Positivismo ilógico

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Positivismo ilógico
Américo Pereira
2007
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Positivismo ilógico: Análise Crítica ao
texto de Rudolf Carnap Überwindung
der Metaphysik durch Logische Analyse
der Sprache∗
Américo Pereira
O texto de Rudolf Carnap “Überwindung der Metaphysik durch Logische Analyse der Sprache”, publicado em Erkenntnis, Vol. II, 1932,
intenta, como é manifesto no título da versão em inglês, de 1959, surgida no volume Logical Positivism, editado por A. J. Ayer, que seguimos, intitulada “The elimination of Metaphysics Through Logical
Analysis of Language”, eliminar a metafísica. Segundo o autor, esta
necessidade de eliminação da metafísica não se deve à sua manifesta
falta de verdade, mas à sua pretendida manifesta falta de sentido. O
que isto seja será visto mais adiante. Comecemos por apontar a fonte
primeira deste aparentemente epistemológico desejo.1
∗
Texto elaborado no âmbito da disciplina de Filosofia da Linguagem, Licenciatura
em Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2007.
1
Supostamente a bem da ciência, procura-se uma linguagem que coincida com
um sentido redutível aos dados da sensibilidade (de cariz meramente material) e a
mais nada, reduzindo-se o campo da experiência possível para o homem à mera experiência dada nos e pelos sentidos capazes de paixão originada pela materialidade
cósmica. Qualquer outra forma de experiência (de tipo interno, por exemplo, mas
não só) é considerada como sem sentido. A experiência humana possível é, assim,
reduzida a uma captação de sinais materiais por estruturas também materiais, que magicamente transformam parte das primeiras em sentido. Só que este não pode deixar
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Américo Pereira
Nada deste texto pode ser devidamente compreendido sem fazer
apelo, que é doutrinal e não histórico, ao que se encontra presente no
seu fundamento motor em termos epistemológicos. Trata-se da herança
doutrinal haurida na tradição dita “empirista”2 , mas que verdadeiramente o não é, dado que não respeita a experiência como um todo,
sendo realmente uma forma de “empiricismo”, isto é, uma forma de
exacerbação ilegítima de uma certa interpretação redutora da experiência. Pervertendo o âmbito do que é a experiência humana no seu
todo e que compendia necessariamente tudo o que é o conteúdo da
interioridade semântica do homem, do seu pensamento (em sentido o
mais lato possível), o empiricismo reduz arbitrariamente a experiência
a uma sua sub-forma possível e actual, à que, no dizer dos seus defensores, corresponde à “experiência sensível”, isto é, e não há modo de
escapar a esta conclusão, à relação entre supostos eventos materiais e
a capacidade receptora de supostos eventos materiais pelo homem, que
de ser também material, dado que nada há para além da materialidade. Tal é o que
acontece ao nível de qualquer máquina que possua sensores e forma de modificar os
dados desses sensores em uma outra qualquer forma de materialidade. Mas a material
máquina pára necessariamente aqui: no fim mecânico deste processo, não há senão
matéria e nada mais; não há sentido algum ou mesmo “informação” alguma, que só
surgem quando uma entidade humana transforma essa pura materialidade em informação ou em sentido, num processo que não é mágico, mas verdadeiramente lógico,
isto é, capaz de colher o sentido presente nessa materialidade, acto de logos. Supomos que ninguém acredita que há sentido na materialidade pura de um qualquer disco
rígido de computador, mais ou menos escrito... Não perceber isto, é estar próximo
deste disco...
2
“Empirista” pode ser um Aristóteles, que se esforçou racional e intelectualmente
por respeitar a experiência como um todo, não apenas encerrado nos estreitos limites
de uma imanentíssima empeiria puramente física, mas aberto a uma dimensão transempírica, mas porque hyper-empeiria, isto é, ainda empírica, mas como experiência
a haver, a encontrar, ainda nos limites da imanência, mas como prova lógica da manifestação imanente de um tesouro metafísico excedente, irredutível à pura imanência
empírica: assim toda a natureza, que medeia entre o meu acto e o Acto Puro do Motor
Imóvel.
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é, também ele, um mero evento material, supostamente auto-sensível.3
Esta também suposta capacidade de receber supostos efeitos de supostos eventos materiais é a sensibilidade.
Mas a sensibilidade é um suposto? Segundo a proposta empiricista,
não pode deixar de o ser, dado que é apenas por meio da sensibilidade
que se tem acesso a uma suposta realidade material. Ora, terá necessariamente de ser a própria sensibilidade a ser sensível a si própria, de
modo a poder dar-se como sendo, uma vez que não há qualquer outro
meio. A sensibilidade não pode ser dada por meio outro que não ela
própria, dado que, nesta teoria, não há outro modo possível, que teria
de ser intelectual, isto é, não sensível. Sendo assim, antes de se dar, é
meramente suposta. Ora, como é que a sensibilidade se dá a si própria?
Desdobra-se em sensibilidade que é realmente em seu mesmo acto próprio de sensibilidade que é e em sensibilidade que é sensível a esse seu
mesmo próprio acto? Como é que isto se dá? Qual o detalhe de tal desdobramento e de tal operação de sensibilização da sensibilidade por si
própria? Qual a constituição ontológico-material da sensibilidade que
lhe permite isto? E a sensibilidade real é do mesmo tipo da sensibilidade que dá a real como sensação? Mas se assim é, como chamar
sensibilidade, sem mais, a ambas, confundindo numa mesma nomeação duas entidades obviamente distintas?
O empiricismo pura e simplesmente implica a impossibilidade lógica da própria sensibilidade como possibilidade de contacto com algo,
dado que a mergulha num vicioso círculo receptor-recebido interno, de
que não há saída lógica possível, inviabilizando toda a possibilidade do
3
Necessariamente, a chamada “consciência” nada mais pode ser do que uma
forma esquizóide de sensibilidade, em que uma qualquer forma material consegue
sentir internamente a outra parte material de si a sentir “externamente”. Magicamente, a matéria superiormente sensível é capaz de produzir isso que é o sentido,
necessária forma material, estranha, de a matéria se sentir a si própria. Todo o pensamento e toda a ciência são meras formas desta sensibilidade dual, esquizóide. Nada
mais. Qualquer referência a uma forma semântica não material é espúria: não há,
aqui, qualquer possibilidade de qualquer espírito.
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conhecimento. Mas é patente que as diferentes escolas herdeiras não
se preocupam muito com este impasse lógico.
Mas também isso que seria a materialidade passível de tocar de
algum modo a sensibilidade receptora e provocar o conhecimento sensível, isto é, isso que seja a realidade material é também suposto, dado
que só é possível dizer-se que é quando a sensibilidade é por isso sensibilizada. Assim sendo, antes de a sensibilidade ser tocada por algo,
este algo é um mero suposto lógico necessário para que haja conhecimento e nada mais. Se se tiver em consideração que a sensibilidade
não tem existência lógica possível, então o suposto lógico da realidade
permanecerá para sempre como suposto lógico e nada mais.
Mas a própria relação é meramente suposta, dado que, antes de
a suposta realidade sensibilizar a suposta e impossível sensibilidade,
não há relação alguma, esta apenas é possível. Mas, já que se está a
abordar a questão da relação, tudo o que dissemos até agora releva do
âmbito do estabelecimento de relações, logo, não deve existir, dado que
a sensibilidade é impossível. Segundo esta teoria, manifestamente este
texto não existe.
E, no entanto, existe. Há, pois, necessariamente um qualquer vício formal grave nas teses empiricistas, vício que condena ao absurdo
qualquer tentativa séria de fazer ciência, mas vício que não é resolúvel
pela abordagem de Kant, ainda que meritória exactamente porque percebeu o absurdo das teses empiricistas: o vício está na redução de toda
a experiência possível a uma experiência sensível, por causa da eliminação da intuição intelectual, erro que persiste no positivismo lógico
de Rudolf Carnap e pares.
É claro que, eliminando do campo da inteligibilidade possível ao
homem a intuição intelectual, restam apenas duas hipóteses gerais: ou
reduzo todo o conhecimento possível ao que me possa ser dado pela
sensibilidade, caindo necessariamente no erro lógico que já examinámos acima, dado que a sensibilidade não se pode auto-fundar sensivelmente a si própria, ou, então, acrescenta-se à sensibilidade uma qualquer estrutura não sensível, verdadeiramente a priori, como Kant bem
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viu, que pareça suprir este erro lógico da restrição à sensibilidade, fornecendo estruturas “lógicas” que suportem o que a sensibilidade não
pode suportar. Estas estruturas lógicas factícias e fictícias explicam
artificialmente a própria sensibilidade, integrando-a e dando-lhe um
carácter de aparente legitimidade ontológica que, sem elas, não pode
possuir.
Todo o kantismo vive deste truque epistemológico e o positivismo
lógico mais não faz do que adaptar este mesmo truque ao materialismo grosseiro herdado de Comte e seus pares, aparentemente refinado em forma de materialismo já não material, mas lógico. Daqui as
teses fundacionais de Rudolf Carnap acerca do carácter protocolar ou
lógico-estrutural da fundamentação de todas as possíveis asserções de
tipo realmente significativo, isto é, científico e, portanto, gnosiológicoepistemologicamente válidas. Veremos como lida com isto e quais as
consequências realmente reais, agora, desta forma redutora e artificial
e artificiosa de pensar. Assim sendo, o ar todo-poderoso que o texto
de Rudolf Carnap assume, reclamando para o movimento epistemológico em que se integra toda a possibilidade de constituição de sentido
realmente válido, fundado numa lógica aparentemente impecável e implacável para a metafísica, não passa de vaidade de quem, sendo incapaz de reconhecer na realidade da experiência humana mais do que a
sua mesma materialidade, assume a sua própria incapacidade noética
como padrão supremo de medida intelectual, fazendo da sua manifesta
falta de inteligência, não assumida como tal, bitola universal de possibilidade de inteligência. Como se a impotência merecesse ser medida
de algo. Mas é mais grave, ainda, o que se passa neste texto, dado
que, para além da redução lógico-epistemológica, com consequências
ontológicas, de que vive, não hesita o autor em ser intelectualmente
desonesto quando trata a questão das proposições protocolares, como
teremos oportunidade de verificar.
Assim, e entrando na insubstante substância do texto e suas reais
motivações, percebemos que, para que seja possível “superar” ou “eliminar” a metafísica, há que provar que ela pura e simplesmente não
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existe como forma de conhecimento ou de ciência. Que melhor forma
de mostrar que não existe senão provar que o que afirma não faz qualquer sentido e não faz qualquer sentido não por inabilidade dos seus
cultores, isto é, podendo fazer sentido se houvesse melhores cultores,
mas porque estrutural e fundamentalmente é incapaz de o fazer e é incapaz porque não é possível aferir da realidade semântica do que diz?
Ora, é aqui que a propícia herança empiricista e materialista-positivista
entra: só há conhecimento, isto é, só há sentido proposicional quando é
possível verificar sensível e materialmente a existência daquilo de que
se fala ou quando, na ausência desta possibilidade, é possível verificar a
adequada e exacta integração lógico-discursiva da proposição em causa
num discurso mais geral, cuja já provada adequação lógico-discursiva
seja capaz de suportar a pretendida logicidade assertiva da mesma proposição. De reparar que este segundo processo implica também uma lógica de sucessiva redução da logicidade de momentos n de integração,
a provar como sãos, a um qualquer momento, de já provada adequação
lógica, n-1, e assim sucessivamente, mas não infinitamente ou não haveria conhecimento algum, pois uma regressão ao infinito implica um
não começo conhecível e, portanto, uma necessária não fundabilidade.
Tal implica que o segundo processo seja necessariamente redutível ao
primeiro, havendo que encontrar em ambos proposições protocolares
que possam anular a possibilidade de uma remissão ao infinito e concomitantemente fornecer o inevitável dado sensível que funde, na realidade sensível e material, o que, algures para a frente no processo
lógico, depende desta mesma fundação protocolar na experiência sensível, única que pode ancorar não metafisicamente o conhecimento em
alguma forma de realidade.4 Ora, como já se percebeu anteriormente,
4
É, aliás, notável negativamente aquilo que haja de ser o estatuto reservado a tudo
o que, na vida e na indesmentível experiência do homem, não é experiência sensível:
que é, se não é experiência? Há algo da vida própria do homem que não seja uma
qualquer forma de experiência? Mas, se apenas a experiência sensível merece o nome
de experiência, para que estatuto relego o restante? Não experiência? Mas o que é
uma não experiência que é real, mas não é real como experiência? A ideia de beleza
em si não é uma experiência? Então, é o quê? Um sonho? Mas um sonho não
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tal não é possível por meio da sensibilidade, impedindo logicamente
a validade de todo o processo posterior de validação quer por redução
às proposições protocolares relativas à experiência sensível, primeiro
método, quer pela integração lógica no sistema lógico-discursivo, que
também necessita de idêntica protocolarização, segundo método. Toda
a proposta do positivismo lógico se reduz a isto e isto é simplesmente
impossível. Então, não deram os positivistas lógicos conta de tão obviamente grosseiro erro lógico? A resposta não é simples: o próprio
Rudolf Carnap alude fugaz e tortuosamente a esta questão, quando fala
da “não unanimidade acerca da questão”5 por parte dos vários interlocutores, escondendo que não se trata de uma questão de “opiniões”,
mas de fundamentação lógica, algo em que supostamente são excelentes. Mas é aqui que a desonestidade intelectual emerge, quando despudoradamente diz que “para os nossos propósitos, podemos ignorar inteiramente a questão relativa ao conteúdo e à forma das frases primeiras (sentenças protocolares) que ainda não foi definitivamente resolvida”.6 Espantosamente, varre-se do campo da discussão precisamente
o ponto central da discussão e que pode validá-la ou invalidá-la definitivamente: se a metodologia redutora do positivismo lógico implica
necessariamente a redução até às eventuais (e há que exactamente investigar sistemática e exaustivamente se existem e quais sejam) sentenças protocolares, pois apenas estas podem confirmar ou infirmar todo o
processo de redução e, logicamente, todo o processo contrário que é o
único que pode garantir a fiabilidade lógica e gnosiológica do sistema
é uma experiência? Ou é uma experiência sensível? E de que é que há sensação
propriamente dita no sonho? Vamos tornar o sentido que se pretende unívoco de
experiência sensível em algo de tão equívoco que já abrange o sonho? E a ideia de
unidade e a de infinito, também são fruto de experiência sensível? Como? Onde?
Quando? Detalhe?
5
“[...] but there is no unanimity on the question what it is that is given.”, p. 63.
6
“For our purposes we may ignore entirely the question concerning the content
and form of the primary sentences (protocol sentences) which has not been definitely
settled. In the theory of knowledge it is customary to say that the primary sentences
refer to “the given”; but there is no unanimity [Ě].”, p. 63.
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integrador e fundamentador, tudo recai, em termos de fundamentação
sobre elas, sobre o seu estatuto próprio, que não pode ser reduzido seja
ao que for, sob pena de o processo poder não ter fim, infinitizando-se
e, assim, impossibilitando isso mesmo que se queria construir, isto é,
um discurso com sentido acerca da realidade material das coisas, única
que, segundo este movimento, existe. Ora, tendo a importância única
e transcendente que tem para toda a discussão, elimina-se da mesma a
questão do estatuto das protocolares? Como Rudolf Carnap não é propriamente destituído, pelo menos de capacidade sensível (de intelectual pura é ele próprio que diz que é destituído), só pode ser desonesto.
Seria interessante procurar os motivos desta desonestidade intelectual,
que não pode ser confundida com a pretensa não existência de intuição intelectual defendida por esta escola. Ou poderá, se se perspectivar
a questão mais profundamente, isto é: não é necessário que seja este
tipo de estrutural desonestidade intelectual que a negação da intuição
intelectual provoque, dado que, sem ela, não é possível explicar certos elementos inegavelmente presentes na experiência humana, sendo
que, para os explicar sem recorrer à intuição intelectual, depois de a
negar, tenho de mentir acerca do que há de mais fundamental na minha investigação; não é isto exactamente o que se passa com o texto
e a atitude de Rudolf Carnap? Não leva a arbitrária elipse da intuição
intelectual necessariamente a ficcionar esquemas que substituam a sua
função lógico-axial em termos de fundação primeira em princípios não
sensíveis ou a meramente mentir, dado que não é realmente possível
uma fundação sensível e que não há uma terceira?
Neste sistema artificial redutor, a palavra é coisificada em coisa que
diz coisa e mais nada, o jogo inteligente das palavras, que não depende
de um policiamento metodológico reducionista, mas antes da capacidade intuitiva do homem, que permite metafórica e analogicamente,
sem regras pré-estabelecidas (estabelecendo não regras, mas sentidos
cuja realidade é dada pelo avanço semântico do discurso, irredutível a
qualquer protocolaridade) não conta e a linguagem é uma coisa morta,
que se limita a duplicar a realidade material extra-linguística, mas sem
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que se pergunte honestamente acerca da necessária adequação. A remissão, não assumida até ao fim e não devidamente criticada da protocolaridade, e a não explorada relação e relacionalidade com algo de
externo à linguagem não são o mesmo que uma heurística exaustiva e
necessariamente profunda da adequação do dizer ao que se intenta dizer, trabalho, aliás, já realizado de forma paradigmaticamente definitiva
por Platão, exaurindo as tais possibilidades de fundamentação até ao incontornável aporético, na obra Crátilo, bastando partir daí, para intentar um eventual aprofundamento do detalhe. Preferiu-se ignorar aquela
que é a questão fundamental, a da origem primeira, em seu mais ínfimo
necessário detalhe, do conhecimento. Esta racionalmente incompreensível recusa em estudar o fundamento relacional do conhecimento
faz toda esta tendência epistemológica, que ironicamente se reclama
de uma impecável lógica racional, cair precisamente nas mãos da mais
grosseira magia, que, como se sabe, na falta de argumentos racionais,
usa o primeiro salto irracional que surge, a fim de justificar teses racionalmente injustificáveis: assim o empiricismo da famosa “tábua rasa”,
que faz da sensibilidade um centro necessariamente mágico de recepção de algo que, antes de ser recebido, é absolutamente irreferenciável
e passa, depois de ser recepcionado pela inestrutural estrutura da tábua
rasa, a ser já conhecimento. Espantoso. Ou talvez não: como é possível que homens, pelo menos espertos, como Hume possam ter aceite a
enormidade racional de um receptor sensível completamente passivo e a “tábua rasa” não pode ser outra coisa, ou não é “rasa” - capaz de fazer a diferença entre uma indiferenciação absoluta do suposto objecto
e a diferenciação das “impressões” que recebe? Por meio de que é que
tal é operado, se a “tábua” é “rasa”? Racionalmente, a resposta só pode
ser uma: por magia. Temos, pois, na base de todo um edifício que se
reclama da maior logicidade, um alicerce necessariamente mágico. Os
empiricistas e os positivistas vários não percebem isto? Não?!
Kant, honra lhe seja feita, percebeu-o e tentou esforçadamente levantar o impasse, ao fazer com que a tábua deixasse de ser rasa e passasse a conter estruturalmente vários níveis e modos de enquadramento
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do eventual diverso objectivo capaz de lhe aceder: o plano transcendental mais não é do que o tornar não rasa a rasa tábua matriz do conhecimento possível. Mas o problema permaneceu, dado que, e Kant tinha a
obrigação de o saber, a única maneira de fundamentar a possibilidade
do conhecimento é através de uma intuição que não passe pelo crivo da
sensibilidade, dado que esta não pode sair de si própria, se só ela existir. Não foi por meio de uma intuição sensível que Kant “descobriu”
o transcendental que propõe, e, se não foi empírica... Como é óbvio,
nunca uma intuição qualquer acerca da estrutura da Vernunft poderia
passar por uma qualquer sensibilidade. Assim sendo, a Crítica da Razão Pura, segundo ela própria, não é possível, não apenas como forma
de conhecimento, mas absolutamente. E, no entanto e paradoxalmente,
existe e existe também sensivelmente...
Será que Rudolf Carnap ignorava isto? Ou será que, de acordo com
a data da edição original deste texto e seus tempos coevos, estamos
perante uma refundação de tipo fascista da filosofia, em que se busca
não um acordo da ciência com o que “é” - nem é possível usar o termo
“ser”, pois é metafísico -, mas refundar a filosofia como análise lógicopositivista do discurso e nada mais, uma metodologia policial do acerto
lógico-positivista do discurso científico, orientada não para uma eventual verdade ou uma eventual compreensão desinteressada e válida em
e por si mesma das coisas, mas para o domínio, segundo funcionalidades pragmáticas de poder ao serviço de certas oligarquias, validando
a sua detenção do poder: a melhor maneira de dominar não consiste
precisamente em eliminar qualquer sentido de um qualquer absoluto
independente de uma qualquer formulação dóxica? E a eliminação da
metafísica não visa precisamente, pondo também de lado a questão das
protocolares, que se suspeita ser metafísica, reduzir a possível verdade
a uma função de convencionalidade arbitrária, enquadrada por lógicas consensualistas, mas factícias, capazes de perpetuar a oligarquia
que as concebeu e implementou? Não é esta a estratégia dos movimentos consensualistas contemporâneos, que se reclamam precisamente de
um novo kantismo e de uma logicidade de tipo positivista?
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Não é, no fundo, uma questão político-religiosa que aqui está em
causa, querendo estas novas elites fundar teologicamente o seu poder
num sistema substituto da metafísica, mas com análogos defeitos aos
que condenam na metafísica? Não é o positivismo lógico a nova liturgia desta nova teologia e os seus cultores a nova guarda pretoriana
lógica dos seus senhores? Seria possível a quem tão mediocremente
lida com os fundamentos da ciência e da filosofia obter poder senão por
meio da eliminação da única maneira de possibilidade de intuição do
absoluto de estarmos aqui, absoluto necessariamente incompatível com
a fundamentação do sistema necessariamente relativista que lhes permite ascender ao poder? Não é apenas num mundo de indiferenciação
protocolar de verdades que é possível relativizar todas as proposições,
limitando a sua hierarquia possível ao jogo das regras por nós arbitrariamente impostas e ao mecanismo de redução do novo necessariamente
ao velho já havido, uma vez que um mundo em que a intuição intelectual funcione imediatamente está aberto a formas de fundamentação
que escapam a estes mecanismos redutores? A resposta é: sim. Só
são logicamente possíveis duas formas de positivismo num ambiente
absolutamente reduzido à mesma humanidade enraizada num universo
puramente material e em que tudo depende da matéria: uma é o positivismo da positividade natural e material do que a matéria põe e que
cabe ao homem descobrir por meio do conhecimento; a outra é o positivismo do que o homem põe quer por si só quer em conjunto com a matéria. Nada mais é possível. Esta evidência promana necessariamente
da aceitação das teses empiricistas, especialmente da tese fundamental
segundo a qual todo o conhecimento possível tem necessariamente origem na experiência sensível, não havendo outra qualquer possibilidade.
Ora, o positivismo lógico de Rudolf Carnap, evitando desonestamente a
questão das sentenças protocolares, isto é, não podendo ter em consideração a parte material da experiência, fica reduzido a um positivismo da
positividade posta pelo homem. Não querendo saber da questão da adequação das sentenças protocolares a isso a que supostamente se referem
para além de si mesmas, isto é, à suposta realidade extra-discursiva, fica
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reduzido a uma espécie de transcendentalismo sem coisa em si, isto é,
sem pressuposto real desencadeante do acto de conhecimento. Assim
sendo, o sentido, que não pode ser senão gnosiológico, dos positivistas
lógicos resume-se ao encontro ou reencontro das estruturas lógicas que
eles próprios puseram no processo de conhecimento, mas sem que se
possam questionar acerca da realidade extra-lógica desta mesma posição, dado que isso seria querer indagar acerca de algo relativo a matéria
protocolar.
Deste modo, cai-se num mero jogo lógico intra-sistema positivo
das proposições lógicas não protocolares postas pelos positivistas lógicos. Todo o conhecimento se reduz, então, não a um real conhecimento
acerca de uma qualquer realidade extra-discursiva, mas à mesma realidade lógico-formal do discurso. Ora, o cuidado de Kant em não perder
a posição lógica necessária da Ding an sich, mesmo impassível de conhecimento em si mesma, tinha como objectivo não cair neste mesmo
jogo realmente irrelativo, cujas consequências são perfeitamente óbvias: no campo da ciência física, e apesar dos eventuais desmentidos
profissionais dos positivistas, uma absoluta irrelatividade ao objecto
em estudo, perdendo a ciência a possibilidade de se afirmar como “física”, não passando de um discurso endológico acerca da validade de
proposições não protocolares, isto é, sem relação alguma confirmada
com uma eventual física, nem mesmo prototeleologicamente, como em
Kant. No âmbito do não físico, no sentido anterior, se tudo tem de ser
remetido para uma protocolaridade material, não se podendo saber o
que seja algo de “não-físico”, torna-se impossível o estabelecimento
de qualquer sentido objectivo para uma eventual ortótese ética ou política. Tudo não passa de um convencionalismo acerca de regras não
protocolares, convencionalismo que tem de necessariamente recorrer
sempre ao poder do mais forte, seja ele um sábio, um tirano ou uma
qualquer maioria ou minoria sábia ou tirânica. Não há qualquer outra possibilidade. Quanto a isto, embora sem relevar estas óbvias e
antropologicamente perigosas consequências, Rudolf Carnap é claro:
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“É completamente impossível proferir uma afirmação que expresse um
juízo de valor.”7
Deste modo, o positivismo lógico assegura para si a certificação,
segundo os seus princípios logicamente e empiricamente improváveis,
dado que é impossível resolver empiricamente a questão das protocolares, de todo o possível conhecimento, garantindo uma posição hegemónica e incontestável no acesso ao poder sumamente humano, definidor
da especificidade própria do homem, que é o poder de conhecer, isto
é, de aceder ao que é na forma do sentido: passa a ser autorizado como
sentido apenas aquilo que o positivismo lógico aceitar como tal, não
porque seja capaz de certificar a eventual adequação das possíveis unidades de sentido a algo que as transcenda e a que se refiram e que seria
a realidade em si, independentemente da capacidade de conhecer, mas
somente por meio do jogo de adequação lógico-sintáctica intra-lógica
positivista. Obtém-se, assim, uma capacidade quasi-divina de formatação da imagem possível do mundo, um mundo feito à imagem e semelhança lógicas dos positivistas lógicos, erradicando qualquer outra
possibilidade de significação como sendo sem significado.
A aparente abertura à arte como forma alternativa de posição de
uma imagem do mundo é falsa, pois, se só é significativo o que ocorre
segundo a forma autorizada pela lógica neopositivista, tudo o mais nada
vale semanticamente, sendo apenas tolerado, talvez como se toleram
os tontos no meio dos “sãos”, numa forma de pseudo-caridade heterocomplacente e “sans noblesse”. Por mais que se gabe um Mozart ou um
Beethoven, estes não podem deixar de ser vistos como discursadores
de um discurso que não tem valor positivo segundo as regras neopositivistas: seria um belo sonho, se fosse possível pronunciar um juízo de
valor, o que, como Rudolf Carnap claramente diz, não é possível.
Mal tal juízo de valor não se refere apenas aos juízos de tipo moral ou político ou religioso, mas à totalidade dos juízos possíveis, dado
7
“Logical analysis, then, pronounces the verdict of meaninglessness on any alleged knowledge that pretends to reach above or behind experience. [Ě] It is altogether
impossible to make a statement that expresses a value judgement.”, pp. 76-77.
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que, se tudo tem de passar pela experiência sensível, como se pode
fundar a possibilidade do juízo deste modo? Repare-se que o truque
epistemológico usado por Kant não é aqui possível: tudo tem de ser
reconduzido, por sucessiva redução à experiência sensível, logo, todo
o valor depende da experiência sensível, pelo que, não dando esta qualquer indicação acerca do que seja uma lógica ortótica, onde ir buscar
o fundamento para a lógica? Como garantir a bondade lógica e epistemológica das regras usadas? Que “deus” as ditou? Ora, segundo os
neopositivistas, não há deus algum, pelo que todo o discurso, segundo
os positivistas lógicos, tem de necessariamente ser sem sentido, mero
fruto de uma insubstancialidade intradiscursiva, numa espécie de sonho
lógico discursivo reduzido a si próprio. A referência a uma meta-lógica
é simplesmente néscia, dado que ou há uma redução à experiência sensível ou a uma qualquer forma de lógica, independentemente do nível a
que se situe, sendo que a multiplicação intra-esquemática de níveis provoca, dada a impossibilidade de haver um eixo lógico objectivo exterior
à série que sirva de referência independente e absoluta, uma necessária remissão ao infinito. Uma qualquer “meta-lógica” mais não é do
que uma lógica que recebe o nome de “meta”, mais nada: a designação
“meta” não adianta coisa alguma à designação “lógica”, dado que só
pode ser dada ou por uma intuição sensível, o que é absurdo, ou por
meio de uma redução lógica, o que invalida qualquer sentido próprio
especial para a designação “meta”.
De facto, quer o positivismo de variegado matiz, mas de fundação
comtiana e fundamentação material e formal humeana e ante-humeana,
quer o neo-positivismo mais não são do que formas de tipificação artificial de possibilidade de pensamento, reduzindo este apenas à forma
que é do especial agrado dos seus proponentes, que são ou incapazes
de perceber as formas diferentes das suas, o que revela uma relativa
estrutural estupidez, ou capazes de as perceber, mas interessados em
tal redução com finalidade que não pode deixar de ser de uso para vantagem própria e sua legitimação da forma mais alta de poder humano
que é o conhecimento. Ora, o grande problema desta forma necessa-
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Positivismo ilógico: Análise Crítica...
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riamente redutiva de validação do conhecimento reside na impossibilitação de manifestação gnosiológica do novo, dado que, qualquer eventual candidato a objecto de conhecimento tem de ser necessariamente
referido a padrões arqueológicos anteriores, matando assim necessariamente tudo o que é possível radical novidade no conhecimento. A
padronização arqueológica analéptica impede que se possa realmente
avançar no conhecimento para além do já sabido: tudo se torna necessariamente tautológico ou por mera análise lógica do já adquirido
ou pela necessária redução às protocolares, impossíveis de reconhecer
como adequadas a uma realidade que eventualmente as transcenda e
que poderia confirmar a adequação referencial desejada. O conhecimento mergulha, assim, num mar de horizontalidade lógica, em que
verdadeiramente não há descoberta possível, a ciência estiola; esta lógica triunfa, mas num cemitério epistemológico.
Estamos, pois, situados num pandeterminismo retro-analítico horizontal, que elimina o verdadeiramente novo, lançando-o, possível novo
semântico que é, para as garras do velho, do já sabido, sendo apenas
aceitável o que for redutível ao que já foi: é claro que isto assassina
a linguagem como capacidade de dizer o novo e de dizer o novo não
absolutamente, como se cada acto de linguagem tivesse de desvirginar
o universo do sentido de que a espécie humana é capaz, mas do sentido
pessoalmente descoberto: cada homem está reduzido a repetir os mesmos mecanismos lógicos de validação e a esbarrar na mesma impossibilidade de sair do autismo lógico-sintáctico-redutivo da linguagem. A
lógica positivista triunfa, mas o pensamento morre. Toda a informação
possível é reduzida a uma paródia proléptica de uma analéptica protoinformação tuti-potente, havida in illo tempore, e a que todo o discurso
tem de ser reduzido. Mas esta omnipotência semântica primeira, afinal,
é insubstante, dado que não se sabe de onde lhe veio tamanha potência
orto-lógica, pois não há nem pode haver qualquer critério viável para
a sua heurística. A própria informação passa a ser como que mágica
sublimação ou eterificação de uma não menos mágica presença fun-
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Américo Pereira
dadora que nada sabe de si própria, cujas origens permanecerão para
sempre na mais obscura das obscuridades.
Mas, por outro lado, e como já lembrámos, quando este texto de
Rudolf Carnap foi composto, era o tempo dos fascismos vários, das
teorias psicológicas redutoras, das não menos redutoras e triunfantes
teorias sociológicas, que, entre todas, prepararam os caminhos para as
diferentes, mas não diversas, formas de fascismo político: a redução da
especificidade e decorrente pessoalidade humana a uma função exclusiva do interesse de um qualquer “molho de varas atadas por fora”. A
essência do fascismo, seja ele político ou epistemológico, reside nesta
redução factícia das possibilidades próprias da humanidade àquilo que
uma qualquer oligarquia ou tirania possidente resolve pôr como tal. O
fascismo é, pois, uma forma de “positivismo”, que substitui sempre o
dado natural por um “posto” artificial, ao qual se escraviza a vida e a entidade dos homens por si abrangidos. O programa epistemológico dos
positivismos integra-se perfeitamente nesta lógica. Pura coincidência?
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