o homoerotismo em caio fernando abreu

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O HOMOEROTISMO EM CAIO FERNANDO ABREU: UM CENÁRIO DE PRECONCEITO E
VIOLÊNCIA EM TERÇA-FEIRA GORDA
Cecília Luíza de Melo Rezende
Cláudia Campolina Tartáglia
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
Resumo: Vivemos numa sociedade em que a questão da homossexualidade é geradora de
repressão, discriminação e preconceito quanto aos valores sociais, históricos e éticos ditados por
uma classe dominante heterossexual em detrimento ás minorias homossexuais. Este artigo aborda o
conto Terça-feira gorda extraído do livro Morangos mofados (2005). Tem como objeto de estudo
refletir, analisar e evidenciar no conto a marginalização, a perseguição sexual e moral sofrida por
homossexuais e como isso reflete na nossa realidade. Por outro lado propôr a legitimidade de
diferentes identidades sexuais, de forma que a orientação sexual escolhida tenha uma esfera de
aceitabilidade para todos. Esta obra é carregada de subjetividade, em que o envolvimento afetivo e
sexual entre duas pessoas é confrontado com a repressão e o preconceito sexual.
Palavras-chave: Repressão; Preconceito; Homossexuais; Violência; Moral.
O encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas, também
pode ser uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio
maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado [...] A
experiência gay nada tem de redutora, classificadora, se assim o
quisermos, é um mistério insondável, um ponto de partida, uma pergunta
mais do que uma resposta.
Denílson Lopes
Introdução
Apesar do novo milênio estar iniciando assiste-se a uma crise humana global. O homem busca
redefinições quanto aos valores éticos, sociais e pessoais. E neste movimento, a pessoa torna-se
impotente face a tantas informações.
Sentimentos de solidão surgem e o ser humano mergulha em uma grande dor ao perceber sua
existência. Passa a viajar por este universo humano buscando a felicidade, o prazer em sua essência.
Ficcionista da geração dos anos 70 Caio Fernando Abreu expressa, sobretudo em seus livros, as crises
existenciais de jovens que viveram, ao mesmo tempo, a ditadura militar, a queda dos ideais
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esquerdistas e a liberalização dos costumes. Sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos
de qualquer ordem, evidenciando uma marca própria, justamente com uma linguagem fora dos padrões
tradicionais vigentes.
O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia da repressão acontecer no carnaval, justamente
no período em que são toleradas determinadas práticas, mas não a homossexualidade.
Vê-se que a visão preconceituosa da sociedade heterossexual continua em qualquer situação, seja ela
uma festa desregrada como o carnaval ou em encontros sociais formais e faz-se presente até os dias
atuais.
Morangos mofados
A obra Morangos mofados de autoria de Caio Fernando de Abreu, foi publicada em 1982, produzida
num contexto autoritário ,em que a censura, a repressão e a perseguição política eram constantes.
Mesmo assim o autor apresenta através de seus contos aspectos sociais, históricos e sexuais
vivenciados pelos personagens.
É uma literatura que suscita questões sociais vivenciadas pelos indivíduos acerca de seus valores,
identidades, condutas e ideologias de acordo com os valores tradicionais das sociedades
conservadoras e autoritárias e convida os leitores a uma postura crítico-reflexiva em relação ao
posicionamento preestabelecido pela classe dominante.
O livro é composto por dezoito contos, dividido em três partes, cuja organização é dialética: a primeira
(tese) é intitulada “O mofo”, a segunda (antítese) chama-se “Os morangos” e a terceira (síntese) é
nomeada pelo conto que dá título ao livro, Morangos mofados. Nessa coletânea de contos, em alguns
a temática é o homoerotismo, outros em que centraliza a repressão política ou o processo de escrita.
Seus contos são permeados de poesia, lirismo e sonhos. Entretanto, a dor se configura como elemento
predominante na narrativa.
O conto Terça-feira gorda situa-se na primeira parte do livro intitulada “O mofo”, que sugere através da
temática dos textos uma metáfora para a “putrefação” e o mascaramento de parte da sociedade. Por
um lado, muitos personagens usam máscaras para dissimular seu caráter preconceituoso, agressivo e
opressor, enquanto outros, que são vítimas das ações inescrupulosas e violentas daqueles, não têm
coragem de vestir máscaras. Desta forma, este conto está denunciando um lado repressor da
sociedade, em que o “mofo” é o elemento essencial que determina o caráter discriminativo e violento
do contexto social.
É importante salientar que existe uma conexão entre o contexto social em que o conto foi produzido e a
postura dos personagens. Os agressores no conto adotam uma posição ideológica favorável às ideias
autoritárias e preconceituosas difundidas no período de publicação do livro Morangos mofados, em
1982. Este período embora de transição da ditadura para um regime democrático deixa marcas que
são reproduzidas nas relações sociais entre os indivíduos.
Àqueles que tem a coragem de romper com os padrões tradicionais são severamente perseguidos e
punidos como ficou demonstrado no conto Terça-feira gorda pelos personagens homossexuais. Já os
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detentores das regras morais e conservadoras, agem de acordo com o sistema de forma opressora,
repressora e violentadora de todos os que “desrespeitam” os valores morais e éticos da sociedade.
Morangos mofados apresenta uma linguagem considerada vulgar, mas que é colocada no mesmo
plano da culta, em que o autor constrói seus contos explorando a posição do narrador ou a ausência
dele, numa narrativa que é fragmentada e lacunar, densa e complexa.
Terça-feira gorda: contextualização da obra literária
Este conto aborda questões relacionadas com a festa do carnaval, da discriminação sexual, da
violência verbal e física, do uso de drogas, do espaço público, das máscaras e fantasias, de forma que
os personagens são envolvidos num cenário carnavalesco, próximo a praia. Nesta obra, o lirismo está
presente na prosa e o drama caracteriza o tom dessa história.
O conto é narrado em primeira pessoa, em que se apresenta uma história de amor e desejo entre dois
homossexuais através do qual um se sente atraído pelo outro desde o primeiro momento em que se
olham. Ao relatar o acontecimento que ocorria entre eles, o narrador-personagem acentua de
subjetividade a história, fazendo com que o envolvimento afetivo e sexual entre eles torna-se cada vez
mais forte, como é relatado no início da narração um “reconhecimento” entre os dois amantes. Esse
reconhecimento se dá pela confirmação dos movimentos dos corpos seja através da (dança, sorriso,
olhar) e não pelas palavras.
De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos
quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei,
quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola,
uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro
dos copos de plástico (ABREU, 2005, p. 56).
Nota-se que o processo de identificação é vivenciado entre eles tanto no plano do prazer quanto no
sexual de forma que eles adotaram uma postura pública livre de preconceitos que envolveram pessoas
do mesmo sexo. Essa liberdade de opção sexual é descrita na passagem do conto:
Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta,
passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E
não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de um homem gostando
de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta,
passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu
era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que
por acaso era de homem também (ABREU, 2005, p. 57).
Observa-se pela descrição erótica descrita dos personagens, demonstra que essa relação homoerótica
de desejo, de atração sexual entre eles perpassa toda a narrativa. Note-se que o outro é apresentado
com o estereótipo de homem, com características masculinas: forte, com pêlos, malhado, carnes rijas e
duras, pele morena ao sol, que por acaso gosta de um outro corpo, que por acaso é de outro homem.
Desta forma o corpo masculino desperta desejo e este será tratado de acordo com Lopes abaixo:
O desejo é uma forma de pertencimento, de encontro, mesmo quando não de inclusão. O
encontro entre dois homens se dá sutil e inesperadamente. As palavras não são
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pronunciadas não pela recusa ao dizer, mas para se aprender com o corpo. Os olhares são
físicos, não de voyeur. Olhares não se desviam, falam (LOPES apud MARQUES FILHO;
CAMARGO, 2007, p. 80).
Por um lado é esse olhar físico que fala tudo o que as palavras ocultam dizer neste momento é que
causa a sedução, o desejo, a vontade de ficarem juntos a um estado homoafetivo e homoerótico entre
os dois personagens. Por outro lado, o olhar homofóbico dos “outros” que não respeitam a identidade e
liberdade dos homossexuais fica atrelada a uma manifestação de vozes que julgam e condenam-nos
como mostra o fragmento a seguir:
passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As
nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol.
Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam (ABREU,
2005, p. 57).
Fica evidente que mesmo numa festa de carnaval em que é permitido culturalmente agir de uma
maneira livre, nesses momentos é que se percebe como a sociedade age hipocritamente em que
critica as pessoas por não terem sua liberdade sexual tolhida. Estes personagens não usavam
máscaras para se esconder e disfarçar as suas identidades sexuais, ao contrário poderiam utilizar da
festa de carnaval para cobrir o rosto e o perigo de suas escolhas. A máscara vem do italiano,
maschera, trata-se de um objeto utilizado em bailes de máscaras e serve para enfeitar o rosto e
propiciar uma dissimulação. A máscara simboliza o sentido de assumir-se socialmente (posições,
emoções) para quem não as utiliza. O fragmento a seguir ilustra a como o carnaval apesar de ser
considerado um período de liberdade total, perpassa por momentos de repressão e violência diante da
falta de máscara dos amantes:
veados, a gente, ainda ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um
tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha as Plêiades, só o
que eu sabia ver, que em raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado,
ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara.
Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara.
Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, e eu nem sei se era
alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso
não usar máscara, ainda mais no Carnaval (ABREU, 2005, p. 58).
Esses personagens não escondiam atrás das máscaras a sua sexualidade, o seu desejo, o medo do
olhar reprovador “dos outros” que denigre a escolha alheia. Eles se assumiram, e procuraram viver com
intensidade e liberdade aquele momento de satisfação que estavam sentindo um pelo outro, num
período de regime militar onde as marcas são a repressão e opressão.
Nesse conto os personagens são construídos a partir de uma não identidade, isto é, eles se conhecem,
se aceitam sem saberem pelo nome, idade, profissão e moradia um do outro, pois o que importa para
eles é desfrutar o prazer, o corpo, o momento amoroso que estão compartilhando juntos. Observa-se
através do trecho no conto essa não-identificação de ambas os personagens: “...não vou perguntar teu
nome, nem tua idade,teu telefone, teu signo ou endereço, ele disse... [...] O que você mentir eu
acredito, eu disse, que nem marcha antiga de Carnaval” (ABREU, 2005, p. 59).
À medida que eles se entregam plenamente na praia, a narrativa adquire uma linguagem homoerótica
referente à união e fusão dos dois corpos em um, de forma que nessa entrega completa através do ato
pleno de amor como demonstrado no fragmento abaixo:
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a gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos
completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão
simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos
nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela
fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz
amor. E brilhamos (ABREU, 2005, p. 59).
Nessa passagem, observa-se que o contato físico e erótico entre os personagens acontece em
ambiente público. Dessa forma, eles assumem diante da sociedade um comportamento que causa
impacto e transgressão aos padrões morais vigentes em relação ao espaço privado por estarem nus.
Eis que surge novamente um grupo de rapazes mascarados diante dos dois e começam a agredi-los
com palavras de baixo calão e pontapés inesperados como é demonstrado no trecho abaixo:
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão
agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no
chão. Estavam todos em volta, Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os
olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca
molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis
tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu
correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos (ABREU, 2005, p.
59).
Nesse momento observa-se que as cenas de perseguição e repressão sexual contadas pelo narradorprotagonista apresentam fatos de violência física, psicológica, causando no leitor comoção ao ver o
companheiro ser cruelmente espancado até a morte.
Segundo Marilene Chauí (1991, p. 9) a repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de
interdições, normas, valores, regras estabelecidas históricas e culturalmente para controlar o exercício
da sexualidade. Nesse sentido entendemos que o grupo agressor se apodera desse conjunto de
fatores característicos da repressão sexual para comandar a sexualidade dos personagens.
A violência psicológica seria traduzida na forma do “ai, ai, gritavam, olha as loucas” fazendo referência
aos dois enquanto a agressão física está relacionada com “o pontapé nas costas fez com que me
levantasse. Ele ficou no chão [...] o brilho de um dente caído na areia” (ABREU, 2005, p. 59).
Segundo Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) o grupo social que causou a agressão física seguida de
morte a um homem do par homoerótico, corresponde ao interesse homofóbico de impedir o
homoerotismo e impôr fidelidade ao heterossexismo 1. Ambos os autores referem ao grupo social com
controle e poder preponderante sobre o “outro” no caso o par homossexual, devido às questões
culturais, históricas e morais envolvidas na nossa sociedade.
A homofobia cumpre com três propósitos narrativos no discurso social:
1) serve para legitimar as ideologias sociais que se circunscrevem em torno do heterossexismo
compulsório2;
1 Heterossexismo: segundo a perspectiva de Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) ele considera o heterossexismo a
legitimidade somente da relação sexual binária entre homem e mulher, característica do patriarcado e prestigiada pela
sociedade.
2 Heterossexismo compulsório: é o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade
com intuito de reforçar ou dar legitimidade às premissas heterossexuais (FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 2).
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2) exclui da sexualidade legítima todos aqueles indivíduos sociais que não cumprem com as normas do
heterossexismo compulsório;
3) funciona para narrar sua própria inexistência, ao negar a dinâmica da discriminação sexual
(FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 6-7).
No final termina com uma metáfora poética fazendo alusão a morte de um dos personagens: “a queda
lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”. A
metáfora suaviza a discriminação, os rótulos, e a intolerância entre o grupo de pessoas homofóbicas
que violentaram cruelmente um dos personagens homossexuais.
Terça-feira gorda de carnaval: cenário de preconceito e violência
Neste conto surge espaço para as vozes marginalizadas, pois a questão social é enfocada e
centralizada pelo autor. Diante disso faz-se necessário a utilização de um conceito de Hutcheon (1991,
p.170), que segundo ela, “as vozes ex-cêntricas representam as vozes minoritárias quanto à classe
social, raça, etnia, identidade sexual diante de um poder hegemônico branco, masculino, heterossexual
e burguês”. Essas vozes, no conto Terça-feira gorda de carnaval, apresentam personagens centrais
discriminados social e sexualmente, vozes que experienciam situações de desrespeito, intolerância e
violência física até culminar na morte.
A festa de carnaval, considerada a maior festa popular brasileira e a mais grandiosa manifestação
folclórica que envolve um grande público, é um período de exposição do corpo, de valorização da
dança, da fantasia e extrapolação da sexualidade, marcada pela orgia e “liberdade”. A tônica do
carnaval é o “desregramento”, a postura de liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, sendo
que as vozes maldosas e irônicas dos personagens no conto adotam uma posição de condenação e
ruptura frente aos homossexuais, levando a narrativa à constatação de um paradoxo social. Nesse
sentido, a proposição de Franco Jr. (apud PORTO; PORTO, 2004, p. 71) e bastante elucidativa: “O
carnaval, em Terça-feira gorda, alegoriza a própria tessitura de violência sombria mesclada a
explosões circunstanciais de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser
alegre irresponsável e brutal.”
A terça-feira é o último dia de carnaval, dia de despedida da orgia, que antecede a quaresma e por
outro lado é chamada de Terça-feira gorda dada ao título do conto porque era o último dia em que os
cristãos comiam carne antes do jejum da quaresma, na qual também havia a abstinência de sexo e até
mesmo das diversões, como circo, teatro ou festas.
Nota-se no conto que o preconceito tem a ver com as circunstâncias em que a discriminação ocorre:
durante uma festa carnavalesca. Frente a esta festividade pondera-se que:
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No
carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se
contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vivese conforme as suas leis estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é
uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um
“mundo invertido” (“monde à l’envers) (BAKHTIN, 1981, p. 105).
O autor aponta que o carnaval se caracterizaria por proceder a uma inversão de valores do cotidiano,
ou seja, deveria corresponder à vida desviada de seu curso normal.
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De acordo com essa inversão de valores, os sujeitos sociais deveriam aceitar à manifestação de
práticas homoeróticas, no entanto, não é isso que ocorre: a sociedade identifica os homossexuais,
estabelece um limite entre eles e os demais e os expulsa por estarem profanando as normas dos
heterossexuais, pois o que prepondera são as regras estabelecidas pelas convenções sociais.
No conto, aparecem várias cenas de agressão verbal e física frente ao desejo dos personagens de
exercerem suas escolhas e poderem vivenciar sua opção afetivo-sexual naquele momento. Eles são
surpreendidos violentamente durante a narrativa tanto psicologicamente, socialmente, moralmente e
fisicamente tendo como saldo negativo as experiências vividas pelos homossexuais, tais como : os
encontros frustrados, a liberdade de escolha reprimida e os projetos de sonhos inacabados.
Em Terça-feira gorda de carnaval, Abreu dá vozes àqueles que estão à margem dos processos
sociais, abrindo espaço para a reflexão e discussão sobre o discurso da minoria. Com isso o autor
coloca ao leitor através da representação desse conto, um leque de questionamentos referentes a
valores, condutas e regras sociais, levando-o a ter um posicionamento crítico e induzindo-o a construir
um ponto de vista em torno da temática da homossexualidade. O desfecho do conto culmina em
violência física, sendo que o autor relata esse fato social de modo metafórico.
Fechando os olhos então como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três
imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção.
Depois a Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a
queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços
sangrentos (ABREU, 2005, p. 59).
A produção de conhecimentos sobre a homossexualidade
O homossexual do século XIX tornou-se uma personagem: um passado, uma história, uma
infância, um caráter, uma forma de vida; também é uma morfologia, com uma anatomia
indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas,
escapa à sua sexualidade [...]... agora o homossexual é uma espécie (FOUCAULT, 2009, p.
50).
O ser humano na sua existência é dividido em classes essenciais quanto à sexualidade: dualidade
heterossexualidade/homossexualidade. Essas classes seriam meras identidades socioculturais que
condicionam as maneiras das pessoas de viver, sentir, pensar, amar, sofrer, etc. e não uma lei universal
da diferença de sexos. Consequentemente, o homossexual não é um sujeito que existe ou existiu
independente do hábito cultural e descritivo que o criou. Segundo Costa (apud NUNAN, 2003, p. 25-26)
“propõe que os conceitos homossexualidade e homossexualismo sejam substituídos pelo termo
homoerotismo referindo-se à possibilidade que certos sujeitos têm de sentir diversos tipos de atração
erótica ou de relacionar fisicamente com outros do mesmo sexo biológico”. O vocábulo
homossexualismo surgiu no século XIX, e não será utilizado porque o sufixo “ismo” remete à categoria
de doença. Já os termos homossexualidade, homossexual e gay, estes dois últimos considerados
sinônimos, são palavras carregadas de preconceito e remetem aos séculos XVIII e XIX. No século
XVIII, por exemplo, a medicina classificava os homossexuais como invertidos sexuais. Com isso, a
homossexualidade passou a ser vista, dentro do contexto religioso e moral como inserido por ideias de
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pecado, perversão e anomalia, enfim, de forma a transgredir a heteronormatividade 3 (FOSTER apud
CALEGARI, 2010, p. 2).
O preconceito contra homossexuais é chamado de homofobia, apesar de o termo heterossexismo
também aparecer na literatura especializada. A homofobia é um termo cunhado por George Weinberg
apud (NUNAN, 2003, p. 78) definido como uma aversão ou medo irracional de homossexuais.
Os homossexuais são frequentemente taxados de anormais, imorais, pecadores, marginais, pedófilos,
promíscuos, doentes, efeminados, complicados e pouco confiáveis (SIMON; WOLFE apud NUNAN,
2003, p. 79).
Embora seja correto afirmar que a epidemia da AIDS acelerou a expansão dos estudos sobre a
homossexualidade no Brasil durante os anos de 1990, ela é considerada uma “doença gay”, e é
comum ouvir dizer que a epidemia “ veio para punir esses pervertidos”.
O discurso homofóbico apresenta o homossexual como uma espécie de criatura
contraditória e impossível, pois é, ao mesmo tempo, um ser inadaptado socialmente, uma
espécie de “monstro” raro antinatural, um ser que representa o fracasso moral e, sobretudo,
um pervertido sexualmente (MARQUES FILHO; CAMARGO, 2007, s.p.).
Esse discurso homofóbico perpassa uma concepção degenerativa da imagem e da identidade
homossexual que se reflete na discriminação, na intolerância e na violência.
Considerações finais
Segundo a análise do conto Terça-feira gorda, Abreu em seus escritos aborda no espaço narrativo a
questão da sexualidade e do relacionamento pessoal com o contexto cultural, político, religioso e social
vigente.Sua obra contribui para abrir o espaço da discussão homoerótica tanto no âmbito literário
quanto no público/social.
Caio Fernando Abreu ressalta neste conto que os personagens homossexuais são grupos minoritários
marginalizados da sociedade sendo acusados muitas vezes de transgressores das regras sociais e
morais impostas pela elite conservadora.
O livro Morangos mofados foi escrito nos anos 70, mas os acontecimentos que são retratados na
narrativa persistem na atualidade.
Os movimentos militantes dos direitos civis das minorias ganharam força nos últimos anos sendo que
os homossexuais foram atendidos na reivindicação de alguns destes direitos. Entretanto a luta contra
uma sociedade homofóbica que veicula um discurso ideologicamente elaborado sobre a imagem e a
identidade do homossexual ainda persiste tanto pelo desrespeito e violência quanto pela ausência de
políticas públicas para reverter aquele quadro.
3 Heteronormatividade: entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento
monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família nuclear.
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Referências:
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