literatura e crítica organização Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schøllhammer Literatura e crítica: diálogos des/encontrados Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schøllhammer A presente coletânea temática, Literatura e crítica, focaliza um dos aspectos significativos do pensamento contemporâneo visível nas constantes reconfigurações da construção de seus repertórios teóricos. Nesse âmbito será oferecida uma visão das articulações possíveis entre discursos literários e críticos a partir do acento sobre múltiplos cruzamentos situados entre as extremidades polares de convergência e afastamento. A emergência de novas atitudes e práticas críticas, com frequência, não denuncia apenas aversão a modos totalitários e dogmáticos de pensar, incapazes de aceitar a singularidade de eventos, mas sinaliza igualmente a sua força energética na invenção de gestos plurais de resistência. Nesse contexto, os trabalhos reunidos neste volume marcam sua presença como vozes da discussão atual, ensaiando respostas parciais que não repousam sobre a universalidade de normas, mas antes sobre a sua relatividade e seu caráter circunstancial. Dessa opção resultam as propostas inovadoras para a crítica e a teorização no campo dos estudos literários que escapam ao regime de verdade de discursos científicos tradicionais ao revelar, por exemplo, afinidades com premissas subjacentes às práticas simbólicas em sua dimensão estética. Esse tipo de discurso permite, por um lado, aprofundar a crise epistemológica moderna, mas, por outro, enxergar também fenômenos menores, marginais, heterodoxos, de modo geral invisíveis aos olhares hegemônicos. Foi esse espírito que inspirou a seleção de alguns dos trabalhos apresentados e discutidos em dois eventos acadêmicos ocorridos em 2006 e 2007 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, promovidos pelos líderes do grupo de pesquisa Teorias atuais de literatura, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura: o VII e o VIII Seminário Internacional de Estudos de Literatura, dedicados, respectivamente, aos temas Literatura e Política e Literatura e Crítica. Deles participaram pesquisadores nacionais e estrangeiros ligados a campos disciplinares dos estudos de literatura, da filosofia, da história e da comunicação. As contribuições selecionadas para compor o presente volume refletem, assim, questionamentos em seus respectivos espaços acadêmicos de atua7 ção que convergem na investigação de tópicos temáticos em torno de possíveis relações entre literatura e crítica. A seu modo elas problematizam fronteiras movediças do fenômeno literário, do seu circuito de comunicação e da elaboração do seu sentido, hoje. Centrados, desse modo, sobre novas relações entre críticos, teóricos, filósofos, historiadores e escritores, tanto no processo criativo quanto na compreensão do seu objeto de análise, os textos aprofundam simultaneamente o diálogo com os estudos culturais e midiáticos inaugurando perspectivas complexas e estimulantes para a crítica literária. Os debates nos estudos de literatura – seja em manuais, livros, revistas especializadas, teses e eventos acadêmicos – evidenciam assim um campo disciplinar em constante expansão e rearticulação. Essa situação contrasta com querelas hegemônicas anteriores marcadas pela ênfase sobre abordagens textualistas ou contextualistas, em geral fundadas em pressupostos epistemológicos, estéticos e políticos antagônicos. A nova intransparência, aliada ao caráter provisório de soluções propostas para a investigação do fenômeno literário, demanda uma atenção constante por parte dos estudiosos da área, não apenas pela dificuldade em delimitar o objeto sob análise, mas também em função da crescente convicção nas ciências humanas e sociais de que projetos teóricos diferentes, em seu conjunto, não produzem objetos mais complexos mas traduzem, inevitavelmente, objetos distintos. Os ensaios reunidos, em seu conjunto, abriram mão, portanto, da formulação de supermodelos a favor da oferta de facetas múltiplas e concretas da discussão em curso. Hoje, os conceitos usados em nosso campo disciplinar raramente possuem caráter normativo e sequer representam noções exatas que permitiriam uma sistematização geral. Os próprios deslocamentos geopolíticos e socioculturais sinalizam contingências e complexidades problemáticas para uma postura crítica fechada. Assim, ambicionam-se efeitos mais modestos nesta coletânea: manter aceso um debate que abrange discursos e práticas múltiplos que podem ser tornados visíveis numa avaliação crítica do atual processo de comunicação literária, tanto com respeito a novas formas de ficção quanto em relação a suas formas alternativas de crítica e teoria. Uma dificuldade inicial relaciona-se com o uso do próprio termo crítica. No mundo anglo-saxão criticism é compreendido como investigação sistemática das artes que explica e avalia as suas obras e técnicas. Esse tipo 8 de criticism distingue-se de experiências, percepções e avaliações estéticas subjetivas em função da obrigatoriedade de sua fundamentação e justificação. Crítica, nessa ótica, se aproxima da ciência moderna da literatura (na Alemanha chamada de Literaturwissenschaft) praticada por uma comunidade científica no espaço disciplinar dos estudos literários. Em contraste, no centro da crítica se encontra uma personalidade crítica objetivando uma mediação com um público leitor a partir de uma experiência, competência e autoridade reconhecida. Hoje as duas esferas, em princípio distintas, se caracterizam por múltiplas aproximações, interações e superposições de seus modos de observação, critérios de avaliação, intenções e destinatários preferenciais. E, antes de tudo, por seus praticantes localizáveis nas instâncias de produção criativa, de mediação e análise crítica da própria crítica. Ao abrir mão de uma fundamentação estruturalista da ciência literária, os estudos de literatura disseminaram-se no campo expandido dos estudos culturais caracterizados por uma escrita multiforme oriunda do encontro entre projetos disciplinares diversos na esfera das ciências humanas, exatas e sociais. Essa abertura, com sua exigência de concretude nas abordagens sócio-históricas e culturais, produziu uma riqueza temática que situou o objeto literário em contextos novos, ilustrados por exemplo pelas discussões acerca da perspectiva pós-colonial, buscando modos de desconstrução de pressupostos identitários de gênero, raça, cultura e nacionalidade numa verdadeira reformulação da crítica ideológica, desde a década de 1970. Ao mesmo tempo essa virada culturalista desencadeou certa animosidade contra a crítica fundada na teoria literária, tanto em sua versão intrínseca e textualista quanto estética e filosófica. O tema “Literatura e Crítica” foi abordado a partir de óticas diferentes, porém interligadas em função não apenas de pressupostos teóricos, epistemológicos, estéticos, éticos e políticos, mas igualmente em função do pertencimento dos pesquisadores a campos disciplinares distintos. Tratou-se de aprofundar um campo de investigação, na área dos Estudos de Literatura, que situasse e problematizasse questões críticas e teóricas no interior de textos literários, nas formas de sua teorização, na sua circulação e contextualização. No horizonte dessa discussão destacam-se indagações acerca da natureza filosófica da crítica no âmbito de teorias do conhecimento; indagações acerca de possíveis alianças entre a própria literatura e a filosofia e entre a literatura, a crítica e a política, e indagações acerca de conceitos 9 de verdade, conhecimento, ciência, ética e estética numa filosofia da vida. Outros acentos são colocados sobre práticas leitoras de caráter performático, capaz de libertar a crítica de sua reificação conceitual a favor do acento sobre o corpo e os sentidos: é sublinhada a reintegração do prazer, dos afetos e efeitos, atuantes nas esferas psíquicas, nos sistemas sociais e comportamentos culturais, em vista da elaboração de um repertório crítico e teórico hedonista para os estudos de literatura. Alguns ensaios refletem sobre novos formatos de escrita a partir do entrecruzamento de autobiografia, ficção e realidade vivencial, problematizando fronteiras entre as dimensões do real e do ficcional e sublinhando o estatuto híbrido de novas textualidades caracterizadas pela oscilação. Entre estas são abordadas, por exemplo, novas formas da crônica urbana, como relatos de experiência de vida e modos de percepção do mundo. São discutidos, ainda, conceitos de realismo em perspectiva histórica, sinalizando conceituações alternativas mais adequadas à descrição de certas expressões ficcionais contemporâneas; são analisados distintos modelos de testemunho e a diferença do uso do conceito de testemunho na teoria da literatura. No âmbito dessas indagações emerge o novo crítico em múltiplos papéis; na qualidade de intelectual e político, duas faces de uma mesma moeda, fazendo da palavra o instrumento da preservação de valores éticos e morais ou repensando a memória de contextos históricos a partir da leitura crítica de textos literários. E entre diversas funções atribuídas ao crítico contemporâneo surge, também, o intelectual que privilegia trânsitos midiáticos interculturais, cruzando fronteiras do estético e do ideológico. Em outras palavras, passou a ser cada vez mais frequente abordar a literatura na sua relação interartística em diálogo com a produção cultural e midiática em geral; testemunhamos uma reavaliação das experiências literárias e artísticas locais que invertem ou anulam as hierarquias tradicionais entre centro e periferia, estabelecendo, ao mesmo tempo, redes de fluxos e trocas; assistimos à chamada “virada subjetivista” ou “existencial” na crítica literária e cultural, valorizando a experiência autobiográfica, manifesta em memórias, diários, autobiografias, como parâmetro para uma crítica reflexiva. Escritores e críticos desenvolvem trabalhos híbridos que tomam sua própria criação como objeto, dissolvendo fronteiras entre criação e intervenção crítica. Os próprios instrumentos da crítica e os repertórios teóricos desenvolvidos para o entendimento do fenômeno literário transformaram-se em objetos de revisão historiográfica. 10 O conjunto desses questionamentos encontra espaço para respostas e a formulação de novas indagações a respeito da articulação entre literatura e crítica. O ensaio de Eduardo Jardim, “Filosofia e poesia”, que inicia a discussão acerca de possíveis relações entre literatura, crítica e política, apresenta duas perspectivas a respeito da relação entre pensamento, poesia e política. Uma primeira, expressa na filosofia de Platão (A República), situa em termos espaciais cada uma dessas esferas de experiência. Nessa visão a política determina que a poesia seja avaliada negativamente face ao pensamento. Segundo Jardim, contemporaneamente, a chave espacial pela qual se entendia essa relação passou a ser substituída por uma nova, dando destaque aos aspectos temporais. Essa mudança, coincidindo com o fato de a política deixar de ser sentida como uma instância normativa, está presente na obra de alguns poetas como Rilke, Valéry e Carlos Drummond de Andrade, que ilustram essa perspectiva. O texto de Ana Cristina Chiara acerca de procedimentos de leitura, de performance crítica, intitulado “Leituras malvadas”, estabelece relações com as noções de literatura e mal, de transgressão (Georges Bataille), profanação (Giorgio Agamben), paixão crítica (Octavio Paz), transcriação (Haroldo de Campos) e apropriação (Ana Cristina Cesar). As leituras malvadas propõem, neste âmbito, o trânsito intertextual por meio da escrita ativada entre o leitor passivo e o leitor-escritor-crítico, transformado no que Sueli Rolnik chama de “corpo vibrátil”, cuja prática leitora pretende reinventar os sentidos por meio das sensações e de leituras pulsionais, libertando a teoria e a crítica do abatimento causado pela saturação, pela repetição, pela reificação dos conceitos. As leituras malvadas pervertem, desse modo, os objetos no sentido de erotizá-los, interessando-se mais pelos processos do que pelos resultados passíveis de serem reproduzidos como receita. O artigo de Lucia Helena, “Uma conversa entre macacos: percalços da cultura na constituição do moderno”, tem por objetivo discutir o tecido de citações, elaborado por John Maxwell Coetzee, entre A vida dos animais (1999), Elizabeth Costello (2003) e o texto de Kafka, “Um relatório para uma academia”, extraído de Um médico rural (1919). Como entender essa rede textual que se espraia de modo agudo e delicado? Ao manter muito enlaçadas as marcas da autoria, da autobiografia, da ficção, do ensaio e da vida, o texto de Coetzee indica tanto a porosidade quanto a 11 complexidade do ato de escrever. Com essa capacidade de ramificação, sublinha as fronteiras tênues entre o real e o mundo do “como se” que a literatura cria, e também aponta para candentes problemas de nossa época. Essas questões – que conectam os jogos de linguagem do processo ficcional do autor à representação na linguagem literária – que se pretende examinar. O professor dinamarquês Frederik Stjernfelt, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, descreve no ensaio “A vida em si – filosofia de vida e conservadorismo” a genealogia e a estrutura da filosofia de vida ou do vitalismo no pensamento ocidental ao longo dos últimos séculos. O vitalismo constitui um modo de pensamento que considera a vida como o fenômeno mais fundamental e que todos os outros assuntos filosóficos – verdade, conhecimento, ciência, ética, estética, política etc. – devem ser julgados pelo papel na vida. Ressalta movimento, transformação, juventude e processo. A filosofia de vida nesse sentido é encontrada num amplo registro de disciplinas, da biologia à literatura e da filosofia à política. O ensaio mostra que a filosofia de vida teve um papel central nas políticas radicais nos dois extremos do panorama político e continua assumindo essa função. O trabalho “Crónicas urbanas, narrativas del presente”, de Mónica Bernabé, da Universidade de Rosário, Argentina, tenta definir o gênero da crônica urbana contemporânea com a finalidade de estudar o caráter exploratório que assume sua prática em escritores como Carlos Monsiváis, Edgardo Rodríguez Juliá e Pedro Lemebel. A professora Bernabé volta a discutir as experiências na literatura ibero-americana dos anos 1960 a partir do exemplo de El zorro de arriba y el zorro de abajo, de José María Arguedas, considerado o fundador do relato sobre a experiência de vida nas grandes cidades. No início do século XXI e diante da ameaça do crescimento ilimitado de algumas metrópoles no continente latino-americano, a crônica urbana pode, na perspectiva das narrativas experimentais do presente, dar conta das mudanças nos modos de perceber o mundo e de se relacionar no ambiente de diversidade e de fluxos incessantes. Considerando a concepção de crítica de arte do romantismo alemão e a sua importância na gênese do conceito de crítica de Walter Benjamin, um dos maiores críticos da nossa época, o artigo “A natureza filosófica da crítica”, da professora Katia Muricy, pretende demonstrar a natureza necessariamente filosófica da crítica, determinada pelos problemas por ela suscitados no âmbito da teoria do conhecimento, e discute em particular 12 a tese de Benjamin de 1921, quando, no livro O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, afirma que o princípio inaugural da compreensão moderna de crítica se contém no enunciado romântico: na crítica a própria obra se julga. O trabalho de Márcio Seligmann-Silva, “Política da memória e testemunho: gênero, violência e os limites da representação”, enfoca diferentes aspectos do conceito de testemunho. Ele parte da noção de testemunho (martus, martur) tal como ela pode ser lida na Oréstia de Ésquilo, no autor de Ad Herennium, em Freud e, criticamente, em Walter Benjamin. Aqui encontramos o testemunho como testis, atestação da “verdade” via visualidade. O segundo modelo de testemunho estudado é mais “auricular”, centra-se no próprio evento do testemunhar e trata dos seus limites e da sua necessidade. Apresentam-se ainda as diferenças entre a noção de testemunho, no contexto dos estudos da Shoah e, por outro lado, dentro da teoria da literatura de “testimonio” na Hispano-América. Qual seria o papel da crítica de cultura e de arte diante dos desafios da globalização que se intensificaram a partir dos anos 1990, simbolicamente iniciados com a queda do Muro de Berlim e ampliados pelos eventos de 11 de setembro? A partir da proposta de uma paisagem transcultural, artifício teórico que conjuga a tradição da história da arte e os Estudos Culturais, o professor Denilson Lopes procura no ensaio “Notas sobre crítica e paisagens transculturais” argumentar em favor de uma posição que não se limite a produções delimitadas por um território bem definido, sejam elas a cidade, a nação ou um continente, e privilegie os trânsitos midiáticos entre culturas, mas para além do quadro diaspórico definido a partir dos fluxos migratórios ou por relações duais entre centro/periferia. O ensaio “En torno de las lecturas del presente”, de Sandra Contreras, da Universidade de Rosário, Argentina, apresenta uma reflexão crítica e teórica em torno das leituras do presente da literatura argentina, que recentemente puseram no centro da discussão não apenas o caminho de um sistema literário com suas redes e hierarquias, mas também, e principalmente, o questionamento e até a transformação, do estatuto, da própria literatura hoje, do seu conceito e dos valores associados a ele. No centro das reflexões estão as intervenções de Beatriz Sarlo em Punto de vista, em 2005 e 2006 (“Pornografía o fashion” e “Sujetos y tecnologías. La novela después de la historia”), e as de Josefina Ludmer publicadas na rede (“Literaturas postautónomas I y II”). Os pressupostos subjacentes, no uso que 13 Sarlo faz do termo “etnografia” para entender de que maneira uma narrativa que lê como “costumbrista” no sentido mais convencional e banal do termo, se contrasta com os pressupostos críticos de Tamara Kamenszain em La boca del testimonio. As perguntas que orientaram a leitura crítica nessa parte foram: Quanto resiste – quanta potência de sentido ganha ou perde – a leitura de uma obra feita a partir de uma língua completamente estrangeira àquela inventada pela obra? Quanto resiste a leitura do presente com as categorias do passado? Mas também: Quanto converte a aposta no valor estético a resistência às formas do presente em prescrição? Quanto essa resistência converte às categorias da modernidade crítica em valores do passado, fechados para a mesma dialética do presente, ou, em outras palavras, da modernidade? Por outro lado, a reflexão em torno das implicações de termos como “realidadficción”, com o qual Ludmer define o estatuto de “nuevas textualidades” que escapam à valoração boa-má literatura, se contrasta com as postulações de Reinaldo Laddaga em Espectáculos de realidad e com as postulações teóricas de Georges Didi-Huberman em Ante el tiempo. As perguntas que orientaram a leitura crítica nessa parte foram: até que ponto se pode falar de posição diaspórica referindo-se unicamente a textos literários, isto é, sem cruzar explicitamente as fronteiras do livro no sentido de um desdobramento das práticas? Não é preciso pensar os modos específicos de insistência – de supervivência – de valores artísticos para complexificar e dialetizar os debates atuais sobre o “fim da história” e, paralelamente, sobre o fim da arte? O que motiva as indagações de Heidrun Krieger Olinto, no texto “A economia das emoções na crítica e teoria da literatura”, pode ser entendido como abordagem – não sistemática – de questões de afeto e de efeito na análise de diferenças e mediações entre esferas psíquicas, sistemas sociais e comportamentos culturais que moldam certos investimentos teóricos, críticos e políticos nos estudos de literatura hoje. Nesse sentido, ela encaminha uma reflexão sobre os pressupostos presentes em projetos que a partir da segunda metade do século passado manifestam de forma crescente um interesse evidente pela reintegração do prazer na comunicação literária, com ênfase sobre o próprio espaço da produção teórica, expressa em pleitos a favor de uma crítica e de uma ciência da literatura hedonistas. No ensaio “O realismo político ou a política do realismo”, o professor Karl Erik Schøllhammer retorna à discussão histórica em torno do rea14 lismo entre Lukács, Brecht, Bloch e Adorno para procurar e revisar a origem das críticas contemporâneas do realismo naturalista e determinar um caminho para traçar um conceito alternativo de realismo adequado às demandas do compromisso assumido por certa ficção contemporânea. Partindo da afirmação de Afonso Arinos que distinguia sua atuação como intelectual de sua atuação como político, por reconhecer na primeira sua verdadeira vocação e na segunda o cumprimento de uma missão, o artigo de Berenice Cavalcante, “Ars literaria e virtude política: reflexões sobre Afonso Arinos de Melo Franco”, problematiza essa cisão desenvolvendo o argumento de que seriam faces da mesma moeda, na medida em que obedeciam a um mesmo desiderato: fazer da palavra – oral ou escrita – o instrumento de preservação no tempo, de valores éticos e morais para a formação da elite política apta a governar o país. Nesse sentido, pode-se afirmar que seus ensaios, crônicas, memórias e pronunciamentos na tribuna parlamentar eram expressões de sua dimensão pública e de uma concepção de civilização moderna que não podia prescindir dos valores humanistas da tradição clássica ocidental. A partir dos dois balanços mais politizados do modernismo brasileiro, ou seja, as conferências “O movimento modernista” (1942), de Mário de Andrade, e “O caminho percorrido” (1944), de Oswald de Andrade, nos quais se cruzam o estético e o ideológico, Renato Cordeiro Gomes busca contextualizá-las em seu artigo “Invasão da política nos terrenos da cultura (Um ato de contrição dos espiões da vida?)”, para pôr em questão alguns casos de interferência da Política (ou da política, com minúscula) na vida literária e cultural brasileira. No trabalho intitulado “A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse”, o professor Jaime Ginzburg, da USP, procura repensar a partir de textos da literatura brasileira a memória da ditadura militar no Brasil, e faz uma leitura de dois exemplos, que se referem a diferentes momentos, 1982 e 1995, em que escritores de ficção centraram esforços sobre o tema. Em seguida, apresenta algumas anotações teóricas resultantes da aproximação entre os dois textos, tentando delimitar problemas conceituais referentes ao assunto. A colaboração dedicada e eficiente de Mariana Maia, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da PUC-Rio e bolsista do CNPq, em todas as fases preparatórias desta publicação, incluindo a revisão dos textos, merece o nosso expressivo agradecimento. Ela, Chia15 ra de Axox, doutoranda, e Michelle Valadão Vermelho, bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq – integrantes do nosso grupo de pesquisa Teorias atuais de literatura – tiveram uma atuação exemplar, também, na realização dos dois seminários que originaram a reunião dos ensaios desta coletânea. Um agradecimento especial devemos ao CNPq, à Capes e à Faperj, agências de fomento que possibilitaram com o seu apoio material não só a realização dos seminários e a publicação deste livro, mas igualmente a vinda de três cientistas estrangeiros – da Universidade de Aarhus, Dinamarca, e da Universidade Nacional de Rosário, Argentina – e de três pesquisadores nacionais – da USP e Unicamp. A ajuda da primeira se deu em forma de Bolsa de Produtividade em Pesquisa para os dois organizadores dos eventos e da coletânea. A contribuição da Capes, pelo Convênio de Centros Associados entre a PUC-Rio e a Universidade Nacional de Rosário, Argentina, beneficiou, ainda, duas pesquisadoras argentinas, e, finalmente, o apoio da Faperj se deu através da concessão da bolsa “Cientista do Nosso Estado” para Karl Erik Schøllhammer. Os organizadores 16 Filosofia e poesia Eduardo Jardim Ao começar a discussão do tema “filosofia e poesia”, é impossível não mencionar o momento fundador da nossa tradição de pensamento, quando Platão propôs excluir a poesia da república governada pelo filósofo. Os motivos dessa expulsão foram apresentados, com destaque, no livro X de A República. O primeiro e mais importante deles tem um sentido filosófico preciso. A realidade com que lida o poeta possui um caráter duplamente derivado. São três os planos de realidade considerados no diálogo. Em primeiro lugar, os interlocutores se deparam com o plano dos objetos sensíveis. No caso, ele é constituído pelos utensílios corriqueiros situados à frente de Sócrates e de Glauco. Uma cama, por exemplo, fabricada por um marceneiro. Ela é dotada de todas as qualidades conhecidas. Tem cor, peso, beleza e serve para muitos afazeres. No entanto, logo se nota que para que ela passasse a existir foi necessário que o artesão voltasse a sua atenção para um outro plano de realidade e fixasse o seu olhar – agora, um olhar puramente intelectual – em um modelo, a ideia de cama, tomada como referência para a realização do seu trabalho. O mundo ideal feito por Deus não possui a diversidade de aspectos que o utensílio apresenta. Nem nele estão contidos os traços individuais que dão a fisionomia de cada coisa. Ao contrário, esse é um mundo em que figuram entidades abstratas e muito precisas – os conceitos. Para Platão, o plano ideal possui o máximo de realidade e o mundo sensível é, apenas, o seu derivado. O deslocamento da atenção na direção desse contexto ideal dá ao pensamento um enorme poder. Ele possibilita a construção de representações abrangentes que promovem a investigação rigorosa dos vários setores de entes. Também do ponto de vista prático, o recuo do pensamento na teoria promove a definição de critérios morais e princípios políticos válidos para populações cada vez mais numerosas. Além disso, o conceito constitui um instrumento inestimável na comunicação entre os homens, pelo menos quando se trata da transmissão de conteúdos específicos. No entanto, o acréscimo de poder obtido por meio dessa inflação do conceito acarreta também uma limitação significativa. Exatamente o mundo de que o pensamento se afasta, no qual tudo se movimenta e se transforma 17 em sua aparência, e cuja beleza e diversidade impregnam os sentidos, é relegado ao abandono e, até mesmo, desprezado. Em um outro diálogo – Teeteto –, Platão afirmou que o thauma, a admiração que envolve todo o nosso ser provocada pelo primeiro encontro com a realidade, constitui a origem do pensamento, quer dizer, é aquilo que nos faz pensar. Agora se nota que o amor da sabedoria – filosofia – que eleva o pensamento até o plano ideal traz consigo, também, uma forma de violência. As penas e sacrifícios que acompanham a ascese filosófica indicam que a elevação do pensamento na direção da ideia provoca uma ruptura traumática com o estado de maravilhamento inicial, que testemunhava o nosso pertencimento ao mundo sensível. O terceiro plano de realidade considerado no livro X de A República é o da imitação (mímesis), de que a poesia é uma das formas. A caracterização da realidade poética é completamente pejorativa. O diálogo começa com uma definição da poesia que a aproxima da pintura. Esta não tem uma relação direta com a realidade verdadeira – o mundo das ideias. Os modelos de que o pintor se serve são a matéria sensível, isto é, no caso do diálogo, são as camas fabricadas pelo marceneiro. O trabalho do pintor consiste em imitar essas entidades concretas. Isso faz com que a sua obra seja considerada o reflexo de uma realidade que, por sua vez, já é derivada. Por esse motivo, Platão insiste que os produtos do trabalho do pintor e, por extensão, os do poeta estão a três pontos de distância da realidade verdadeira. Ambos produzem objetos que são como as imagens refletidas em um espelho. Pode-se tomar um espelho e andar com ele por toda parte. O texto explica: “Em breve criarás o sol e os astros no céu, em breve a terra, em breve a ti mesmo e aos demais seres animados, os utensílios, as plantas e tudo quanto há pouco se referiu” (A República, 596-d-e.). Ocorre que todos esses objetos são apenas aparência, entes desprovidos de existência real. Falta dignidade ontológica ao objeto poético. São muitas as expressões utilizadas no diálogo para desqualificar a poesia. Ela é imitação e, nessa medida, uma “brincadeira sem seriedade”. Ou ainda: “O imitador nada entende da realidade, mas só da aparência.” A definição do estatuto do pensamento e da poesia no livro X de A República se baseia na descrição de um cenário dividido em vários planos, desde o mais elevado até o mais baixo. Nesse cenário, o pensamento ocupa a posição superior. Para alcançar essa posição, ele precisou efetuar um recuo muito acentuado com relação ao plano sensível. O recuo manifes18 tado na poesia é mais difícil de ser caracterizado. O poeta parece não ter abandonado o âmbito da aparência sensível, como fez o filósofo. Ele, na verdade, a duplicou em uma nova aparência. O poeta mantém-se ligado ao maravilhamento do mundo sensível; não pretende romper com ele, mas busca a sua transfiguração. Para Platão, essa adesão à aparência significa uma perda de dignidade da poesia, que pode ser considerada, até mesmo, o resultado de um estado doentio. Tudo isso faz com que a poesia ocupe, nesse cenário, a mais baixa posição. Isso aparece claramente na exposição de um outro motivo para a expulsão do poeta da pólis, além do que denuncia a precariedade ontológica do objeto poético. Platão pergunta, a certa altura: quais partes da alma são afetadas pela poesia? Certamente, são aquelas menos importantes para a formação de uma personalidade interessada na verdade, que quer saber o que é a justiça – o objetivo do diálogo. Na medida em que é apenas imitação, criação de aparências, a poesia nunca vai poder dar conta dos aspectos que efetivamente importam na definição de alguma coisa ou de alguém, pois esses nunca são aparentes. Assim, ela vai preferir descrever os traços mais óbvios e irrelevantes de uma pessoa, como a sua beleza física, e vai deixar de lado tudo que é mais substancial. Também por esse motivo, a poesia só despertará nos seus leitores as faculdades menos nobres e confiáveis. Por que, então, incentivar o seu cultivo na cidade ideal? Vê-se, pelo argumento do livro X, que a poesia é, para Platão, duas vezes reprovável. Em primeiro lugar, do ponto de vista do conhecimento, ela nunca atinge a verdade, expressa sempre na figura do conceito. Em segundo lugar, do ponto de vista moral, ela não é, em absoluto, edificante, o seu cultivo podendo ser prejudicial na formação da classe dirigente. É permitido acolher na cidade apenas os hinos dedicados aos deuses e os encômios aos varões honestos. “Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor” (A República, 607-a.). O repúdio à poesia era inevitável no contexto argumentativo de um diálogo político como A República. Tratava-se de escolher os elementos úteis para a formação das camadas dirigentes e para a definição da autoridade política. Ora, a poesia não apresentava nenhuma utilidade para a política e foi, por causa disso, descartada. 19