "Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei estadual que outorga ao poder executivo a prerrogativa de dispor, normativamente, sobre matéria tributaria - Delegação legislativa externa - Matéria de direito estrito - Postulado da separação de poderes Princípio da reserva absoluta de lei em sentido formal - Plausibilidade jurídica Conveniência da suspensão de eficácia das normas legais impugnadas - Medida cautelar deferida. - A essência do direito tributário - respeitados os postulados fixados pela própria Constituição - reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto consubstanciado na Carta da República, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributária. Considerações em torno das dimensões em que se projeta o princípio da reserva constitucional de lei. - A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo. A delegação legislativa externa, nos casos em que se 112 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A Como bem lembra José Afonso, não há propriamente um processo legislativo da lei delegada, pois a sua elaboração, em si, não comporta atos de iniciativa, nem votação, nem sanção, nem veto, nem promulgação. "Trata-se de mera edição que se realiza pela publicação autenticada. Por isso não é cabível falar-se em processo legislativo a respeito delas, mas de simples procedimento elaborativo" (2006, p. 321). Há, sim, um processo legislativo referente à sua fase prévia, que é exatamente a resolução legislativa que outorga a delegação, conforme previsto no art. 68, §2º, da CF. Essa resolução, como ato cuja produção se exaure no âmbito do Congresso, não está sujeita a sanção ou veto presidencial, sendo promulgada pelo Presidente do Senado Federal, na sua apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de formação não se ajusta a disciplina ritual fixada pelo art. 68 da Constituição. A vontade do legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária, objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de competência normativa primária, revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva constitucional de lei. - Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em consequência, não pode deslocar para a esfera institucional de atuação do Poder Executivo - que constitui instância juridicamente inadequada - o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas - (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de cálculo tributário, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos -, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae - tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigente no Brasil - só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo." Ação extinta sem julgamento de mérito em razão da revogação superveniente da norma impugnada, j. 21/09/1995. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 113 L E I D E L E G A D A qualidade de Presidente da Mesa do Congresso Nacional (Regimento Comum, art. 52, parágrafo único). As resoluções de delegação legislativa diferem das demais resoluções das Casas do Congresso Nacional. As resoluções (...) são atos internos de cada uma das Casas do Congresso Nacional, não são atos que comportem elaboração bicameral. A única dessa natureza é a resolução de delegação legislativa. Ora, o caso, na verdade, é típico de decreto legislativo, que é ato destinado a regular matéria de exclusiva competência do Congresso Nacional. Embora a delegação legislativa não esteja relacionada no art. 49 da CF, ela é matéria de exclusiva competência do Congresso Nacional (AFONSO, 2006, p. 321-322). Essa resolução legislativa é, na verdade, e a sua origem histórica o confirma, uma lei, lei delegativa, atributiva de função legiferante (PONTES DE MIRANDA, 1970, p. 158-159). No silêncio do texto constitucional anterior, o Regimento Comum atribuía, tanto ao Presidente da República como a 1/3 dos membros de qualquer uma das Casas, o poder de iniciativa da resolução delegativa (art. 118). Hoje, o texto constitucional é expresso ao limitar essa iniciativa ao Presidente da República (art. 68, caput, da CF) – é a chamada 'iniciativa solicitadora' (MORAES, 2007, p. 663); não pode o Legislativo impor uma delegação, uma obrigação de legislar, ao Executivo (TEMER, 2006, p. 152). Assim, cabe ao Executivo enviar mensagem dirigida ao Presidente do Senado (art. 119, do Regimento Comum), acompanhada do projeto de resolução habilitador de delegação (SAMPAIO, 1968, p. 91-92). Recebida a proposta, o Presidente do Senado convocará sessão 114 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A conjunta, a ser realizada em 72h, para que o Congresso Nacional tome conhecimento dela – art. 119, do Regimento Comum. É, então, constituída Comissão Mista para emitir parecer sobre a proposta (art. 119, §1º, do Regimento Comum). O projeto de resolução é discutido, com possibilidade de emendas (art. 120) – note-se que essa possibilidade de emendas deve ser conciliada com a iniciativa exclusiva do Executivo, de modo que não poderá ampliar a delegação, mas tão somente restringir o conteúdo da delegação ou alterar os termos de seu exercício. Havendo emendas ao projeto, ele retorna à Comissão para emitir novo parecer (art. 121). Publicado o parecer, é convocada sessão conjunta para a votação do projeto (art. 121, parágrafo único). Aprovada a resolução, será promulgada em 24h (art. 122), pelo Presidente do Senado (art. 52, parágrafo único), comunicando-se ao Presidente da República. Afonso (2006, p. 322) entende que, com o pedido de delegação, o Executivo já deveria apresentar o projeto da futura lei delegada, em razão da possibilidade de o Congresso, além de conceder a delegação, exigir que o projeto seja submetido a votação, feita em sessão conjunta, em turno único e vedada qualquer emenda (CF, art. 68, §3º; Regimento Comum, art. 123). Essa não nos parece a leitura mais correta dos textos normativos. Se a resolução irá determinar um prazo para que o Executivo exerça a delegação, não é razoável que se exija a apresentação de projeto de lei delegada juntamente com a iniciativa solicitadora. A resolução delegativa promulgada deverá especificar o conteúdo da delegação, os termos para o seu exercício e fixará o prazo durante o qual a delegação poderá ser exercida – é de 45 dias o prazo máximo para a promulgação e publicação da lei delegada ou remessa do projeto elaborado para apreciação pelo Congresso Nacional (art. 119, §2º, do Regimento Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 115 L E I D E L E G A D A Comum)22. "O prazo pode ser um só, como podem ser dois ou mais os prazos, com especial referência a cada conteúdo" (PONTES DE MIRANDA, 1970, p. 159). Comunicado da aprovação da resolução legislativa, o Executivo irá elaborar a lei delegada – ou não, visto que não fica obrigado a legislar; abrese-lhe tão somente uma faculdade (AFONSO, 2006, p. 323; BULOS, 2007, p. 972; MORAES, 2007, p. 664). Elaborada a lei delegada, o Presidente da República promulga-a e manda publicá-la, salvo quando houver necessidade de apreciação do projeto pelo Congresso (art. 123). Ademais, o prazo não é preclusivo; poderá o Executivo optar por elaborar mais de um texto dentro da matéria objeto de delegação, de modo que o exercício da delegação não a esgota, desde que não exauridos limites materiais da delegação, permanecendo válida enquanto viger o prazo estipulado na resolução (FERREIRA Fº, 2007, p. 171; CLÈVE, 1993, p. 124 e 202-203). Ferreira Fº (2007, p. 208) não faz essa distinção entre exaurimento ou não da matéria, entendendo simplesmente ser possível a edição de mais de uma lei delegada durante o período de vigência da delegação. Contrária é a posição de Bulos (2007, p. 972) e Moraes (2007, p. 664) que ressalvam apenas a hipótese de previsão expressa na própria resolução autorizando a edição de mais de uma lei delegada. Essa foi a solução dada pela Resolução nº 1, de 1992-CN, que autorizou a edição das leis delegadas nº 12 e 13; já os Decretos Legislativos nº 8, 9, e 11, de 1962, não trouxeram disposição semelhante e deram origem, respectivamente, às Leis Delegadas nº 1, 2 a 7, e 8 a 11. 22 116 Não obstante, a Resolução nº 1, de 1992-CN, datada de 30/07/1992, estabeleceu prazo até 31/12/1992 para a promulgação e publicação das leis delegadas que autorizou. Os Decretos Legislativos nº 8, 9, e 11, de 1962, não traziam previsão de prazo. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A Outrossim, tendo havido mera delegação de exercício da função legislativa, e não renúncia, nada obsta a que, na vigência do prazo da delegação, o Congresso Nacional, por meio de lei ordinária, discipline a matéria objeto de delegação. Pode, inclusive, revogar a resolução delegativa (FERREIRA Fº, 2007, p. 208; MORAES, 2007, p. 663; BULOS, 2007, p. 973; FERREIRAFº, 2007, p. 171; CLÈVE, 1993, p. 202). Sendo o caso de apreciação pelo Congresso, apresentado o projeto elaborado pelo Executivo, em 24h, o Presidente do Senado remeterá a matéria à Comissão Mista, para emitir parecer em cinco dias sobre a conformidade do projeto com a delegação (art. 124). O projeto é, então, votado em globo, admitindo-se votação destacada de partes consideradas, pela Comissão, em desacordo com o ato de delegação (art. 125). A doutrina aponta essa situação como uma total inversão do processo legislativo ordinário, colocando o Executivo como elaborador do texto normativo, e o Legislativo detentor do poder de veto, "veto absoluto e total, uma vez que não se pode apresentar emenda ao projeto de lei delegada" (SAMPAIO, 1968, p. 92). Aprovado o projeto, "o Presidente da República efetivará a promulgação e determinará sua publicação" (MORAES, 2007, p. 664). É dispensada a sanção do Presidente da República, "porque o conteúdo do projeto de lei delegada não se alterará" – "Não se veta, em conseqüência, projeto de lei delegada. É ilógico pensar-se que o Presidente vetaria aquilo que ele próprio elaborou" (TEMER, 2006, p. 153; no mesmo sentido: CLÈVE, 1993, p. 200-201). Oposta é a posição de Celso de Mello23, para quem a sanção presidencial se faz obrigatória, transformando o projeto aprovado pelo legislativo em lei. Podendo sancioná-la, poderia também vetála; essa posição, no entanto, é isolada. 23 MELLO, apud CLÈVE, 1993, p. 201. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 117 L E I D E L E G A D A Outrossim, entende parte da doutrina que ocorrendo a rejeição integral do projeto de lei delegada, "este será arquivado, somente podendo ser reapresentado nos termos do art. 67 da Constituição Federal" (MORAES, 2007, p. 664; no mesmo sentido: BULOS, 2007, p. 972). Clève discorda, entendendo possível a apresentação de novo projeto, desde que no prazo da delegação (1993, p. 202-203), visto que a rejeição não implica em revogação da delegação, o que nos parece mais adequado à finalidade do instituto. É a própria Constituição (art. 68, §3º) que estabelece o procedimento de votação única, proibidas as emendas, de modo que a resolução não pode dispor validamente de modo contrário; só pode optar em determinar condicionar a apresentação do projeto de lei delegada para votação ou não (PONTES DE MIRANDA, 1970, p. 159). As votações, ante a ausência de disposição específica, são todas tomadas por maioria simples – CF, art. 47. Extrapolados os limites da delegação, cabe ao Congresso Nacional sustar a lei delegada (CF, art. 49, V), naquilo em que extrapolar os limites da delegação – a aprovação em votação não importa em convalidação do vício de usurpação de função legislativa (CLÈVE, 1993, p. 213-214). "A medida será tomada através de decreto legislativo, que terá efeitos ex nunc24, já que este ato normativo não anula a lei delegada, mas apenas susta os seus efeitos que exorbitem da delegação legislativa" (FERREIRA Fº, 2007, p. 171; no mesmo sentido: MORAES, 2007, p. 664; BULOS, 2007, p. 973). Ressalte-se que, sendo o controle da lei delegada feito pelo Judiciário, em sede de controle abstrato ou concreto, os efeitos da decisão seguirão a regra geral, produzindo-se ex tunc, desempenhando efeitos retroativos (MORAES, 2007, p. 664; BULOS, 2007, p. 974). 24 118 A partir da publicação do decreto legislativo, cf. MORAES (2007, p. 664) e BULOS (2007, p. 973). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A Não havendo estipulação legal de termo para o exercício do poder de 'veto legislativo', é de se concluir que não há prazo (CLÈVE, 1993, p. 213). 4 Medida Provisória vs. Lei Delegada Como vimos no início deste trabalho, enquanto a lei delegada traduz situação de delegação pelo Legislativo de sua função típica, a medida provisória decorre de atribuição legislativa ao Executivo levada a cabo pelo próprio constituinte. Isso nada mais é do que o vetusto e infame decreto-lei sob nova roupagem, instrumento já duramente criticado sob o regime constitucional anterior, inspirado em sua função e limites na constituição italiana do pós-guerra, de conformação parlamentarista (HORTA, 2010, p. 540). A lei, por definição, superada a ideia rousseauniana utópica de vontade geral da nação, é produto de compromissos entre as diversas correntes e tensões sociais e políticas representados no seio do Legislativo. Longe de expressar a norma ideal, é a norma possível, resultante de cessões e acordos entabulados no âmbito do jogo democrático, o que está ausente na produção autocrática da medida provisória. A medida provisória é, sim, um importante e necessário instrumento para que o Governo possa ofertar à sociedade soluções jurígenas céleres a situações de "relevância e urgência" e não para a produção ordinária e cotidiana de normas primárias. A prática institucional nacional, no entanto, desvirtuou esse instrumento, com o consentimento, por omissão, do próprio Legislativo, bem como do Judiciário. Assim foi que Presidência da República produziu 2.230 (!) medidas provisórias entre a promulgação da Constituição de 1988 e a EC n. 32, de Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 119 L E I D E L E G A D A 11.09.2001, que trouxe grande reformulação à matéria. Isso fora as incontáveis reedições, e mais 500 desde então,25 em sua esmagadora maioria sobre temas sem relevância e muito menos urgência, editadas simplesmente por serem "mais convenientes para o Executivo" (AFONSO, 2007, p. 532), apesar de o regime de urgência constitucional (CF, art. 64, §§2º a 4º), figura hoje esquecida, ser meio hábil a encerrar com celeridade o processo legislativo ordinário. Acrescente-se, ainda, que o fato de as medidas provisórias não apreciadas até o 45º dia, por força do disposto no art. 62, §6º, da CF, trancarem a pauta de deliberações do Legislativo, o que, em face de sua quantidade elevada, ocorre com infeliz frequência, obstando o exercício pelo Legislativo de sua função típica, passando a ser mero referendador da produção legislativa do Executivo. 5 Conclusões Ao optar por editar atos normativos primários, desprovidos da relevância e urgência que efetivamente o justificariam por meio de medidas provisórias, o Executivo priva a sociedade do saudável e democrático debate parlamentar sobre o tema no âmbito do órgão histórica e constitucionalmente formado para eleger as políticas públicas a serem implementadas. O Executivo passa, então, ele mesmo, a editar as normas primárias (gerais) e a regulamentá-las, afastando-nos do modelo democrático originalmente projetado pelo constituinte. O argumento da celeridade do trâmite da medida provisória não convence, pois também o regime de urgência previsto no art. 64 da CF provê 25 120 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Quadro/_Quadro%20Geral.htm Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A um trâmite célere ao projeto de lei ordinária, o que também ocorria no processo referente à resolução delegativa, visto que os parlamentares não terão que debater as minúcias da regulamentação normativa, mas tão somente seus limites. A manterem-se as coisas em seu estado atual, relegado o Legislativo à inoperância e à função burocrática de verificador (quando não mero chancelador) das normas primárias produzidas por outro Poder, configura-se grave crise institucional, com comprometimento do modelo consagrado no texto constitucional de separação dos Poderes. No mais das situações, constatada a inevitabilidade da produção normativa pelo Executivo, é a lei delegada que permite o prévio debate e a precisa limitação da atuação legislativa do Executivo. Isso a critério e conveniência de seu legítimo detentor, o Legislativo, a respeito de específicas matérias, concretizando o efetivo debate democrático plural por parte da sociedade, e não simples imposição unilateral de vontades do vencedor de eleição majoritária. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Márcia Maria Corrêa de. Prática do processo legislativo. São Paulo:Atlas, 2001. BULOS, Uadi Lamego. Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica legislativa. 4. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2007. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 121 L E I D E L E G A D A CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na constituição de 1988. São Paulo: RT, 1993. CORWIN, Edward S. The constitution and what it means today. 10. ed., Princeton: Princeton University Press, [s.d.]. FERREIRA Fº., Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. ___________. Curso de direito constitucional. 33. ed., São Paulo: Saraiva, 2007. HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 5. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2010. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 21. ed., São Paulo: Atlas, 2007. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à constituïção de 1967 com a emenda nº 1. São Paulo, RT, 1970. V. 3. RUSSOMANO, Rosah. Dos poderes legislativo e executivo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976. SAMPAIO, Nelson de Souza. O processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968. SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2006. 122 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 L E I D E L E G A D A ___________. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed., São Paulo: Malheiros, 2007. TAVARES,André Ramos. Direito constitucional. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2007. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 21. ed., São Paulo: Malheiros, 2006. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 95-123, 2010 123 JUSTICIABILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Filipe Madsen Etges1 RESUMO O tema deste trabalho trata da crise enfrentada pela prestação jurisdicional quando atua com foco na viabilização dos direitos sociais que dependem de implementação de políticas públicas (de competência dos Poderes Legislativo e Executivo) e sua legitimidade para tanto. A chamada judicialização da política verificada através de uma postura ativa do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, em campos inicialmente restritos aos demais poderes do Estado, traz à tona um debate sobre legitimidade, competência institucional, alocação e escassez de recursos econômicos, escolhas políticas, entre tantos temas que permeiam essa "crise". Assim, a problemática proposta pretende apresentar e discutir critérios que possam (im)possibilitar uma postura "ativista" no campo das políticas públicas. Palavras-chave: Judicialização da Política. Direitos Sociais. ABSTRACT The theme of this work deals about the crisis faced by Judiciary while acting with a focus on facilitation of social rights that depend on implementation of public policies (of competence of the Legislative and Executive) and its legitimacy to do so. The so-called judicialization of politics verified by an active attitude of the Judiciary in the implementation of fundamental rights, in fields initially restricted to the other branches of government, brings up a debate about legitimacy, institutional competence, allocating scarce resources, policy choices, among many themes that permeate this "crisis." Thus, the problematic proposal aims to present and discuss criteria that can (im) possible stance "activist" in the field of public policy. Keywords: Judicialization of Politics. Social Rights. 1 Mestre em Constitucionalismo Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 125 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S 1 Notas Introdutórias: as posições doutrinárias sobre a possibilidade da atuação "política" do Poder Judiciário Doutrina e jurisprudência vêm afirmando há muito tempo que ao juiz cabe tão somente o controle da legalidade do ato administrativo. Em regra, apenas em hipóteses de violação dos limites impostos pela legalidade haveria uma pequena margem de controle judicial. Não obstante tal posicionamento, em face da visão de supremacia da Constituição, uma discussão mais moderna tem tomado a pauta dos Tribunais em face da (não rara) deficiência do Estado em implementar suas políticas públicas, as que visem à concretização dos direitos de cunho social, frutos da segunda geração de direitos fundamentais. O tema, segundo Garcia2, ainda é muito polêmico, principalmente pelo fato de que essa quebra de paradigma – possibilidade de o juiz substituir o administrador público na condução de políticas públicas – encontra óbices não somente jurídicos – como o princípio da separação e harmonia dos poderes e o princípio da legalidade – mas sobretudo fáticos, como é o caso da escassez de recursos financeiros do Estado. Conforme Zagrebelsky3, no Estado de Direito típico do liberalismo a garantia constitucional da atuação do Estado não poderia configurar-se como atividade jurídica. Pelo contrário, deveria conceber-se em termos políticos e atribuir competências a órgãos comprometidos e responsáveis politicamente. A função judicial era incompatível com a política, uma vez que lhe cabia somente a aplicação neutra da lei ao caso concreto. Entretanto, com o declínio positivista e crescimento de importância dos princípios, no 2 GARCIA, Rafael Barreto. O Poder Judiciário e as Políticas Públicas. Revista dos Tribunais, n. 879, jan. 2009, p. 64. 3 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta1995. P. 112. 126 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Estado Constitucional Contemporâneo, a estrutura do direito modificou-se representando consequências muito sérias para a jurisdição. Assim, dado o caráter controvertido do tema, formaram-se basicamente duas correntes de pensamento: uma defensora da judiciabilidade dos direitos sociais e das políticas públicas e outra corrente com posição mais cética e crítica sobre o assunto. 1.1 Corrente Defensora da Judiciabilidade dos Direitos Sociais e das Políticas Públicas A corrente defensora da judiciabilidade dos direitos sociais prega que, em face do disposto no art. 5°, § 1°, da CF/88, todas as normas que definem direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata, razão pela qual não poderia o Judiciário se desviar da tarefa de concretizá-los, ainda que seja necessária invasão na seara do mérito administrativo. Ademais, sustenta-se que a própria eleição dos governantes não seria em si um cheque em branco, podendo haver controle sobre sua atuação política sempre que necessário, pelo Poder Judiciário4. Nesse sentido, esta corrente propõe cinco aspectos básicos que poderiam ser objeto de controle: (1) a fixação de metas e prioridades, por parte do Poder Público, em matéria de direitos fundamentais; (2) o resultado final esperado das políticas públicas vinculadas à realização dos direitos fundamentais, em termos absolutos ou relativos; (4) a constatação do alcance (ou não) das metas fixadas pelo próprio Poder Público; e (5) a eficiência mínima na aplicação dos 5 recursos públicos destinados a determinada finalidade . 4 FREIRE JR. Américo Bedé. O controle judicial das políticas públicas. São Paulo: Ed. RT, 2005. P. 61. 5 GARCIA, 2009, op. cit., p. 68. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 127 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Afirma-se, assim, que o gozo minimamente adequado dos direitos fundamentais seria indispensável para o regular funcionamento da democracia e, portanto, para a existência do próprio controle social das políticas públicas. Caso contrário, sustenta-se que, não existindo respeito a um conjunto básico de direitos fundamentais, dificilmente teriam os governados condições de exercer sua liberdade de participar, de forma consciente, no processo político democrático, bem como de participar do diálogo no espaço público6. Para os defensores da justiciabilidade das políticas públicas, o dogma da intangibilidade do mérito do ato administrativo precisa ser superado. Após a Constituição de 1988, o Direito Administrativo trilhou novos rumos, flexibilizando-se a antiga lição que vedava ao juiz imiscuir-se no chamado "mérito" do ato administrativo, antes reservado à oportunidade e à conveniência do agente público. Hoje já tem assente que mesmo as escolhas políticas devem estar harmonizadas às diretrizes constitucionais, pressuposto de sua validade7. Nesse quadro, Capelletti prega a elevação do Poder Judiciário à efetiva igualdade com os demais poderes do Estado: Eles devem de fato escolher uma das duas possibilidades seguintes: a) permanecer fiéis, com pertinácia, à concepção tradicional, tipicamente do século XIX, dos limites da função jurisdicional, ou b) elevar-se ao nível dos outros poderes, tornar-se, enfim, o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador 8 mastodonte e o leviatanesco administrador . 6 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, v. 3, jul-set, 2006. P. 54. 7 LUGON, Luiz Carlos de Castro. Ética na concretização dos direitos fundamentais. In: SCHÄFER, J. (Org.). Temas polêmicos do constitucionalismo contemporâneo. Florianópolis: Conceito, 2007. P. 337. 8 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? PortoAlegre: Sergio Fabris, 1993. P. 46-47. 128 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S A doutrina constitucional brasileira destaca as cargas eficaciais comuns a todas as normas de direito fundamentais, ou seja, existe igualdade entre os direitos sociais e individuais quanto a sua justiciabilidade. Assim, conforme Sarlet, não se pode negar o valor propriamente jurídico das normas que tutelam os direitos sociais e seu caráter vinculativo aos órgãos do Estado. Os argumentos da separação dos poderes, da reserva legislativa e as demais objeções opostas à justiciabilidade dos direitos sociais devem ceder sempre que esbarrarem no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais ou não) resultar a prevalência do direito prestacional social9. Segundo Klaus Stern10, com a possibilidade de o Poder Judiciário realizar o exame de constitucionalidade, os juízes respectivamente competentes receberam uma grande parcela de poder e responsabilidade, sendo incluídos no processo político, pois decidem também sobre as leis do Parlamento ou sobre as normas jurídicas do governo eleito pelo Parlamento. Tal competência atende ao princípio democrático e à divisão de poderes. Além disso, considera, dado que a Constituição é a norma jurídica suprema do Estado, que nada é mais coerente do que colocar a defesa do direito constitucional nas mãos do Poder Judiciário, mesmo porque, caso não tivesse sido instituído controle judicial algum sobre a observância da Constituição, o próprio órgão político agente, fosse o Parlamento ou Governo, decidiria forçosamente se a Constituição teria sido ou não respeitada. Ademais, a legislação vai precisar de sistemas de monitoramento de resultados, que têm um caráter eminentemente político (portanto, para 9 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. P. 320. 10 STERN, Klaus. O Juiz e a aplicação do Direito. In: GRAU, E. R.; GUERRA FILHO, W. S. (Org.) Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 512. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 129 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S além do campo meramente jurídico)11. Assim, é preciso que sejam criadas condições para que os direitos sociais possam ser justiciáveis em situações em que se justifique que o sejam – ou seja, quando os outros caminhos tenham tido suas possibilidades esgotadas12. Quando se fala em legitimidade para concretização dos direitos fundamentais descritos na Constituição é necessário compreender que esta não decorre exclusivamente do processo eletivo. Contemporaneamente, a legitimidade política não se extrai imediatamente da vitória nas urnas, mas sim do efetivo engajamento com as causas sociais que o político prometeu defender e que deram causa ao seu triunfo eleitoral. Se não há o cumprimento do programa ao qual se vinculou, não é possível afirmar sua legitimidade pelo só fato de ter sido escolhido pelo voto popular. Assim, é correto sustentar que "a legitimidade dos eleitos não advém do voto em si, mas da medida em que cada um deles se torna digno do sufrágio recebido, pela efetiva militância em favor das causas que anunciara em campanha"13. A legitimidade do sistema de justiça para atuar na concretização dos direitos sociais se daria, então, a partir de uma ideia dúplice de representatividade. Seria a combinação entre representação política (derivada do processo eleitoral) e representação funcional (estabelecida pela Constituição). Tal conjectura expande a participação e a influência da sociedade no processo político através de todos os meios disponíveis, inclusive o sistema de justiça. A representação funcional equivaleria a mecanismos de democracia direta, presentes na ideia de comunidade de intérpretes da Constituição. Deste modo, não haveria uma substituição de 11 LIMA JR., Jayme Benvenuto. Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. P. 115. 12 Idem, p. 120-121. 13 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para a sua tutela. PortoAlegre: Livraria doAdvogado, 2006. P. 232. 130 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S lugar da democracia, da esfera político-representativa para a de ordem funcional, mas sim uma ampliação de representação democrática, posto que a cidadania política daria, ao menos em tese, ao homem comum o poder de participar do processo de criação das leis, enquanto a cidadania social oportunizar-lhe-ia acesso, através de ações judiciais individuais ou coletivas, ao processo de aplicação das leis14. Para Courtis15, a suposição geral de que os Direitos Sociais não são justiciáveis como categoria, em virtude de alguma impossibilidade inerente de definição de seu conteúdo, parece ignorar a evidência de quase um século de funcionamento de tribunais do trabalho e de jurisprudência maciça em áreas como seguridade social, saúde ou educação perante tribunais de todas as regiões do mundo. Clémerson Merlin Cléve16, por sua vez, afirma que o Direito Constitucional concebe os direitos fundamentais como dotados de eficácia imediata, significando que eles podem ser, desde logo, invocados pelos particulares perante o Poder Judiciário. Assim, verificou-se que para boa parte da doutrina brasileira os direitos fundamentais sociais podem ser contrapostos ao Estado pela via judicial, que poderia, por sua vez, interferir nas políticas públicas, visando assegurar tais direitos contidos na Constituição. Entretanto, tal posicionamento deve ser olhado com cautela, pois é necessário estabelecer até que ponto essa possibilidade criativa do juiz pode adentrar nas atribuições dos outros poderes do Estado. Dito isto, é necessário 14 PORTO, 2006, op. cit., p. 235. COURTIS, Christian. Critérios de Justiciabilidade dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: uma breve exploração. In: ______. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 489. 16 CLÉVE, Clémerson Mérlin. O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, J. A. L. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 391. 15 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 131 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S verificar as ponderações em sentido contrário a um ativismo tão veemente do Poder Judiciário. 1.2 As Posições Críticas quanto a Possibilidade da Atuação "Política" do Poder Judiciário Para parte significativa da doutrina, a tarefa de atuar na concretização das políticas públicas, assumida pela judicatura, não se dá sem maiores implicações. Várias críticas e ponderações são formuladas e alguns autores até mesmo sustentam a total impossibilidade de tal atitude. Nesse sentido, vamos verificar algumas formulações sobre o tema, que relativizam essa postura judicial de promoção ilimitada dos direitos sociais. Para Claudio Pereira Neto17, a atuação do Judiciário no campo social representaria a usurpação de competências do Legislativo e do Executivo. O Judiciário deveria apenas aplicar as normas legais que disciplinam o modo como os direitos sociais devem ser providos pelo Estado. Não lhe caberia determinar a execução de políticas públicas. Esse tipo de provimento levaria ao "governo dos homens", não ao "governo das leis". O papel do Poder Judiciário não é o de substituir o Poder Legislativo, não é o de transformar "discricionariedade legislativa" em "discricionariedade judicial", mas o de dirimir conflitos nos termos da lei. Proferir sentenças que alterem a vontade legislativa ou administrativa, mesmo sob o impacto dos fatos sociais mais tristes, como a possibilidade da perda de uma vida ou falta de recursos para a compra de remédios, não é papel do Judiciário. Este não cria dinheiro, ele redistribui o dinheiro que possuía 17 132 NETO, Cláudio Pereira de Souza. A Justicibilidade dos Direitos Sociais: críticas e parâmetros. In: DIREITOS Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 520. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S outras destinações estabelecidas pelo Legislativo e cumpridas pelo Executivo18. A ideia de que os juízes, ao complementar as políticas públicas realizadas pelo governo, estarão sempre auxiliando a prestação dos direitos sociais e econômicos é equivocada, porque se baseia em uma premissa tão simples quanto falsa, segundo a qual complementar é sempre algo positivo. Isso poderia ser correto se a realização de direitos sociais não implicasse, em todos os casos importantes, gastos públicos. Mas ela implica19. Embora muitos sustentem que os direitos de primeira geração também demandem recursos para a sua efetivação, os direitos sociais distinguem-se, sim, dos direitos civis e políticos pelos maiores gastos que sua realização pressupõe20. Isso porque os mesmos gastos necessários para a garantia dos direitos civis e políticos são também necessários para a garantia dos direitos sociais e econômicos, como aqueles gastos com a manutenção das instituições políticas, judiciais e de segurança21. A partir dessa constatação, não parece ser difícil perceber a diferença que há – em termos de alocação de recursos públicos – entre decisões judiciais que visem a garantir ou a realizar um direito civil ou político, de um lado, e decisões que visem a realizar ou a garantir um direito social ou econômico, de outro. Pagar remédios, construir hospitais, construir escolas ou construir casas custa mais dinheiro do que exigir uma abstenção 18 SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserve do possível. In. SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. PortoAlegre: Livraria doAdvogado, 2008. P. 171. 19 SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as Políticas Públicas: entre Transformação Social e Obstáculo à Realização dos Direitos Sociais. In: DIREITOS Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008, p. 593. 20 Em sentido contrário ver HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of right: why liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton and Company, 1999. 21 SILVA, 2008, op. cit., p. 593. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 133 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S estatal, sobretudo se partirmos do pressuposto de que os gastos institucionais devem ser divididos por igual na conta comum de todos os direitos22. A constatação de que os recursos, infelizmente, são escassos traduz-se em limitação ao Poder Judiciário na implementação das políticas publicas, uma vez que, à primeira vista, o gestor público é quem teria maior conhecimento das finanças públicas e das carências sociais no todo consideradas. Assim, haveria a indisponibilidade do provimento judicial, no que foge aos direitos sociais integrantes do núcleo da dignidade da pessoa humana23. Embora muitos autores façam um grande esforço para demonstrar "histórias de sucesso" na efetivação de direitos sociais por meio do Judiciário, parecem tais histórias superestimadas, da mesma forma que é o papel que o Judiciário desempenha nessa área. Assim como a conquista de direitos civis e políticos foi uma conquista da sociedade civil, efetivada por meios políticos, a implementação de direitos sociais e econômicos não vai ser realizada de forma diversa24. A própria independência do Ministério Público e do Judiciário, a possibilidade de uma sociedade civil atuante e uma imprensa livre foram conquistas eminentemente políticas, em grande parte resultantes da atividade política legislativa, cujo resultado foi a Constituição de 88. Portanto, algumas das características normalmente apontadas como "prova" da superioridade 22 SILVA, 2008, op.cit., p.593-594. Por força da indigitada limitação de recursos, tem-se defendido que apenas o "mínimo existencial" poderia ser garantido, isto é, apenas direitos sociais, econômicos e culturais considerados mais relevantes, em face do caso concreto, por integrarem o núcleo da dignidade da pessoa ou por decorrerem do direito básico da liberdade, impor-se-iam erga omnes e seriam diretamente sindicáveis. LEAL, Rogério Gesta. A efetivação do direito à saúde por uma jurisdição-serafim: limites e possibilidades. In:REIS, J. R. dos; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos., Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. Tomo 6, p. 1533-1534. 24 SILVA, 2008, loc. cit., p. 592. 23 134 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S do Judiciário em detrimento da característica "mundana" da prática política são exatamente o resultado de procedimentos políticos, disputas partidárias e negociações parlamentares25. Também se pode apontar o estrangulamento dos canais institucionais de acesso à formulação de políticas públicas e produção normativa, conjugado com um arsenal técnico e oneroso de instrumentos garantidores de direitos individuais, que acaba por privilegiar direitos de minorias, não étnicas nem políticas, mas econômicas26. Ou seja, o Judiciário provê os direitos sociais daqueles que detêm condições de contratar um advogado e suportar os custos do litígio. Em que pese exista, no Brasil, o instituto da assistência judiciária gratuita e o auxílio da Defensoria Pública, o grande empecilho ainda é a falta de instrução da maior parte da população brasileira, a impedir que acessem os seus direitos. Desta maneira, o Poder Judiciário acaba por privilegiar os menos necessitados. A realização do fim social do Estado deve ser concebida como um processo, pois quando desaparece a desigualdade mais patente, materializam-se, diante de nossos olhos, novas situações de desigualdade que antes não chamavam atenção. O âmbito das desigualdades em nível material é potencialmente infinito, determinando a necessidade de um limite na esfera de igualização promovida pelo Estado. Em um Estado de Direito, não se pode pretender igualização absoluta, sob pena de dissolução totalitária 27 da sociedade . 25 OLIVEIRA, Cláudio Ladeira. Direito como integridade e ativismo judicial: algumas considerações a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. In: MARTEL, Letícia Campos Velho. (Org.). Estudos Contemporâneos de Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. P. 242. 26 CAMARGO E GOMES, Manoel Eduardo Alves. Apontamentos sobre alguns impactos do projeto neoliberal no processo de formação de tutelas jurídico-políticas. In: DIREITO e neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996. P. 119. 27 RODRÍGUEZ DE SANTIAGO, José María. La administración del Estado Social. Madrid: Marcial Pons, 2007. P. 25. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 135 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Segundo Passos, quando se defere poder sem que este poder seja submetido a controles da correção de seu exercício, o julgador se tornará um déspota intolerável, visto como livre e desembaraçado para fazer do direito positivo gato e sapato: Será um tirano que nem mesmo terá a grandeza dos tiranos políticos, vulneráveis em sua visibilidade, mas a pequenez de um tirano solerte que se esconde e se dissimula na decisão que profere, a nível micro, quase anônima pelo reduzido de sua visibilidade, protegido em seus desvios funcionais pelo bonito discurso imperativo da "independência" do julgador, como se numa democracia houvesse independência aceitável em face do verdadeiro soberano de todos – os 28 cidadãos . Tendo em vista a contraposição entre os defensores de uma posição mais ativa do Judiciário face às políticas públicas e aqueles que percebem tal atuação com maiores ressalvas, é possível perceber que existem argumentos fortes em prol das duas correntes. Assim, para que esse impasse não importe em "desculpa" para o descumprimento dos direitos sociais indispensáveis à condição humana, é necessário buscar critérios consensuais (ou ao menos de subjetividade mais reduzida) para que o Poder Judiciário possa participar desta tarefa que é dele, mas que também é do Poder Executivo e Legislativo e, principalmente, da sociedade civil organizada. Desta feita, em continuidade ao trabalho, serão analisados critérios que possam contribuir para o intento acima explicitado, divididos em duas partes: parâmetros materiais à justiciabilidade dos direitos sociais e critérios processuais à justiciabilidade dos direitos sociais. 28 136 PASSOS, J. J. Calmon de. O magistrado, protagonista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Público - RBDP, Belo Horizonte, ano 7, n. 24, jan./mar., 2009. P. 16. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S 2 Parâmetros Materiais à Justiciabilidade dos Direitos Sociais Para auxiliar na realização das promessas constitucionais promovidas pelas políticas públicas, o Poder Judiciário tem inegável tarefa de ser o guardião constitucional, em especial em matéria de direitos sociais, uma vez que estes são sempre os mais difíceis de serem implementados. Essa dificuldade faz com que estes direitos sejam normalmente postergados, esvaziando o conteúdo da Constituição. Se por um lado é inegável o compromisso jurisdicional, por outro essa atuação implica um choque entre os demais poderes estatais e até mesmo com a própria ideia de soberania popular. Desta forma, a construção de parâmetros materiais pode contribuir para uma atuação mais concatenada, do juiz, com a ordem constitucional vista como um todo e com menor conteúdo de subjetividade, para que se possa assegurar a supremacia da Constituição, mas não a hegemonia judicial. É na busca sobre o debate destes critérios que avança o trabalho nos próximos itens. 2.1 Possibilidade de Universalização da Medida A atuação judiciária sobre as políticas públicas se legitima quando a medida pode ser universalizada para todos os hipossuficientes. No contexto atual, não é possível, por exemplo, que o Judiciário condene a Administração a entregar uma casa para uma família, sob o argumento de que o direito à moradia deve ser imediatamente aplicado. Não se justificariam, tampouco, decisões que condenassem a Administração a empregar um desempregado, sob o argumento de que é titular do direito ao trabalho. Tais medidas não são passíveis de universalização, razão pela qual, ao concedê-las, o Judiciário Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 137 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S violaria o princípio da igualdade. O atendimento das necessidades individuais sem considerar a possibilidade de universalização da medida para os hipossuficientes representa redistribuição de renda não informada por critérios publicamente justificáveis29. Muitas vezes o Judiciário acaba assegurando direitos que, diante dos recursos disponíveis e da existência de outras necessidades igualmente importantes, não teriam como ser universalizados. Ocorre que estas decisões tendem a se multiplicar, comprometendo a racionalidade das políticas públicas e criando implicitamente preferências para algumas pessoas sobre bens escassos, fora de qualquer parâmetro ético ou jurídico30. Sobre o tema, Leal alerta que: Boa parte das demandas sociais precisam ser avaliadas, ao menos em nível jurisdicional, em termos de aferição axiológico normativa da emergência da demanda, aqui entendida como avaliação sistêmico-constitucional da questão que se apresenta, levando em conta não somente o direito individual ou coletivo propriamente dito, mas sua contextualização em face dos outros sujeitos de direitos potencialmente impactados pelo atendimento do seu interesse, notadamente sob a perspectiva de limitação dos recursos coletivos para tal 31 mister . Nesta universalização, deve ser levada em conta a prioridade para a proteção dos mais necessitados, pois se os recursos são escassos, deve-se priorizar a garantia dos direitos sociais para os mais pobres. Se o indivíduo é 29 NETO, 2008, op. cit., p. 540. SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: alguns Parâmetros ÉticoJurídicos. In: DIREITOS Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. P. 584-585. 31 LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. P. 101. 30 138 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S capaz de arcar com os custos de educação, saúde, etc., com recursos próprios, não pode exigi-los do Estado perante o Judiciário. Observe-se, todavia, que a hipossuficiência deve ser verificada no caso concreto. Se o jurisdicionado, embora não seja pobre, não tem recursos para arcar com as prestações sociais sem tornar inviável o atendimento de outras necessidades básicas, está também configurada a hipossuficiência32. Assim, verificar a possibilidade de universalização da medida em prol de todos os hipossuficientes, interessados no provimento da demanda, serve de critério a ser observado na prestação, pela via jurisdicional, de direito social proveniente de política pública. Além disso, essa (im)possibilidade deve ser, necessariamente, fundamentada pelo juiz, da mesma maneira que o Administrador está obrigado a motivar suas decisões no campo discricionário. 2.2 Dever de considerar os direitos sociais em sua unidade Cabe ao Judiciário, quando examina a omissão estatal na concretização de determinado direito social, verificar a relação que o direito mantém com o restante dos direitos sociais também garantidos pela ordem constitucional brasileira. O fundamental é a garantia de uma vida digna, não necessariamente a garantia da incidência do teor literal de todos os preceitos de direito social. Os direitos sociais são, em diversos contextos, intercambiáveis. Ao examinar demandas por prestações públicas, o Judiciário deve conceber os direitos sociais como unidade, constituída em 33 torno das noções de hipossuficiência e de dignidade humana . 32 33 NETO, 2008, loc. cit., p. 539. Idem, p. 541. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 139 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Nessa linha, deve ser levado em conta, pelo juiz, que "a satisfação de um problema imediato poderá inviabilizar centenas de outros tão importantes e legítimos quanto este, haja vista que os recursos financeiros e materiais para tanto, é inexorável, são finitos"34. A decisão judicial seria uma atividade bipolar que pretende uma solução jurídica para um acontecimento conflitivo, mas que deve valorar e integrar não só as exigências regulativas do direito, como também o efeito social da decisão35. Assim, uma das coisas que se podem exigir do Poder Público em matéria de concretização dos direitos sociais é a obrigação de proteger as partes mais vulneráveis da sociedade por meio de programas específicos de prestação de direitos36, o que, infelizmente, impede o atendimento daqueles que não necessitam de maneira mais latente, uma vez que: [...] diante de uma escassez econômica que impeça que todos possam ser satisfatoriamente atendidos ou enquanto perdura uma situação de desigualdade tal que muitos não possuem acesso a bens sociais básicos; constitui uma desvirtuação da desigualdade o oferecimento de serviços gratuitos à totalidade da população quando isto resulta, por falta de recursos, num serviço insuficiente a todos, deixando os desprotegidos economicamente à mercê de uma 37 eventual impossibilidade de acesso . (Tradução livre.) 34 LEAL, 2009, op. cit., p. 1533. PEÑA FREIRE, Antonio. La garantía en el Estado Constitucional de Derecho. Madrid: Trotta, 1997. P. 228. 36 VAZ, Anderson Rosa. A cláusula de reserva do financeiramente possível como instrumento de efetivação planejada dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Revista dos Tribunais, ano 17, n. 66, p. 23, jan./março 2009. 37 MÖLLER, MAX. Igualdade substancial e titularidade dos direitos sociais prestacionais. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 30, n. 63, jan./jun. 2006. P. 151. 35 140 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Nesse ponto, se observa, então, que vai ser legítimo ao Poder Judiciário prover demandas sociais dependentes de políticas públicas quando puder fundamentar levando em consideração a gama total de direitos sociais envolvidos, bem como limitando o provimento àqueles que realmente necessitam. 2.3 Prioridade para a opção técnica da Administração e prioridade para a escolha mais econômica As opções técnicas do administrador e do legislador devem ter prioridade em relação à proposta pelo demandante na ação judicial. Por exemplo, se o Estado oferece procedimento médico para determinada patologia, não há, em regra, como o Judiciário determinar que arque com os custos de outro procedimento desenvolvido para a mesma patologia, por ter sido o prescrito pelo médico privado. Se o Estado inclui em sua lista medicamento para o tratamento de determinada doença, o magistrado não pode determinar que adquira outro, da preferência do médico do demandante. Isso pode ser objeto de discussão no Judiciário, mas há prioridade prima facie para a solução técnica apresentada pela Administração Pública38. O jurista não dispõe de instrumental técnico ou de informações para levar a cabo o controle jurisdicional das políticas públicas. Além disto, os indivíduos que vão ao Judiciário postular algum bem ou serviço em matéria de direitos fundamentais nem sempre são provenientes das classes menos favorecidas. As necessidades destes, em regra, não chegam aos Tribunais nem são ouvidas pelos juízes, representando um deslocamento de 38 NETO, 2008, op. cit., p. 541-542. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 141 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S recursos das políticas públicas gerais – que, em tese, iriam para os que mais precisam de forma direta – para as demandas específicas daqueles que detêm informação e capacidade de organização39. Nada obstante o Judiciário tenha meios para qualificar tecnicamente suas decisões, a Administração dispõe de "capacidades institucionais" mais apropriadas. A solução técnica da Administração deve, contudo, ter sido apresentada previamente ao ajuizamento da ação, na forma de política pública já institucionalizada. A formulação casuística de soluções técnicas pelo Estado lhes reduz a confiabilidade e as vantagens comparativas em relação às propostas pelo demandante40. Para Castro e Costa, em defesa do asseguramento da possibilidade da Administração em estabelecer seus argumentos técnicos: Duas atitudes são imprescindíveis para o juiz: em primeiro lugar, não olvidar as regras de imparcialidade procedimental, assegurando a apresentação de argumentos por parte da Administração e a produção de provas que os sustentem; em segundo lugar, confrontar a consistência de tais argumentos com a consistência da fundamentação que pode ser exposta na decisão judicial. Este juízo de ponderação eliminará muitas hipóteses de alteração do mérito do ato administrativo, em face da superioridade comparativa dos argumentos 41 expendidos pelaAdministração . Da mesma maneira, o Judiciário deve optar pela solução mais econômica, dentre as eficazes. Se, por exemplo, o jurisdicionado requer a entrega de medicamento fabricado por determinado laboratório, mas há 39 BARCELLOS, 2006, op. cit., p. 127. NETO, 2008, op. cit., p. 541-542. 41 CASTRO E COSTA, Flávio Dino de. A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas públicas no Brasil. In: MONTESCO, C. J.; FREITAS, M. A. de; BORGES, M. de F. C. (Org.). Direitos sociais na constituição de 1988: uma análise crítica vinte anos depois. São Paulo. LTr, 2008. P. 167. 40 142 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S medicamento genérico, o Judiciário deve optar por este último. Se há vaga na rede pública de ensino, o magistrado não deve determinar a matrícula de aluno na rede privada. A escassez de recursos públicos cria essa obrigação para o Poder Judiciário, até para que a medida possa ser universalizada. Se há duas soluções técnicas adequadas para o mesmo problema, o magistrado deve optar pela que demande menor gasto de recursos públicos42. A possibilidade de controle da eficiência mínima das políticas públicas envolverá a verificação do emprego adequado dos recursos no contexto das políticas públicas, nesse sentido impedindo condutas claramente ineficientes ou mesmo malversação criminosa do dinheiro público43. Assim, da mesma forma que o juiz está restrito a promover a medida que atenda a necessidade constitucional-social do demandante hipossuficiente mais econômica para o Estado, este vai estar, para garantir que o magistrado fique dentro desse limite de atuação, obrigado a comprovar que os recursos públicos estão sendo bem aplicados. A verificação dos parâmetros materiais que condicionam o Poder Judiciário na implementação de políticas públicas não esgota o rol de compromissos que este deve assumir para reduzir a subjetividade de suas decisões e ampliar seu caráter democrático. Desta forma, alguns critérios de ordem processual vão colaborar no sentido de dar legitimidade para essa atuação "ativista". 42 43 NETO, 2008, op. cit., p. 542. BARCELLOS, 2006, loc. cit., p. 137. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 143 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S 3 Critérios Processuais à Justiciabilidade dos Direitos Sociais Os critérios que subsidiam a atuação judicial nas políticas públicas, além de sua face material, também se consubstanciam por critérios procedimentais, sem os quais a decisão do juiz seria inteiramente ilegítima e interventora na esfera dos outros poderes constituídos. Embora os direitos sociais sejam comumente identificados com aspectos substantivos, também possuem inegável dimensão procedimental, a qual constitui base sólida para prestação jurisdicional. A ideia de devido processo legal foi originalmente concebida para a proteção de direitos civis tradicionais, tal como o direito de propriedade. Entretanto, não há impedimento conceitual que impeça a extensão de proteções procedimentais a estes direitos. Garantias procedimentais podem adquirir múltiplas formas. Podem ser colocadas como pré-requisitos para a adoção de certas medidas gerais e políticas pelo Estado, estabelecer passos que o Estado está obrigado a dar antes de conceder, negar ou expropriar indivíduos em particular ou grupos de algum desses direitos ou também podem objetivar estabelecer as bases para o controle administrativo ou judicial de decisões adotadas por autoridades administrativas ou por outras autoridades políticas44. Assim, o controle procedimental sobre esse tipo delicado de decisão, que enseja amplo debate sobre sua legitimidade frente ao princípio da separação de poderes45, é indispensável para conferir aceite social e institucional para esta forma atuante de jurisdição. 44 45 144 COURTIS, 2008, op. cit., p. 495-496. Mesmo porque, é razoável afirmar, com Streck, que a liberdade do legislador é mais restrita quando relativa aos direitos de liberdade e mais ampla quando referente às liberdades econômicas, de mercado ou prestações sociais, o que não quer dizer que os atos legislativos e de governo, nestes casos, não devam estar conformados ao texto da Constituição e sua materialidade. STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 99 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S 3.1 Prioridade para as ações coletivas O primeiro critério procedimental a ser abordado diz respeito à possibilidade de o Poder Judiciário, e nesse sentido seria importante destacar também a atuação do Ministério Público e Defensoria Pública, dar preferência para solução dos conflitos acerca dos direitos sociais para as ações de cunho coletivo. Embora possam ocorrer decisões judiciais em litígios individuais – como, de fato, vem ocorrendo –, há várias razões para que se priorizem as ações coletivas, como destaca Neto: (a) As decisões proferidas no âmbito de ações coletivas garantem a universalização da prestação (...). (b) As decisões proferidas em ações coletivas desorganizam menos a Administração Pública. (...). (c) Nas ações coletivas, é possível discutir com o cuidado necessário os aspectos técnicos envolvidos (...). (d) A priorização das ações coletivas estimula que o cidadão se mobilize para a atuação política conjunta (...). (e) A priorização de ações coletivas evita que apenas cidadãos que possuam um acesso qualificado à justiça sejam efetivamente destinatários de prestações sociais. (f) Nas ações coletivas, é possível analisar, de modo mais 46 preciso, o impacto da política no orçamento . Na tutela coletiva, os magistrados não têm como escapar de uma reflexão que deveria ser realizada sempre que estivessem em jogo pretensões sobre recursos escassos: o potencial de universalização do que foi pedido. Não há como decidir uma ação civil pública que afete a todo um amplo universo de pessoas sem considerar o seu efeito sobre as políticas públicas em vigor e as verbas existentes. O impacto aqui é inequívoco e por isso tem de 46 NETO, 2008, op. cit., p. 543-544. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 145 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S ser enfrentado. O julgamento força uma análise de "macrojustiça", que envolve a legitimidade do atendimento de determinados pleitos num quadro de escassez de recursos47. As ações coletivas são mais adequadas, pois os direitos sociais não podem ser apropriados por um indivíduo em detrimento de toda a sociedade. Este tipo de ação é que enseja a consideração dos efeitos da decisão para a sociedade. Vários interesses em jogo podem ser ponderados com a participação de vários entes políticos e sociais como se daria pelo instituto do amicus curiae (ou seja, terceiros interessados na lide poderiam participar do feito, trazendo cálculos, argumentos)48. Nas ações individuais é muito mais fácil para o juiz "tapar o sol com a peneira" e conceder "com o coração" qualquer prestação demandada, já que os efeitos concretos de cada decisão sobre o orçamento público costumam ser diminutos e existe todo um apelo emocional que inclina os magistrados a decidirem com maior generosidade em favor das pessoas concretas, de carne e osso, cujas carências e necessidades foram explicitadas no processo49. Ademais, as ações coletivas tendem a possibilitar uma instrução processual mais completa, franqueando ao juiz um maior contato com as inúmeras variáveis envolvidas na implementação das políticas públicas de atendimento dos direitos sociais, que tenderiam a ser negligenciadas nas ações individuais50. Assim, esse critério pode amparar a atuação jurisdicional acerca das políticas públicas, pois essa preferência para as ações coletivas auxilia na 47 SARMENTO, 2008, op. cit., p. 584. TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. P. 67. 49 SARMENTO, 2008, op. cit., p. 584-585. 50 Idem, p. 585. 48 146 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S garantia de outros critérios já apontados, como possibilidade de universalização da medida e o dever de considerar os direitos sociais em sua unidade. 3.2Atribuição do Ônus da Prova de que Não Tem Recursos àAdministração Segundo esse parâmetro, o argumento da reserva do possível51, isto é, de que a Administração não tem recursos para prover a demanda relativa aos direitos sociais, somente será aceita pelo Judiciário quando puder ser devidamente comprovada. O argumento da reserva do possível não é admissível quando formulado abstratamente. Contudo, se, no caso em exame, a Administração prova que não possui recursos para universalizar a prestação, o magistrado deve decidir pelo não provimento, nada obstante eventualmente estivesse legitimado para determinar a providência requerida, considerando os parâmetros materiais acima apresentados. É, todavia, a própria Administração que tem a obrigação de provar não possuir os recursos disponíveis para prover a prestação52. Neste sentido já caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme decisão proferida no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 410.715, com relatoria do Ministro Celso de Mello, em que 51 52 Sobre o assunto vide: LEAL, Rogério Gesta. A efetivação do direito à saúde por uma jurisdição-serafim: limites e possibilidades. In: REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. (Org.). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. Tomo 6; VAZ, Anderson Rosa. A cláusula de reserva do financeiramente possível como instrumento de efetivação planejada dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, n. 66, jan.-mar,. 2009; SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2008. NETO, 2008, op. cit., p. 545. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 147 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S o Município de Santo André – SP foi obrigado a promover a inclusão de crianças em creches e pré-escolas. Neste caso, apesar da determinação judicial, ressaltou-se a possibilidade de o Estado ter comprovado objetivamente que não dispunha de recursos para o atendimento da demanda, o que não fez: Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizarem-se pela gradualidade do seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômica e financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando 53 contido na Carta Política . Para Vaz54, uma das coisas que certamente se podem buscar via jurisdição é esta obrigação de prestar um padrão mínimo de direitos humanos e, em caso de não cumprimento, provar que o máximo de recursos foi utilizado de forma absolutamente eficiente. Logicamente, mais do que deter o ônus de comprovar a falta de recursos, a Administração deve manter suas contas de forma aberta e transparente para que tal prova não possa ser "maquiada" para um caso concreto, uma vez que a tecnicidade dos orçamentos públicos dificultaria sua avaliação. Ressalvadas algumas hipóteses bastante restritas, cujo sigilo seja fundamental para o sucesso do plano de ação governamental, faltará com a devida transparência administrativa a política pública que não seja 53 54 148 STF, RE-AgR 410.715, Rel. Ministro Celso de Mello, D.J. de 03.02.2006. VAZ, 2009, op. cit., p. 23. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S construída com ampla divulgação e possibilitando a participação dos cidadãos interessados55. Ou seja, a falta de transparência vai ensejar uma possibilidade de maior controle por parte do Poder Judiciário, enquanto, do contrário, havendo ampla divulgação na esfera pública, haverá maior limitação ao poder jurisdicional frente à possibilidade de aferição da pertinência da política na esfera social. 3.3Ampliação do diálogo institucional A necessidade de ampliação do diálogo institucional talvez seja um dos critérios mais importantes no sentido de legitimar a atuação "política" do Poder Judiciário, uma vez que aproxima o diálogo jurídico do político, travando dialética apta a propiciar uma decisão mais justa e concatenada com a realidade social e com as prerrogativas da soberania popular. A atuação jurisdicional dos tribunais constitucionais tem sido criticada por alguns teóricos, visto que a legitimidade do Poder Legislativo, em virtude de seu caráter eletivo e representativo, é maior do que a dos órgãos que integram a jurisdição constitucional. Em virtude dessa legitimação democrática é que as decisões importantes sobre conteúdos e valores, em uma sociedade plural e complexa, deveriam caber ao primeiro, limitando-se 56 e restringindo-se a desta última . No entanto, alguns autores contemporâneos sustentam a regularidade da atuação sobre as políticas públicas desde que amparada no 55 OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In. SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2008. P. 340. 56 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007. P. 207. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 149 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S critério da ampliação do diálogo institucional. Como exemplo, Peter Häberle, em "A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição", oferece, como forma de legitimação deste tipo de atuação jurisdicional, uma interpretação constitucional que seja realizada por uma sociedade aberta dos intérpretes no sentido de que toda a sociedade deve participar deste processo. A interpretação constitucional atual, segundo o autor, tem sido realizada apenas pelos intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" e aqueles participantes formais do processo constitucional. No entanto, todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. Assim, Häberle define os intérpretes constitucionais em sentido lato: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público, a opinião pública, etc., mas ressalta que subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação57. A ampliação do círculo dos intérpretes é consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação. Desta forma, a legitimação destas forças pluralistas da sociedade se dá uma vez que representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição58. Isso representa que "a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática". Portanto, "é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas"59 Esse locus privilegiado de atuação pode ser implementado através da "criação e a consolidação de ações constitucionais específicas, [...] permitindo uma participação direta dos cidadãos no questionamento de 57 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos interpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. PortoAlegre: SérgioAntônio Fabris, 1997. P. 13-14. 58 Idem, p. 33. 59 Idem,, p. 14. 150 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S temas fundamentais à sociedade"60. Assim, a "abertura dos canais internos do próprio Judiciário para com a comunidade e para com os argumentos trazidos para dentro do processo" se torna imprescindível. Em se tratando de temas constitucionais fundamentais, que afetam a sociedade, para uma comunicação efetiva deve o magistrado "abrir espaços para o diálogo e, principalmente, estar aberto a ele"61. A partir dessa atuação legitimada pela participação popular, a jurisdição constitucional fica autorizada a atuar valorativamente, pois sua fundamentação não é mais somente baseada em "valores extraídos do senso comum ou da convicção pessoal do juiz, [...] mas sim de uma jurisdição que pauta suas decisões valorativas em processos abertos de discussão e de conteúdo"62 . Menelick aponta, no caso brasileiro, como instrumento de ampliação dos intérpretes da Constituição, o nosso controle difuso de constitucionalidade, pois representa "a compreensão da Constituição como de autoria de todos nós"63, permitindo que todos sejamos intérpretes autorizados da Constituição, uma vez que não se autoriza ao Legislativo ou qualquer outro poder violar direitos fundamentais, podendo ser a questão arguida e discutida por qualquer juiz no caso concreto. A judicialização das políticas sociais depende de decisões construídas mais horizontalmente, a partir da interlocução permanente entre magistrados, administradores, técnicos, universidades e associações da sociedade civil. Não raro se exigirá que o magistrado visite escolas e hospitais e dialogue, no local, com os usuários e servidores64. 60 LEAL, 2007, loc. cit., p. 204. LEAL, 2007, op. cit., p. 205. 62 Idem, p. 206. 63 NETTO, Menelick de Carvalho. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. (Org.) Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 163. 64 NETO, 2008, op. cit., p. 546. 61 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 151 J U S T I C I A B I L I D A D E D A S P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S Assim, somente em uma sociedade em que a comunicação política se dê de forma autônoma, com mecanismos de visibilidade plena e includente, os institutos da democracia representativa ganharão força e relevo. Desta forma, "o Parlamento resgata sua dimensão de formulador das ações voltadas ao atendimento dos interesses comunitários"; o Poder Executivo "mantém-se adstrito às suas funções concretizadoras do projeto de vida eleito pela Sociedade" e o Judiciário, por fim, "opera sua condição republicana, no sentido de dar guarida às regras do jogo das ações e tensões vigentes no espaço público da vida cotidiana"65 . Por tudo que foi visto, a crescente e ininterrupta abertura dos canais institucionais do Poder Judiciário vai ser necessária para que este se coloque como opção com respaldo democrático na concretização de políticas públicas, constituindo-se em critério procedimental inafastável imposto à jurisdição. REFERÊNCIAS BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, v. 3, jul-set, 2006. 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Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 125-158, 2010 157 O PRINCÍPIO DO CARÁTER NÃO AUTOMÁTICO DOS EFEITOS DAS PENAS E A INADMISSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DO CONDENADO: DESCONSTRUÇÃO DISCURSIVA E APROXIMAÇÃO COMPARATIVA COM O EXEMPLO PORTUGUÊS Salah Hassan Khaled Junior1 Fabrício Martinatto da Costa2 RESUMO O presente artigo procura sustentar a hipótese de que a suspensão dos direitos políticos do condenado é um resto anacrônico de uma concepção de pena que é incompatível com os preceitos que delimitam o espaço legítimo de atuação do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito. A partir de autores como Salo de Carvalho, Luigi Ferrajoli e Jorge de Figueiredo Dias, a análise aponta que o princípio do caráter não automático dos efeitos das penas representa uma abertura dogmática que pode contribuir para a percepção do quanto é imprescindível repensar a questão da cidadania e da própria humanidade da população tragada pelo nosso sistema penal. Palavras-chave: Direitos Políticos. Direitos Humanos. Direitos Fundamentais. Direito Penal. Pena. ABSTRACT This article seeks to support the hypothesis that the suspension of political rights of the offender is a remnant of an outdated conception of punishment that is incompatible with the precepts that define the scope of legitimate action of the punitive power in a democratic state of law. Using authors such as Salo de Carvalho, Luigi Ferrajoli and Jorge de Figueiredo Dias, the analysis reveals that the principle of the non-automatic nature of the effects of the criminal sentences represents a dogmatic opening that can contribute to the perception of how it is imperative to rethink the citizenship and the very humanity of the people swallowed up by our criminal justice system. Keywords: Political Rights. Human Rights. Fundamental Rights. Criminal Law. Penalty. 1 Professor assistente de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). 2 Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – Furg. Bolsista de Iniciação Científica. Bolsista do Programa de Bolsas Luso-Brasileiras Santander Universidades (Universidade de Coimbra – Portugal). Monitor de Direito Penal. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 159 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S 1 Introdução O presente artigo procura sustentar a hipótese de que a suspensão dos direitos políticos do condenado é um resto anacrônico de uma concepção de pena que é incompatível com os preceitos que delimitam o espaço legítimo de atuação do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito. Evidentemente o tema é polêmico, uma vez que a Constituição Brasileira de 1988 estabelece de forma clara – em seu art. 15, inciso III – a referida suspensão. Não bastasse a suspensão, esta é autoaplicável, sendo o efeito consequência imediata e direta da decisão condenatória transitada em julgado. Não é sequer necessária a manifestação expressa de sua incidência e não há qualquer espécie de distinção quanto à modalidade da infração cometida. A suspensão persiste enquanto durarem as sanções impostas ao condenado, compreendendo, inclusive, o livramento condicional. Apesar da disposição expressa, é urgente repensar a questão, pois a fundamentação para a imposição desse efeito adicional da condenação penal não pode ser extraída dos mandamentos político-criminais inseridos na Carta Magna de 1988, uma vez que ela não expressa em trecho algum adesão a nenhuma teoria dos fins pena. Tais teorias, como se sabe, têm um caráter justificador da sanção penal – em sua forma absoluta ou relativa – e são elas que fornecem os fundamentos que legitimam a imposição automática desse efeito adicional da condenação. Diferentemente da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de julho de 1984, conhecida como LEP) que claramente estabelece um ideal ressocializador inspirado na ideia de prevenção especial, na CF/88 encontramos uma preocupação com a limitação dos perversos efeitos da pena, ou seja, com os meios empregados na sua execução, a partir de uma perspectiva de nítida busca de redução de danos. 160 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Certamente que a restrição dos direitos políticos do condenado não parece condizente com a preocupação com a redução dos efeitos perversos da pena e também não parece condizente com o necessário respeito aos direitos humanos e fundamentais em um Estado Democrático de Direito. Parece haver aqui uma contradição irreconciliável na Carta Magna de 1988 entre o núcleo axiológico-valorativo de respeito aos direitos fundamentais do indivíduo e a previsão expressa de suspensão dos direitos políticos enquanto efeito automático de imposição de sanção penal pelo Estado. Até pouco tempo atrás, o problema se estendia aos presos provisórios, que também eram impedidos de votar. O impedimento conformava verdadeira violação ilegal de direitos fundamentais, pois, uma vez que não foram condenados em definitivo, não haviam perdido os direitos em questão. Na verdade trata-se de apenas mais um dos muitos problemas vinculados ao desmedido incremento da utilização da prisão provisória, que várias vezes acaba configurando uma espécie de pena antecipada e que no caso em questão atingia – na prática e de forma ilegítima – os direitos políticos do cidadão. Não é por acaso que nos últimos anos foi desencadeada forte pressão por parte de organizações civis no sentido de viabilizar o direito ao voto nestes casos – visto que sequer se encontrava juridicamente suspenso –, que finalmente foi acolhida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por meio da resolução número 23.219/10. Enfim, após experiências restritas e pontuais de alguns Tribunais Eleitorais, como o do Rio Grande do Sul, neste ano foram tomadas medidas concretas para viabilizar o direito ao voto, com a assinatura de acordo de cooperação técnica com o TSE pelo presidente do Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 161 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes3. É evidente que a iniciativa é mais do que louvável e assinala com horizonte de expectativa de concretização do exercício dos direitos políticos por parte de uma parcela da população que vinha sendo indevida e ilegalmente impedida de exercê-los: a CF/88 explicitamente refere que a suspensão somente é cabível em decorrência de decisão condenatória transitada em julgado. No entanto, como assinalado anteriormente, parece-nos necessário avançar ainda mais: é urgente uma revisão crítica acerca da imposição desse efeito em particular, o que leva, por sua vez, à consideração da eficácia e efetividade dos limites que foram impostos ao poder punitivo do Estado. Limites estes que muitas vezes não são devidamente observados pelo legislador pátrio. Nesse sentido, para desconstruir a previsão normativa de suspensão dos direitos políticos é necessário (re)pensar a conformidade da intervenção jurídico-penal no que se refere ao respeito aos direitos humanos e fundamentais, desde premissas constitucionais condizentes com o projeto de Estado Democrático de Direito delineado na CF/88. A partir dessa problemática inicial, a análise aqui proposta utiliza o direito e a doutrina de Portugal como horizonte de abertura diante de uma questão que tem tido pouca atenção no cenário jurídico nacional. Uma análise comparativa no âmbito da desconstrução dos pressupostos que autorizam a imposição automática da perda de direitos políticos pode se 3 162 Além do TSE e do Ministério da Justiça, assinaram o protocolo de cooperação técnica com o CNJ, a Defensoria Pública da União (DPU), a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os conselhos nacionais do Ministério Público; dos Direitos da Criança e do Adolescente; de Política Criminal e Penitenciária; dos Defensores Públicos Gerais e dos Secretários de Justiça, Cidadania, Direitos Humanos eAdministração Penitenciária. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S mostrar muito proveitosa, pois a comparação jurídica – ou direito comparado – tem virtudes que lhe são muito peculiares, particularmente para irradiar novas luzes em locais em que a familiaridade impede a constatação da existência de limites discursivos. 2 Estabelecimento do Problema A perspectiva de análise aqui empregada faz com que o tema da suspensão dos direitos políticos do condenado criminalmente não possa ser abordado sem que se faça referência ao problema da fundamentação dada pela teoria das penas à imposição de sanções penais. O motivo dessa consideração se encontra no fato de que é justamente essa fundamentação que consubstancia a referida suspensão, pois, como referido anteriormente, embora a mesma tenha previsão constitucional, não está adequada ao projeto de Estado Democrático de Direito delineado na CF/88. Nesse sentido, constata-se o desgaste das teorias justificantes das penas, uma vez que estas não são mais compatíveis com um modelo de Estado Constitucional embasado em uma concepção pluralista e complexa da sociedade. Isso porque elas não informam satisfatoriamente os limites que devem ser impostos à intervenção jurídico-penal, legitimando por vezes um Direito Penal máximo e que desconsidera – muitas vezes de forma flagrante – os direitos humanos. De forma sucinta, pode ser dito que: as exigências de prevenção geral negativa (de intimidação do corpo social) fazem de muitas condenações algo exemplar, com verdadeiro caráter de pedagogia social; a prevenção geral de caráter positivo, por sua vez, conforma uma intervenção estatal no sistema de valores do indivíduo inaceitável em um Estado Democrático de Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 163 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Direito; as pretensões de prevenção especial positiva por meio da ressocialização são mero mito no contexto penitenciário nacional; a ideia de inocuização inerente à prevenção especial negativa flagrantemente viola direitos humanos; por fim, a exigência de castigo inerente ao princípio retributivo é incompatível com a dignidade da pessoa humana (apesar do reconhecimento de que outra finalidade que não o castigo em si mesmo atingiria essa dignidade). Por outro lado, as releituras contemporâneas da prevenção geral fundamentadora – autopoiética, por muitos referida como uma espécie de neoretribucionismo – (JAKOBS, 2003, p.71-72) e limitadora – que implica recepção de critérios de prevenção geral na teoria do delito – (ROXIN, 2000, p.48-50) também têm problemas que exigiriam uma análise mais extensa do que as dimensões do presente artigo comportam. Necessário, portanto, modificar o âmbito da discussão: promover o deslocamento de um discurso meramente legitimante para um discurso crítico, ciente dos efeitos catastróficos que o poder punitivo produz e objetivando a sua concreta limitação. O ponto de partida necessário para esse deslocamento é o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana no que se refere aos meios de execução da pena e a seus efeitos. O referido princípio – e o irrenunciável respeito a ele – é essencial ao Estado Democrático de Direito, ou melhor, à sua concretização para além de um mero horizonte de expectativa. Portanto, trata-se de um limite inegociável ao exercício arbitrário do poder punitivo que deve urgentemente alcançar efetividade concreta. Um dos fatores que demonstram essa urgência é a contradição entre a atuação deficitária do Estado em termos de prestações sociais e sua presença cada vez mais intensa em termos de repressão penal. A pretensão de erigir uma sociedade saudável com base na repressão não pode ser mais do 164 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S que uma ingenuidade evidente ou, pior ainda, produto de uma razão ardilosa. O alto índice de exclusão social não tem como ser compensado por meio do atendimento ao apelo midiático de endurecimento da atuação das agências de punitividade e da legislação penal. Trata-se de um apelo que inclusive acaba por provocar um sentimento de insegurança generalizado, que conduz a uma intervenção jurídico-penal com alto índice punitivista. Essa intervenção nitidamente autoritária caracteriza-se, sobretudo, por ignorar a exigência constitucional de respeito a direitos fundamentais, tanto no processo como na execução da pena. Nesse contexto, cada vez são maiores as exigências por um Estado protetor, responsável pela manutenção da ordem social e pela persecução aos indivíduos considerados como ameaça à sociedade, agora categorizados como não-pessoas, os chamados inimigos (JAKOBS, MELIÁ, 2003). Por outro lado, o movimento de hipertrofia da legislação penal – resultante em grande medida das exigências midiáticas – acaba gerando patologias e estimulando a difusão do direito penal exclusivamente simbólico como messiânica promessa de concretização da tão sonhada – e mítica – segurança. Assim, alicerçada numa concepção ilusória de que os problemas de segurança pública podem ser resolvidos com a mera ameaça de sanção penal, a lógica do direito penal máximo inverte e subverte o sentido do próprio sistema penal, enquanto mecanismo restrito reservado à tutela dos bens jurídicos mais importantes e das lesões mais graves a estes bens. O que se vê, portanto, é uma política criminal de "garantia da liberdade" reduzida a uma "política de segurança" que procura irrestritamente combater o crime (RODRIGUES, 2002, p.150). Para modificar ou ao menos atenuar o quadro acima descrito é preciso reencontrar e repensar os fundamentos do Direito Penal para Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 165 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S identificar o seu campo de atuação e sua função, a fim de reduzir os danos que, inevitavelmente, ele provoca. Isso implica a consideração crítica de limites discursivos que parecem conformar barreiras insuperáveis à concretização de um Direito Penal orientado de acordo com as exigências de um Estado Democrático de Direito. Assim, é imprescindível superar o problema dos fins das penas e desenvolver um novo discurso dirigido aos meios de execução e aos efeitos da pena, capaz de fundamentar uma atuação penal comprometida com uma política de redução de danos e com a garantia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a própria concepção existente acerca dos direitos humanos do condenado necessita ser repensada urgentemente. Para tanto, torna-se essencial estabelecer o condenado como verdadeiro sujeito de direitos, de modo que a pena a ele imposta possa ser entendida como sanção, mas também como limite na imposição de quaisquer restrições adicionais a direitos que não foram (e nem podem) ser objeto de restrição. A partir dessa perspectiva, será possível refutar como ilegítimo qualquer efeito penal moralizante, que coisifique ou reduza o criminoso a um patamar inferior ao dos demais cidadãos, seja no momento da determinação da pena, seja na sua execução. Nessa perspectiva, um Estado que considere o criminoso sujeito de direitos é o passo inicial para tornar a intervenção jurídico-penal mais condizente com a sua função primordial e original: a de constituir uma barreira intransponível à incidência arbitrária do poder punitivo. Saliente-se, nesse contexto, a importância da CF/88 para construir uma renovada posição jurídica do condenado, desde o irrenunciável princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, esse papel constitucional somente pode ser cumprido quando não são impostas pelas próprias normas constitucionais restrições aos direitos fundamentais do 166 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S condenado que não se coadunam com o princípio em questão. Nesse sentido, a imposição de restrição dos direitos políticos do condenado apenas contribui para aprofundar sua estigmatização e dessocialização, reforçando a construção discursiva da categoria de não-pessoa, isto é, o inimigo, algo impensável e inadmissível em um Estado Democrático de Direito. 3 (Re)pensando a Sanção Penal a partir de uma Perspectiva de Redução de Possíveis Danos A necessidade de superação do limite discursivo dos fins das penas pode ser sustentada a partir da incapacidade das teorias da pena em legitimar exclusivamente sistemas penais mínimos, ou seja, compatíveis com o Estado Democrático de Direito. As teorias da pena concebidas na modernidade – assim como suas releituras contemporâneas – são mais aptas a legitimar do que a questionar a incidência arbitrária do poder punitivo. Ao fornecer fundamentação para as práticas punitivas, os discursos justificadores da pena acabam por legitimar as mais diversas táticas de intervenção penal, inclusive as mais autoritárias e maximizadas, o que demonstra claramente a falência desses modelos incapazes de encontrar alternativas ao sistema punitivo atual, que ainda (re)produz mais injustiças do que justiças. Nesse sentido, Carvalho constata que "o irrestrito e romântico apego aos fundamentos punitivos revisitados na Ilustração, aliado à ausência de problematização do fenômeno pena nas atuais sociedades complexas, impedem às doutrinas dogmáticas e críticas do direito penal qualquer tipo de ruptura e/ou refundação discursiva, visto recaírem em espécie de história penalógica antiquária" (CARVALHO, 2006, p. 67). Diante dessa Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 167 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S incapacidade, as doutrinas justificadoras acabam fortalecendo a ilusão de tentar controlar por meio da imposição de sanções penais a agressividade e paixões humanas, para conquistar uma condição social de convívio pacífico, sem violências e delitos (CARVALHO, 2006, p. 68). A crença na aptidão do sistema penal para promover segurança leva à incidência arbitrária do poder punitivo, algo impensável num Estado Democrático de Direito calcado no princípio da dignidade da pessoa humana, mas devidamente "mascarado" ou "legitimado" discursivamente pelas funções de prevenção geral e especial da pena, assim como por uma concepção de retribuição com nítido conteúdo moral. Tudo isso indica a necessidade de superação da discussão travada por séculos pelos penalistas em torno dos míticos fins da pena, para enfim, reconhecer-se a aguda urgência de considerar os meios pelos quais ela é executada. Segundo Carvalho, esse deslocamento implicaria que: nenhuma finalidade universalista e totalizante sobreviveria à crítica; nenhuma função restaria imune à constatação da produção de violência unilateral quando da imposição de estereótipos normalizadores em pessoas concretas, de 'carne e osso', caracterizadas pela alteridade. O meio, portanto, por representar incidência de violência institucional no sujeito punibilizado, deverá sempre ter mais importância que o fim ideal(izado) da pena (CARVALHO, 2006, p. 71). Portanto, temos que nos perguntar sobre os limites da pena num Estado Democrático de Direito, no qual é exigido respeito aos direitos fundamentais. Trata-se, portanto, da necessidade de (re)pensar o direito penal a partir do binômio eficácia-humanidade, sendo que a intervenção penal deverá dirigir-se, ao mesmo tempo e em igual relevância, para a tutela de bens jurídicos e para garantia dos direitos fundamentais do condenado. 168 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Admitindo-se a impossibilidade de abandono das penas privativas de liberdade no modelo de sociedade atual, temos que, ao menos, repensar a forma com que elas são cumpridas e impostas para satisfazer o próprio ideal de sociedade estabelecido pela CF/88. Para isso, torna-se imprescindível a construção de um modelo capaz de demonstrar a necessidade do direito penal e, ao mesmo tempo, reduzir os danos por ele infligidos caso seja desmedidamente utilizado. Nessa seara, Ferrajoli (1995, p. 332) propõe um modelo penalógico mínimo orientado para a redução de danos: a pena deve ter como fim a prevenção dos delitos e a prevenção de penas informais, evitando-se que sanções criminais não amparadas pelo princípio da legalidade sejam aplicadas. Mas isso não basta: é preciso que as penas causem o mínimo de danos possíveis ao condenado. Ou seja, "além do máximo bem estar possível aos não desviados, também o mínimo mal-estar necessário aos desviados", reformulando-se, com essa perspectiva, o princípio ilustrado da "pena mínima necessária" (FERRAJOLI, 1995, p. 332). Somente assim é possível legitimar a atuação de um Direito Penal mínimo. Como referido anteriormente, a exigência desmedida de prevenção de delitos inevitavelmente dá margem ao incremento das sanções penais correspondentes e inclusive à utilização de alguns indivíduos como paradigmas de "justiça" por meio de punições "exemplares" que assumem caráter de verdadeira pedagogia social. Por essa razão, estabelecer como prioridade na execução da pena a garantia de fazer o mínimo mal possível ao desviado significa reconhecer que o Direito Penal deve atuar dentro dos limites estritos do respeito aos direitos fundamentais. Assim, a pena funcionaria limitada pelas garantias e liberdades individuais e não seria mais um mero instrumento na repressão de delitos, que visa à retribuição, intimidação ou ressocialização. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 169 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Mesmo que a proposição de Ferrajoli não abdique por completo da fundamentação em torno dos fins da pena, ela representa um inegável avanço discursivo, que pode conformar melhorias significativas na realidade concreta. A principal consequência desse pensamento é que, apesar de justificar a pena por meio de um utilitarismo reformado, Ferrajoli elabora uma teoria normativa capaz de limitar e – em alguma medida – legitimar a pena a partir de outro horizonte compreensivo. Ao definir um Direito Penal orientado para a redução de danos, fica clara a intenção de rompimento com todas as teorias que dirigem a pena exclusivamente para a prevenção de novos delitos (seja por meio da prevenção geral ou especial) ou como mero castigo (retribuição). Assim, torna-se evidente a ideia de pena como fenômeno, como realidade empírica alheia ao direito, o que leva a definir este (direito) como instrumento de contenção daquela (pena) (CARVALHO, 2008, p.149). Fica explícita, também, a necessidade de se criarem mecanismos executórios das penas compatíveis com a sua finalidade de redução de danos. A estratégia para efetivamente limitar o poder punitivo consiste, portanto, em modificar o foco da preocupação para conter os efeitos nefastos das penas na realidade social, o que corrobora com a ideia de Carvalho, ao afirmar que Na realidade das práticas penais, os princípios relativos à punição, as formas de sanção estabelecidas e os critérios de sua aplicação definem os contornos de intervenção, ou seja, os limites das punições possíveis. Necessário, portanto, abdicar da resposta ao "por que punir?", direcionando esforços para delimitar o "como punir?". A consequência do entrelaçamento entre a perspectiva de abstinência dos discursos legitimadores e a de determinação de critérios formais de controle da interpretação, aplicação e execução das penas conforma a projeção de uma política punitiva de redução de danos. (CARVALHO, 2006, p. 70). 170 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S O reconhecimento da pena como fenômeno e a projeção de um direito penal orientado para a redução de danos evidenciam a necessidade de afirmação dos direitos fundamentais do condenado. A partir desse horizonte discursivo renovado, a aplicação e execução das penas devem considerar a posição jurídica do condenado como verdadeiro sujeito de direitos, garantindo a mínima restrição a seus direitos, o que certamente traria reflexos quanto à inadmissibilidade de suspensão de seus direitos políticos. 4 O Problema da Inversão Ideológica do Discurso de Direitos Humanos e o Papel da Constituição Brasileira de 1988 na Definição da Posição Jurídica do Condenado A violência discursiva legitimadora do autoritarismo penal se vale até mesmo dos direitos humanos para justificar argumentativamente o sofrimento imposto pelas práticas punitivas. Essa afirmação pode parecer ousada, mas surpreendentemente, não é. No que se refere à proteção dos direitos humanos do recluso, fica evidenciado um processo de hierarquização, em que estes estão em posição inferior aos direitos que protegem – ou supostamente protegem – o corpo social e o próprio Estado. Essa hierarquização é fruto do fenômeno que Carvalho chama de reversibilidade ou inversão ideológica do discurso dos direitos humanos. Carvalho considera que Os graus de reversibilidade do discurso e de inversão ideológica do sentido histórico dos direito humanos no campo das práticas punitivas são perceptíveis na maior ou menor apropriação dos direitos da coletividade ou uso dos direitos das instituições como justificativa às lesões dos direitos fundamentais de indiciados, réus e Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 171 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S condenados (pensando especificamente na questão criminal). Não por outro motivo se pode notar nas motivações dos atos de coação o esforço em tornar natural a absorção dos interesses da coletividade pelo Estado (penal) (CARVALHO, 2007, p.133). Assim, desenvolve-se o sentimento de que as instituições punitivas são titulares de direitos a que os cidadãos devem obrigação, o que leva – numa ponderação de valores (na resolução de conflitos entre direitos individuais e coletivos) – à preponderância dos interesses públicos ou do Estado (CARVALHO, 2007, p.132). Para Carvalho, a máquina punitiva estatal paradoxalmente utiliza-se do discurso dos direitos humanos para justificar a desumanização das práticas punitivas: Ao valorizar e legitimar a ruptura dos direitos dos indivíduos e dos grupos sociais desde o discurso mesmo dos direitos humanos, contrapondo indivíduos, sociedade e/ou Estado, as instituições punitivas ocultam a satisfação dos seus próprios interesses, dos desejos de punição do lupus artificialis. Nestes casos é possível diagnosticar em nível pleno o processo de reversibilidade e inversão ideológica que substancializam os Estados contemporâneos (CARVALHO, 2007, p.133). Assim, para considerar a posição jurídica do criminoso como verdadeiro sujeito de direitos, é preciso, em primeiro lugar, negar o discurso que justifica as práticas punitivas a partir de uma aparente (e inexistente) hierarquização entre direitos individuais, sociais e coletivos. Tal negação passa, essencialmente, pela retomada do projeto de secularização que visa o reconhecimento de todos os seres humanos como humanos, afastando, assim, os valores morais do direito penal, que fazem com que qualquer ser 172 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S humano inadequado à moral punitiva possa ser concebido como incômodo objeto a ser eliminado (CARVALHO, 2008, p.137). Além disso, é preciso conceber e reconhecer os direitos humanos como fruto de embates históricos. Ou seja, os direitos humanos não nascem do reconhecimento formal do Estado: são fruto da luta dos sujeitos (individuais e coletivos) contra os excessos do poder, no caso, do poder punitivo. Assim, qualquer restrição dos direitos humanos ou intervenção punitiva em nome das vontades institucionais que falsamente pretendem a salvaguarda dos referidos direitos mostra-se ilegítima. Assumir essa posição não significa negar a existência de um poder punitivo, apesar de não admiti-lo como um direito de punir meta-jurídico, anterior ao momento legislativo, mas sim como um "dever (indispensável, inalienável por um lado, e limitado e vinculado por outro) da persecução penal que cabe ao Estado, enquanto agente histórico do que Weber chamaria de monopólio do poder punitivo legítimo" (BATISTA, 2007, p.108). Nesse sentido, Brandão argumenta que não há propriamente um direito do Estado de punir com a retirada de direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao patrimônio, pois seria uma contradição reconhecer a existência de um direito subjetivo do Estado a violar direitos subjetivos constitucionais do sujeito (BRANDÃO, 2008, p.12). A solução para o impasse é o reconhecimento de um dever estatal de punir diante de um crime, uma vez que se fazem presentes os seus requisitos (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), o que é muito diferente de um direito, pois enfatiza a existência de limites rígidos ao exercício desse dever. Ponderações como essas podem tornar possível um deslocamento discursivo que permita fundamentar um sistema orientado para a redução dos danos causados pelas práticas punitivas: um sistema em que o Estado tenha Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 173 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S seu poder de punir devidamente limitado. A partir dessas premissas, a garantia dos direitos humanos pode ser desvinculada das "vontades institucionais" que uma concepção positivista parece consubstanciar, a partir de leituras penais isoladas de fundamento constitucional e manifestamente divergentes com pressupostos básicos de direitos humanos. Nessa perspectiva, a posição jurídica do indivíduo-criminoso não pode ser outra que não a de verdadeiro sujeito de direitos. Segundo Rodrigues, como titular de direitos em relação ao Estado, o criminoso punido possui um estatuto negativo e positivo. O estatuto negativo é aquele em que se "devem evitar as consequências nocivas que advêm da privação de liberdade o que, juridicamente, se traduz na proteção dos direitos dos reclusos"; o estatuto positivo é aquele que, "pressupondo uma execução que lhe deve ser 'útil', corresponde o dever de contribuir para a realização dos objetivos pretendidos" (RODRIGUES, 1999, p. 60-61). Tem-se, portanto, uma posição jurídica do condenado "por um lado, meramente 'negativa' – analisa-se em direitos de liberdade ou de defesa – sendo, por outro lado, 'positiva', integrada por direitos a prestações, válidos enquanto direitos subjetivos conhecidos por lei" (RODRIGUES, 1999, p. 61). O que se quer dizer, afinal, é que além dos direitos não atingidos diretamente pela intervenção estatal, existem outros que devem ser promovidos e assegurados ao indivíduo por parte do Estado, não por mera concessão deste, como já referido, mas porque todos devem ser compreendidos como humanos e como cidadãos. Assim, apesar da existência de um "estatuto específico" que garante a existência de uma "relação de vida especial", não se legitima "qualquer limitação específica e implícita de direitos fundamentais" (RODRIGUES, 1999, p.166). 174 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Uma possível intervenção sobre os direitos do criminoso punido, segundo Rodrigues, só é possível "enquanto essa intervenção exprime a própria essencialidade da execução ou é indispensável para assegurar sua própria existência". (RODRIGUES, 1999, p.166) Ou seja, quando os direitos do criminoso impedem a própria existência da execução penal, estes podem sofrer uma intervenção, desde que o seu conteúdo essencial permaneça intocado. Não se pode admitir, portanto, que esse núcleo essencial do direito seja atingido por finalidades metafísicas ou morais (ou seja, extraídas das teorias das penas), absolutamente desconformes com o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, fica definido um critério de exigibilidade e proporcionalidade numa eventual limitação dos direitos. Portanto, a partir da exigência de manutenção do conteúdo essencial dos direitos humanos a partir de rígidos e estritos critérios de necessidade, não se pode admitir restrições aos direitos fundamentais do condenado, nomeadamente quanto ao objeto central deste artigo, qual seja, o direito à participação na vida pública, materializado pela titularidade dos direitos políticos. Poderia ser argumentado que com relação à suspensão dos direitos políticos, em caso de sentença criminal transitada em julgado, não se perderia o conteúdo essencial do direito à participação na vida pública, pois não haveria a aniquilação do direito, mas tão-somente sua suspensão. Todavia, não parece correta tal posição. A violação do conteúdo essencial do direito à participação na vida pública ocorre porque a suspensão é injustificada sob a ótica dos limites que devem ser impostos à atuação do Estado Democrático de Direito. O caráter temporal da violação do direito não tem relação alguma com a violação do seu conteúdo essencial. O que importa aqui são os motivos que levam à restrição dos direitos políticos do Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 175 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S condenado. Não se pode admitir, portanto, que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais seja afetado por motivações ilegítimas ou injustas (CANOTILHO, 2003, p. 458-461). Nesse contexto, é preciso analisar o papel crucial que uma constituição deve ter, no sentido de frear as restrições impostas pelo poder punitivo aos direitos fundamentais do condenado. Função esta que é por vezes renegada pela Carta Brasileira de 1988, que ainda guarda em seu âmago resquícios de uma tendência criminalizadora, incompatível com os princípios que ela mesma erigiu para a construção do Estado Democrático de Direito Brasileiro. A importância das cartas constitucionais na defesa da posição jurídica do condenado como sujeito de direitos advém de uma necessidade de modificação da atuação dos institutos penais dos Estados Liberal e Social. No Estado Democrático de Direito há uma pretensão de estabelecer limites mais rígidos à intervenção do Estado na vida dos indivíduos. Essa nova ideia de Estado expressa nas declarações políticas contemporâneas parte do pressuposto de que o homem deve ser tratado como tal, independentemente de sua posição ou do papel por ele desempenhado na sociedade. Essa nova "função estatal" demonstra claramente a incorporação por parte das constituições contemporâneas de uma nova dimensão do princípio da secularização, que considera a complexidade e o pluralismo da sociedade. Nesse contexto, a Constituição Brasileira de 1988 passou a definir um programa político-criminal correspondente com o Estado Democrático de Direito que estatuiu, tendo este como fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, da CF/88). No que diz respeito à execução penal, parece nítido que o programa político-criminal definido pela CF/88 só pode ser orientado pelo princípio da 176 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S dignidade da pessoa humana, limitando a atuação dos aparelhos punitivos e garantindo ao condenado a condição de verdadeiro sujeito de direitos, que não pode mais ser visto como mero objeto da execução.Assim, é inaceitável a situação narrada por Carvalho, que relata que "depois de prolatada a sentença penal condenatória, o apenado ingressa em ambiente desprovido de garantias. Desta forma, a decisão judicial condenatória exsurge como declaração de 'não-cidadania', como formalização da condição de apátrida do autor do fato-crime" (CARVALHO, 2008, p.154). Portanto, a suspensão aos direitos políticos do condenado, imposta pela CF/88, mostra-se desarrazoada e contraditória com os princípios que ela mesma erigiu para delinear o Estado Democrático de Direito Brasileiro. Pode-se concluir, assim, que o art. 15, inciso III, da CF/88, ao suspender os direitos políticos em caso de condenação criminal transitada em julgado, nega ao condenado o conteúdo de sua posição jurídica, dada por aquela concepção de direitos fundamentais fundada na ideia de secularização e humanidade inerente ao conceito de Estado Democrático de Direito. Significa, pois, negar a cidadania do condenado, retornando-se àquele estágio em que se pretendia, em nome da defesa da sociedade, excluir o criminoso do corpo social e, por consequência, de seus direitos. Necessária, pois, a urgente revisão da norma constitucional, a fim de termos uma política criminal verdadeiramente orientada para uma redução de danos. Danos esses provocados pelo Estado, que deve sempre buscar um equilíbrio entre atuar para proteger os direitos e liberdades fundamentais e respeitar a tais direitos quando aplica e executa sanções penais. Nas palavras de Maillard, pede-se ao Estado Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 177 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S que não seja forte senão para se abster de o ser. Isso explica, sem dúvida, que ele concentre suas intervenções na ordem pública mínima, o que lhe permite satisfazer a exigência de proteção que emana da sociedade, deixando ainda aos seus membros a autonomia que eles requerem e que lhes é reconhecida através da promoção dos direitos do homem (MAILLARD, 1994, p. 115). Assim, só o mínimo de liberdade deve ser retirado para promover a referida "proteção", sendo que a preocupação primordial do Estado deve girar em torno da defesa dos direitos humanos e fundamentais. E nesse contexto, certamente, os direitos políticos não podem ser negados ao condenado, a fim de respeitar aquele "mínimo" de restrição a ser imposto, atuando o Estado na sua função primeira de defesa dos direitos do homem. Se assim não for o Estado Democrático de Direito estará apenas perpetuando uma tradição de práticas punitivas autoritárias, excluindo o condenado em nome da defesa da sociedade, negando sua condição jurídica de sujeito de direitos e, por consequência, sua cidadania. 5 O Princípio do Caráter não Automático dos Efeitos das Penas e a Inadmissibilidade de se Restringir os Direitos Políticos do Condenado: o exemplo português Além de negar a posição de sujeito de direitos do condenado criminalmente, a suspensão dos direitos políticos, nos termos do art. 15, III da CF/88, caracteriza-se como um verdadeiro efeito automático das penas (ou da condenação). Conforme o Tribunal Constitucional Português, os efeitos das penas "traduzem-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode 178 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de Direito democrático, designadamente reserva judicial, princípio da culpa, princípio da proporcionalidade da pena, etc." (DIAS, 2009, p.159). Assim, o princípio do caráter não automático dos efeitos das penas surge no sistema jurídico-penal português com a função de determinar que não possa resultar das penas efeitos puramente mecanicistas. Proíbe-se, com isso, que de uma condenação penal possa resultar, como consequência automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, sem necessidade de se efetuar um juízo que pondere, na situação concreta, a adequação e necessidade da produção desses efeitos. A recepção e incorporação desse princípio no contexto jurídico brasileiro não pode mais tardar. Suas virtudes enquanto mecanismo de redução de potenciais danos aos direitos dos condenados criminalmente é mais do que evidente. Por outro lado, suas virtudes dogmáticas também são formidáveis, embora não sejam tão evidentes. Observe-se que na verdade, ao estabelecerse um nexo consequencial necessário entre a aplicação de uma pena e a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, alguns dos princípios que devem ser considerados na aplicação das penas devem também estar presentes na aplicação daquelas restrições de direitos, nomeadamente os princípios da culpabilidade, da necessidade e da proporcionalidade. Necessário, portanto, um juízo que avalie os fatos praticados e pondere a adequação e a necessidade de sujeição do condenado a essas medidas, não podendo estas ser impostas por simples força da condenação penal (MIRANDA, MEDEIROS, 2005, p. 337-338). Portanto, pode ser percebido que o princípio em questão se coaduna com princípios que são absolutamente inerentes ao Direito Penal de um Estado Democrático de Direito. Inclusive pode ser dito que ele acrescenta a tais princípios novos nuances de complexidade e concretude, sem jamais submetê-los a qualquer espécie de violência conceitual ou discursiva. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 179 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S Pode-se dizer, com isso, que o princípio do caráter não automático dos efeitos das penas inclusive fundamenta-se em dois princípios básicos e inerentes à concepção de um sistema penal orientado para a defesa dos direitos humanos e fundado no Estado Democrático de Direito: o princípio da culpabilidade como limite da pena e o princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas. Necessária uma ponderação, ainda que sucinta, de cada um dos princípios acima descritos, a titulo de complementaridade e maior embasamento dos argumentos aqui desenvolvidos. 5.1 Princípio da culpabilidade como limite da pena O conceito de culpabilidade utilizado na determinação do limite da pena deve traduzir, segundo Figueiredo Dias, "a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção" (DIAS, 2009, p. 217). Já está presente nesta exigência uma ideia de culpabilidade funcionalizada ao sistema, na medida em que ela deve cumprir uma função limitadora da intervenção estatal, apelando inexoravelmente para a dignidade da pessoa do agente do fato ilícito-típico. O conceito de culpabilidade, mais do que definir uma censurabilidade jurídica, deve determinar qual o conteúdo material que realmente pode exercer essa função limitadora. Em outras palavras, o conceito material de culpabilidade dirá o que, efetivamente, deve ser censurado: o fato? A inobservância da norma? A personalidade manifestada no fato? Para definir o conteúdo material da culpabilidade, Figueiredo Dias recorre à liberdade da pessoa como o pressuposto a ser perseguido. A tese da culpabilidade da pessoa considera o homem "não indivíduo abstracto e 180 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S isolado, 'cidadão de dois mundos', mas Pessoa concreta e situada, Homem socializado, no sentido de que vive em um mundo de que é, assim, aquilo que através da acção objectiva no mundo e que o mundo subjectiva nele" (DIAS, 2007, p. 522). Afasta-se, assim, o paradigma moderno do homem livre e racional, considerando-se uma noção mais realista e concreta da vivência humana. Assim, o homem "só existe no campo da ação" e a ele são oferecidas uma série de possibilidades que, no plano da ação, parecem ser definidas pelo livre-arbítrio (uma noção sempre problemática), mas que, no plano da existência, são definidas pelo próprio ser e sentido: [...] a eleição da acção concreta, determinada pela elevação de um motivo possível a motivo real em razão da preferência do sentido ou do valor a que apresenta para o agente na sua auto-realização, tem que ser reconduzida a uma decisão através da qual o homem se decide a si mesmo, criando o seu próprio ser ou afirmando a sua própria essência. O homem determina a sua acção através da sua livre decisão sobre si mesmo (DIAS, 2007, p.524). A partir dessa perspectiva, Figueiredo Dias conforma uma "liberdade daquele que tem de agir assim por ser como é" (DIAS, 2007, p. 524), o que define a personalidade do homem. Afasta-se da culpabilidade a censurabilidade sobre o "poder de agir de outra maneira", pois a liberdade não está condicionada ao livre-arbítrio, mas à própria existência do ser, que se perfaz nas ações realizadas. Não cabe ao Direito Penal decidir se o indivíduo poderia ou não agir de outra maneira, pois essa capacidade está ligada a sua liberdade de decisão que, por sua vez, define o seu ser. De acordo com essa perspectiva, o que ocorre é a violação de um dever de conformação ao Direito e não de um poder de agir de maneira diversa (DIAS, 2007, p. 524). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 181 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S É essa razão de censurar que dá o substrato necessário para definir a culpabilidade como o limite inultrapassável da pena, respeitando sempre a liberdade do agente e a sua dignidade. A culpabilidade, portanto, no âmbito da determinação da medida da pena, atua como limite máximo desta, que não poderá em caso algum ser ultrapassado. Acentua Figueiredo Dias que é pela via da culpabilidade que se considera, para a medida da pena, todas as consequências do ilícito-típico, nomeadamente no Código Penal Português de 1982, "o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade de suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres imposto ao agente (art. 72.º-2)" (DIAS, 2009, p. 239), excluindo, para efeitos de medida da pena, quaisquer consequências atípicas ou extratípicas do fato. Verifica-se, portanto, que ao se atribuir um efeito automático à pena, como a suspensão dos direitos políticos, corre-se o risco de ultrapassar os limites impostos pela culpabilidade na determinação da sanção criminal. Se é à violação ao dever de conformação ao Direito que deve ser dirigida a censurabilidade da culpabilidade, então é neste sentido que a pena deve ser limitada. Suspender os direitos políticos automaticamente em decorrência de condenação criminal significa, portanto, negar o juízo de culpabilidade enquanto limite que deve ser verificado na atribuição de uma pena ao agente, demonstrando-se esta suspensão ilegítima e excessiva, desrespeitosa da própria dignidade do indivíduo. 5.2 Princípio da luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas O princípio em questão também é absolutamente central à pretensão de estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, pois representa a assunção de um dever de luta contra os efeitos perniciosos e 182 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S perversos da intervenção jurídico-penal, que foram denunciados, sobretudo, pela criminologia contemporânea de autores como Baratta, Becker e Goffman, entre outros (HASSEMER e MUNÕZ CONDE, 2008, p.105-115). A estigmatização como instrumento de reação social que distingue o "homem normal" do "delinquente" foi percebida e consolidada enquanto categoria de análise pela perspectiva criminológica interacionista ou do labeling approach. O fenômeno criminal, para essa teoria, também necessita ser analisado sob a perspectiva das ações promovidas pelas instâncias de reação e controle, pois o crime não é algo em si mesmo; nem o criminoso o é por natureza. São os processos sociais que determinam a qualidade delitiva da conduta e de seu autor. Assim, a metodologia adotada pelo labeling, que apontou para um déficit quantitativo e, sobretudo, qualitativo entre a delinquência potencial (ou secreta) e a registrada (ou "conhecida pela polícia") permitiu concluir que o que os delinquentes têm em comum – o que sobretudo, os caracteriza – é, acima de tudo, apenas a resposta das instituições de controle, que estigmatizam e rotulam os indivíduos retrospectivamente como criminosos. Potencializada pelas práticas punitivas estatais, a interpretação retrospectiva resulta na criação de um "estigma" de criminoso imposto ao indivíduo. Trata-se de um mecanismo que procura identificar o criminoso e enquadrá-lo, interpretando a biografia do indivíduo "em termos de consciência e unicidade – a tendência para acreditar que ele revela, com este ato [o crime], o que afinal, sempre foi [um criminoso]" (DIAS, ANDRADE, 1997, p. 348). Uma vez adquirido o estigma o indivíduo é excluído do corpo social e após ter sido tragado pelo sistema penal, será tratado eternamente como delinquente. Dessa forma, potencializa-se a distância social em relação ao delinquente, estreitando a sua margem de oportunidades "legítimas"; em Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 183 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S segundo lugar, provoca-se a conformação por parte do indivíduo às expectativas estereotipadas da sociedade, a autorrepresentação como desviante e a assunção de uma espécie de "carreira" de delinquente que, muitas vezes, é irreversível (DIAS,ANDRADE, 1997, p. 352-353). Portanto, eis aí uma contradição aparentemente insuperável do sistema, que exprime de forma aguda a falha em reintegrar segregando: um sistema que propondo ressocializar somente dessocializa, isto é, aprofunda a distância do indivíduo em relação à sociedade. Evidencia-se, portanto, a necessidade de se evitar a profanação do eu sofrida pelo criminoso ao adentrar nas instituições totais a que é submetido. E uma das poucas maneiras de se conseguir isso é reformular o sentido de se punir o indivíduo, racionalizando e controlando efetivamente o poder punitivo estatal. É preciso, portanto, considerar o condenado como humano, como um cidadão, em nenhum sentido diferente das demais pessoas. É preciso, em suma, reconhecer e efetivar os direitos fundamentais do condenado, de modo a não violar sua subjetividade e cidadania, buscando sempre reduzir o abismo imposto entre ele e a sociedade da qual foi segregado. Assim, parece claro que a admissão da suspensão dos direitos políticos do condenado apenas reforça o caráter dessocializador, estigmatizante e criminógeno das penas, o que certamente não é desejável e nem sequer aceitável face ao irrenunciável respeito à dignidade da pessoa humana que deve caracterizar as práticas punitivas em um Estado Democrático de Direito. 184 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S 6 Considerações Finais A partir da compreensão da pena como fenômeno, não é admissível que a ela sejam vinculadas justificações teleológico-positivas, legitimando uma atuação punitiva que procure torná-la eficaz a qualquer custo "para o bem da sociedade". Por isso, é preferível e mais útil mudar a perspectiva do problema das penas: do "por que punir?" ao "como punir?". Assim, a importância que passa a ser dada à determinação e execução da pena permite ações mais especificamente dirigidas à redução dos danos que o Direito Penal inegavelmente traz, limitando verdadeiramente o poder punitivo estatal. As medidas concretas que foram adotadas neste ano para garantir o exercício dos direitos políticos por parte dos presos provisórios é um passo na direção certa. No entanto, é necessário ir ainda mais além e rever a própria previsão constitucional de suspensão dos direitos políticos em função de condenação criminal transitada em julgado. Nesse contexto, fica evidente que a proteção aos direitos fundamentais do condenado pelas legislações contemporâneas necessita ser efetivada por uma política de redução de danos que deve ser assumida pelo Direito Penal. Ou seja, uma política criminal consciente dos danos que provoca tem de fixar limites às formas de punição, restringindo a atuação punitiva do Estado frente aos direitos fundamentais do condenado, de forma a manter intocado o conteúdo essencial desses direitos. Assumindo o papel que lhe cabe na contemporaneidade, uma constituição tem de ser mais do que meramente uma carta de intenções. É ela que deve dar o substrato necessário para efetivar e garantir os direitos fundamentais do condenado. Por essa razão, uma interpretação Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 185 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S constitucional não pode admitir uma atuação excludente, efetivada por normas constitucionais que desrespeitam os princípios pilares do Estado que a própria CF/88 erigiu.Ao suspender os direitos políticos dos condenados por sentença criminal transitada em julgado, a norma constitucional não procura outra coisa que não marcar o indivíduo com o selo da criminalidade e afastálo da sociedade, reafirmando seu caráter de indivíduo irracional e, logo, não apto a contratar. Trata-se de uma concepção de homem e de representatividade cujo prazo de validade já expirou. Sua aplicação é inteiramente anacrônica e incompatível com o horizonte de construção de um Estado Democrático de Direito. A proibição do exercício dos direitos políticos do condenado de forma automática à condenação criminal vai além da medida da culpabilidade do agente, ferindo o princípio basilar de um Direito Penal conscientemente limitado: nullum pena sine culpa. A proibição constitucional, enfim, baseia-se na crença ultrapassada e inaceitável de um inimigo da sociedade que deve ser excluído e segregado. É, ao final, a crença de que existem indivíduos indignos de conviver em sociedade que acaba fazendo com que seja negada cidadania ao condenado criminalmente, o que apenas aprofunda o abismo em que se encontra um grupo que tem tanta dificuldade em dar visibilidade ao suplício que experimenta nos calabouços medievais que nós vergonhosamente chamamos de prisões. Nesse sentido, o princípio do caráter não automático dos efeitos das penas pode representar uma abertura dogmática que efetivamente contribua para a percepção do quanto é imprescindível repensar a questão da cidadania e da própria humanidade da população tragada pelo nosso sistema penal. 186 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 159-188, 2010 O P R I N C Í P I O D O C A R Á T E R N à O A U TO M Á T I C O D O S E F E I TO S D A S P E N A S REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:Almedina, 2003. CARVALHO, Salo de. Garantismo e Teoria crítica dos direitos humanos: aportes iniciais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte, n. 7, p. 127-148, 2007. ___________. Pena e Garantias. 3. ed. 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Partindo das conhecidas "leis de Duverger", apresentamos alguns trabalhos que rediscutem estas premissas, ou apresentam outras explicações para a formação do sistema partidário.Apresentamos também trabalhos que auxiliam na compreensão de como as regras eleitorais podem ser relevantes para que haja representação política mais baseada em termos partidários ou na reputação pessoal dos políticos. Por fim, apresentamos algumas perspectivas que, a partir deste estudo da bibliografia do tema, podem colaborar para a discussão de propostas de reforma política para o Brasil. Palavras chave: Regras Eleitorais. Partidos Políticos. Eleições. ABSTRACT This paper discusses the question of how electoral rules influence (or are influenced by) the party system. Using the known "Duverger's laws", we present some papers that rediscuss these premises, or present other explanations to the formation of the party system. We also present papers that help the understanding of how the electoral rules may be relevant to constitute a political representation based on parties or the personal reputation of the politicians. Finally, through this bibliographic study of the subject, we present some perspectives that may contribute to the discussion of proposals for political reform in Brazil. Keywords: Electoral Rules. Political Parties. Elections. 1 Introdução Este presente trabalho tratará de uma questão cara à Ciência Política: as implicações das regras eleitorais sobre o sistema partidário. A preocupação com este assunto aparece há muito tempo na Ciência Política, 1 Formado em Ciências Sociais pela UFRGS. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFRGS. Email: [email protected] Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 189 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S ainda mais se considerarmos que por trás desta questão está implícita a preocupação com o bom governo, ou em outras palavras, com o melhor arranjo institucional para uma democracia funcionar de forma estável e satisfatória. O artigo está dividido em dois eixos principais. Primeiramente, propomo-nos a discutir, partindo das proposições de Duverger, como as regras eleitorais podem ser significativas para o sistema partidário, ou se clivagens sociais são o que definem este sistema, através do estudo de Cox (1997) e Tavares (1994). Ainda nesse ponto, procuramos apresentar o estudo de Colomer (2003), que defende que a relação causal entre regras eleitorais e sistemas partidários poderia ser contrária àquela proposta por Duverger, ou seja, os partidos que promoveriam mudanças nas regras eleitorais através de comportamento estratégico para diminuir os riscos de derrota. Na segunda parte deste trabalho, procuramos mostrar como regras eleitorais podem, ou não, ser relevantes para promover representação sobre a forma dominante de reputação individual dos candidatos ou reputação partidária, e quais as implicações que isto pode levar para as democracias poliárquicas. Estas questões se mostram extremamente atuais no campo da Ciência Política em nosso país, principalmente porque a discussão de uma possível reforma política está constantemente sendo colocada na agenda pública, seja nas instâncias de poder ou mesmo na mídia. Muito se fala que eventuais problemas políticos no Brasil são decorrentes de uma combinação de regras eleitorais que provocariam instabilidade à nossa democracia. Com base na discussão que apresentamos a seguir, procuramos ajudar a avançar nessa discussão da necessidade de melhoramentos institucionais para o caso brasileiro. 190 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S 2As Leis de Duverger: um marco no institucionalismo Quando tratamos da influência das regras eleitorais sobre qualquer sistema partidário se faz necessária menção às famosas "Leis de Duverger", principalmente, no que se refere as suas duas mais importantes proposições, que são as seguintes: - O sistema majoritário de um só turno tenderia a uma composição bipartidária. - O sistema majoritário de dois turnos, assim como a representação proporcional, tenderia a uma composição multipartidária. (DUVERGER, 1954) Estas duas proposições operariam através de dois efeitos, chamados por Duverger de "efeito mecânico" e "efeito psicológico". O primeiro referese à tendência presente em todos os sistemas eleitorais em funcionamento nas democracias de favorecer os maiores partidos e prejudicar os menores. E o segundo refere-se ao estímulo ao comportamento estratégico dos eleitores para não desperdiçar seu voto para com os partidos sub-representados na eleição anterior. (NICOLAU, 1996). O trabalho desse autor é ainda hoje revisitado por um grande número de cientistas políticos preocupados com as implicações que as regras eleitorais têm sobre o sistema partidário. A seguir, veremos como alguns destes autores reexaminam essa questão. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 191 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S 3APerspectiva Institucionalista e Sociológica de Cox Cox (1997), em seu livro Making Votes Count, destaca a existência de duas linhas teóricas distintas no estudo de sistemas de votação de massa. A primeira refere-se àquela com origem na economia matemática e na filosofia, agora localizada nos três diferentes campos da escolha pública, da escolha social e da análise espacial (Arrow, Buchanan and Tullock, Downs). A segunda, dominada por sociólogos e cientistas políticos (Duverger, Rae, Sartori, Lijphart), seria aquela menos formal, mais empírica e normativa, ainda que mantenha a preocupação teórica. (COX, 1997) Para Cox, as leis de Duverger levantaram grande polêmica no meio acadêmico pelo seu "determinismo institucional", uma vez que as diferentes estruturas de clivagens sociais de uma dada sociedade parecem, em seu trabalho, pouco importar para os resultados nos sistemas partidários, em detrimento das regras eleitorais. Por outro lado, muitos estudiosos colocaram a questão num sentido contrário, ou seja, sob a forma de um determinismo social, onde as clivagens sociais seriam as responsáveis pela determinação da configuração partidária de uma determinada sociedade, com pouca influência das regras eleitorais. É com esta questão, de em qual grau as duas visões podem ser reconciliadas ou sintetizadas, que Cox está preocupado em seu trabalho. Nas palavras do próprio autor: "Alguma reconciliação entre as perspectivas institucionalistas e sociológica é certamente possível na controvérsia sobre se o sistema eleitoral causa o sistema partidário ou vice-versa". (COX, 1997, p.17, tradução do autor). Ou seja, para Cox, as duas visões não são excludentes. O fato de a estrutura social afetar a formação e competição dos partidos não exclui a perspectiva de que a estrutura eleitoral também exerça pressão sobre a configuração partidária. 192 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S Para comprovar sua teoria, Cox irá testar a hipótese de que apenas clivagens sociais determinam o número de partidos competindo em um sistema eleitoral. Para isso, o autor verifica o caso de 15 países que têm representação bicameral com diferentes regras eleitorais para eleição de membros nas duas casas e testa-os para descobrir se o número de partidos efetivos nestas duas casas é semelhante (como seria de se esperar caso regras eleitorais não fossem importantes), controlando, portanto, a variável de diversidade social. Como esperado, o resultado que o autor encontra é de variação no número de partidos representados na câmara alta e na câmara baixa em um mesmo país, dando pistas para confirmar a influência das regras eleitorais no sistema partidário, confirmando, ainda, na maioria dos casos, as próprias previsões do autor de que se determinado sistema aplicado em uma das casas faria aumentar ou diminuir o número de partidos em relação à outra. Resgatando o estudo de outros autores, Cox irá ainda mostrar que a lei de Duverger, de que sistemas majoritários de turno único tenderiam ao bipartidarismo, depende da distribuição geográfica dos votos. Ou seja, se numa determinada região de um país com este tipo de regra eleitoral há uma clivagem social importante, então um terceiro partido pode conseguir representação relevante, a mesma ressalva que Tavares (1994) faz com relação à essa lei. O autor ainda corrobora com o estudo de OrderShook e Shvetsova que observaram que o número de partidos em um sistema proporcional aumenta no mesmo sentido que aumenta a diversidade social, ao mesmo tempo em que a adoção deste sistema em uma sociedade homogênea não apresenta os mesmo resultados. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 193 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S O autor então argumenta que Considerando, tanto as estruturas de clivagem social como a estrutura eleitoral, existem três estágios para considerar quando se leva em conta a concentração de votos ou cadeiras observáveis em democracias. O primeiro estágio é a tradução de clivagens sociais em preferências partidárias. O segundo estágio é a tradução dessas preferências partidárias em votos. O terceiro estágio é a tradução de votos em cadeiras. (COX, 1997, p. 26, tradução do autor) Para Cox, em alguns modelos institucionalistas esse primeiro estágio não é explorado. Voltando à questão da primeira proposição de Duverger, Cox argumenta que esta é válida no nível distrital, mas não no nível nacional. Perguntado-se o porquê desta tendência à bipartidarização em um sistema majoritário, com distrito de magnitude (M) 1, o autor responde que isso se deve a dois tipos de concentração de recursos importantes. Primeiramente, há a ação das elites, que quando conseguem coordenar suas ações, distribuem o seu endosso e contribuições principalmente a dois candidatos, aumentando a chance de eleição, e dando aos eleitores uma opção binária. Já quando essa coordenação falha, o próprio voto estratégico dos eleitores costuma bipolarizar a eleição, novamente para minimizar as chances de derrota. Para Cox, qualquer sistema eleitoral costuma apresentar a tendência de que os eleitores tenham uma racionalidade instrumental que limite o número de reais competidores. Assim, sistemas proporcionais apresentariam M+1 candidatos com reais chances de se eleger. O mesmo ocorreria em sistemas majoritários com dois turnos, uma vez que eleitores votariam estrategicamente orientados já no 1º turno da eleição (o que contraria a segunda proposição de Duverger). 194 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S Voltemos agora à proposição principal deste trabalho de Cox, a de que o número de partidos competitivos em um sistema eleitoral seria o resultado da função interativa entre diversidade social e permissividade eleitoral. No capítulo 11 de seu livro, Cox propõe elaborar um modelo econométrico interativo que contenha, ao mesmo tempo, variáveis de heterogeneidade social e de estrutura eleitoral. Aplicando testes de regressão para 54 países com eleições entre 1980-90, Cox apresenta resultados que demonstrariam para o autor que "o número efetivo de partidos parece depender do produto entre heterogeneidade social e permissividade eleitoral, mais do que ser uma função aditiva entre estes dois fatores."(COX, 1997, p. 221). Em outras palavras, para o autor, um sistema poderia tender ao bipartidarismo tanto por ter um forte sistema eleitoral quanto por apresentar poucas clivagens. E um sistema pode tender ao multipartidarismo com a elevação do produto das clivagens sociais e permissividade do sistema eleitoral. Por fim, cabe aqui enfatizar que se por um lado Cox parece comprovar sua ideia inicial de que ambos fatores - institucional e sociológico - são importantes para determinar a configuração partidária em uma dada sociedade, o autor não se compromete em afirmar se uma dessas perspectivas teria um fator preponderante sobre a outra. Tavares (1994) compartilha com Cox a opinião de que nem as instituições políticas nem as regras eleitorais são tão determinantes à configuração partidária de dada sociedade que possam ser postas como leis universais e tampouco análises de cunho economicista ou sociologista podem compreender toda a causalidade da questão. O autor afirma que nesse campo é inviável edificar generalizações científicas capazes de serem colocadas na forma de leis universais. Quanto à Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 195 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S primeira lei de Durverger, Tavares afirma que sistemas majoritários de um só turno constituem "uma (não a) condição necessária do bipartidarismo estrito". (TAVARES, 1994, p. 247) O autor chama a atenção para o fato de que há fortes evidências de que sistemas majoritários de turno único estão associados ao bipartidarismo, mas destaca que este sistema está particularmente associado e condicionado à tradição e cultura política anglosaxônica. Já quanto à segunda lei, aceita a pretensão de universalidade de que a representação proporcional exclui a possibilidade do bipartidarismo estrito, mas por outro lado, afirma com base nos exemplos da Áustria, Irlanda e em parte da Alemanha, que "a representação proporcional não constitui nem condição suficiente, nem condição necessária para a emergência de terceiros partidos independentes com condições de vencer eleições gerais, quer o multipartidarismo". (TAVARES, 1994, p. 246). Em suma, o que o autor afirma é que regras eleitorais podem frear ou acelerar mudanças nos sistemas partidários, mas, para que haja transformações de fato, são necessárias condições rigorosamente sociais que não podem ser substituídas por provisões institucionais. 4 Colomer e a Inversão da Causalidade nas Leis de Duverger Como vimos, Cox defende o argumento de que tanto as clivagens sociais como a estrutura eleitoral influenciam a consolidação do sistema partidário, enquanto que Colomer, no artigo "Son los partidos los que eligen sistemas eletorales (o las leyes de Duverger de cabeza abajo)" vai defender o argumento de que possivelmente o número de partidos possa explicar o sistema eleitoral adotado em determinado país. Ou seja, como o próprio 196 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S nome do artigo indica, há, neste argumento, uma inversão na causalidade apontada nas leis de Duverger. Se por um lado o autor não nega que determinadas regras eleitorais ofereçam incentivos para certas configurações do sistema partidário, por outro, ele argumenta que "justamente porque os sistemas eleitorais têm importantes conseqüências sobre a formação do sistema partidário, caberia supor que são escolhidos por atores políticos já existentes em seu próprio interesse". (COLOMER, 2003, p. 39, tradução do autor). Para chegar a este argumento, Colomer parte das premissas de que tanto eleitores quanto candidatos disputam eleições sempre com a intenção de ganhar, e que atores políticos têm aversão ao risco. Assim, em condições de alta incerteza quanto à distribuição dos apoios e, consequentemente, quanto aos resultados dos pleitos, os partidos tenderiam a procurar mudar as fórmulas eleitorais para sistemas mais inclusivos, de modo que diminuam as chances de derrotas eleitorais absolutas. Continuando nesse raciocínio, Colomer defende que sistemas majoritários (em que o vencedor leva tudo) apresentariam mais riscos para atores políticos do que sistemas de representação proporcional. O tamanho do distrito, das assembleias (câmara alta e câmara baixa) e do coeficiente eleitoral colocariam, ainda, o interesse dos pequenos partidos (que buscam aumentar sua representação) em oposição aos grandes partidos (que buscam manter o status quo). Concordando com Cox, Colomer afirma que em sistemas proporcionais os partidos pequenos têm a possibilidade de alcançar representação. Assim, o ator racional pode optar pela coordenação (coligação) ou pela apresentação de candidatura própria, que provavelmente será eficaz em alcançar cargos. Entretanto, em sistemas majoritários, a falta de coordenação poderia levar partidos e grupos sociais significativos a serem Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 197 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S derrotados em eleições e a ficarem sem representação. Quando muitos eleitores têm seus votos desperdiçados, e atores políticos relevantes não conseguem romper a barreira para alcançar a representação, a insatisfação aumenta e pode levar a um ambiente de pressão por mudanças nas estruturas eleitorais. Neste sentido, seria de se esperar que sistemas majoritários multipartidários tenderiam a adoção de sistemas proporcionais, e que isso fosse possível de se observar ao longo do tempo, mais do que a adoção de sistemas majoritários em democracias proporcionais. Neste ponto, o estudo de Colomer adquire um caráter quase que determinista e evolucionista, já que o autor identifica três estágios de evolução de regras eleitorais que seriam adotados a partir do momento em que há uma falha no anterior: o primeiro seria os de regras de unanimidade (comum em pequenas comunidades); o segundo o majoritário, que aparece com o surgimento dos partidos políticos modernos; e o último o sistema proporcional, que ocorreria quando nenhum partido consegue estar seguro de ganhar a maioria dos votos. Dessa forma, Colomer estabelece alguns critérios, advindo do número efetivo de partidos, em que certas democracias tenderiam a adotar um sistema proporcional, abandonando o sistema majoritário, e testa essa hipótese em diversos casos. Para ele, quando o número de partidos efetivos assumisse valor maior que quatro, nenhum partido teria a garantia de alcançar 50 por cento dos votos mais um. Assim, seria mais racional a adoção de um sistema proporcional para evitar os riscos de derrotas eleitorais. Em suma, quanto maior este valor maior seria a tendência para a adoção desse sistema. Em seus testes empíricos com os casos de 87 países, desde o século XIX, Colomer encontra 37 casos de mudança de regime eleitoral majoritário 198 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S para regimes eleitorais proporcionais, sendo que a média do número de partidos efetivos na eleição anterior à mudança de sistema foi de 3,9 (3,7 para sistemas majoritários de um turno só). Para Colomer, o resultado desmente a lei de Duverger que indica que sistemas majoritários de um turno só tenderiam a manter sistemas bipartidários. Os dados ainda mostram que, para cada aumento de um no valor do número efetivo de partidos além de dois, há um aumento de 27% na probabilidade de se adotar um sistema proporcional. Colomer ainda observa que, em eleições recentes, países com sistemas majoritários apresentaram, em média, números superiores de partidos efetivos do que tinham quando adotaram esses sistemas, o que o leva a concluir que haveria grande possibilidade de mais países migrarem para o sistema proporcional. Por fim, resumindo os achados de sua pesquisa, Colomer apresenta quatro conclusões para seu trabalho: 1) que o estabelecimento de regras eleitorais majoritárias para primeiras eleições ocorreria devido à configuração política previamente existente, dominada por poucos partidos; 2) sistemas multipartidários já existiriam antes da adoção de regras eleitorais proporcionais, sendo, portanto, mais uma causa do que uma consequência da mudança; 3) eleições imediatamente seguintes a mudança de um sistema majoritário para um proporcional tendem a confirmar, mais do que aumentar, a configuração multipartidária previamente existente; 4) o número efetivo de partidos tende a aumentar a longo prazo em qualquer sistema, criando pressões para a adoção de modelos mais inclusivos de regras eleitorais. Sobre este último ponto, o autor não explica com base em dados empíricos o porquê dessa tendência de aumento no número de partidos efetivos em democracias encontrado em seu trabalho, mas faz algumas sondagens de duas possíveis causas, que seriam: falhas de coordenação em Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 199 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S regras majoritárias para formar poucas candidaturas, e o surgimento de novas lideranças políticas que abordam diferentes temas e promovem novas alternativas políticas ao eleitorado. Se resgatarmos a ideia de Cox, podemos sondar (sem qualquer comprovação empírica) que as pressões para o surgimento de sistemas multipartidários e, consequentemente, a adoção de regras eleitorais proporcionais, também poderiam vir de uma possível crescente heterogeneização da sociedade de forma a ampliar as clivagens sociais existentes. As fortes ondas de imigração em vários países do mundo, combinadas com a crescente organização de grupos minoritários como ambientalistas e feministas, entre outros, poderiam ser causadoras dessas mudanças. Desta forma, as clivagens sociais poderiam gerar a alteração da configuração partidária e, neste caso, exercerem suficiente pressão para sobrepor-se à pressão do sistema eleitoral. 5 Reputação Partidária e Reputação Pessoal em Diferentes Sistemas Eleitorais Fórmulas eleitorais são importantes não só para determinar como será a configuração partidária, mas também determinam quais os métodos que definirão a distribuição de cadeiras. Com base nisso, trataremos agora do segundo eixo temático a que nos propomos neste trabalho: o de como os sistemas eleitorais podem determinar se a representação terá ênfase maior na reputação dos partidos políticos ou na dos próprios candidatos, e de como isso pode interferir na qualidade da democracia. Os autores Carey e Shugart (1996) irão tratar justamente deste tema no artigo "Incentives to cultivate a personal vote: a rank ordering of electoral formulas". Os autores acreditam que há uma frequente tensão entre 200 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S interesses partidários eleitorais e o interesse eleitoral individual dos parlamentares ou candidatos ao legislativo. Os incentivos para os candidatos assumirem uma postura mais personalista ou para que recaia uma importância maior sobre a reputação partidária dependerá de determinadas regras eleitorais vigentes em cada poliarquia. Carey e Shugart analisam a premissa de muitos outros autores (Sartori, Taagepera e Shugart, Ames) de que sistemas de lista aberta apresentam maiores incentivos para que candidatos invistam em sua reputação pessoal do que sistemas de lista fechada. Através de quatro indicadores, os autores estabelecem um ranking entre diversos países. Este ranking vai dos casos em que a reputação partidária é predominante até aqueles em que praticamente apenas a reputação pessoal dos candidatos será determinante na competição eleitoral. Três das variáveis utilizadas pelos autores são tricotomizadas, ou seja, recebem valores 0, 1 ou 2, sendo 0 para incentivos mais partidários e 2 para incentivos mais personalistas. A primeira variável é o controle da direção partidária na formação das listas deste partido (ballot). Esta tem valor 0 quando os líderes partidários determinam a ordem da lista, e os eleitores não podem indicar preferências; 1 quando os líderes partidários apresentam a lista, mas os eleitores podem distribuir preferências; e 2 quando os líderes partidários não controlam o acesso à lista e os eleitores votam em qualquer candidato. A segunda variável é o mecanismo de transferência de votos (pool), que mensura se e como os votos são transferidos. Assim, o valor 0 ocorre quando há transferência de votos em todo o partido; 1 quando há transferência de voto no nível subpartidário; e 2 quando não há transferência de votos. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 201 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S A terceira variável (votes) refere-se ao número e ao tipo de voto que o eleitor faz em dado sistema eleitoral. Ela assume valor 0 quando o eleitor dá um voto ao partido; 1 quando o eleitor vota em múltiplos candidatos; e 2 quando o eleitor dá seu voto abaixo do nível partidário. A partir dessas três primeiras variáveis, os autores estabeleceram um ordenamento dos países conforme o valor dado à reputação pessoal ou partidária. Foram encontrados 13 diferentes tipos de configuração nos casos selecionados, indo desde sistema em que as três variáveis apresentam valor 0, ou seja, a reputação partidária é máxima, até sistemas onde as três variáveis apresentam valor 2, em que a importância da reputação pessoal dos candidatos é muito alta. A quarta variável não é tricotomizada como as demais, uma vez que ela se refere à magnitude dos distritos. De acordo com os autores, esta variável irá afetar o valor da reputação pessoal dos candidatos dependendo do valor que assumir a variável ballot. Shugart e Carrey colocam que a importância da magnitude dos distritos para a reputação pessoal não é uma novidade na Ciência Política, onde o mainstream estaria no argumento de que quanto menor o distrito mais incentivos terá o político para investir na sua reputação pessoal. Isso em virtude do incentivo à prática do pork-barrel 2 e de políticas distributivistas, uma vez que o candidato tem o interesse em manter uma base eleitoral naquela região geograficamente limitada em que é disputada a eleição. Por outro lado, quanto maior a magnitude e, portanto, maior o distrito, menos incentivos deste tipo haveria aos políticos, uma vez que sua base seria geograficamente muito ampla. Os autores argumentam que concordam com essa premissa, mas apenas quando ballot tivesse um valor igual a 0, ou seja, quando não há competição intrapartidária. Para os demais casos, e aí está a grande novidade 2 202 A expressão pork-barrel está ligada a políticas que rendem benefícios localizados, como recursos, obras, e cargos públicos, de forma que se aproxima da prática do clientelismo. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S deste estudo, quanto maior a magnitude maior seria o incentivo para o político investir na sua reputação pessoal em detrimento da reputação partidária. Isso ocorreria porque, em sistemas com competição intrapartidária, o candidato precisará se distinguir dos demais candidatos, não só daqueles que são ideologicamente diferentes dele, mas também daqueles semelhantes ideologicamente a ele, de seu próprio partido3. Assim, sistemas de lista fechada apresentariam maiores incentivos à reputação personalista quanto menor for o distrito, e sistemas de lista aberta apresentariam maiores incentivos ao investimento na reputação pessoal por parte dos políticos quanto maiores forem os distritos. Apesar destas interessantes conclusões colocadas acima a que chegaram os autores, o seu trabalho careceria de relevância teórica se não viesse acompanhado de uma discussão de como incentivos a um ou outro tipo de reputação podem afetar a democracia. Shugart e Carey acreditam que, quando a reputação pessoal dos candidatos tem mais importância, há uma tendência maior à utilização dos políticos do pork-barel, enquanto "quando a reputação partidária é mais relevante, as políticas públicas poderiam ser mais eficientes, no sentido de que, neste caso, os eleitores votariam com base em propostas de políticas amplas e, no outro, com base em propostas de benefícios particularistas." (CAREY, SHUGART, 1996, p. 434, tradução própria). Ainda haveria a possibilidade de que sistemas que dão alto valor à reputação pessoal poderiam levar os políticos a estarem mais propensos às práticas de corrupção, uma vez que seria grande o gasto dos candidatos para conquistar os eleitores em bases particularistas, criando incentivos para que estes busquem fontes de financiamentos que ultrapassem a barreira da legalidade. 3 Este seria o caso do Brasil e neste sentido costuma-se aferir que "o sistema eleitoral brasileiro ocupa uma das mais altas posições no que se refere ao valor atribuído pelos políticos a sua reputação individual". (KUSCHNIR, CARNEIRO, SCHMITT, 1998). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 203 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S Neste mesmo sentido, Tavares (1994) é opositor da lista aberta. Para o autor, a lista fechada e bloqueada "fortalece nos sistemas proporcionais a auto-identidade, a coesão e a disciplina partidária, bem como o regime de partidos, essenciais à democracia representativa." (TAVARES, 1994, p. 42). A lista aberta, por outro lado, além de enfraquecer a coesão, a disciplina e a identidade partidária, teria o efeito perverso de favorecer a competição intrapartidária. Sua vantagem residiria na possibilidade do eleitor apontar a intensidade de sua preferência, mas para o autor esta condição seria satisfeita caso se optasse por um sistema de lista fechada com possibilidade de voto preferencial. David Samuels (1997), entretanto, destaca que, mesmo em sistemas eleitorais centrados no candidato como o brasileiro, partidos podem optar por investir no coletivismo em detrimento do individualismo para maximizar suas chances eleitorais. Isto ocorreria não apenas em virtude de padrões ideológicos mais definidos, mas, também e principalmente, no caso de partidos sem acesso a patronagem e a grandes montantes de financiamento (o exemplo do autor é o PT na primeira metade da década de 90). O autor ainda afirma que estratégias eleitorais de todos os partidos seriam, na maioria das vezes, mistas, tendendo ao individualismo, mas nunca de maneira estritamente personalista. 6 Efeitos das Listas Partidárias sobre a Competição Partidária Conforme vimos anteriormente, muitos autores compartilham da premissa de que sistemas eleitorais de lista fechada beneficiam os partidos no sentido de lhes imputar maior força de organização, enquanto sistemas de lista aberta (preferenciais) os fragilizariam, uma vez que as lideranças 204 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S partidárias teriam pouco controle sobre o acesso a cargos legislativos. Sistemas de voto preferenciais teriam, portanto, como consequência disso, o incentivo a estratégias baseadas na reputação pessoal e em comportamentos particularistas dos políticos no âmbito legislativo (causando baixa disciplina e coesão partidária) viabilizadas por políticas de cunho distributivista. Isto teria um efeito nocivo à eficiência da democracia no sentido de prejudicar o accountability exercido pelos eleitores, incentivar práticas de corrupção e promover instabilidade democrática. Neste sentido, o artigo de Marenco dos Santos (2006) "Regras eleitorais importam? Modelos de listas eleitorais e seus efeitos sobre a competição partidária e o desempenho institucional" analisa se esta hipótese se confirma empiricamente. Analisando 51 casos nacionais com regras de representação proporcional (28 de lista fechada e 23 de lista preferencial), Marenco dos Santos procura "examinar o impacto exercido pelo voto preferencial sobre a dinâmica dos sistemas partidários (número de partidos efetivos, turnout e volatilidade eleitoral) e o desempenho institucional (accountability e corrupção)". (SANTOS, 2006, p. 722). Os resultados que os testes do autor apresentam indicam a ausência de uma correlação entre listas preferenciais e uma fragilização partidária, como se esperaria tendo em vista boa parte da literatura. A adoção de uma lista preferencial estaria apenas moderadamente correlacionada a um aumento no número de partidos efetivos; a relação entre voto preferencial e participação eleitoral foi positiva e significativa a 10%; e uma possível correlação entre lista preferencial e maior volatilidade eleitoral não foi encontrada. Quanto ao desempenho institucional, novamente não se observa qualquer desvantagem dos países que adotam lista aberta em relação àqueles Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 205 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S que adotam lista fechada, ao menos no que se refere aos indicadores do autor: accountability e corrupção4. Inclusive, a correlação é positiva, no caso do accountability, para lista aberta com 1% de significância, e, também, para as notas atribuídas quanto a presença de corrupção. Entretanto, quando se controlam as variáveis tempo de existência dos partidos e PIB per capita, a correlação deixa de ser significativa, o que para o autor acaba "indicando a inexistência de relação entre modelo de lista eleitoral proporcional, estabilidade partidária e desempenho institucional." (SANTOS, 2006, p. 741). O desenvolvimento econômico se mostrou um forte indicador de melhor desempenho institucional, como mostra a forte correlação encontrada entre as duas variáveis. Isto para o autor indicaria que "bem-estar social e incremento na renda, ao ampliar o acesso a informações e recursos de monitoramento, podem ampliar a capacidade de responsabilização pública e inibir fenômenos de corrupção". (SANTOS, 2006, p. 741) O autor ainda chama a atenção para a correlação - também encontrada em seu estudo - entre a idade média dos partidos e menores índices de volatilidade eleitoral, o que poderia significar que, independentemente do tipo de lista adotado, o tempo é um aspecto determinante para que o eleitor adquira informação mais ampla sobre as legendas partidárias e tenda a votar de maneira menos errática e mais partidarizada. Enfim, as conclusões do autor apontam para a baixa importância do tipo de listas adotadas por poliarquias quando controladas as variáveis de desenvolvimento econômico e antiguidade dos partidos. Contraria o argumento de muitos autores, inclusive Shugart e Carey, de que a competição intrapartidária possa ser considerada responsável por fragilidade dos partidos políticos e déficits no desempenho institucional. 4 206 O autor utiliza os índices do World Bank referente a essas variáveis. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S 7 Institucionalização Partidária em Democracias menos Desenvolvidas Em uma linha semelhante ao estudo anterior, mas com outro tipo de conclusão, Mainwaring e Torcal (2006) tratam de avaliar a institucionalização partidária em democracias e semidemocracias menos desenvolvidas. O argumento dos autores é de que o sistema partidário nestas democracias está menos institucionalizado que nas democracias industriais avançadas. Assim como Marenco dos Santos, os autores encontraram alta correlação entre desenvolvimento econômico (PIB per capita), mas também social (IDH), e menores índices de volatilidade. Entretanto, o estudo de Mainwaring e Torcal afirma que em países menos desenvolvidos não se observa uma tendência significativa de diminuição da volatilidade ao longo do tempo (o Brasil seria uma exceção nesse ponto), que se manteriam em valores elevados por diversas eleições. Outro resultado apresentado no trabalho desses autores é que em democracias menos desenvolvidas os eleitores utilizariam menos o voto ideológico e mais o voto personalista, ao contrário do que ocorreria em países mais desenvolvidos. Em outras palavras, a conexão entre posição ideológica dos eleitores e seus políticos preferidos é fraca. Os autores acreditam que a valoração do líder sem fatores marcantes ideológicos e programáticos demonstra personalismo e afeta o accountability. Isto acontece, defendem eles, porque, nos países com melhores índices de desenvolvimento econômico e social, os partidos representariam clivagens sociais e seriam veículos de integração social e política de massa dos novos cidadãos, desde o tempo conseguinte à segunda guerra mundial, o que não ocorreu nos países menos desenvolvidos. Os autores corroboram com as teorias que veem no incentivo à reputação pessoal um efeito nocivo à democracia, pois isto abriria espaço para candidaturas populistas. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 207 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S Para responder a questão de porque o voto personalista seria preponderante nas democracias menos desenvolvida,s Mainwaring e Torcal apontam para quatro razões: 1) pela importância da sequência histórica na construção de um partido, sendo que, em muitas democracias menos desenvolvidas, a TV se tornou um fenômeno de massas antes que os partidos se enraizassem na sociedade, de forma que os candidatos podem mandar suas mensagens diretamente aos eleitores pela TV sem a necessidade de vínculos fortes com partidos bem desenvolvidos; 2) fraca performance dos regimes em muitas democracias menos desenvolvidas, que levaram ao descrédito dos eleitores em relação aos partidos governantes; 3) em muitas dessas democracias, os partidos são muito difusos programaticamente, ocorrendo mudanças radicais das posições de um partido em temas centrais; 4) o voto personalista é mais forte em sistemas presidencialistas – o que ocorre em muitas das democracias menos desenvolvidas economicamente – que em sistemas parlamentaristas. Por fim, os autores apontam as seguintes conclusões: a principal diferença entre sistemas partidários em democracias de países com industrialização avançada e democracias menos desenvolvidas poderia ser sinteticamente captada por diferenças nos níveis de institucionalização, independentemente do número de partidos e da polarização ideológica do sistema. Haveria, portanto, duas consequências de sistemas partidários fracamente institucionalizados: 1) maior grau de incerteza em respeitos às conseqüências eleitorais (possibilidade de autoritarismo); 2) fraca institucionalização afetaria negativamente o accountability. Em contextos onde os partidos desaparecem e aparecem com frequência, onde a competição entre eles é ideologicamente e programaticamente difusa, e onde as personalidades ofuscam os partidos, o accountability encontra um ambiente adverso. 208 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S Destacamos aqui, que Mainwaring e Torcal, não apontam que determinadas regras eleitorais – como adoção de determinado tipo de listas possam ser mais benéficas ou maléficas para o aumento da preponderância da reputação pessoal dos candidatos, com exceção da adoção de sistemas parlamentaristas que fortaleceriam a institucionalização partidária. Tampouco apontam possíveis soluções para que os países com baixa institucionalização partidária possam sair deste ciclo. O ponto alto do trabalho é que os autores chamam a atenção, em concordância com o trabalho de Marenco dos Santos, que o desenvolvimento econômico (e no trabalho de Mainwaring e Torcal também o social, através do indicador IDH), está associado a melhores resultados do ponto de vista do fortalecimento dos laços ideológicos entre partidos e eleitores, o que derivaria, segundo eles, de um contexto histórico de criação das legendas partidárias ocorrido diferentemente nos dois casos. 8 Conclusões O tema discutido neste trabalho, como se pode observar, é bastante amplo e encontra-se distante da possibilidade de qualquer consenso. Se por um lado parece claro que regras eleitorais importam, por outro parece ainda nebuloso tecer qualquer afirmação de que estas têm prevalência sobre outros fatores, como destacou, por exemplo, Cox em relação à interpretação sociológica referente às clivagens sociais. Além disso, leis como as cunhadas por Duverger são constantemente alvo de reexames, que colocam em cheque seu caráter determinista, demonstrando que tentativas de estabelecer leis universais para a matéria é uma tarefa bastante complicada. Por outro lado, os estudos comparativos continuam sendo uma tarefa primordial para Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 209 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S compreender e avançar neste campo da Ciência Política, pois contribuem com a possibilidade de se estabelecer quais as relações causais (e o seu sentido como destaca o estudo de Colomer) e quais os aspectos significativos para as regras eleitorais e sistemas partidários. Entretanto, cremos que podemos levantar algumas sondagens ou hipóteses com base no que foi visto neste trabalho. Primeiramente, parecenos que perspectivas deterministas de que uma determinada regra é melhor ou pior do que outra, como, por exemplo: listas fechadas promoveriam melhores resultados do que listas abertas, carecem de uma comprovação empírica relevante, uma vez que os resultados mostrados aqui não indicam este tipo de relação. Segundo, se incentivos à reputação pessoal dos candidatos não são desejáveis por todos os motivos já citados pelos autores acima, parece-nos que isso dependa menos de regras eleitorais adotadas e mais de uma configuração histórica de formação partidária em cada país. Neste sentido, receitas normativas de como deve ser a engenharia institucional para melhorar o desempenho das democracias em diversos países parecem ter pouca relação com a realidade. Não é de se estranhar que atualmente vemos, muitas vezes, sendo colocados na forma de propostas "milagrosas" modelos de configuração de regras eleitorais que deveriam ser adotadas através da reforma política das instituições de nosso país. Acreditamos que, mais do que uma reforma que mude completamente as regras do jogo, em uma democracia que apresenta boa dose de estabilidade política como a nossa, talvez ajustes para problemas pontuais poderiam ser mais indicados. Muitos foram os autores que indicaram o Brasil como um caso de combinação de regras eleitorais "explosivas" que nos condenaria à instabilidade política, principalmente devido à debilidade dos partidos 210 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S políticos brasileiros em termos de coesão e disciplina (LIMA JÚNIOR, 1993; MAINWARING, 2001; AMES, 2003, entre outros). Entretanto, as previsões mais pessimistas se mostraram infundadas. Mesmo carente de ajustes e com determinados problemas ainda não resolvidos a pleno, nossa democracia caminha rumo à uma estabilidade pouco esperada pelos críticos de nosso sistema eleitoral. A passagem sem maiores sobressaltos por um impeachment presidencial e pela constante alternância de poder, tanto em nível federal, estadual e municipal ao longo dessas duas décadas, são fortes indicadores disto. Um mito bastante difundido no Brasil é o de que os partidos seriam poucos disciplinados no Congresso, com os parlamentares agindo como free riders. Estudos recentes mostram justamente o contrário. O grau de disciplina partidária é relativamente alto para todos os partidos. Figueiredo e Limongi (1999) mostram que, se os partidos são fracos na arena eleitoral, eles são fortes congressualmente. Isto se deve à centralização dos trabalhos nas mãos dos partidos e ao grande poder imputado aos líderes partidários através do regimento interno da Câmara, de forma a inibir estratégias individualistas por parte dos parlamentares. Desta forma, os partidos, mesmo que possivelmente pouco coesos, apresentam alto grau de disciplina. Como consequência dessa disciplina, o governo, ao formar uma coalizão, teria certa dose de previsibilidade quanto aos resultados do jogo político. Por fim, mesmo que o estudo de Mainwaring e Torcal aponte para a manutenção da volatilidade eleitoral ao longo do tempo em países menos desenvolvidos, ainda, sim, acreditamos que, concomitantemente com a melhora de índices econômicos e sociais, o tempo possa ser um caminho para o estabelecimento de padrões estáveis em democracias ainda pouco institucionalizadas, no que se refere à configuração partidária. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 189-213, 2010 211 R E G R A S E L E I T O R A I S E P A R T I D O S P O L Í T I C O S REFERÊNCIAS AMES, Barry. Os Entraves da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003. CAREY, John; SHUGART, Matthew. Incentives to Cultivate a Personal Vote: a rank ordering of electoral formulas. Electoral Studies, v. 13, n. 4, p. 417-439, 1996. COLOMER, Josep. Son los partidos los que eligem los sistemas electorales (o las leyes de Duverger cabeza abajo). Revista Española de Ciência Política, n. 9, octubre 2003. COX, Gary. Making Votes Count: Strategic Coordination in the World's Electoral Systems. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. DUVERGER, Maurice. Os Partidos Políticos. Brasília: Ed. da UnB, 1954. LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Democracia e Instituições Políticas no Brasil dosAnos 80, Rio de Janeiro: Loyola, 1993. MAINWARING, Scott, TORCAL, Mariano. 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Compara como ficaria a distribuição de vagas se não houvesse coligação, quais partidos seriam beneficiados e quais seriam prejudicados, bem como procura identificar as motivações para que esse recurso seja adotado, seguindo o modelo analítico da escolha racional. Palavras-chave: Coligação. Câmara de Vereadores de Pelotas. Eleições (1988-2008). ABSTRACT This work presents a case study about the impact of the coalition on the distribution of seats in the elections for the Chamber of Councilmen of Pelotas (RS), from 1988 to 2008. It shows how this distribution would be if there were no coalitions. It also intends to identify the motivations for the adoption of this artifice. Keywords: Coalition. Chamber of Councilmen of Pelotas; Elections (19882008). 1 Introdução A legislação eleitoral brasileira permite que os partidos utilizem-se 3 da coligação para concorrerem a cargos definidos pelo sistema proporcional. 1 O trabalho é parte do projeto de pesquisa "Impacto das coligações nas eleições municipais de Pelotas (RS) – 1988-2004", que conta com financiamento do CNPq (Edital 61/2005). 2 Professor do Instituto de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em História pela PUCRS. 3 O texto utiliza indistintamente os termos "coligação" e "aliança" para indicar a união formal de dois ou mais partidos com vistas a participar de uma eleição, embora SCHMITT (2005, p. 11-12) registre que eles se distinguem quanto ao momento da história eleitoral brasileira: "aliança" constou nas normas entre 1950 e 1965, e "coligação", a partir de 1985. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 215 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Quando isso acontece, embora não apareçam unidos no boletim de voto e o eleitor não vote diretamente em uma coligação, eles deixam de contar separadamente e, para efeito de distribuição de cadeiras, tornam-se um concorrente único, razão pela qual os votos são somados para essa legenda virtual. As eventuais vagas conquistadas são distribuídas conforme a colocação e o total de votos obtidos pelos candidatos dessa aliança, independentemente do partido a que pertençam. Logo, nada impede que o partido X seja responsável pela maior parte dos votos da coligação, por conseguinte tenha colaborado majoritariamente para a obtenção das cadeiras, e venha a ficar sem representação. A razão está no fato de os candidatos desta legenda não terem sido bem votados na lista, ao contrário do que aconteceu com os do partido Y, o outro membro da parceria. Ressalve-se que as coligações têm efeito meramente eleitoral e não implicam compromissos para o exercício dos mandatos. Por isso, formalmente, o partido Y nada deve ao partido X. Vários autores têm destacado esta situação como uma distorção que modifica a representação política, prejudica a vontade do eleitor e colabora decisivamente para a fraqueza, inautenticidade e inorganicidade dessas instituições. (ASSIS BRASIL, 1931; TRIGUEIRO, 1959; SOARES, 1964; POMPEU DE SOUZA, 1964; OLIVEIRA, 1973; SOUZA, M. C. C., 1976; LIMA JÚNIOR, 1983 e 1993; SANTOS, 1986, 1987 e 2003; DIAS, 1991; MAINWARING, 1991; SOUZA, A., 1992; TAVARES, 1992 e 1998; SAMUELS, 1997; DALMORO e FLEISCHER, 2005) Contudo, poucos desses estudos avançaram para além das apreciações teóricas e buscaram demonstrar empiricamente o impacto causado pela coligação ou, como afirma SCHMITT (2005, p. 11), poucos devotaram ao tema alguma pesquisa sistemática, ainda que a questão tenha sido mencionada em inúmeros trabalhos. 216 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Esta é a proposta do presente texto, que promove um estudo de caso, centrado no impacto da coligação sobre a distribuição de cadeiras nas eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas (RS), de 1988 a 2008, o que abarca todos os seis pleitos ocorridos no atual período pluripartidário em que a coligação estava autorizada4. O trabalho também procura identificar as motivações para que esse recurso seja adotado, seguindo o modelo da escolha racional, ao partir da perspectiva de que ele constitui norma institucional vigente e, consequentemente, torna-se uma alternativa cogitada pelos atores ao formularem as estratégias eleitorais. (SOARES, 2001; LAVAREDA, 1991) Pelotas possui, atualmente, cerca de 240 mil eleitores e constitui o terceiro maior colégio eleitoral do Rio Grande do Sul. Principal município da chamada zona sul do estado, possui uma população estimada de 350 mil habitantes. A Câmara foi composta por 21 cadeiras desde o início da análise até o final da legislatura 2001-04, tendo agora 15 vagas, em função da mudança na composição dos legislativos municipais, realizada pela Justiça Eleitoral. Os dados referentes aos pleitos de 1996 a 2008 foram obtidos no site do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, e aqueles relativos a 1988 e a 1992, no jornal "Diário Popular". Informações complementares foram buscadas em notícias da imprensa. O trabalho está dividido em quatro seções. A primeira é de ordem descritiva: apresenta a relação de concorrentes e de coligações nas eleições, discrimina essas alianças e as legendas delas participantes. A seção dois simula como ficaria a distribuição de cadeiras se não houvesse coligação. Na 4 Na eleição de 1982, a coligação estava proibida, em obediência ao art. 105 do Código Eleitoral de 1965 (Lei 4.737, de 15 jul. 1965). A medida foi reafirmada no inciso IV do art. 19 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (5.682, de 21 jul. 1971), preservada na norma que restabeleceu o pluripartidarismo (Lei 6.767, de 20 de dez. 1979) e na que estabeleceu as regras específicas para o pleito de 1982 (Lei 6.978, de 19 jan. 1982). As alianças foram permitidas pela EC-25, de maio 1985, consagrada pela nova redação do já citado art. 105 do Código Eleitoral, estabelecida pelo art. 3 da Lei 7.454, de 30 dez. 1985. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 217 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S seguinte, apontam-se as estratégias adotadas pelos partidos que decidiram se coligar, notadamente aqueles que foram afetados por tal escolha. Finalmente, analisam-se as motivações pelas quais as legendas aceitam participar deste jogo. 2 Identificação do Fenômeno O quadro 1 traz a relação dos partidos que disputaram as eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008, discriminados entre aqueles que participavam de coligação e os que estavam avulsos. No total, 25 legendas participaram dos pleitos (PT, PL, PCdoB, PP5, PFL-DEM6, PSB, PSDB, PTB, PMDB, PDT, PCB, PPS7, PRN, PST, Prona, PV, PTdoB, PMN, PHS, PR, PRB, PTC, PTN, PSC e Psol). 1988 PT PL PCdoB PP PFL PSB PSDB PCB PTB 1992 PT PL PCdoB PP PFL PSB PSDB PPS PMDB PRN 1996 PT PL PCdoB PTB PPS PV PDT 2000 PT PL PCdoB PP 2004 PT PL PCdoB PP PFL PV PSDB PTdoB PMN PHS PMDB PDT PST PDT PTB Prona PMDB PP PFL PSB PSDB PRN PMDB PDT PTB PSB PSDB PFL PTdoB PPS PV PMDB PDT PTB PSB PPS 11 14 13 13 15 Não coligados Coligados Sit. Total 2008 PTB PR PMDB PP DEM PPS PSDB PTdoB PTC PHS PRB PTN PSC PV PDT PCdoB PSB PMN PSol PT 20 Quadro 1 – Partidos que disputaram as eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008. 5 Para simplificar, utiliza-se PP como a uma única denominação para referenciar a entidade que, ao longo desse período, foi identificada também como: PDS, PPR e PPB. 6 DEM, abreviatura de Democratas, é a nova denominação adotada pelo PFL. 7 Neste trabalho, consideram-se PCB e PPS como dois partidos distintos. 218 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S O quadro 2 discrimina as 20 coligações realizadas nas eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas, entre 1988 e 2008, das quais participaram 22 diferentes legendas, nesse total incluídas as 14 que estiveram representadas ou garantiram representação na Câmara (PMDB, PP, PDT, PT, PFL-DEM, PL, PSB, PTB, PSDB, PCdoB, PTdoB, PPS, PRB e PCB8), além de: PRN, PV, PMN, PHS, PR, PTC, PTN e PSC, que nunca conquistaram vaga. Portanto, a coligação é um recurso utilizado pela quase totalidade dos partidos: apenas PST, Prona e PSol nunca participaram de alianças9. 1988 PT PSB 1992 PT PPS PSB 1996 PT PPS PV 2000 PT PCdoB 2004 PT PL PCdoB PP PL PFL PTB PP PL PTB PL PP PL PP PV PSDB PCB PCdoB PMDB PSDB PCdoB PDT PCdoB PFL PRN PTdoB PMN PHS PFL PSDB 2008 PMDB DEM PP PTB PRB PSDB PTC PTN PHS PSC PTdoB PPS PR Quadro 2 – Coligações que disputaram as eleições para a Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008. 3 Simulações de Resultado Pretende-se, a partir de agora, simular como ficaria a distribuição de cadeiras entre os partidos, se não houvesse coligações e eles contassem unicamente com as suas próprias votações. Apesar da condição hipotética, o mérito dessas simulações está em fornecer indicadores que permitem 8 Dentre todos, o PCB é o único a nunca ter se elegido. Ele ganhou representação logo após ter sido legalizado, em 1985, a partir da migração de um vereador do PMDB, tendo permanecido na Câmara até 1986. 9 Entretanto, eles só concorreram uma vez: PST e Prona, em 1992, e PSol, em 2008. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 219 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S dimensionar o impacto que as coligações tiveram na distribuição de cadeiras entre os partidos e, assim, subsidiar a interpretação sobre os efeitos que provocam. Para realizar as simulações, as primeiras medidas foram: acessar o resultado oficial dos pleitos e detalhar os cálculos de distribuição de cadeiras feitos pela Justiça Eleitoral (quantas cadeiras cada partido ou coligação obteve pelo cociente partidário e quantas foram conquistadas pela distribuição de sobras). O passo seguinte foi discriminar a votação de cada um dos partidos que compunha as coligações, o que serviria de base para as diferentes combinações a serem efetivadas. Depois, considerou-se que a coligação estivesse proibida em todos os pleitos. Logo, os cálculos de distribuição de cadeiras levaram em conta os votos de cada partido isoladamente, preservados os parâmetros legais da época.10 Finalmente, o novo panorama de distribuição de vagas foi comparado com o oficial (tab. 1). Tabela 1 - Número oficial de cadeiras de vereadores conquistadas pelos partidos, em Pelotas, no período 1988-2008, e projeção de como 11 ficaria essa distribuição, se não houvesse coligação Partido PMDB PP PDT PT PFL PL PCdoB PTB PSDB PSB PTdoB PPS PRB Total 1988 6 5 5 2 2 1 21 Proj. 6 5 5 2 3 21 1992 4 5 4 2 2 1 1 1 1 21 Proj. 4/5 5 4 2 2/3 2 1 21 1996 3 3 3 4 2 2 1 2 1 21 Proj. 3 3 5 4 2 1 2 1 21 2000 3 3 3 4 2 1 1 1 2 1 21 Proj. 3 4 3 4 2 1 1 2 1 21 2004 2 3 3 2 1 2 1 1 15 Proj. 2 3 4 2 2 1 1 15 2008 2 2 1 4 1 1 1 2 1 15 10 Proj. 1 3 1 5 1 2 2 15 Logo, os votos em branco foram contabilizados como válidos nos pleitos de 1988 a 1996, e desconsiderados nas eleições subsequentes. 11 As mudanças estão marcadas em cinza, com o intuito de facilitar a identificação. 220 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Essa simulação mostra o quanto o instituto da coligação modifica o cenário da distribuição de vagas: o resultado seria diferente em todos os pleitos. No total, 10 cadeiras seriam redistribuídas: três em 2008, duas em 1992 e em 1996, uma em 1998, em 2000 e em 2004. Cinco foram os partidos beneficiados: PL (cinco cadeiras, de 1988 a 2008), PCdoB (duas, 19921996), mais PMDB, PTB e PRB (uma cada, 2008). Dentre as legendas que cederam cadeiras, o cenário é mais diversificado: PP (2000 e 2008), PT (2004-2008), PDT (1996) e talvez PFL (1992-1996) cederam duas vagas, mais PTB (1992), PSDB (2000), além de, talvez, PMDB (1992), que cederam uma cadeira12. Eleição 1988 1992 1996 2000 2004 2008 Perderia PL (1) PCdoB (1) PL (1) PCdoB (1) PL (1) PL (1) PL (1) PMDB (1) PTB (1) PRB (1) Ganharia PFL (1) PTB (1) PFL ou PMDB (1) PDT (2) PP (1) PT (1) PT (1) PP (1) PSDB (1) Quadro 3 – Partidos que ganhariam e perderiam vaga em relação ao resultado oficial, na Câmara de Vereadores de Pelotas, no período 1988-2008, se não houvesse coligação. 12 A dúvida é oriunda da seguinte situação: sabe-se o total de votos de legenda da coligação nos pleitos de 1988 e de 1992, mas não foi possível identificar o número exato desse tipo de sufrágio que cada participante recebeu. Decidiu-se, então, distribuí-lo na proporção de votos nominais que cada partido obteve. Exemplifica-se: em 1992, os candidatos do PMDB contribuíram com 69,2%, os do PSDB com 26% e o do PCdoB com 4,8%. Logo, o PMDB recebeu 3.318 dos 4.975 votos de legenda da coligação, o PSDB 1.247 e o PCdoB 230. O problema está no fato de que este cálculo, embora baseado em um critério razoável, é uma projeção e pode distorcer os resultados oficiais. O risco se mostrou potencialmente significativo em apenas uma situação: na distribuição de cadeiras relativas a 1992, o PFL ficaria com uma nova vaga, considerando-se o critério adotado; contudo, se o PMDB somasse 620 votos a mais do que lhe foi atribuído, a vaga passaria a ser dele. Frente à ausência de certeza, resolveu-se considerar a hipótese de que a vaga poderia ter sido tanto de um quanto de outro. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 221 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Deve-se destacar, também, que o recurso da coligação colaborou decisivamente para a ampliação no número de partidos que conquistaram espaço formal na Câmara: sem ela, haveria menos legendas representadas, em todos os pleitos. Da mesma forma, colaborou para o crescimento no número efetivo de partidos, como indica o quadro 4. Se ela não fosse adotada, o índice seria sempre menor (cerca de 5% a 25%, dependendo do pleito). Eleição Número absoluto Sem coligação Com coligação 5 6 7 9 8 9 9 10 7 8 7 9 1988 1992 1996 2000 2004 2008 Número efetivo Sem coligação 4,45 5,88 / 5,58 6,39 7,34 5,77 5,00 Com Coligação 4,64 6,38 7,73 8,01 6,82 6,81 Quadro 4 – Comparação entre o número absoluto e efetivo de partidos que elegeriam vereador em Pelotas, a cada pleito, no período 19882008, se não houvesse coligação, e o daqueles que elegeram efetivamente. 4 As Estratégias dos Partidos cuja Escolha pela Coligação Produziu Efeito Para os partidos beneficiados, o fato possui dois significados: a ampliação daquela(s) cadeira(s) já conquistada(s) ou a obtenção de representação. No primeiro caso, ocorrido em duas oportunidades, a legenda participante de aliança tinha votação suficiente para conquistar a(s) vaga(s), se concorresse sozinha. Contudo, aumentou a representação graças ao fato de estar coligada. Em 1996, o PL fez 1,1 vezes o cociente eleitoral, o que lhe daria uma cadeira. Porém, ele concorreu ao lado do PTB, união que totalizou duas vagas. Como os dois candidatos individualmente mais votados eram do PL, 222 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S ele veio a ocupar as cadeiras, embora o PTB tenha colaborado com 45% dos votos. Isso não significa que quem cedeu a vaga tenha sido o parceiro, pois, sem o recurso da coligação, o PTB não superaria a cláusula de exclusão (atingiu 93% do cociente eleitoral). Nesse caso, a segunda cadeira garantida pelo PL foi retirada de outra agremiação, o PDT. Já o PMDB, em 2008, somou 1,03 vezes o cociente eleitoral e também conseguiria uma cadeira. Entretanto, a aliança que formou com o DEM amealhou três vagas, das quais ele ocupou duas, ao apresentar dois candidatos líderes de votação na listagem. Como o parceiro também venceu a cláusula de exclusão (1,08 vezes o cociente eleitoral) e garantiria a vaga por suas próprias forças, a que o PMDB ocupou foi cedida por um concorrente. A dificuldade é determinar quem foi este partido (PT, PP ou PSDB), visto que no pleito houve três vagas redistribuídas por conta das coligações. O segundo cenário é o mais comum, tendo envolvido oito dos 10 casos. PL, PCdoB, PTB e PRB superaram a cláusula de exclusão ao participarem de coligação. Em outras palavras: sem a coligação, estas legendas não fariam parte da Câmara; coligadas, garantiram representação, embora tenham somado poucos votos. O quadro abaixo apresenta o percentual do cociente eleitoral que esses partidos atingiriam com a votação própria. Partido PL PL PL PL PCdoB PCdoB PTB PRB Eleição 1988 1992 2000 2004 1992 1996 2008 2008 % do CE 67 89 30 36 23 36 74 34 Quadro 5 – Percentual do cociente eleitoral atingido isoladamente pelos partidos que obtiveram representação na Câmara de Vereadores de Pelotas porque concorreram em coligação, no período 19882008. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 223 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S A maior incidência dessa situação não surpreende. Como a legislação brasileira estabelece a obtenção de uma cadeira (ou seja, atingir o quociente eleitoral) como cláusula de exclusão, ela estimula a buscarem a coligação todos aqueles partidos que têm a conquista de representação como um objetivo importante e, ao mesmo tempo, sabem que sozinhos não vão superar esse limite. Sem a utilização desse instrumento, PCdoB e PRB nunca teriam elegido um vereador, enquanto PL obteria vaga em apenas uma oportunidade13, o que parece consagrar a afirmação de NICOLAU (1996, p. 105), segundo a qual, a legislação estimula o advento da figura dos "partidos de coligação", aqueles que não têm votos para atingir o cociente eleitoral, mas garantem representação devido à votação de outras legendas. Além disso, como aponta SOARES (2001, p. 157), o valor de estar representado é alto para as legendas, pois certos benefícios independem, ou dependem pouco, das vagas adicionais que elas venham a obter (proposição de projetos, direito ao uso da palavra e de manifestações públicas, acesso à mídia ou aos recursos financeiros inerentes ao exercício da representação política formal). Logo, em termos de utilidade, o intervalo que vai de nenhuma (zero) a uma cadeira é maior do que qualquer um dos intervalos subsequentes. No entanto, propor a coligação não é indicador da maior ou menor capacidade do partido para montar estratégias que visem a atingir os objetivos traçados, é preciso considerar, também, quem ele busca como parceiro. SOARES (2001, p. 150) pondera que outro partido pequeno é vantajoso, quando a adição de votos for suficiente para superar o cociente eleitoral, desde que a votação do parceiro não seja concentrada, isto é, um candidato dele não apareça como o mais votado da lista, o que faria com que amealhasse a vaga – o que será observado adiante. 13 224 O PTB teria garantido representação em três pleitos (1992, 2000 e 2004). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S A outra opção é aliar-se a um partido grande. Nesse caso, o melhor parceiro é aquele que soma muitos votos, os quais estão bem distribuídos entre os principais candidatos, ou seja, que não possui muitos nomes individualmente bem votados, pois isso torna mais viável que a pequena legenda venha a ocupar uma vaga, desde que se sirva da estratégia de concentrar os sufrágios em um único concorrente. No pleito de 1988, o PL esteve ao lado de PP, PFL e PTB. Esta união liderou o pleito com 37,2% do total de votos nominais, dos quais 57% foram obtidos pelo PP, enquanto o PL não passou de 9,1%. A coligação garantiu oito vagas, assim distribuídas: cinco para o PP, duas para o PFL e uma para o PL. Quatro anos depois, o partido fez parceria com o PP. Ela obteve 23,6% do total de votos nominais e seis cadeiras. Contudo, o PP colaborou com 80% do total. Na distribuição de vagas, o primeiro ocupou cinco e o PL uma. Ele repetiu a mesma coligação, no pleito de 2000, para a qual o PP agregou mais de 92% e ficou com três das quatro cadeiras conquistadas. Na eleição de 2004, o PL voltou a se servir da mesma estratégia e, coligado com PT e PCdoB, garantiu uma vaga. A aliança liderou o pleito e amealhou quatro cadeiras, das quais três foram para o PT, que somou 85% do total. O PCdoB uniu-se a PMDB e a PSDB, em 1992, coligação que obteve 25,6% dos votos nominais e conquistou seis cadeiras. O PMDB contribuiu com 69,2% e ficou com quatro vagas, o PSDB com 26%, tendo obtido uma cadeira, enquanto o PCdoB, com 4,8%, também foi contemplado com uma. Em 1996, o partido esteve coligado com o PDT, parceria que fez 19,9%, o que redundou em quatro cadeiras. Dessas, três foram ocupadas pelo PDT e uma por ele (25%). Entretanto, o primeiro totalizou cerca de 91% dos votos da coligação. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 225 I M P A C T O Eleição 1988 D A C O L I G A Ç Ã O Partido PL PP PFL PTB PL PP PCdoB PMDB PSDB PCdoB PDT PL PP PL PT PCdoB PTB PP PRB PMDB DEM 1992 1992 1996 2000 2004 2008 2008 E M % votos 9,1 57,0 33,7 0,2 20,0 80,0 4,8 69,2 26,0 9,0 91,0 7,8 92,2 10,6 85,3 4,1 22,2 67,6 10,3 48,6 51,4 E L E I Ç Õ E S % cadeiras 12,5 62,5 25,0 16,7 83,3 16,7 66,7 16,7 25,0 75,0 25,0 75,0 25,0 75,0 25,0 50,0 25,0 66,7 33,3 P R O P O R C I O N A I S Diferença +3,4 +5,5 -8,7 -0,2 -3,3 +3,3 +11,9 -2,5 -9,3 +16,0 -16,0 +17,2 -17,2 +14,4 -10,3 -4,1 +2,8 -17,6 +14,7 +18,1 -18,1 Quadro 6 – Comparação entre o percentual de votos e de cadeiras obtidas pelos participantes de coligação, quando estes foram beneficiados com vagas, no período 1988-2008 No que tange às legendas que teriam perdido vaga em função das coligações, também há duas situações. Na primeira figuram aquelas que as cederam para parceiros da aliança; na outra, as que as perderam para legendas participantes de outra coligação e que, sozinhas, não teriam superado o cociente eleitoral. A primeira é a mais comum: manifestou-se em seis dos 10 casos, sendo que, em cinco oportunidades, quem cedeu foi o principal ou único parceiro: PMDB (1992)14, PDT (1996), PP (2000), PT (2004) e PP (2008). Na eleição de 1988, o PFL deixou de obter uma vaga, entregue ao PL. O único diferencial em relação aos anteriores é que, no caso, o principal partido da coligação era o PP (quem somou mais votos e tinha o candidato a Prefeito) e ele permaneceu com as mesmas cinco vagas que obteria se concorresse isoladamente. 14 226 Em relação à dúvida exposta na nota 10, está-se considerando que o PMDB teria cedido a vaga. Se a vaga fosse do PFL, deveria ser incluída no outro cenário, o qual somaria cinco ocorrências. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S A outra situação ocorreu em quatro oportunidades: PTB (1992), PDT (1996), PT e PSDB (ambos em 2008). Os dois primeiros deixaram de ocupar uma vaga cada, ambas repassadas ao PL, quando este não estava coligado com nenhum deles. Na prática, o PL foi beneficiado pela votação da coligação, visto que isoladamente não superaria a cláusula de exclusão. Em 1992, o PTB concorreu sozinho, somou 1,4 vezes o cociente eleitoral e obteve uma cadeira. Se o PL for retirado da disputa (eliminado do rateio por não ter atingido o cociente eleitoral), ele ganharia uma segunda vaga na distribuição de sobras. Na eleição seguinte, a mesma situação atingiria o PDT, que somou 28.585 votos e conquistou três cadeiras15. No pleito de 2008 fica mais difícil determinar quem foi o beneficiado, como já foi destacado. Entretanto, os contemplados foram: PTB, PRB ou PMDB. 5 Por queAceitar o Jogo Sendo este o panorama, a questão passa a ser: por que os partidos permitem que esta transferência de cadeiras seja mantida, principalmente no caso daqueles que cedem vagas?16 Não cabe alegar que os partidos a desconheçam, afinal, obedece às regras que fundam o sistema eleitoral brasileiro e não constitui efeito inesperado. Logo, a compreensão do fenômeno passa pela própria racionalidade dos atores, o fato de que a tomada de decisões e a formulação de estratégias são realizadas sob a perspectiva de obtenção de algum tipo de vantagem, seja em si mesma, seja em comparação com aquilo que cada ator projeta ser a estratégia de ação dos outros (vantagem relativa ou impedimento que o outro obtenha ganho). 15 Lembra-se que, pelo rateio de sobras, o PDT garantiria cinco vagas. Além dessa, transferida ao PL, ele teria cedido uma segunda cadeira, da qual se beneficiaria o PCdoB, companheiro dele na coligação. 16 SCHMITT (1999, p. 34) faz o mesmo questionamento em relação às eleições para a Câmara de Deputados. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 227 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Quando as pequenas legendas propõem coligação aos partidos maiores, elas têm a expectativa de obter um espaço formal que, sozinhas, sabem que não teriam condições de atingir. E vão mais além: montam estratégias que buscam maximizar o aproveitamento dos votos dos parceiros para transformá-los em cadeira, quais sejam: lançar poucos candidatos e/ou centrar a campanha em um único nome, com vistas a concentrar a votação. Vejam-se os sete casos em que a tática funcionou17. Na eleição de 1988, a aliança PP-PFL-PL-PTB tinha 95 candidatos, dos quais 12 eram do PL. O concorrente mais votado deste partido ficou em quinto lugar na lista e garantiu uma das oito cadeiras da coligação. O segundo colocado, entretanto, obteve a 29ª colocação. Em 1992, o PL também apresentou 12 candidatos, enquanto o PP, 43. O mais votado da coligação acabou sendo do PL, mas o segundo colocado do partido ficou em 13º lugar, sem contar que três dos inscritos por ele somaram menos de 75 votos. No mesmo pleito, a tática do PCdoB foi ainda mais explícita: coligado com PMDB e com PSDB, ele preferiu lançar apenas um candidato, em uma lista formada por 65 nomes. Este ficou em quarto lugar, e obteve uma das seis cadeiras da coligação. Quatro anos depois, o PCdoB repetiu a fórmula: voltou a coligar com um partido forte, dessa vez o PDT, e inscreveu apenas dois candidatos numa listagem de 24 nomes. Obteve uma vaga, pois um desses candidatos foi o terceiro na coligação e o outro ficou na 18a colocação. Na eleição do ano 2000, o PL concorreu com três candidatos, enquanto o PP tinha 37. O mais votado do PL obteve a quarta colocação na lista, o que valeu a vaga. O segundo foi o 18o colocado. Em 2004, o PL 17 228 Há exemplos de coligação de legenda pequena com outra de mais expressão que não redundaram na obtenção de vaga para ela: PSB com PT, em 1988; PSB e PPS com PT; PRN com o PFL, ambos em 1992; PV e PPS com o PT, em 1996; PCdoB com PT, em 2000 e em 2004; PV com PDS, em 2004; PR com PPS, em 2008; e PTC, PTN, PHS, PTdoB e PSC com o PSDB, em 2008. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S apresentou cinco nomes contra 18 do PT, principal parceiro.18 Um desses garantiu a vaga para o partido, ao obter a terceira maior votação da coligação. O segundo candidato do PL foi o 16o. Pondera-se que outros dois foram os menos votados da listagem, com 158 e 89 votos, respectivamente. No pleito mais recente, o PRB repetiu a tática: apresentou apenas dois candidatos, emplacou o quarto mais votado da coligação com o PP-PTB, que conquistou quatro cadeiras. As legendas maiores, por sua vez, são sabedoras dessa estratégia, bem como da probabilidade de que ela venha a ser bem sucedida. Mais do que isso: esta possibilidade é o recurso que elas oferecem para as pequenas, ao lado da perspectiva de virem a constituir o governo e a ocuparem cargos de secretaria ou outros de escalão inferior da administração municipal. Por isso, quando aceitam este tipo de coligação, as grandes concordam com o risco de ceder cadeiras e, consequentemente, de renunciar a uma parcela de espaço político formal na Câmara de Vereadores. Tal concordância baseia-se em um cálculo político, no qual o benefício que as legendas pequenas oferecem a elas aparece como mais significativos do que o custo a ser pago para viabilizar tal negociação. A moeda de troca das pequenas é, do ponto de vista afirmativo, o apoio à chapa majoritária liderada pelas grandes, o tempo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e a perspectiva de ampliar a base de apoio na Câmara, quando do exercício do governo. Do ponto de vista negativo, é a eliminação da possibilidade de que esse mesmo capital seja utilizado pelos adversários das legendas maiores. O ganho das grandes é a expectativa de que, com esse apoio, elas estarão melhor estruturadas para a conquista do Executivo. Como destaca LAVAREDA (1991, p. 115-6), elas aceitam as coligações proporcionais 18 O PCdoB, terceiro participante da coligação, inscreveu dois candidatos. No total, a Frente Popular tinha 25. Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 229 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S frequentemente por motivos rigorosamente estranhos aos pleitos proporcionais: funcionam como instrumento de barganha para amealhar o apoio das pequenas legendas nos pleitos majoritários, aqueles em que mesmo um pequeno contingente de votos orientados por um partido pequeno pode ser vital nas urnas, ou mesmo antes, pois emprestam aparência de maior força e ajudam a viabilizar candidaturas. Nesse sentido, não é totalmente procedente a afirmação de TAVARES (1998, p. 167), segundo a qual: coligações interpartidárias em eleições proporcionais por voto uninominal terminam gerando aleatoriamente inúmeras distorções, entre as quais a superrepresentação de partidos minúsculos, ao prover-lhe mesmo um único assento parlamentar, em prejuízo do partido maior na coligação, pois, em última instância, nenhum dos parceiros é realmente prejudicado, embora um ou outro possa vir a arcar com algum ônus ao final do processo, principalmente se não ganhar a disputa para Prefeito. Trata-se de uma negociação em que cada um espera obter vantagens e sabe o que pode e precisa oferecer ao outro para que o acordo seja selado. O autor tem razão, porém, se for observado que a maximização de ganhos é, proporcionalmente, maior para as legendas pequenas. Isso porque, ao apoiar um partido grande, elas renunciam a um ganho possível, mas bastante improvável: vencer a eleição para Prefeito. Em contrapartida, obtêm como dividendo a ampliação da possibilidade de garantir espaço político na Câmara de Vereadores (e no futuro governo, se a coligação for vitoriosa), o que, em condições normais, também seria pouco provável, face à limitada inserção delas no eleitorado. Com diz SOARES (2001, p. 150), "[. . .] o partido pequeno, com votação total inferior ao cociente eleitoral e sem perspectiva de representação, é o caso limite da racionalidade da aliança eleitoral. Nada tem a perder, só tem a ganhar". 230 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Na mesma linha, o que as grandes chamam de ganhos efetivos – eleger o Prefeito – implica um jogo de soma zero, em que só há um vencedor. E chegar a tal vitória exige arcar com custos altos e correr muito mais riscos, inclusive o de perder (ou deixar de ganhar) a disputa e, ainda, o de vir a ocupar menos espaço do que poderia na Câmara.19 Em resumo: a lógica de ação das legendas grandes é autoexcludente, enquanto a das pequenas, como opera em um espaço político maior (constituído por 21 ou 15 cadeiras, no caso específico), permite que vários atores sejam contemplados. Por outro lado, os benefícios à disposição das grandes são maiores, quando elas vencem, a tal ponto de elas se permitirem jogar com o número de cadeiras que poderiam conquistar, com vistas a tornar esta vitória mais viável. Prevalece, assim, a máxima de quanto mais riscos, mais ganhos. A explicação apresentada anteriormente não abrange a totalidade das coligações válidas para a disputa de Prefeito e de vereadores ocorridas em Pelotas, embora envolva os casos mais significativos. É preciso considerar aquelas em que figuram partidos de grandeza equivalente. Há duas formadas apenas por partidos pequenos: "Frente Popular", em 1988, que reuniu PSDB, PCdoB e PCB; e "Aliança Acorda Pelotas", em 2004, composta por PTdoB, PMN e PHS. Elas não venceram o pleito para Prefeito (aliás, ficaram em último lugar) e não conquistaram cadeira, ou seja, não foram capazes de vencer a cláusula de exclusão, dada a restrita expressão dos participantes. Como afirmam DALMORO e FLEISCHER (2005, p. 94), não é possível concentrar aquilo que não se tem. 19 Não surpreende verificar que as legendas que elegeram o prefeito e historicamente são as que elegeram mais vereadores (PMDB, PDS, PDT e PT), jamais tenham coligado entre si. (BARRETO, 2008). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 231 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Conforme SOARES (2001, p. 146), essas coligações são do tipo "jogar de graça": se os participantes concorressem sozinhos, não teriam a perspectiva de obter representação, logo, se a união não redundasse em sucesso, não perderiam; ao somarem forças, havia a perspectiva de, eventualmente, obter alguma vaga. Já foi destacado o quanto a perspectiva de conquista da primeira (ou da única) vaga é estratégica para as legendas, seja por que ela equivale à cláusula de exclusão na legislação eleitoral brasileira, seja em relação ao espaço formal de atuação política que ela proporciona. Pode-se especular, portanto, que aquele partido que se imagina mais perto de amealhar essa possível vaga, teria mais estímulos para propor a coligação. Essa situação não modifica a condição dos demais, que não arriscariam nada com a aliança, haja vista que não tinham a expectativa de qualquer ganho formal. Cabe perguntar, entretanto, a motivação para que esses partidos pequenos, ao contrário dos que foram vistos anteriormente, não tivessem procurado se coligar com as legendas que tinham a perspectiva de vencer a disputa para Prefeito, visto que, assim, poderiam ganhar espaço na futura administração e/ou uma cadeira de vereador. As razões para tais atitudes podem estar baseadas em aspectos ideológicos ou em uma racionalidade de perspectiva mais ampla, menos centrada em resultados imediatos. É o caso do PSDB, em 1988: recém fundado e ainda em processo de estruturação na cidade, ao estabelecer uma candidatura própria a Prefeito, o partido tinha a ganhar em termos de divulgação da sigla, além de procurar consolidar-se junto à opinião pública e ao eleitorado como uma opção à esquerda do espectro político, porém dissociada da alternativa liderada pelo PT, tanto que a coligação encabeçada por ele serviu-se de uma denominação "Frente Popular". 232 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Em 2004, não parece ter preponderado a lógica partidária, e sim a pessoal: José Luiz Porto Ferreira lançou-se candidato a Prefeito como forma de tornar o nome dele conhecido, com vistas a disputas futuras, ou de reforçar a base no Sindicato dos Comerciários, no qual exerce a presidência há várias gestões. Filiado ao PMN, tendo apoio de outras duas legendas pequenas, sem estrutura partidária e praticamente sem tempo no HGPE, ele estaria fadado ao fracasso. Porém, como candidato, teve acesso aos debates de rádio e TV, ocasião em que pode formular um discurso que destoava daquele apresentado pelos demais candidatos, com um tom "radical" em nome da classe trabalhadora, contudo não necessariamente vinculado às opções tradicionais de esquerda. Essa não é a situação de outras três coligações, ambas referentes a partidos que poderiam ser classificados como de médio/grande porte: PTB e PL, em 1996; PFL e PSDB20, em 2004; e DEM e PMDB, em 2008. Com experiência em disputas municipais, já tendo elegido vereadores, eles uniram forças com a expectativa de obterem ganhos correspondentes, os quais não seriam atingidos, se concorressem sozinhos. Ressalva-se que elas não atingiram o objetivo de vencer a eleição para Prefeito (chegaram em terceiro lugar), bem como que, na disputa para vereador, não houve proporcionalidade entre os parceiros na distribuição de dividendos: PL e PFL concentraram as cadeiras conquistadas, PTB e PSDB não obtiveram nenhuma; enquanto o PMDB ficou com duas vagas e o DEM com uma, apesar de ter somado mais votos que o parceiro. Nos três casos, quem deixou de ganhar vaga foi o partido que liderava a chapa majoritária, enquanto os beneficiados tinham o candidato a vice. 20 Em 2004, deixara a condição de partido pequeno em âmbito municipal, já tendo elegido o vice-prefeito (1992), e obtido quatro cadeiras de vereador (uma em 1992, duas em 1996 e uma em 2000). Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 233 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S Nesse sentido, parece prevalecer a explicação apresentada no caso da união entre legendas grandes e pequenas: quem espera lucrar na eleição para vereador, abre mão da candidatura majoritária e oferece apoio a quem ambiciona vencer para o Executivo; este, por sua vez, corre o risco de perder espaço na Câmara, na expectativa de atingir os ganhos muito mais amplos do cargo de Prefeito. 6 Conclusão O trabalho procurou analisar, por intermédio de uma investigação empírica, o impacto das coligações para a distribuição de cadeiras na Câmara de Vereadores de Pelotas. Seguindo a orientação da escolha racional, viu-se a situação dos partidos pequenos (que têm motivações para buscarem a coligação) e a dos grandes (que aceitam a aliança, notadamente com essas legendas menores, em razão da disputa majoritária). Observou-se que a coligação foi determinante para a ampliação no número de partidos que conquistaram representação, em cada eleição do período 1988-2008, ou seja, tem contribuído decisivamente para que o sistema partidário pelotense seja fragmentado. Esclarece-se que o sistema não possui essa característica unicamente por causa da coligação, porém, a possibilidade de os partidos servirem-se dela favorece para que a fragmentação seja mais intensa. Da mesma forma, o texto teceu considerações a respeito dos motivos para que seja adotada, os quais podem ser resumidos ao fato de que os partidos esperam obter algum tipo de vantagem, quando se unem a outro(s). O tipo de conveniência pode mudar, conforme a grandeza, as pretensões em relação à disputa majoritária ou, ainda, a estratégia para a eleição proporcional de cada um. 234 Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p. 215-237, 2010 I M P A C T O D A C O L I G A Ç Ã O E M E L E I Ç Õ E S P R O P O R C I O N A I S REFERÊNCIAS ASSIS BRASIL, J. F. Democracia representativa. 4.ed. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1931. BARRETO, A. Mapeamento da distribuição de cadeiras da Câmara de Vereadores de Pelotas, entre os partidos políticos, conforme as eleições do período 1982-2004 In: ______ (Org.). Sistema partidário em Pelotas (RS): organização, eleições e trocas de legenda 1979-2004. Pelotas: UFPel, 2008. DALMORO, J.; FLEISCHER, D. Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o problema da proporcionalidade In: KRAUSE, S.; SCHMITT, R. (Org.). Partidos e coligações eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação KonradAdenauer, 2005. DIÁRIO POPULAR. Pelotas, nov. 1988/nov. 1992. DIAS, J. L. de M. Legislação eleitoral e padrões de competição políticopartidária In: LIMA JÚNIOR, O. B. (Org.). Sistema Eleitoral brasileiro: teoria e prática. 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