EDUCAÇÃO E IMAGINÁRIO COLETIVO NO MOVIMENTO HIP HOP Alexandre Takara Professor de Antropologia Cultural e Secretário Adjunto de Cultura do município de Santo André Mestrando em Ciências da Educação na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo Prof. Orientador: Joaquim Gonçalves Barbosa Abertura – Sobe a cortina. O libretista anuncia a que veio. A presente pesquisa tem caráter exploratório. Propõe-se a registrar 5 entrevistas com moradores de periferia de Santo André (Grande ABC Paulista), a partir das quais pretende elaborar um roteiro para abarcar esse universo, composto de negros, mulatos, pobres, sub-empregados, semialfabetizados, mas dotados de profunda consciência social. Levanta a hipótese de que os professores de ensino formal não estão preparados para combater estereótipos e preconceitos da classe média, fontes de tensões e de violência. 1º Ato – O Inferno – “A periferia é o próprio inferno” E prova com a própria vida: orgulho da família por ter concluído o segundo grau, não consegue emprego e tornou-se dependente do irmão e da irmã para sobreviver: ele, traficante de drogas; ela, prostituta. Seu drama não é o único. Todos têm uma história, são uma história. Fui ao inferno em companhia de cinco jovens moradores e membros do movimento Hip Hop. É de enlouquecer, tamanha é a bolsa de infortúnios. Isso não acontece na África, mas no Brasil, no ABC paulista, precisamente em Santo André, uma das cidades mais ricas e modernas. Não é ficção, é a pura realidade. Entrevisto esses jovens no barracão desse movimento a partir de um roteiro. E eles: “Somos todos sobreviventes do inferno. Não quero ter filhos. Se eu tiver, não quero recriminar, como a minha mãe faz o tempo todo. Em meio à malandragem, temos de ser malandros e ligeiros. Perguntamos ao senhor que é professor universitário: como podemos viver sem astúcia? O movimento Hip Hop nos ensina a viver. Cantamos a periferia, contamos nossos dramas através dos quais elevamos os níveis de consciência dos moradores. Somos vítimas freqüentes dos pés-depato, uma gíria que designa grupos de extermínios, compostos, sobretudo, de policiais. Todos temos amigos que foram mortos. Sorte nossa, ainda estamos vivos. Somos da paz, mas os policiais não nos entendem. Nosso erro: termos nascido negros ou mulatos. E pobres. Posso dar inúmeros exemplos. Um dia, eu e meus amigos caminhávamos por uma rua e eles nos pediram documentos e indagaram se trabalhávamos. Não. Foi o suficiente. Chamaram-nos de vagabundos, delinqüentes e baderneiros e fomos conduzidos num camburão à Delegacia de Polícia só porque nos defendemos e pedimos respeito à nossa dignidade. Negro não tem dignidade – foi o comentário deles. Registram-nos como arruaceiros. Eles invertem tudo. Outro exemplo. Um colega meu do classe de ensino fundamental, um assim chamado negrinho como eu, fazia seu exercício. Um branquinho rabiscou-lhe uma página. Ele reagiu, riscando o caderno do branquinho. Este pôs a boca no trombone. A professora aplicou-lhe uma penalidade. E o branquinho? Nada lhe aconteceu. Somos vítimas, desde a mais tenra idade, de discriminação. O senhor não sabe o que é ser negro. É vítima o tempo todo. A sociedade só pensa em termos opostos: trabalhador/vagabundo, ordeiro/desordeiro, bom/ruim, honesto/desonesto. E somos taxados de vagabundos e safados. Os brancos se dizem ordeiros, trabalhadores e honestos. Mas há brancos vagabundos como há negros traficantes de drogas. Mas nós, do movimento Hip Hop, não somos. Ao contrário, somos muito solidários. Temos colegas que são verdadeiros sacerdotes, levam a palavra de paz e de conforto aos internos da FEBEM e outros ensinam a arte-educação aprendida no movimento. Somos desamparados da Justiça. As penas que recaem sobre nós são mais pesadas. Por isto, há descrença generalizada na Justiça”. Pergunto sobre as relações com o branco e com a classe média. E eles: “Minha avó teve quatro filhos, todos de homens brancos. Ela renegava a raça. Tinha vergonha da cor, do cabelo pixaim, vergonha de si mesma, vergonha de residir em bairro pobre. Queria o embranquecimento das gerações futuras. Hoje, os tempos são outros, nós assumimos a raça. Temos orgulho da raça, estamos forjando a nossa identidade. Não ameaçamos o branco, a classe média e o burguês. Apenas criticamos a falsa consciência. Então, por que ficam apavorados com a periferia? A classe média é apavorada por natureza, tem propriedade e ‘status’ a defender. Os brancos não entendem nosso orgulho da raça, expresso nos seguintes termos: ‘somos negros, por isto, somos belos’. Queremos introduzir novo conceito de beleza. Os brancos têm de rever suas posições em relação ao negro orgulhoso”. E sobre a escola? – pergunto. E eles: “Freqüentamos escolas. Poucos os que conseguem concluir. Aprendemos a ler, a escrever e a contar. Isso é bom, mas é insuficiente. A escola não desperta a solidariedade nem a necessidade de mudanças sociais. E queremos mudanças. A situação atual é desvantajosa para nós. Também não nos ensina uma profissão. Ela tem pouca importância. Nada, ou pouco significa. Está falida. Por isto, é invadida, apedrejada, pondo alunos e professores em risco. Nem as escolas bem localizadas são poupadas. Os professores são, na maioria, brancos e da classe média. Impingem-nos valores de seu meio. Ignoram os nossos, não admitem nossos comportamentos, consideram-nos indisciplinados, encaram-nos do ponto de vista do sistema, da ordem e da submissão. E, como queremos nos auto-afirmar, consideram-nos arrogantes. Não foi na escola que tomamos conhecimento de Bertolt Brecht e de Maiakóvski, mesmo porque eles [os professores] ignoram. Aprendemos nas ruas e nos barracões de Hip Hop. Temos negros universitários e intelectuais, eles nos passam informações. Admiramos o Mano Brown, os Racionais. O Mano é uma referência. O seguinte verso é de uma das suas músicas: ‘os versos das nossas canções são tiros de revólver’. Os alvos desses versos são as injustiças, os preconceitos e a exclusão social, a que fomos relegados. Lutamos pela nossa liberdade, pela nossa dignidade. Os políticos só nos procuram na época de eleições. Propõem uma educação e uma cultura para nós. Não é isso que desejamos. Queremos uma política educativo-cultural elaborada por nós também, em parceria. – Há salvação? – pergunto. “Sim, a arte: o movimento Hip Hop ou a cultura Hip Hop, como também é conhecido, compõe-se de: Discotecagem é a performance fonográfica a cargo de um DJ (disc-jockey), aquele que faz os efeitos sonoros da música. Break é a dança através da qual valorizamos o nosso corpo, fazemos exercícios físicos. A dança constitui-se de movimentos robotizados e de acrobacias no solo. Rap é a poesia associada à música, de contestação contra a sociedade injusta. É a abreviatura de ‘Rhythm and Poetry’ (Ritmo e Poesia). É o canto acompanhado de instrumentos. A letra é cantada ou declamada. Grafite é a arte pictórica, feita de ‘spray’ ou tinta, com a qual fazemos críticas sociais. Grafite não é pichação, sujeira. Ao contrário, é uma forma de combatê-la. Há um código de ética: um muro da cidade grafitado não é pichado. Os pichadores respeitam. (Há diversos grafites no barracão de Hip Hop onde estamos. Um deles me chama a atenção – a expressão de um sonho, de um desejo, de uma utopia, de um paraíso a ser alcançado) Essas manifestações – a discotecagem, o Break, o Rap e o grafite não são manifestações artísticas que se encerram em si mesmas, têm uma finalidade mais ampla, a de elevar os níveis de consciência dos moradores da periferia. Fazemos denúncias sociais, combatemos a violência, lutamos pelos direitos, clamamos pelas políticas públicas em favor da educação, da saúde, do lazer, da cultura, da moradia e da segurança. Combatemos o preconceito, não queremos que os jovens se enveredem pela criminalidade, pelo tráfico de drogas e pelo consumo. Pedimos moralidade ao jornalismo policial que mais faz sensacionalismo, lutamos pela reforma dos sistema penitenciário e pelos direitos humanos. Enfim, queremos a nossa dignidade e isso conseguiremos apenas através da solidariedade (O último termo foi pronunciado com muita ênfase). Sim, a origem do movimento Hip Hop é americana. Daí, muitos termos de origem inglesa: Beat (batida); Def (estilo de Rap de Nova Iorque); Kaise (caixa de madeira); Ragamurf (ritmo de rap, misto de estilos de Nova Iorque e da Jamaica); B. Boy (abreviação de beat + garoto integrante do movimento); B. Girl (garota). O movimento nos Estados Unidos nasceu denunciando mazelas sociais, e chegou ao Brasil na década dos 70. Aqui, desenvolveu-se e propagou-se rapidamente. Graças a este movimento, conhecemos Martin Luther King e Malcolm X. O movimento fomenta a auto-estima. O rap é poesia e música, tem batida, ritmo, tem balanço, cadência e imaginação. Alma e magia, fala do nosso cotidiano e, por isto, é fácil de entender”. Intermezzo: A pesquisa Vou valer-me da pesquisa-ação, associada à pesquisa etnográfica. Professor de Antropologia Cultural na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo – interessam-me os valores, os hábitos, as crenças e as práticas de grupos sociais. E, como Secretário Adjunto de Cultura do Município de Santo André, interessa-me implementar ações que resultem na elevação de níveis de consciência dos moradores da periferia e das favelas, visando à qualidade de vida. Estou engajado no projeto Santo André, Cidade Futuro – que procura torná-la (a cidade) mais humana, mais agradável e mais bonita. Este projeto só se realizará com a participação de moradores da cidade. A minha pesquisa centrar-se-á na participação da periferia, colaborando com seus moradores na aprendizagem da pesquisa da própria realidade visando transformá-la. Há de considerar-se que a Prefeitura de Santo André adotou a estratégia de OP – Orçamento Participativo, uma instância da comunidade através da qual ela própria se envolve também na elaboração do Orçamento. Há, sim, uma dimensão política na minha pesquisa, a de inclusão social de um segmento da população historicamente excluído. Na cidade de Santo André, uma sociedade de classe e, portanto, de desigualdades sociais, habitam diversas juventudes, no plural. A pesquisa concentrar-se-á na juventude da periferia. Os jovens entrevistados são dotados de consciência crítica. Esta consciência des-oculta a realidade, estimula a reflexão e a ação sobre a realidade, visando transformá-la. Através dela, o homem se humaniza e torna-se história. Os jovens empenham-se em passar da consciência ingênua para a consciência crítica através da ação cultural. Não querem apenas aprender a ler e a escrever; mais do que ler livros, querem ler o mundo. Por isso, são criadores de cultura. Querem a ação cultural para a liberdade e para a dignidade. Em meio à violência, eu vislumbrava uma luz bruxuleante de um movimento de justiça e de generosidade. E desejo de mudanças sociais em favor dos excluídos. E me indagava: por que a classe média, que habita o centro e os melhores bairros, ignora os dramas que se desenvolvem nos beirais da cidade? Pior, repulsa. Como se a nossa cidade fosse estamental: de um lado a classe média, composta dos bem-nascidos; de outro, os excluídos, a quem se nega tudo, inclusive o direito à ascensão social, como se houvesse uma barreira intransponível entre eles. E eu continuava a indagar: será que os professores conhecem e sabem lidar com a massa crítica dos jovens? Não, como se lerá adiante. Na vizinhança, plange uma viola que pontua cantorias. Aqui no barracão nos é servida rapadura. Crianças abandonam brinquedos para mirar o estranho – eu. 2º Ato – A educação domesticadora Não há como negar que a educação, historicamente, prestou e presta-se ao colonialismo – um conjunto orgânico e interdependente de relação de dominação e de subordinação. De um lado, a classe média, materialmente superior, e de outro lado, a população da periferia, materialmente inferior. Étnica e culturalmente, em muitos aspectos, são diferentes. A classe média instila preconceitos e comportamentos estereotipados. O morador da periferia é tido como “vagabundo”, “desordeiro”, “desonesto”, “inferior”, “vândalo” e “pouco inteligente”. A classe média se vale da educação, no seu sentido mais amplo, da difusão, para impor sua “superioridade”, a que a periferia responde com ressentimentos. O sistema de produção cria mecanismo de adaptação – o acesso à escola, à aquisição de equipamentos domésticos, à compra de roupas da moda e produtos de beleza e os programas de lazer no litoral e no cinturão verde da cidade – mecanismos voltados para amenizar comportamentos de resistência e de contestação. A classe média elabora pseudojustificações para explicar sua hegemonia, expressa em termos de bens materiais adquiridos e de ‘status’ conquistado. A educação, a serviço da classe dominante, impinge seus valores de modo que a classe dominada é induzida a aceitá-los e desprezar seus valores tidos como atrasados e impeditivos de desenvolvimento pessoal e social. Tão eficientes os mecanismos de adaptação que sua expressão máxima é o desejo de “embranquecimento” resultante do cruzamento interracial. A função é de domesticação. Mas as diferenças de classe se expressam de forma mais visível na distribuição espacial. A classe média reside no centro e nos melhores bairros. Os pobres na periferia, nos lugares mais distantes, de acesso difícil, e nos lugares de risco, aonde não chegam as benfeitorias do serviço público. Urbanizá-la – dizem as autoridades – é submeter seus moradores ao risco permanente. Intermezzo – O mal-estar da civilização Santo André, na década dos 50, era uma cidade suburbana, dependente em tudo da capital, São Paulo, com 127 mil habitantes. Com o desmembramento de Santo André, de que resultaram os municípios de Mauá e Ribeirão Pires, a população reduziu-se para 92 mil. Com o desmembramento de Rio Grande da Serra posteriormente, a redução foi maior. No entanto, a partir da mencionada década, vai ocorrer extraordinário desenvolvimento com a implantação das indústrias automobilísticas e de auto-peças. O fenômeno de industrialização foi acompanhado de outro, a imigração interna, provocando a explosão demográfica, conforme revelam os números abaixo: 1950 1956 1960 1970 1980 1990 2000 - 92.000 - 154.000 (1) - 245.000 - 419.000 - 553.000 - 616.000 - 648.000 (1) Recenseamento realizado pela Prefeitura de Santo André A explosão demográfica, de 1950 a 1980, acelerou o processo de urbanização com a formação de novos bairros. Chegaram paulistas do interior, paranaenses, mineiros e, posteriormente, os nordestinos. A população de baixa renda ocupou os lugares mais distantes, as encostas das montanhas e os alagados. Estes espaços constituíram a periferia e as favelas. O município não estava preparado para receber tamanho impacto. Estabeleceu-se, então, aquilo que Freud denominou o mal-estar da civilização – típico do processo de formação e expansão das sociedades urbanas e industrializadas. Os habitantes começaram a experimentar a sensação de estranhamento e, com o tempo, a recorrência de alienação, o desenraizamento, a perda de identidade, a dissolução do sujeito, a crise dos vínculos afetivos, a disseminação da violência. É o império de Moloch, tirano e devorador. As criaturas foram despojadas de si mesmas, como numa situação de exílio. Tornaram-se opacas e com dificuldades de comunicação. Tentam salvar-se do mal-estar da civilização, defendendo o mínimo eu, segundo uma expressão de Christopher Lasch – um manual de sobrevivência psíquica em tempos difíceis. 3º Ato – Sinais de esperança Mas está mudando o panorama na periferia graças ao movimento Hip Hop, combatendo a alienação, retomando as raízes étnicas e culturais, forjando a identidade, recompondo-se as pessoas, como sujeitos, restabelecendo os vínculos afetivos e combatendo a violência. Seus jovens membros assumem a raça – “somos negros, por isso, somos belos”. são orgulhosos no sentido de autoafirmação. A classe média não entende nem tolera esse orgulho, fator de tensões. Assumem a periferia, basta analisar as letras do Rap. Cantam a esperança e a utopia e o desejo de mudanças em oposição ao sofrimento e às injustiças. O protesto é a marca registrada, com na música Consciência Negra, de JC John: “Somos negros / somos negros / somos negros / somos negros, não temos medo de dizer / coragem não falta para poder transmitir satisfação, sabedoria, faz parte da vida / Somos negros, sim / temos orgulho de dizer, certo mano?” A poética do Rap é deglutida e assimilada. A pobreza é mundial, então a pobreza local associa-se a esse fato universal e as vozes dos rappers daqui se ligam às vozes dos pobres de Nova York, de Londres e da Jamaica Uma corrente se estabelece. Robson Luiz, do núcleo Negroatividades, cunha este verso no Solo bem Menor: “Primeiro de Maio, em que foi datada nossa escravidão industrial...”. Ele denuncia, não vê os assim chamados negros na festa do Dia do Trabalho. Aumenta a bibliografia sobre o movimento, sendo ABC Rap o primeiro livro publicado no Brasil, em 1992, pelo Departamento de Cultura de São Bernardo do Campo (ABC Paulista). A seguir, vieram outros como Hip Hop, A Periferia Grita, de Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano (edição mimeografada, sem data). A revista Caros Amigos lançou um número especial com o título Movimento Hip Hop, a Periferia Mostra seu Magnífico Rosto (nº 3 / 1998). Há revistas especializadas, como Rap Brasil e Rap Rima. Há videoclipes, como Jigaboo, que circulam pelos espaços do movimento. O Hip Hop cresce no ABC, como no resto do país, o que permitiu realizar, em janeiro de 2001, um festival, no Anhembi/SP, que reuniu mais de 60 mil pessoas. Somente para dar uma ordem de grandeza, um único conjunto, o Racionais, lançou um CD com vendagem de 1 milhão de cópias. O movimento Hip Hop cresce e se fortalece. Tem massa crítica. Sabe que não adianta pedir a um garoto para abandonar o crime se não lhe oferecer algo em troca. O poder econômico se transforma graças à vendagem de discos e de shows, o movimento, em troca de os garotos saírem da criminalidade, quer oferecer escolas de computação, estabelecer cursos na periferia e melhorar escolas. Deseja colocar em prática o que apregoam em suas músicas: fazer, da poesia e da música, armas vigorosas de informação, denúncia, conscientização e compromisso com transformações sociais. Não tem ainda claro o seu modo de pensar e de fazer pedagógico. Precisa de apoio. Mas está convencido de que precisa fazer algo em favor da periferia. Intermezzo – uma sombra A escola também deveria mobilizar-se em favor dessa comunidade, e participar de parcerias para erradicar a violência. Sucede que ela não tem flexibilidade suficiente para dar respostas urgentes e adequadas com ações. Enquanto isto, a violência se agrava, sendo ela mesma, a escola, vítima de invasões e de vandalismo. Ela se escuda na educação formal, preconiza a cidadania, mas o seu resultado é pífio; no máximo, consegue formar cidadãos de segunda categoria – pessoas que pensam de uma forma determinada, imposta pelo poder dominante, cujo olhar não questionam. Não indagam se o que lhes impingem é válido. Estão cegos, ideologicamente condicionados. A escola não consegue formar cidadãos plenos. Porque se concentra no indivíduo e não no coletivo. Estimula a competição e não a solidariedade. Preserva o ‘status quo’ e não mudanças sociais. Enfoca a reprodução e não a produção de conhecimentos. Centra-se no professor e não em projetos de desenvolvimento. Finca-se na instrução e não na sociabilidade. O poder é centralizado, hierarquizado e formalizado e não estimula a autonomia e a participação. É incapaz de encantar a educação, de estimular a autopoiese (do grego autós, próprio, e poiesis, fazer), neologismo que significa a produção de si mesmo. Assim, a escola é incapaz de entender o movimento Hip Hop, de formular um projeto pedagógico que venha ao encontro do movimento. Ao menos por ora. 4º Ato – Uma educação utópica A educação não-formal aproxima-se do movimento Hip Hop. Ela se realiza fora das unidades escolares – na igreja, nos clubes, nos centros comunitários e também nas dependências da escola, fora do expediente normal. A educação não-formal é conhecida também como educação para a cidadania, educação comunitária e educação para adultos. Até a década dos 80, não se deu muita importância a ela, apenas considerada apêndice da educação formal. Mas, a partir dos 90, passou a ganhar importância graças a mudança no sistema de produção frente à globalização. O novo sistema passou a valorizar o trabalho em equipe e este funda-se na participação e na solidariedade. Os conteúdos curriculares são mais flexíveis em função da realidade do alunado. A cidadania é o seu objetivo fundamental, pois concebida em termos coletivos. A educação nãoformal é um modo de prática social. O conhecimento é o resultado de perceber e superar uma situação-problema. Daí, a ênfase sobre a problematização, de que resulta a consciência de si mesmo. O indivíduo coloca a si mesmo como problema a ser superado. Não obstante, a educação não-formal ainda não é suficiente para abordar o movimento Hip Hop, pois este quer agregar a voz individual à fala coletiva do povo. A fala individual consiste em dizer a própria palavra, em seu próprio nome. O movimento Hip Hop prescreve a polifonia, um conjunto de diferentes vozes no interior do próprio movimento. Elas dialogam entre si, completamse ou respondem umas às outras. Na polifonia, a fala de um pressupõe a fala do outro. O sucesso do Hip Hop resulta de ter conseguido a polifonia. O movimento utiliza-se da palavra no ato da fala. Ela é o veículo da reflexão. Mas só a fala e a reflexão não bastam, têm de ser fecundadas por ações, dialeticamente. E a junção da reflexão com a prática é o que os marxistas denominam práxis, de que emerge o sujeito, capaz de agir com autonomia e liberdade. Aqui, evoca-se o processo de conscientização, segundo Paulo Freire. O movimento Hip Hop tem o seu linguajar próprio. Atribuem significações novas às palavras, o que, muitas vezes, dificulta a comunicação. Vali-me, pois, do recurso das palavras geradoras (ainda que Paulo Freire tenha reduzido o seu uso), graças às quais me introduzi no universo do Hip Hop e daí, para temas geradores, foi um passo. Pude identificar o campo semântico do movimento, isto é, a esfera de suas significações, e nele mergulhar. Ao evocar uma palavra qualquer, por exemplo periferia, uma série de outras foram geradas: pobreza, miséria, tráfico de drogas, prostituição, dependência, injustiça, opressão, exclusão, violência, morte, inferno... E, por oposição, outras foram lembradas: direito, justiça, solidariedade, arte, grafite, música, poesia, dança, esperança, utopia. E também por oposição e retornando à série anterior: dominação, domesticação, centro, classe média, hegemonia... Ao combiná-las, extraí os temas geradores que ora apresento, apoiado nas entrevistas dos jovens. Falta abordar o imaginário coletivo no movimento Hip Hop, constante do título deste trabalho. O imaginário coletivo não se revela apenas no grafite, na poesia, na música e na dança. Revela-se também no cotidiano da periferia. Vivem dificuldades de toda ordem e as contornam com astúcias e táticas. Vivem em meio à malandragem, por isso têm de ser malandros e ligeiros. Respondo, agora, à pergunta de um dos entrevistados: “como podemos viver sem astúcias?” Realmente, não podem. Aliás, Michel de Certeau, no seu livro, A Invenção do Cotidiano, revela que pessoas se utilizam desse expediente, alterando objetos, códigos e procedimentos, cada um com seu jeito próprio. Seguem caminhos tortuosos, usam de rodeios, de subterfúgios e patifarias. Cortam, burlam, mentem, dão golpes, o que significa que essas criaturas sem qualidades não são absolutamente obedientes e passivas. As astúcias e as táticas – bricolagem, como diriam os franceses – constituiriam belos livros de crônicas e contos. E cinema. E teatro. E ópera, inclusive a ópera bufa. O movimento Hip Hop instiga o imaginário coletivo. Finale – Baixa a cortina O presente ensaio foi construído a partir de entrevistas de cinco jovens, moradores da periferia de Santo André e envolvidos no movimento Hip Hop, graças às quais foi possível levantar subsídios para uma pesquisa, ainda em caráter exploratório. O material coletado instigou-nos à reflexão crítica da realidade. A escola, tal como existe hoje, é incapaz de dar respostas adequadas às necessidades da periferia, como o combate à discriminação e aos estereótipos, fontes de tensão e de violência. Há de buscar-se um novo fazer pedagógico e cultural a partir da perspectiva da periferia, e não para ela. O movimento Hip Hop denuncia este equívoco. Os jovens querem uma política educativo-cultural com eles, elaborada também por eles, em parceria com o poder público. É uma forma de incentivá-los ao envolvimento em ações com vistas a promover a transformação social. BIBLIOGRAFIA CERTEAU, Michael de – A Invenção do Cotidiano, Editora Vozes, RJ, 2ª edição, 1996 LAPASSADE, Georges – Da Multirreferencialidade como ‘Bricolagem’, in Multirrefe-rencialidade nas Ciências e na Educação, org. de BARBOSA, Joaquim Gonçalves. Editora da UFSCar, São Carlos, SP, 1998 FREIRE, Paulo – Conscientização, Editora Moraes, SP, 3ª Edição, 1980 DEPARTAMENTO DE CULTURA da Prefeitura de São Bernardo do Campo – ABC RAP, SP, 1992 LASCH, Christopher – O Mínino Eu, Editora Brasiliense, SP, 5ª edição, 1990