1 “Leviatã, 1ª parte: Do Homem

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UnB
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE DIREITO
Programa de Pós-graduação em Direito (mestrado e doutorado)
Prof.: Alexandre Bernardino Costa
O DIREITO ACHADO NA RUA
Aluno: Carlos Divino Vieira Rodrigues
O DIREITO DE MORADIA SOB UMA PERSPECTIVA DE INCLUSÃO SOCIAL
Brasília, 07 de Fevereiro de 2.011
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SUMÁRIO:
1 – INTRODUÇÃO......................................................................................................................03
2 – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES..............................................................................04
2.1 – O Poder....................................................................................................................04
2.2 – O Direito..................................................................................................................07
2.3 – A Política..................................................................................................................13
3 DIREITO OBJETIVO E DIREITO SUBJETIVO................................................................17
3.1 – Direito objetivo........................................................................................................17
3.2 – Direito subjetivo......................................................................................................18
3.3 – Credores e devedor do direito social de moradia.................................................18
3.4 – A divisão dos poderes e o adimplemento dos direitos sociais.............................19
4 – IDEOLOGIA E DIREITO....................................................................................................22
5 – O DIREITO E A EMANCIPAÇÃO SOCIAL....................................................................29
6 – OS DIREITOS SOCIAIS SOB UMA PERSPECTIVA DO DIREITO ACHADO NA
RUA...............................................................................................................................................30
7 – A COMPLEXIDADE............................................................................................................42
8 – OS DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONAIS...............................................................44
9 – O QUADRO SOCIAL SEGUNDO OS DADOS DO CAMPO..........................................51
10 – CONCLUSÃO......................................................................................................................58
11 – BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................60
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1 - INTRODUÇÃO
O trabalho que ora se inicia tem por objetivo primeiro diagnosticar
dívida de moradia social antiga e vencida, onde são credores extensos contingentes humanos
que se acham em situação de desamparo - credores justos - e cujo resgate do objeto devido bem
poderia servir à emancipação coletiva desses deserdados. Como segundo objetivo, o trabalho
busca encontrar e analisar, dentro dessa fenomenologia complexa, sob os seus aspectos sociais,
históricos, jurídicos e econômicos com a qual essa dívida se formou as condições quer permitam
formular propostas visando dar solução ou mitigar os efeitos desse fenômeno que precisa ser
enfrentado com políticas públicas de elevado esforço e factibilidade. Parte-se da idéia segundo a
qual é conhecendo a natureza do objeto, sua origem e sua dinâmica, é que poderão ser
enfrentados os desafios necessários ao seu tratamento.
Demais disso, a realização do direito de moradia constitui vigoroso
fenômeno com o qual se outorga dignidade à pessoa humana, dimensão que também é princípio
constitucional fundamental do Estado Democrático de Direito.
Seria insincero negar que também, pelo mesmo trabalho, é nosso
objetivo secundário o atendimento de exigências acadêmicas. Contudo, com o mesmo
compromisso de sinceridade e propósitos, poderá o presente trabalho, com outros subsídios a
serem pinçados no Curso de Pós Graduação oferecido pela Universidade de Brasília, servir ao
depois de vencidas as fases iniciais do cotidiano acadêmico, constituir o pilar central de um
trabalho mais amplo e no qual se pretende propor conceitos, sugestões ou práticas mais exatas e
detalhadas a respeito de questões jurídicas, sociais, políticas e econômicas complexas, que ainda
se entrelaçam nessa complexidade com as veredas do Direito Constitucional, do Direito
Administrativo, do Direito Civil, do Direito Processual Civil, do Direito Registral Imobiliário, do
Direito Urbanístico e do Direito Ambiental, em cuja interdisciplinariedade não perfeitamente
sincronizada acredita-se residir entraves à superação de questões que impedem a plena realização
de direitos sociais já reconhecidos no ordenamento jurídico, sobretudo o Direito Social de
Moradia albergado no art. 6º da Constituição Federal.
Por fim, com modéstia e vontade cidadã a serviço do bem comum,
somadas à experiência acumulada no ofício, também se espera que esse trabalho forneça
subsídios de pesquisas e reflexões que ao depois venham contribuir para a superação desse
aspecto específico, tomando por meta o resgate da cidadania popular pela outorga de moradia
social a quem dela faz jus.
Se ao menos um milímetro da distância do fosso social for reduzido, tal
será o bastante para ensejar o contentamento pelo progresso alcançado.
Brasília, 10 de Fevereiro de 2.011
Carlos Divino Vieira Rodrigues
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2 – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Toda transformação depende da utilização combinada de energias, de
materiais e de técnicas, para o sucesso na conversão de um estado de coisas em outro. O mundo
natural, tal como o mundo social, estão sujeitos a essas transformações que se tornam possíveis
em razão de uma vontade humana, consciente e dirigida. Esses estados de coisas desejáveis, i. é,
esses objetivos a alcançar, somente serão atingidos se for bem compreendido campo onde se
situam, bem ainda as relações de poderes com os quais interage. Em seguida será necessário
dimensionar adequadamente os recursos disponíveis e estabelecer o eficiente planejamento,
elaborado com base em factibilidade e vontade política.
2.1 – O Poder
Abstraindo-se o quanto possível de indagações a respeito de se
estabelecer, desde logo, conclusão se o poder é bom ou mal, fato é que o seu sentido etimológico
agasalha ampla semiologia, traduzindo em geral o sentido de força condensada e com aptidão
para produzir transformações, tanto no campo do meio ambiente natural, quanto no meio
ambiente social.
Como fenômeno poder, natural ou decorrente da condição humana, tanto
faz, pode ser visto como instrumento que produziu, produz ou tem aptidão necessária para
produzir transformações, que se fossem representadas por números, estes sugeririam o infinito
em razão das possibilidades de combinações de fatores de força e o ambiente em que atuam.
Mas, o poder em si mesmo - sob o aspecto da valoração ética - é neutro,
i. é, enquanto estático, não se liga ao bem ou ao mal. Para produzir resultados será preciso pô-lo
em movimento. Aliás, o poder não é um instrumental que vagueia solto nos espaços naturais ou
sociais, sem quem alguém o tenha sob sua dominialidade. O poder se liga à fonte natural que o
criou ou, no campo de nossas considerações onde doravante passa a receber reflexões, terminará
inevitavelmente aprisionado por quem bem o compreende e o exerce por meio da dominação que
o conhecimento humano permite, com isso fazendo intervenções no meio natural ou no meio
social.
Inexiste vácuo de poder. Logo, não será o poder, pela sua importância
instrumental reconhecida pelo conhecimento e experiência humana, algo que se circunscreva a
uma mera potencialidade abstrata, uma res nulius; um niilismo qualquer. O poder para ser
concreto, visível, há que encontrar o agente que o tenha sob sua potestatividade.
Portanto, em sentido ético, o bem ou o mal que se associa ao poder, não
estando nele, está em verdade na direção transformadora que lhe é dada pelos seus detentores.
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Por outras palavras, o bem ou o mal advém do exercício concreto do poder segundo o rumo ético
que lhe é dado na hipótese considerada.
Com o simples propósito de iniciar reflexões complementares ao tema,
vale anotar que o poder no meio ambiente social somente se reconhece no âmbito das relações
intersubjetivas. Ele se condensa ou se aglutina segundo o fenômeno da delegação ou subtração e,
assim, estabelece relações de poder entre os indivíduos do corpo social, aliás, relações
predominantemente hierarquizadas em modelos racionais eficientes.
A história da humanidade e a história do poder se confundem na sua
formação, desde os tempos mais antigos e segundo os notórios resgates feitos pela História e pela
Antropologia. Posto que notórios, não precisam ser trazidos por reprodução reducionista de um
texto que não tem o propósito de registrá-los, nem mesmo por modo reduzido, para não roubarlhe a importância. Acredita-se que o senso comum, formado a partir de um conhecimento
cultural pelo menos mediano, basta para ilustrar ideias que se desenvolvem no viés da
proposição inicial.
O poder que emana dos homens é exercido por estes em face dos demais
elementos vivos ou minerais do seu meio ambiente. Mas também é exercido em relação aos
demais indivíduos de sua espécie.
As dicotomias, as diferenças, as condições de vida desiguais entre os
indivíduos humanos são extremas. Porém, como a ponta do inceberg, essas desigualdades sociais
expostas é a parte visível dos efeitos que o poder exercido pelo homem, no meio natural e social,
ao longo de sua própria história, não o foi buscando produzir hegemonias democráticas.
Alinhou-se o poder aos interesses simbólicos de dominação, donde que, os que se achavam no
vértice das relações de poder, dominando-o, aprouveram utilizá-lo a bem de interesses privados,
a justificar a afirmação de T. Hobbes ao apontar o homem como o lobo de si mesmo.1
1 “LEVIATÃ, 1ª PARTE: DO HOMEM
Cap. XII
... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por conseqüência o fato de nada ser injusto. As
noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há
lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não
pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas
num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade,
justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de
guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que
a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o
homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado,
se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte
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As desigualdades sociais é o retrato histórico das vítimas produzidas
pelas mãos daqueles em quem se concentrou todo esse poder transformador, mas poder
fetichizado, que por isso tem elevada responsabilidade pelo que costumamos designar o
contingente dos excluídos, dos dominados, dos marginalizados ou, simplesmente, as vítimas das
desigualdades sociais. Expressam-se estes nas colunas dos desempregados que as tecnologias
modernas lhes roubam o posto de trabalho; nos povos nativos que foram brutalmente
assassinados ou desterrados da terra-mãe; das minorias que não encontraram espaço na equação
democrática constitucional de um pluralismo justo; naqueles que já nasceram no berço do
infortúnio (ou sem berço mesmo), onde pudessem receber os primeiros impulsos da vida, que por
isso sequer tiveram acesso à educação escolar, ao conhecimento e, sem acesso ao conhecimento,
a sua ignorância sem culpa não lhes deu as ferramentas da própria libertação; das vítimas das
concepções filosóficas que produziram doutrinas de dominação ou até mesmo de escravidão
étnica; do monopólio do conhecimento científico que se repete de geração em geração a favor
das mesmas castas dominantes; por todos os fenômenos de violência estrutural; enfim, por todos
os motivos que serviram à concentração de poderes em favor de uns, em detrimento de muitos,
notadamente em razão dos ideais liberais enquanto construíram as relações econômicas
produzindo riquezas em favor de uns poucos e miséria a muitos.
violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz
convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.
Cap. XIV
... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se
servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E
porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação,
cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de
cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor
segurança...
Cap. XV
... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente,
para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam
esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em
substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de
um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a
vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há
propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há
Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado,
nada há que seja injusto.”
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Mas, a mesma força que produz exclusões é também fenômeno
sociológico que aglutina o contingente daqueles que individualmente foram excluídos. Estes, por
motivos momentâneos, permanentes ou conjunturais, se unem por interesses comuns; unidos
pela mesma igualdade advinda da adversidade que a todos é comum. A força individual pouco
representa. Mas a soma de pequenas forças forma potência. Logo, como excluídos, formam um
corpo social novo, contrapondo-se ao corpo social daqueles que se estão em situação de
privilégio estratégico na estrutura social formada no decorrer da história e de acordo com a
direção dada às forças de poder transformador que foram dominadas pelas classes de liderança
política. O poder hegemônico exercido pelas potestades ilegítimas produz exclusões, mas as
exclusões produzem condições para o surgimento de massas organizadas, com aptidão para atuar
como contrapoder, para assim produzir transformações inversas, que renovam, modificam, criem
ou extinguem as instituições fetichizadas.
As forças individuais e minguadas dos fracos, dos excluídos, são como
pequenas frações de capital. Logo, Será pela coesão do grupo que deixarão de ser fraqueza
individual, para constituírem-se potência coletiva e possibilidade transformadora, até mesmo
como instituição vigorosa e criadora de poder constituído novo, a depender da qualidade e
extensão da coesão.
O exercício do poder é a Política.
2.2 - O Direito
Posto que o cerne deste trabalho reporta-se em seu título a “direito”,
ainda que delimitando o campo ao “Direito Social de Moradia” e subsunção a uma perspectiva
de inclusão social, não se pode deixar de fazer uma rápida incursão ao domínio teórico para
melhor situar em que aspecto se está a falar, se sobre “direito” ou se sobre “O Direito”.
Afinal, sob o prisma semiológico “direito” tanto pode significar um
simples crédito que determinado titular ostenta em face de um devedor dentro de uma relação
jurídica, quanto pode ter o significado que lhe foi atribuído por Kelsen ao advertir que a Teoria
Pura do Direito – sob o prisma da Ciência Jurídica – não dirige olhares para as normas jurídicas
enquanto manifestação de consciência, nem para a vontade ou a apresentação das normas
jurídicas, como estruturas qualitativas voluntárias ou involuntárias. Para o mestre e sua teoria só
concebe alguns fatos enquanto contiverem normas jurídicas, isto é, através de determinadas
normas jurídicas. Seu objeto é o da legalidade específica de uma esfera de significado
desideologizado.2
2
KELSEN, Hans, versão condensada pelo autor e traduzida por CRETELLA JR., J. e CRETELLA, Agnes. Teoria
Pura do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009, p. 76.
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Mas o Direito, visto como instrumento apto a produzir transformações
emancipadoras, não é tão somente aquele resultante de uma concepção científica, que o reduz à
simples legalidade específica de uma esfera de significado, tal como anuncia o positivismo
kelseniano. Por certo os méritos do mestre não se abalam pelo reducionismo que encerra.
O jurista do século XXI tem um tributo a pagar pela Teoria Pura do
Direito naquilo em que consistiu paradigma, rompendo com concepções jurídicas que se
formaram desde a mais remota antiguidade na herança deixada pelos egípcios, hebreus, fenícios
e gregos. Fala-se de concepções forjadas em ambiente influenciado pelo conhecimento científico
mais limitado da ocasião e pelos fatores históricos que caracterizaram o período romano
(752/754 a.C. – até 1.142 d.C), pelas concepções construídas no período medieval, desde o
século V e que se estenderam até 1.807. Trata-se de um largo especo histórico no qual o Direito
foi tomado por uma dimensão ainda primitiva, marcado pelas suas fórmulas mágicas pelas quais
o reconhecimento da existência de direito subjetivo passava pelo pronunciamento de fórmulas
secretas que haveriam de ser reconhecidas por quem com elas lidava. Some-se a freqüente
ausência de leis escritas, a subjetividade com a qual o poder político aprisionava o Direito para
exercê-lo (como ainda hoje) como instrumento de dominação, pelos modelos ou fórmulas
secretas que passadas de pais para filhos nobres e, com as quais se exerciam monopólio de poder
e dominação, as influências praxistas e as procedimentalistas que perpassaram os séculos e
chegaram a 1.868, quando o Direito Material e o Direito Processual são finalmente separados
cientificamente pela doutrina de Oskar von Bülow.
Não existem coincidências inocentes na história do Direito e suas
relações com o poder monopolizante, nem com a Ciência, se tudo é posto adequadamente no
tabuleiro do jogo político.
Logo, para Kelsen, se já não se podia mais conformar-se com o Direito
visto sob concepções primitivas. Eera necessário dar-lhe tratamento científico, como a todos os
demais ramos do conhecimento humano, na mesma medida proporcionalidade contemporânea
com a qual se reproduziam os experimentos e descobrimentos.
A tentativa kelseniana foi a de obter resolução de todos os dualismos
jurídicos - a partir de um princípio monista - mediante o qual se pretendia libertar o
conhecimento jurídico de noções ou derivações que falessem da existência de uma
normatividade meta-jurídica inscrita no sistema da natureza e à qual o Direito e o Estado devem
submeter-se, como sua condição de legitimação ética.
Mas, dessa forma, o Direito visto sob essa perspectiva monista fica
reduzido a uma simples estrutura normativa, onde todos os problemas devem ser colocados e
resolvidos como questões normativas, ao gosto dos adeptos às soluções jurídicas mecânicas.
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Nessa perspectiva, a ordem jurídica, como instância única de compreensão e referência, deve
resolver, diluir e, portanto, superar todos os dualismos e falsas oposições.3
O positivismo reducionista de Kelsen a respeito do Direito parece ter
escapado aos objetivos da Teoria Pura do Direito, para impregnar a prática jurídica de um
pragmatismo forjado em concepções mecânicas que em nada compreendem a dimensão humana
na sua vasta riqueza. Obviamente que o mais vivaz legislador, ou corpo de juristas, pautados na
experiência milenar e integral da humanidade, não seriam bastante previdentes para contemplar
na norma todas as possibilidades jurídicas que o gênero humano é capaz de produzir ou nelas se
envolver. Nem todos os deuses do Olimpo, com os mais modernos recursos da Informática ou
das Ciências Sociais, em esforço combinado, seriam capazes de tamanha façanha.
E mesmo que a utopia de um sistema normativo completo e perfeito
fosse alcançada, não é de se olvidar que somente leis boas bastam. É necessário considerar que
não são as leis que governam o homem, mas sim o homem que governa fazendo para esse fim o
uso de leis. Logo, a vontade abstrata da lei – na sua plasticidade ideológica – acaba rendida à
vontade concreta do homem.
Na análise filosófica empreendida por Pierre Bourdieu ao tratar da força
do direito, propõe o autor que o Direito e seu formalismo constitui vigoroso instrumento a
serviço de interesses dominantes.4 Para o mesmo autor, contudo, é possível romper com esse
estado de coisas a partir de práticas jurídicas fundadas em um discurso novo.5 Se então o Direito
3
WARAT, Luiz Alberto. A Pureza do Poder. Florianópolis, UFSC. 1983 pp 101 e 102.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand. 2010, p. 209 “Uma ciência rigorosa do direito
distingue-se daquilo a que se chama geralmente “a ciência jurídica” pela razão de tomar esta última como objecto.
Ao fazê-lo, ela evita, desde logo, a alternativa que domina o debate científico a respeito do direito, a do formalismo,
que afirma a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, que concebe
o direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos dominantes. A “ciência jurídica tal como a concebem os
juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do
desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e
autónomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua “dinâmica interna”. A reivindicação da
autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídica afirma-se na constituição em teoria de um modo de
pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do
direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de
doutrinas e de regras complementares independentes dos constrangimentos e pressões sociais, tendo nele mesmo o
seu próprio fundamento.”
4
BOURDIEU, ob. cit., p. 211. “Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se
cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonista, internalistas e
externalistas, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em
relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da
violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força
física. As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica
específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específica que lhe conferem a sua
estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm
5
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foi utilizado como instrumento a serviço de interesses de dominação, pode também tomar o rumo
inverso, para servir à libertação e à emancipação, de acordo com a vontade política que o tem
sob seu domínio.
Certamente que o poder do discurso jurídico é até mesmo capaz de criar
mundos artificiais, especialmente quando, no seu domínio dialético, é fortalecido por elementos
de retórica. Nesse rumo não se olvida que ainda há o monopólio do Direito em mãos de um
corpo de especialistas que, aprisionando em si o conhecimento jurídico, estão autorizados com
exclusividade pelo próprio direito-norma a dizer o seu sentido prático. Desse modo exclui das
discussões e construções simbólicas os profanos, aliás até mesmo põe estes submissos ao
domínio cultural dos eruditos, circunstância que faz ainda mais vigoroso o discurso jurídico.
Esse vigor é capaz de produzir transformações no mundo social. Some-se que o Direito enquanto Ciência - se submete ao domínio das técnicas de conhecimento, não se esquecendo de
que o conhecimento também constitui forma de dominação.
O conhecimento que faz compreender o poder por dissecação e
entendimento de sua dinâmica produz a simbiose pela qual o próprio poder condensado em mãos
que quem o compreende outorga ao detentor o respectivo exercício, exercício que atrai novos
poderes, que somente se limitam diante de outros poderes maiores com os quais venha se
confrontar na luta pela conquista dos espaços políticos. A sociedade é, assim, um campo de
complexas relações de poder, que se aglutinam; que se confrontam; que se intercalam; que
migram; que se fortalecem em determinados redutos à custa do outros que perecem na
antropofagia das lutas sociais. Em geral, os mais fortes sagram-se vencedores, arrebatando para
si as armas e o poder que antes estavam sob o domínio do adversário vencido. Pouco ou nada
restará aos vencidos e despojados, conforme atesta a História nos incontáveis assentos das
rivalidades humanas.
O Direito posto assim em um contexto social e histórico não escapou ao
conhecimento e ao domínio das castas culturais e sociais. Logo, é de se dedicar razão a Bourdieu
ao afirmar que “O direito é, sem dúvida, forma por excelência do poder simbólico de nomeação
que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere estas realidades surgidas das
suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é
capaz de conferir a instituições históricas.”(ob. cit. p. 237).
O modo pelo qual esse exercício de poder simbólico se dá não é
perceptível por observações diretas. Está-se, pois, diante de poder transformador que atua de
modo dissimulado, oblíquo, indireto, mas é real. Não se deixa expor claramente, não dá a sua
face mais verdadeira, não se deixa ver senão pelo olhar de quem apreende o sutil e ao mesmo
lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos
possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.”
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tempo também é capaz de desmistificar o complexo ambiente onde se dá a sua dinâmica. Está
em toda parte e em parte alguma e é preciso reconhecê-lo na sua aparente invisibilidade.6 7
A advertência que o autor faz não é desmerecida apenas porque deixou
de considerar que o Direito, em si mesmo, é estático e, nessa estática, não produz transformação
alguma senão quando, como instrumento de poder apto a produzir transformações, é
efetivamente utilizado por um ato de vontade humana, conscientemente dirigida a uma finalidade
racionalizada. Assim o vesgo da dominação simbólica não está propriamente no Direito, mas nas
condutas humanas, degeneradas ou fetichizadas.
Em seu estado estático o Direito abriga em enorme potencial
transformador do mundo social, sem, no entanto, dispor de mecanismos muito rigorosos de
controle ético quanto aos seus propósitos, sublimes ou não. Do mesmo modo que a atividade
acadêmica não tem meios de controle sobre o sentido ético que se dá à atuação concreta dos
mecanismos de transformação regidos pelo Direito, o próprio Direito não tem freios capazes de
suprimir deficiências de caráter dos agentes autorizados a manejá-lo, para conservar seus
resultados na linearidade intangível do bem comum que se possa desejar de um coração puro.
BOURDIEU, ob. cit. pp. 7 e 8) “... num estado do campo em que se vê o poder por toda parte, como em outros
tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que –
sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está em toda parte e
em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente
ignorado, portando, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não o querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”
6
BOURDIEU, ob cit. pp. 14 e 15. “O poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é
obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido,
quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em
forma de uma “illocutionary force”, mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que
exercem o poder e os que lhes estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se
reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, o poder de manter a ordem ou de a
subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da
competência das palavras.” (...) “O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer,
irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder: só se pode passar para além da alternativa
dos modelos energéticos que descrevem as relações sociais como relações de força e dos modelos cibernéticos que
fazem delas relações de comunicação, na condição de se descreverem as leis de transformação que regem a
transmutação das diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em especial, o trabalho de dissimulação e de
transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força
fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objectivamente e transformando-as assim em poder
simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia.”
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De fato, o Direito, ou melhor, o domínio do conhecimento científico a
respeito do que é o Direito, efetivamente serviu e serve como instrumento de injusta dominação
social, sobretudo em âmbito onde reinam as castas dominantes. Porém, como dito, tal fenômeno
se dá em razão de desvios éticos, mas não necessariamente por efeito das instituições jurídicas
guiadas pelo caráter dos homens.
Argumento para dar lastro à respeitosa dissidência que ora se lança
reside no fato de que o mesmo Direito a quem se atribuiu a pecha fetichista, pelos seus mesmos
mecanismos de força, também pode ser visto como instrumento de libertação e de emancipação
social, como a mesma eficiência. Ou então se está a falar sob o reino da ideologia e suas
tendências.
Aliás, é essa a vertente que se dá às proposições encetadas neste
trabalho, buscando fazer do Direito - enquanto Ciência - instrumento de transformação social
visando outorgar ao contingente dos excluídos, dos hipossuficientes, dos que se encontram fora
da mesa de repartição da riqueza coletiva, ao menos o resgate da dignidade da pessoa humana,
dimensão da vida e razão de existência.
Por isso o Direito deve ser compreendido em um sentido hermenêutico
que o ponha a serviço da felicidade humana; em um sentido prátioco que o afaste das intenções
dos juristas degenerados, fugindo, quando necessário, ao sentido mecânico com o qual o
positivismo o moldurou por uma concepção que se acha descontextualizada com as
complexidades sociais do Século XXI. É necessário o trabalho hermenêutico que leve à redução
constante das desigualdades sociais, econômicas e culturais que os ideais liberais produziram ao
longo da história. Afinal, o Direito é essencialmente dialético e, nessa dialética também se
constrói o mundo social segundo os valores advindos do poder de nomeação moldado pelo
domínio jurídico. O Direito - na sua dimensão ética – é, também, valor que se estabelece pelo
consenso humano, produzindo assim o formato que se quer dar ao mundo social.
O Direito, enquanto instituição, somente se mantém se for capaz de ser
reconhecido pelos homens como ferramenta útil à felicidade geral. Daí porque reclama uma
compreensão hermenêutica que o ponha a serviço do bem comum, especialmente quando grupos
humanos se apresentam como andarilhos desgarrados dos benefícios coletivos gerados nos
domínios da economia, ou de algum modo triturados pela complexa dinâmica social,
marginalizados pelos fenômenos culturais, ou vitimados de algum modo pelas condições de
violência estrutural, ensejando com isso a atuação afirmativa do Direito visando promover justas
e necessárias emancipações. 8
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense. 2006, pp. 57 e 58 “Vimos que as ideologias
refletem certas características do Direito, embora deformadas, porque tendem a polarizar-se em torno de visões
unilaterais e redutoras. Os positivistas conservam a tendência a exergar todo o Direito na ordem social estabelecida
por classe e grupos dominantes, diretamente (com suas normas costumeiras) ou através das leis do Estado. Os
8
13
Em seguida o mesmo autor faz uma aproximar simbiótica entre o Direito
à Sociologia: “Aplicando-se ao Direito uma abordagem sociológica será então possível
esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a
sua peculiaridade distintiva, a sua “essência” verdadeira.” (ob. cit., p. 61)
2.3 – A Política.
Sob o aspecto político era de se esperar que o poder que emana do povo
fosse exercido em seu benefício, como assim está assentada a base do constitucionalismo
moderno. Afinal, a política somente deveria contemplar a nobreza do seu exercício, pois que ao
político justo e forjado em valores éticos mais profundos cumpre o dever e a habilidade de
propiciar o máximo de resultados com o mínimo de recursos, i. é, potencializar ao extremo os
benefícios que poderão ser alcançados com a utilização racional dos recursos disponíveis, a bem
do interesse comum. Também deve velar para de inibir a produção de novos excluídos,
evidências claras da construção de um sistema democrático verdadeiramente plural.
Mas o gênero humano, diante da sua freqüente falibilidade ética, diante
da possibilidade de captura do poder, torna-se presa fácil do fetichismo que o leva à corromperse, a desviar o rumo do exercício do poder que haveria de ser em prol do bem comum, e o dirige
aos interesses privados. Eis, pois, donde reside inspiração para toda a maldade humana, que
tantas desigualdades se impuseram aos indivíduos humanos: as relações de poder, mas de poder
fetichizado no exercício de atividade política degenerada.9
jusnaturalistas insistem na necessidade de um critério de avaliação dessas mesmas normas, para medir-lhes a
“Justiça” (isto é, a legitimidade da origem e conteúdo); entretanto, não conseguem determinar satisfatoriamente o
padrão da medida.
Vimos, em seguida, que só um fôlego dialético poderia superar a oposição assim
criada, entre o direito positivo castrador e o direito natural, que muitas vezes se limita a legitimar a ordem posta e
imposta, por falta de um real e autêntico estalão crítico. A antítese ideológica (direito positivo-direito natural) só se
dissolverá, como acentuamos, quando for buscando, no processo histórico-social, aquele estalão. Mas isso não
importa em identificar, simplesmente, Direito e processo histórico e, sim, procurar nesse o aspecto peculiar da práxis
jurídica, como algo que surge na vida social e fora dela não tem qualquer fundamento ou sentido.
Em síntese, colhemos na abordagem das ideologias certo material preliminar, que
agora cumpre rever, sem distorções e entrosado na totalidade do movimento, onde se manifesta a procurada
“essência” do fenômeno jurídico.”
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro, NAU Editora. 1999, pp. 49 e 50. “E esta
forma de poder-saber, que Dumézil, em seus estudos sobre as três funções, isolou, ao mostrar que a primeira função,
a do poder político, era a de um poder político mágico e religioso. O saber dos deuses, o saber da ação que se pode
exercer sobre os deuses ou sobre nós, todo esse saber mágico-religioso está presente na função política.” (g. n.)
9
14
A Política não é boa nem má, por si mesma. Mas pode ser dirigida para
o bem ou para o mal, ao mesmo modo que se passa com toda espécie de poder ou com o Direito,
consoante a habilidade e vontade de quem os manobram. A Política, como um dos saberes
humanos, é fonte e instrumento para o exercício de poder, como se pode perceber até mesmo nas
sínteses da tragédia grega ao relatar a queda de Édipo-rei.10
Some-se que a política, vista como ciência, e sob o ponto de vista ético,
também é estática e, enquanto tal, não tem dinâmica alguma que lhe dê força concreta e a retire
de um estado de neutralidade letárgica, na medida em que depende de uma vontade humana,
determinada e consciente, que lhe dê impulso e direção. Sem tal impulso, a política é uma mera
potencialidade latente.
Mas a combinação de poderes no reino da Política é capaz de produzir
vigorosas transformações, transformações que ao depois se consolidam pelo manto da
legitimação jurídica, se assim o quiser o político em cujas mãos estão as forças de moculação,
para o bem ou para o mal.
Somente não é de se esperar que a política se faça unicamente pelas
mãos, pelas ações ou determinações do político formal que está na direção do corpo coletivo.
Diante do distanciamento do poder político fetichizado, o conjunto dos excluídos que Enrique
Dussel denomina hiperpotentia 11, i. é, “o poder do povo, a soberania e a autoridade do povo”,
não se desprezando que para o mesmo autor ao atribuir conceituação sociológica de “povo”, o
põe com sentido que descreve os agrupamentos de excluídos, mas excluídos em “estado de
rebelião”. A coesão dos agentes de poder fragmentado forma poder novo, que irrompe rebelde
em face do poder dominante fetichizado, a este se opondo ou constrangendo como contrapoder
hiperpotencial, com força emancipadora proporcional à extensão quantitativa e qualitativa da
coesão do grupo insurgente.
Assim, o coro dos excluídos também é força, também é poder e, como
poder de fato, também é capaz de produzir transformações. A exemplo de um cabo-de-guerra
que a ele aglutinam as forças individuais, essas forças individuais que em si mesmas são um
nada, ou numa valoração mais generosa um quase-nada, somadas e, por isso, concentradas e
direcionadas a um rumo determinado, formam instrumento de transformação. Logo, formam
poder, e poder com aptidão e força suficiente para contrapor-se ao exercício fetichizado de poder
de dominação injusta do qual eram vítimas. Essa hiperpotencialiadade momentânea, perene ou
FOUCAULT, ob. cit. p. 46. “Este personagem do tirano não é só caracterizado pelo poder como também por um
certo saber. O tirano grego não era simplesmente o que tomava o poder. Era aquele que tomava o poder porque
detinha ou fazia valer o fato de deter um certo saber superior em eficácia ao dos outros. Este é o precisamente o caso
de Édipo. Édipo é aquele que conseguiu resolver por seu pensamento, por seu saber, o famoso enigma da esfinge. E
assim como Sólon pode dar, efetivamente, a Atenas leis justas, assim como Sólon pode reerguer a cidade porque era
sábio, assim também Édipo pode resolver o enigma da esfinge, porque era sábio.” (g. n.)
10
11
DUSSEL, Enrique, traduzido por RODRIGUES, Rodrigo. 20 Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular.
2007, p. 100.
15
circunstancial, formal ou não, contradirecionada à força opressora em face da qual se insurge,
também é capaz de produzir transformações emancipadoras.
A hiperpotencialidade pode evoluir e tornar-se formal ou não. Sendo
formal, subentende-se que já venceu o período da informalidade por meio de processo
democrático legítimo, produzindo ou replicando a partir daí outros ideais igualmente
democráticos, até mesmo para redemocratizar as instituições. Mas, mesmo sendo informal,
também pode transformar e redemocratizar a instituição fetichizada, restaurando-lhe a
legitimidade perdida pela aceitação social decorrente da própria reforma institucional que
empreenda.
Por isso um “estado de rebelião” ou mesmo movimentos de
“desobediência civil” não podem ser vistos aprioristicamente como em estado de ilegalidade; de
ilegalidade vista e concebida segundo concepções jurídicas embaladas por pensamentos
positivistas clássicos, ou por discursos ideológicos que primam pela conservação do estado de
dominação contra o qual se insurgem os descontentes. Por detrás de movimentos sociais,
sobretudo empreendidos pelas extensas massas de excluídos, podem se esconder verdadeiras
razões e fundamentos cuja essência é profundamente democrática, perceptível pela oitiva do
grito dos excluídos que anseiam por maior ou alguma participação na vida do Estado.
Exemplo claro desse contexto para o qual se destinam as reflexões até
então postas é o que se dá desde tempos remotos da vigência de políticas essencialmente
fetichizadas; de longos períodos despóticos ou fundadas nas ideologias liberais ou neo-liberais,
que tanta pobreza e exclusão foi capaz de produzir ao redor dos centros urbanos brasileiros,
refletindo esse estado de pobreza geral na inacessibilidade de extensos contingentes
populacionais à fração da riqueza nacional que deveria lhes competir, restando assim, pelas
forças contingenciais, p. ex., ao estado de sub-moradias ou falta de moradias em que se
encontram.
A moradia - o acesso à moradia - não é luxo. É condição afirmativa da
dignidade da pessoa humana. Não se reporta aqui à moradia suntuosa, mas ao menos àquela cuja
construção, localização, instalações, serviços urbanos etc., autorizam a chamá-la de lar. A
dignidade da pessoa humana desafia a concretização de determinadas condições de possibilidade
de vida, que se inserem no conceito material dos direitos fundamentais do homem, conforme
amplamente esse aspecto da dimensão social tem sido contemplado nas constituições modernas
ao organizar o funcionamento dos estados democráticos de direito.
Contudo, as políticas liberais ou os desvios de poder somente
produziram habitações desumanas, desprovidas de segurança, de serviços públicos, sem estrutura
capaz de assegurar as mínimas condições de conforto, saúde, segurança, enfim, condições de
acesso aos benefícios públicos. São estados de pobreza e abandono que produzem habitações
erguidas sobre terrenos impróprios, inóspitos, insalubres ou ao alcance dos fenômenos climáticos
16
das inundações, enchentes, deslizamentos. São tragédias que embora tenham fundo natural,
encontram na desídia política a condição nodal, de perigo real, que vai consumindo centenas de
vítimas fatais todos os anos, nas mesmas localidades e ocasiões do calendário, não obstante tão
previsíveis no tempo e no espaço.
Mas a mesma força política que oprime – se for revertido o sentido de
sua força - traz consigo o viés da transformação oposta, para emancipar o oprimido. Garantindose o leme da política a políticos justos e honestos; comprometidos com o pluralismo dos
verdadeiros estados democráticos de direito; imbuídos de preparo suficiente para traçar
estratégias e táticas de aproveitamento eficiente de recursos públicos; dotados de capacidade de
liderança; despidos de vertigens solipsistas que os façam supor senhores da razão e da sabedoria;
dados ao diálogo e à crítica, por certo o quadro social, econômico e político evidenciaria
sensíveis melhoras a bem das próximas gerações e até mesmo das gerações mais antigas do
nosso meio.
Veja-se que, supondo o grito informal dos excluídos sem teto ou sob um
sub-teto, ouvidos pelo grupo dos políticos encarregados da construção do texto constitucional
hoje vigente, foi ouvida e em seguida foi sentida a justiça de reivindicações e clamores por
moradias, de modo que os ventos democráticos sopraram e inspiraram logo as primeiras
disposições constitucionais voltadas ao atendimento do que se denominam direitos sociais (art.
6º).12
O rol dos direitos sociais contemplados no dispositivo constitucional
referido é de natureza material e, seguramente, foram deferidos aos que, de algum modo, estão
marginalizados por não ter acesso aos referidos bens da vida em virtude de fenômenos sociais e
econômicos de privação. Afinal, aos abastados não há falta de acesso àqueles mesmos bens da
vida, pelo que assim quanto a eles somente são credores os que se acham em estado de
desamparo, enquanto vítimas injustas das exclusões produzidas por concepções liberais. O
fenômeno democrático atua, assim, para dissipar diferenças econômicas e sociais entre os
indivíduos que integram um mesmo sistema político, encontrando na lei meio para a equalização.
Entretanto, convém não esquecer que as leis não governam o mundo
social. O mundo social tem a sua dinâmica que assim faz governo sobre a ordem normativa a ser
estabelecida e renovada ao sabor das transformações sociais. A governança se dá pela ação
humana, a qual apenas toma a lei para servir à legitimação de sua vontade política.
Conclui-se, pois, que as forças transformadoras emanam das instituições
políticas, desejando-se que seus agentes exerçam a política com nobreza e altivez, de modo a
potencializar positivamente essa capacidade de transformação e assim moldar o mundo à sua
Constituição Federal do Brasil. Editora do Senado Federal. 2001. “São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição.”
12
17
volta segundo uma sua vontade de vida inclusiva e plural. Mas não só pelas instituições políticas
se darão as transformações do mundo social. Também a hiperpotecialidade dos excluídos e da
ação política que exercem sobre as instituições, igualmente se terá a afirmação do modo de
existir de todos os seres humanos.
3 – DIREITO OBJETIVO E DIREITO SUBJETIVO.
Já se disse que o objetivo deste trabalho tem foco no plano dos Direitos
Sociais de que fala o art. 6º da Constituição Federal, mais precisamente no Direito Social de
Moradia. Não pendem discussões a respeito da realidade jurídico-hermenêutica que rodeia tais
direitos, ao situá-los como direitos materiais criados pela ordem normativa, cuja materialização é
a tarefa que cabe ao jurista encarregado de coadunar o preceito com a realidade do mundo social
que o cerca.
Mas as complexas questões internas do mundo jurídico, suas interações
com a ordem econômica, social e política, também estão no palco onde se dá a realização
concreta do direito social de moradia em face de obstáculos ainda não inteiramente vencidos,
cuja conseqüência é a constatação de que milhões de famílias brasileiras permanecem morando
em locais ou condições impróprias, afetando gravemente o sentido da dignidade humana dessas
famílias, circunstâncias que assim faz necessária a investigação a respeito desses entraves à
realização de determinado ideal democrático reconhecido e consagrado no texto constitucional.
Portanto, é necessário ver o Direito não apenas como Ciência, mas como
norma criadora de direitos e obrigações, posto que todo direito criado tem - ligado-se ao seu
objeto - um credor e um correspondente devedor. Fala-se, pois, de um direito que tanto pode ser
objetivo, como subjetivo.
3.1 Direito objetivo.
O direito objetivo se identifica com uma determinada vantagem derivada
de uma prestação positiva ou negativa relacionadas às necessidades e possibilidades humanas.
Em geral as várias espécies de direitos objetivos significam vantagem ao seu titular e estão
consubstanciados e garantidos em títulos legais ou convencionais, como os que se reportam à
liberdade de ir e vir, à livre manifestação do pensamento, ao exercício da cidadania, à aquisição
de bens etc. A disposição normativa que o cria também fixa os limites, condições ou requisitos
para a respectiva fruição. Logo, direito objetivo é o que se descortina por meio do exame do
plano normativo que o Estado estabelece, estando, pois, fora dos sujeitos de direito e por isso
tem conotação abstrata. Exemplo dessa espécie é, o que a Constituição Federal proclama em seu
art. 6º, ao referir-se aos direitos sociais.
18
3.2 Direito subjetivo.
Porém, quando se examina a situação individual de modo a perquirir
sobre os requisitos necessários à fruição desses direitos objetivos, está-se a falar sobre o domínio
dogmático do direito subjetivo, i. é, das condições ou exigências normativas para o exercício
daquele. Trata-se de aspectos do direito que estão na esfera individual, pelo que tem concretude
ante uma faculdade que o seu titular tem para exercê-lo. Nesse viés, o direito social de moradia
será aquele que se reconhecer no plano concreto em favor de uma pessoa ou grupo de pessoas
segundo as suas condições pessoais e a previsão normativa. Vê-se, pois, que há diferença sutil
entre direito objetivo e direito subjetivo, não obstante a norma referir-se a um compartimento
especial do ordenamento jurídico, sem prever objetivamente o beneficiário da norma. Assim,
este se apresenta perante a norma com a sua situação individual, i. é, com a sua subjetividade,
para reclamar direito determinado em um título legal.
Estas considerações serão úteis, ao tratar de questões relacionadas à
realização (ou frustração) dos direitos sociais em geral, em especial ao direito social de moradia,
na medida em que persistem os milhões de brasileiros que ainda padecem da falta de moradia
digna que os acolha e, nessa acolhida, lhes outorgue um mínimo de cidadania.
Enquanto subjetivo, o direito será visto incrustado em uma relação
jurídica de polaridade, unindo o credor e respectivo devedor, de tal modo que ao primeiro se
reconhece determinada vantagem patrimonial de cunho material ou imaterial, enquanto ao
segundo subsiste a obrigação de satisfação ao interesse do primeiro. O estabelecimento de
direitos e obrigações individuais ou coletivas assim o será pela força da lei. Também poderá sê-la
pelo contrato, mas somente porque nesse particular a lei permite ou regula. Sejam os direitos de
índole legal, contratual ou mista, visam o bem comum, cumpre ao Estado as condições que
permitam a interatividade da vida social.
3.3 Credor e devedor do direito social de moradia.
No que toca ao fenômeno da exclusão por falta de moradia, razões
sociais, políticas, culturais e econômicas históricas levaram ao reconhecimento de verdadeira
dívida social a ser resgatada, motivo pelo qual se reconheceu em âmbito de discussão
democrática não só a dívida, mas também a sua garantia de solvência.
Criou-se, então, o que se denomina Direito Social de Moradia, conforme
previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988.
19
Obviamente que todas as dívidas sociais reconhecidas não serão
prontamente resgatas por inteiro, mas deverão sê-las mediante o uso racional dos recursos
disponíveis e na medida com a qual se extingam em breve ou razoável tempo.
Relaciona-as a Constituição Federal (art. 6º), mas do respectivo rol elege
apenas o direito social de moradia, como alhures se advertia, para que sirva ao objeto dos nossos
estudos e proposições. Quanto a este, por óbvio constituem-se credores todos aqueles que, na
condição de excluídos, marginalizados ou que de algum modo se acham em estado de desamparo
(ou perigo de vida em sentido amplo) com aptidão para afetar a dignidade humana, pelo que
assim a estes assistirá o direito de receber o bem da vida que se criou e garantiu por meio de
preceito constitucional: moradia aos desamparados, cujo custo será rateado entre todos os
membros da comunidade, segundo a capacidade contributiva proporcional determinada pela
ordem tributária estabelecida.
Toda obrigação criada e eficaz pressupõe indicação, no seu nascedouro,
do responsável pela satisfação da mesma obrigação, na mesma extensão e qualidade do crédito
constituído.
Com efeito, se a moradia como direito social decorre do acertamento
político-constitucional voltado ao resgate de dívidas sociais antigas, a responsabilidade pelo
adimplemento recai sobre a própria sociedade, personificada na ficção que se denomina Estado.
Logo, se são credores os excluídos ou marginalizados em estado de desamparo, ao cumprimento
da obrigação de outorgar moradia, ou condições de moradia, como devedor dessa obrigação
somente se encaixa o Estado.
Em regra, as obrigações são constituídas para que também sejam
cumpridas, donde que o descumprimento dá ensejo a que o credor busque a realização
compulsória do seu interesse insatisfeito, valendo-se da via e garantia jurisdicional, eis que a
tripartição dos poderes reservou ao Poder Judiciário a competência para processar, julgar e
executar suas sentenças em face das lides que lhe forem apresentadas, fundadas em lesão ou
ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV).
3.4 – A divisão dos poderes e o adimplemento nos direitos sociais.
O sistema constitucional brasileiro adota não só a divisão dos poderes,
mas também preconiza que funcionarão de modo independente e harmônico.13 Não fosse essa
SILVA, José Afonso da . Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 2005, p.109. “A
divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) a especialização funcional, significando que cada
órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembléias (Congresso, Câmaras, Parlamento) se
atribui a função Legislativa; ao Executivo, a função executiva; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b)
independência orgânica, significando que, além de especialização funcional, é necessário que cada órgão seja
13
20
separação “... a acumulação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário nas mãos de um só
indivíduo, onde uma só corporação seja por efeito de conquista ou eleição, constitui
necessariamente a tirania.”14
Não obstante o princípio da separação dos poderes não seja teoricamente
tão rígido quanto o foi ao tempo de sua formulação desde Aristóteles, John Locke, Russeau ou
Mostesquieu, a harmonia com a qual o exercício independente deve pautar-se exige que os
Poderes se relacionem, quando necessário produzir ações políticas conjugadas.15
Com efeito, em determinados nichos dos poderes e competências
estatais, certos direitos coletivos mais complexos, constituídos sob perspectivas positivistas ou
não, encontram lacunas sistêmicas no que diz respeito à realização concreta do seu objeto em
proveito das massas credoras. Exemplos disso estão nos denominados Direitos Sociais,
albergados no art. 6º da Constituição Federal, quando a respectiva realização concreta não é
inteiramente alcançada no âmbito da competência de um ou de outro Poder isoladamente.
Tomando-se em conta o Direito Social de Moradia, por certo são
necessárias soluções construídas no âmbito da competência do Poder Judiciário naquilo que toca
ao acertamento jurídico objetivo e subjetivo dos terrenos que abrigarão assentamentos urbanos,
frequentemente conturbados por disputas fundiárias complexas ao exigirem as soluções técnicojurisdicionais correspondentes e, mais ainda, se depuradas e resolvidas estas, no instante em que
se produzir a respectiva execução do que se reconheceu como direito individual ou coletivo,
novos enigmas se apresentarão para causar desânimo ao jurista.
A consubstanciação do direito social de moradia a uma determinada
comunidade urbana reclama soluções que estão afetas – na divisão dos poderes – ao Poder
Judiciário, naquilo que perpassa o campo jurídico da questão. Mas, a concretização definitiva
desse mesmo direito também depende de ações estatais cuja competência é exclusiva do Poder
Executivo, p. ex., quando imprescindível a elaboração e aprovação de estudos técnicos ou
projetos urbanísticos; a implantação de serviços públicos básicos como saneamento,
pavimentação, redes elétricas, hidráulica e telefônica, segurança pública, transportes e vias de
acesso ou circulação, lazer, educação, saúde. São ações que não estão à mercê ou sob a
especialização funcional que domina a atividade jurisdicional, não apenas por se tratar de
efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação. Trata-se, pois, como se vê,
de uma forma de organização jurídica das manifestações do Poder.”
14
MADISON, James. O Federalista. São Paulo: Abril. 1973, p. 130.
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 109. “Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A
ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação dos poderes e novas
formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se
prefere falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da
confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da
independência orgânica e harmonia dos poderes.”
15
21
questões inerentes ao âmbito de especialização de cada poder, mas também quando repercute na
gestão orçamentária. Portanto, é necessário que em face dos efeitos jurídicos da sentença,
também operem, simultaneamente, efeitos materiais de atos administrativos específicos que se
sincronizem com o objeto e com o tempo da solução jurisdicional, sem o que, por falta de
combinação dessas ações estatais, a dinâmica das relações intersubjetivas do lugar põe a perder o
trabalho de um ou outro Poder, por falta de coordenação material e temporal.
Logo, porquanto não se inclui na competência funcional do Poder
Judiciário lidar com questões técnico-administrativas não jurisdicionais, nem tem acesso à
gestão orçamentária, a realização desses direitos sociais complexos fica no descrédito das
sentenças que, no respectivo âmbito de eficácia, não são o bastante para produzir o resgate da
cidadania por falta de mecanismos integrais que façam realizados esses direitos sociais na sua
mais ampla concretude.
Tal situação ainda se agrava quando, por força do formalismo
processual, as sentenças haverão de obedecer aos limites objetivos e subjetivos das demandas
postas a julgamento. Quanto aos primeiros, a composição jurisdicional deverá ser obediente à
extensão e qualidade do que se pôs a julgamento, posto que é defeso ao juiz proferir sentenças
além, aquém ou fora do que foi pedido (CPC, art. 460). E quanto aos derradeiros limites, i. é, aos
limites subjetivos, adverte o art. 472 da lei processual que a sentença faz coisa julgada às partes
entre as quais é dada, não prejudicando nem beneficiando terceiros. Esse aspecto formal tem
efeitos negativos freqüentes nas situações nas quais o Estado não é parte na relação processual
onde serão resolvidos os direitos de ocupação ou propriedade urbana em que se assentam
informalmente as multidões credoras do direito social de moradia.
Não bastassem esses entraves de natureza formal, outros ainda se
distinguem quando se reportam aos aspectos de legitimidade processual ativa e passiva, ao se
referirem à qualidade da parte que pede e da parte que responde ao pedido, em face de um
provimento jurisdicional complexo, que pode ir desde o acertamento registral e fundiário de
terrenos, até a realização de empreendimentos de urbanização e seus reflexos em orçamento
público.
Obviamente que tão somente pelos limitados atos do juiz, que somente
poderá proferir despachos, decisões interlocutórias e sentenças, não será possível equacionar os
complexos meandros jurídicos em que se entremeiam aspectos jurídicos inerentes à situação
fundiária de terrenos urbanos com ocupação informal, menos ainda quando envolvem restrições
formalistas naquilo que impõem limitações objetivas e subjetivas ao conteúdo da decisão que lhe
compete.
A divisão dos poderes, atribuindo-se os respectivos campos de atuação
estatal a agentes políticos com função especializada e diversa, ao tempo em que enaltece
elevadas garantias democráticas, também cria embaraços à realização de determinados objetivos
22
igualmente democráticos, como se dá na outorga de direitos sociais. E esses entraves estruturais
do Estado ainda se agravam diante do sistema processual, na medida em que não contempla
instrumento formal que possa reunir todos os personagens interessados, credores ou devedores
de direitos sociais, em um espaço processual único, que a todos acolha ativa ou passivamente
como partícipes na construção de soluções unificadas, mas com repercussão em campos diversos
das competências estatais.
Não é objetivo deste trabalho, no presente instante, indicar soluções ou
ideias para equacionar ou mitigar o problema. Espera-se que isso possa ser feito com algum êxito
na segunda parte de um projeto que venha a ser concluído no futuro. No instante, somente se traz
à colação tal situação tão apenas para situá-la como um dos fatores que emperram a realização de
direitos sociais já constituídos com o texto constitucional, mas que ainda semeiam nos horizontes
do Direito muitos desafios a serem vencidos antes que esses ideais sejam definitivamente
convolados em concretudes.
4 – IDEOLOGIA E DIREITO
Ousamos refletir sobre ideologia e Direito, partindo do pressuposto de
que são instituições que coexistem com considerável grau simbiótico.
Para Pierre Bourdieu as produções simbólicas constituem instrumento de
dominação e são exercidas por meio de estruturas bem estruturadas e estruturantes. Entre tais
estruturas estruturadas e estruturantes se insere o Direito. Fala-se do Direito enquanto instituição,
sem ocupar o referido autor com o sentido ou direção que lhe é dado pelas orientações
ideológicas daqueles agentes autorizados a manusear o conhecimento jurídico. Por isso o acusa
de ser instrumento de dominação, sem por conta no efeito de ideologização a que está
inexoravelmente sujeito.16
Não sem motivo, Kelsen buscou desideologizar o Direito.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand. 2010, pp. 239 e 239. “... sem dúvida, a forma
por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere
a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição
histórica é capaz de conferir a instituições históricas.” (p. 237) (...) “Se o poder criador da representação nunca se
manifesta tão claramente, em ciência, em arte ou em política, como nos períodos de crise revolucionária, e não é
menos verdade que a vontade de transformar o mundo transformando as palavras para o nomear, ao produzir novas
categorias de percepção e de apreciação e ao impor uma nova visão das divisões e distribuições, só tem
probabilidades de êxito se as profecias, evocações criadoras, forem também, pelo menos em parte, previsões bem
fundamentadas, descrições antecipadas: elas fazem advir aquilo que anunciam, novas práticas, novos costumes e,
sobretudo, novos grupos, porque elas anunciam aquilo que está em vias de advir, o que se anuncia; elas são mais
oficiais do registro civil do que parteiras da história. Ao concederem às realidades e às virtualidades históricas o
pleno reconhecimento que a proclamação profética encerra, oferecem-lhes, pelo efeito de licitação, e até mesmo de
consagração, associado à publicação e à oficialização, a possibilidade real de aceder à existência plena, quer dizer,
conhecida e reconhecida, oficial – por oposição à existência ignominiosa, bastarda, oficiosa.
16
23
Noutro trecho, dispara o mesmo autor contra o Direito, atribuindo-lhe a
responsabilidade pela universalização de práticas dominantes, que assim se valem da prática
jurídica, não como parteira da história, mas mais como oficial do registro civil, enquanto vai
legitimando os acontecimentos sociais ao seu redor, sem atuar comissivamente para reverter os
estados de injustiças sociais que permeiam a sociedade contemporânea desde as suas práticas
políticas mais antigas.17
Com efeito, por meio da universalização racional das práticas jurídicas
que assim servem como meio de dominação simbólica, se impõe a legitimidade de uma ordem
social moldada ao gosto dos que exercem essas mesmas forças de modelagem. Isto porque, não
se olvidando dos efeitos práticos que os discursos retóricos podem produzir, o Direito torna-se
dócil e sutil para justificações ideológicas dominantes, se este for o propósito de quem
monopoliza suas práticas.
Ao tentar purificar o Direito, querendo extrair dele uma síntese
exclusivamente científica, Kelsen procurou afastar as influências ideológicas com quais são
produzidas as nomeações do mundo social.18 Mas, até mesmo a tentativa de desideologizar o
BOURDIEU, Pierre. Ob. cit., p. 245. “O trabalho jurídico, assim inscrito na lógica da conservação, constitui um
dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbólica também por outra característica do seu
funcionamento: pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as decisões jurídicas e as regras
invocadas para as fundamentar ou as justificar, ele confere o selo da universalidade, factor por excelência da
eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo social que, como se viu, em nada de decisivo se opõe ao
ponto de vista dos dominantes. E, deste modo, ele pode conduzir à universalização prática, quer dizer, à
generalização das práticas, de um modo de acção e de expressão até então próprio de uma região do espaço
geográfico ou do espaço social.”
17
18
KELSEN, Hans, traduzido por CRETELLA JR., J. e CRETELLA, Agnes. Teoria Pura do Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2009, pp. 99 e 100. “Que se possa aceitar o direito – em relação à realidade natural – como
ideologia e, apesar disso, exigir-se uma Teoria Pura, isto é, livre de ideologias, não é, de maneira alguma, tão
contraditório quanto parece. Sem tomar em consideração o sentido múltiplo da palavra “ideologia” – que ora
significa o espírito em contraposição à natureza, ora uma representação que encobre e deforma a realidade – deve-se
atentar ao fato de que diferentes ideologias se superpõem, às vezes, umas às outras, e que dentro do âmbito das
ideologias é preciso distinguir entre várias camadas, tornando relativa a contraposição entre ideologia e realidade.
Se se considerar o direito positivo como ordenamento normativo em relação à realidade
do evento efetivo, nesse caso, de acordo com a pretensão do direito positivo, deve concordar com ele (embora nem
sempre concorde), podendo-se, então, qualificá-lo como “ideologia”. Se for considerado, porém, em relação a um
ordenamento “mais alto”, que tem a pretensão de que o direito positivo deve corresponder-lhe, talvez em relação ao
direito natural, para um ideal – de algum modo considerado – como justiça, nesse caso o direito positivo se
apresenta como “real”, como direito existente, e o direito natural ou justiça como ideologia.
A tendência antiideológica da Teoria Pura do Direito confirma que ela procura isolar o
direito positivo de qualquer tipo de ideologia da justiça naturalista.
24
Direito não deixa de ser, de certo modo, efeito de um modo particular de ver o mundo social,
senão por outra espécie de ideologia, aliás, foi essa vertente ideológica positivista que serviu a
tantas concepções totalitárias construídas em modelos políticos socialistas. Então, até mesmo
Kelsen agiu ideologicamente, querendo negar a ideologização do Direito.
Daí porque não parece impróprio desconsiderar os fenômenos que as
ideologias são capazes de produzir enquanto modulam os discursos jurídicos ao gosto e
propósitos eleitos na construção do mundo social.
A desideologização do Direito, simplesmente como método científico
para melhor compreendê-lo, tem lá suas verdades. Porém, isto não infirma a conclusão no
sentido de que o Direito - enquanto Ciência - é estático, é letárgico. Mas também é dotado de
força latente apta a produzir profundas transformações quando tomado em sua dimensão prática,
agindo, interagindo, regulando relações jurídicas ou resolvendo conflitos intersubjetivos
individuais ou coletivos.
Some-se a isso que Direito é também valor, valor que se constrói pelo
poder de nomeação que os juristas autorizados lhes concede ou concebe por formulações internas
ou externas ao Direito, estas derradeiras quando assimilam a necessidade de produzir conceitos
moldados de modo a contemplar valores científicos trabalhados na inter ou na
multidisciplinarieade dos ramos do conhecimento científico.19
A complexidade do mundo natural ou do mundo social e a variedade dos
conhecimentos humanos enquanto fragmentados ou compartimentados em caixas estanques –
mas que se interagem em um sistema orgânico – tudo somado às incertezas científicas a respeito
de objetos fenomenológicos, não dá possibilidades reais de compreensão e aplicação de soluções
preconizadas pelo Direito sob uma visão positivista, como a Teoria Pura do Direito procurou
(...)
A Teoria Pura do Direito é a teoria do positivismo jurídico. (ob. cit., pp. 99 e 100)
WARAT, Luis Alberto. A Pureza do Poder. Florianópolis; UFSC. 1983, p. 113. “As normas jurídicas, do ponto
de vista do processo produtivo das significações jurídicas, são um elemento anêmico. Inerte, que contém um sentido
que não constitui um elemento de condutibilidade de uma significação extra-normativa produzida. Sem dúvida, são
as práticas constituintes da materialidade institucional do Estado que emprestam parte do conteúdo significativo das
normas. Poder-se-ia dizer que se não se examina a materialidade institucional, pouco se sabe sobre o sentido das
normas. Para atualizar o sentido das normas, os juristas intuitivamente tomam em conta o complexo de instituições
estatais que funcionam como uma espécie de emissor institucional. Esta noção abstrata pretende indicar que a
produção dos sentidos normativos não se realiza de um único lugar (a partir de um só emissor) e que nenhum destes
lugares de emissão detém, por si só, o sentido, uma vez que há uma relação de solidariedade entre eles. São relações
que, por sua vez, encontram-se condicionadas pelos sentidos acrescentados à norma no ato de sua produção (ou em
sucessivas interpretações). Assim, reproduzindo a fala dos lingüistas, existiria uma dupla implicação (dos textos
legais e das práticas institucionais) na produção do sentido das normas.
A partir de tais colocações, inclino-me pela manutenção teórica de uma concepção dualista do Direito e do
Estado, mas aceito as críticas kelsenianas no ponto em que objetam os componentes jusnaturalistas e metafísicos
desta anti-tese. Certamente, creio que se pode manter o dualismo a partir de outra concepção teórica, como a
semiológica.”
19
25
sintetizar, ao menos em parte, certos aspectos do Direito. Kelsen pôde demonstrar certas
verdades que ainda são tomadas como paradigmas vigentes na compreensão do Direito enquanto
norma. Mas, obviamente, a teoria não pôde – e talvez nem teve a pretensão - de explicar o
Direito em toda a sua extensão fenomenológica, quando a latência anímica da norma sempre
dependerá, para ganhar vida e atuação concreta no mundo social, de uma formulação ideológica
de lhe dê valor. É, portanto, a crise teatral20 na qual o ator principal, o discurso jurídico, atrai a
luzes dos holofotes e reina absoluto nesse recinto, entoando o canto da sereia que atrai e devora,
ou os hinos de liberdade e emancipação.
Luis Alberto Warat, há bem pouco, nos privou do seu convívio pelo
modo mais absoluto. Mas, com generosidade, deixou um legado de teses que nos convidam a
perquirir sobre a obra de Kelsen e suas concepções, até mesmo mal compreendidas nos meios
jurídicos do nosso tempo. Em particular aspecto, enquanto Kelsen buscou afastar a ideologia da
compreensão do Direito, Warat fez o caminho inverso, ao considerar que o Direito e as
ideologias que o cercam convivem em ambiente simbiótico, donde que não se pode excluir um
para alcançar a plena compreensão do outro. Mas nesse campo não interagem apenas o Direito e
as ideologias que lhe dão forma, na medida em que o elemento político se interpõe nesse mesmo
campo e também lá produz seus efeitos particulares, efeitos estes que também têm, igualmente,
vigoroso e complexo pode de transformação.
Ao prefaciar Warat, Luiz Fernando Coelho lança valioso esclarecimento
quanto à interpretação do pensamento de Kelsen,21 para introduzir base de compreensão que ao
depois leva o leitor a perceber a importância que a Teoria Pura do Direito teve ou ainda tem na
formatação do mundo jurídico contemporâneo, nas suas estruturas e nas suas instituições. De sua
parte o autor prefaciado prega a necessidade de promoção de uma ruptura com os conceitos
racionais positivistas, abrindo-se o campo declarado para a atuação do discurso ideológico e
crítico, para assim reconstruir o conjunto das realidades contemporâneas em que se contemple os
valores extraídos da dogmática das demais Ciências Sociais.22
20
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1986, verbete: CRISE. “... 12. Teat. Complicação e agravamento da intriga, que leva a ação dramática a
uma catástrofe ou de conseqüência grave e decisiva; crise dramática.”
21
COELHO, Luiz Fernando, em prefácio a WARAT, Luis Alberto. A Pureza do Poder. Florianópolis: UFSC. 1983,
p. 14. “Mas não se trata, no estudo a seguir, de uma refutação do postulado kelseniano, nem mesmo de uma
teorização analítica dos pressupostos ideológicos da teoria pura; o objeto das reflexões de Warat não é obra de
Kelsen, mas a interpretação que dela faz o saber jurídico acumulado, cujos resultados operacionais não são de
neutralidade almejada pelo mestre, mas a legitimação ideológica da ordem social, pela legitimação da exigência de
neutralidade como condição do saber jurídico.”
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit., p. 23 “Entretanto, o divórcio progressivo entre os conceitos racionais e o campo
ideológico do discurso (o qual até então estava articulado), conduziram a uma ilusão oposta: a suposição de que,
além do discurso da “doxa”, os conceitos isolados de qualquer articulação ideológica ou metafísica podem, através
22
26
Não parece haver dúvidas de que a concepção positivista de Kelsen,
visando explicar o Direito sob o ponto de vista normativo e assim fechado e reducionista, foi, por
desaviso do jurista, elastecida como se pudesse ser aplicada a generalidades impossíveis em que
se situa toda a riqueza multifacetária do gênero humano; como se a Teoria Pura fosse uma larga
camisa de força que a tudo abarcasse. Essa compreensão equivocada e demasiadamente
extensiva serviu ao depois - nos convenientes, e até conscientes, e reiterados discursos legalistas
- a objetivos dissimulados com os quais se deu legitimação de relações injustas de poder,
justificadas apenas pela aparência cogente de seus enunciados, mesmo quando desvinculados das
realidades humanas explicadas segundo uma vertente científica social. Esses desencontros ou
desvalores vistos sob ângulos científicos que se estabelecem pelo prisma da
interdisciplinariedade dos ramos científicos, ao longo da história, produziram situações de
desigualdades extremas e freqüente em relação aos núcleos sociais dentro dos quais se
desenvolveram e oprimem.
Portanto, ainda que o positivismo kelseniano pretendesse apenas abrogar os enunciados herdados do período do Direito Formulário, mágico, místico ou quando
maculado de pura retórica, ou para rebater má-fé metodológica com a qual o Direito se
apresentava, também não logrou o próprio teórico afastar seu objeto das influências do discurso
jurídico ao lhe dar forma. Afinal, o Direito é essencialmente dialético e o seu poder de nomeação
poder de dominação - concebe o mudo exterior de acordo com os ideais de quem discursa e
assim constrói seu objeto conforme a sua visão de mundo. O Direito enquanto norma não é capaz
de compreender em seus enunciados todas as possibilidades que a riqueza do gênero humano é
capaz de produzir, sobretudo em suas infinitas combinações ou sub-combinações subjetivas. Daí
porque a norma será, para o Direito, apenas um minus, ou base sobre a qual se assentará a
nomeação ideal que o discurso jurídico é apto a produzir e assim completar as lacunas da
imprevisão normativa.
de um simples desdobramento de suas virtualidades lógicas, reconstruir o conjunto da realidade. Uma reconstrução
que, por sua vez, pressupõe a neutralidade no plano político e moral.
Se, ao nível da “doxa”, os conceitos aparecem articulados por princípios ideológicos externos à sua natureza lógica,
a filosofia racionalista transformou as propriedades lógicas nos únicos princípios vinculantes dos conceitos. Além
disso, tal filosofia postula o caráter sistemático destas relações e a possibilidade de reconstruir, através das mesmas,
um sistema tão amplo como o que caracterizou o discurso da “doxa”: o que é epistemologicamente impossível e
ideologicamente suspeito. Mas, em que radica esta impossibilidade espistemológica? A meu ver ela se refere à
noção objetiva adotada por Kelsen; ou seja, a noção de objetividade aceita por Kelsen promove uma idéia de
racionalidade inscrita no próprio real e, desta forma, qualquer trabalho teórico filiado a esta perspectiva, fica
reduzido a uma tarefa de redescobrimento das verdadeiras articulações do real. Por isto mesmo, o discurso crítico
adquire sua consciência, realizando um questionamento da própria noção de objetividade, o que equivale a dizer que
ele necessita forçosamente estar ligado a uma teoria crítica das ciências sociais.”
27
A racionalidade que preencherá essas lacunas não será, obviamente,
aquela forjada em concepções fechadas e, por isso, reducionistas da condição humana. Será
necessário, então, admitir que esses espaços normativos sejam preenchidos por proposições
ideais ou políticas, essencialmente relativas e críticas, determinadas por valores nomeados por
meio de conhecimentos racionais e principiológicos capazes de estabelecer verdades sobre
coisas, como elas devem ser e não necessariamente como elas são.
Não há, portanto, como dissociar o Direito de influências ideológicas.
Definitivamente, sem mitigações, o Direito não é puro, exclusivamente
normativo, já que na sua essência imperam valores que são compreendidos ou estão sob o
domínio da Filosofia, da Sociologia, da Ética, da Moral, da Política, da Economia, da Psicologia,
da Arte, da História etc. Torna-se necessário então escapar dessa visão positivo-reducionista do
Direito, para assim melhor compreendê-lo e dar-lhe sentido de utilidade consentâneo com as
complexas necessidades do homem pós-moderno, de modo a alcançar a interpretação
hermenêutica de suas fórmulas segundo métodos includentes; que se abram espaços à pesquisa
de elementos históricos e os interpretem, justifiquem e os solucionem de acordo com subsídios
racionais disponíveis em meio a métodos de inter e de multidisciplinariedade científica quando
se fizer necessário esforço hermenêutico que vá além daquilo que era o trivial.
O Direito não é ciência que está adiante do homem, moldando-lhe ou
ditando comportamentos ou valores. É o homem que está à frente do Direito, cumprindo a este,
enquanto Ciência, compreender a natureza, os fenômenos e os valores humanos, para então
organizar as relações de paz entre os indivíduos, prevenindo ou resolvendo os conflitos.
Certamente que a partir da condensação de valores apreendidos no campo aonde o jurídico vai a
reboque do social, poderá o Direito atuar para moldar comportamentos aderentes a ideais que
vão se formando pela dinâmica e riqueza da natureza humana. Logo, não será possível moldar a
sociedade por decretos, se estes não estiverem amparados em práticas sociais prévias,
majoritárias ou determinantes. Nesse aspecto o Direito limita-se a acelerar - por legitimação essas práticas sociais por meio de seu poder universalizante, como bem disse Bourdieu, lançando
sobre esses aspectos particularmente considerados o selo da universalidade com o qual se dão
manifestações simbólicas determinadas pelo campo jurídico.
Em que pesem a inviabilidade de separação do Direito em sua simbiose
com a Política, sem olvidar que o campo político é o reino absoluto da ideologia, não parece
haver possibilidade na utopia kelseniana de desideologizar o Direito.23
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit. p. 48. “O modelo parcial de Ciência Jurídica, representado pelas chamadas teorias
dogmáticas do Direito, tem, para Kelsen, um forte caráter ideológico – no segundo sentido exposto porque,
consciente ou inconscientemente, as referidas teorias partem da falsa pressuposição (ideológica) de que poderiam
nos ensinar a resolver os conflitos sociais, adequar o Direito aos ideais de moral e justiça da comunidade,
determinando os conteúdos das normas de acordo com este ideal. Os juristas clássicos acreditam poder produzir, ao
nível do pensamento, um raciocínio determinante do que possa ser visto como Direito justo e, conseqüentemente,
23
28
Ver o Direito afastado das influências ideológicas é mero exercício
empírico, ou utopia. O fato social de repercussão jurídica é o objeto do Direito. Mas o fato social
e as ideologias emanam do mesmo meio no qual são produzidos, residindo aí a impossibilidade
de uma precisa separação na medida em que têm uma gênese comum. Logo, o Direito terá que
lidar com ambos.24
Logo, não há como negar a força de transformação que as ideologias
podem produzir, não enquanto ideais estáticos, mas em combinação com a força do poder
político e o poder do Direito, quando manejados e orquestrados com finalidades racionais. Não
se fala que as ideologias sejam positivas ou negativas, senão quando considerado o resultado
concreto que produzem no mundo social. Portanto, será em face do dirigismo político ao dar
rumo às ações fundadas em premissas ideológicas que os resultados serão atingidos e a sua
qualidade avaliada a juízo do bem ou do mal que produzem. Restará ao corpo social avaliar esses
resultados, aceitando-os ou rejeitando-os na mesma proporção de felicidade ou infelicidade que
produzam ao estado do bem comum.25
Tenha-se em conta que o Direito tem sua dimensão política (e por isso
também ideológica), como a política serve-se da dimensão jurídica do Direito. Logo, “O direito
tem como função social a realização do projeto político ideológico do Estado.” (Warat, ob. cit.,
p. 53 em nota complementar ao Capítulo II, alínea “c”). Com efeito, para obter-se resultados de
um critério de valor para o Direito positivo e para os conflitos sociais. E, desta forma, transformam essas teorias em
ideologias, um conhecimento não objetivo. A objetividade, como vimos, é alcançada, no pensamento kelseniano,
desvinculando-se o saber jurídico da ideologia. Daí porque Kelsen nega a possibilidade de assumir, como científico,
um conhecimento derivado de qualquer teoria sobre a justiça, pois o conhecimento que a envolve é sempre
ideológico.”
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit. p. 49. “... a significação ideológica há de ser vista em suas simultâneas funções de
socialização e organização estruturante da realidade. Toda mensagem ideológica socializa o homem e estrutura as
condições materiais de sua vida. A ideologia é algo muito mais complexo do que poderiam sugerir os esquemas
elementares que tentam identificá-la com o processo de alienação da consciência. O sistema de normas
axiomatizadas, mediante o conhecimento, é um elemento ideológico que, em sua materialidade, serve de suporte às
atuais formas de organização da vida social. O marco da coesão permite a existência de relações sociais entre
indivíduos autônomos, que sustenta a separação do espaço social em público e privado, supõe como condição
necessária, para sua constituição, a existência de um sistema de normas formais abstratas e sistematizadas.
Apresenta-se aí em um dos grandes problemas que a Teoria Pura pretende calar. Para a existência de um sistema de
Direito formal abstrato e axiomatizado, necessita-se de um saber que o constitua, que empreste ao Direito précientífico (pleno de conteúdos amorfos) o efeito de sistematicidade desejado, a partir de então, não é difícil descobrir
o caráter ideológico da Teoria Pura do Direito. Ela, como instância epistemológica – que propõe apenas um controle
sistemático no interior do modelo de ciência predominante – funciona como um mito metodológico que, negando a
função ideológica do processo de axiomatização, garante o funcionamento real do saber como ideologia.”
24
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit. p. 51. “Partindo-se destas idéias, deve-se observar que a Epistemologia da
Ciência, ao contrário de uma Sociologia do Conhecimento, não está tão preocupada com a explicitação dos
condicionantes sociais do conhecimento, mas com a sistematização dos efeitos sociais da produção do conhecimento
legitimado como científico, quer dizer, com a forçosa dimensão política da ciência.”
25
29
libertação social emerge imprescindível o conhecimento a compreensão sobre o funcionamento
dos mecanismos de dominação política e ideológica. Afinal, os mesmos saberes que foram
utilizados para produzir exclusões injustas, são também os mesmos saberes com aptidão para
produzir libertação e emancipação. Aliás, posto que a libertação venha pelo conhecimento, não é
de se estranhar porque o conhecimento científico de um modo geral é aprisionado em domínios
restritos, resistentes à democratização desses saberes.
5 – O DIREITO E A EMANCIPAÇÃO SOCIAL.
Como se viu, o Direito, a Política, ou melhor, os rumos políticos
legitimados pelo discurso jurídico, serviram a interesses dominantes desde quando o homem teve
a consciência de seu poder e o dominou sob rédeas. Os efeitos de dominação são contundentes
em toda espécie de exclusão social, resultantes – raramente - das imprevidências dirigistas, mas –
freqüentemente - da vontade consciente e determinante dos agentes de poder, sobretudo de poder
simbólico, i. é, de poder oculto e dissimulado, mas sobretudo real.
Ora, se tal quadro social foi produzido pela degeneração ética com a
qual se exerceu o poder, provado está que o sentido inverso dessas mesmas forças, agora fundada
na nobreza da política, embalada por princípios éticos verdadeiros, somados à hermenêutica
jurídica que acolha proposições democráticas pluralísticas, tudo resultará em projeto político
emancipador e capaz de atender às demandas sociais mais prementes, permitindo assim ao
conteúdo das normas constitucionais – no que encampam esses projetos políticos de libertação,
de inclusão, de participação proporcional de todos integrantes do corpo social - alcançar a plena
eficácia normativa.
Porém, para alcançar esses resultados cumpre romper com dogmas ou
discursos cristalizadores de concepções ou valoração jurídicas despóticas, fugindo ao senso
comum teórico dos juristas.26 Com essa mudança postural, acreditamos, será possível aproximar
a interpretação do arcabouço jurídico segundo ideais emancipadores, aptos à realização de
Direitos Sociais projetados no arcabouço político-normativo constitucional.
Propõe-se ao jurista do Século XXI atuar com ideais libertadores mais
aflorados e ver o direito objetivo - não como lhe foi apresentado pelo discurso ideológico
tradicional que grava o senso comum teórico dos juristas clássicos, já que até então mais serviu a
interesses dominantes injustos – mas sim com função libertadora e emancipadora dos grupos
sociais excluídos, marginalizados, vítimas das injustiças sociais, culturais e econômicas mais
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit. p. RR, em nota complementar, alínea “g” “O senso comum teórico dos
juristas disciplina ideologicamente as tarefas profissionais, operando como um código latente
que influi não somente no pensamento dos juristas de ofício, mas também em seu pensar e agir.”
26
30
visíveis. Um determinado âmbito verdadeiramente democrático deve albergar a todos, senão
acabará não albergando ninguém.
6 – OS DIREITOS SOCIAIS SOB UMA PERSPECTIVA DO
“DIREITO ACHADO NA RUA”
O Direito enquanto ramo do conhecimento humano - o conhecimento
acumulado e sistematizado - portanto, Ciência, tem comportamento estático. Para desencadear a
sua força de transformação dependerá de um ato consciente de vontade, de ato involuntário, ou
de um fato natural com interesse jurídico no mundo social, para fazer despertar o interesse
político a guiar a força transformadora. Daí porque essa neutralidade latente termina desperta e,
dirigida, buscará tanto as realizações simbólicas com as quais se consolidam relações de poder e
dominação, quanto poderá tomar o sentido inverso e possibilitar transformações libertadores e
emancipadoras no mesmo mundo social. Assim, o Direito é instrumento de legitimação sob
rédeas ideológicas com as quais é guiado, e guiado pelos agentes autorizados pelo próprio
Direito a guiá-lo: os juristas.
As experiências humanas ao longo da história, embora somente a partir
do Século XIX passaram à tentativa de compreender o Direito sob uma perspectiva científica,
antes disso já o tinha como instrumento apto a servir a interesses de dominação social e
econômica, bastando o olhar pela janela para ver as desigualdades individuais constantes neste
mundo social criado, por vezes, à força da legitimação jurídica.
São, portanto, desigualdades que se acentuam em larga escala, na
medida em que despertam e motivam inquietações sociais de alcance amplo, podendo mesmo
desestabilizar instituições ou mesmo desmantelar todo um sistema, ainda que para depois formar
outro. Mas, a implosão de um sistema exige energias que o imploda, e a liberação dessas
energias necessárias faz vítimas de todos os lados. Nesse campo social de enfrentamentos a
racionalidade que se faz diante de perspectivas sugere concessões mútuas com as quais se possa
estabelecer uma nova ordem, mais justa e fraterna, uma ordem nova construída sobre verdadeiros
princípios de participação democrática, que ao depois compreenda em seus limites os aspectos
plurais de uma sociedade complexa, mas de concepções includentes.
Essa nova ordem democrática e fraterna terá o poder do consenso, o
consenso que dirigirá a todos no rumo de objetivos comuns, propiciando a essa coletividade a
máxima eficiência de resultados com consumo mínimo de recursos disponíveis. É como se fosse
um barco cuja proa e ré se acham alinhados com o destino traçado, no qual seus tripulantes
remem coordenados sob a batuta de um timoneiro cioso dessas potencialidades individuais
somadas, com isso alcançado os melhores resultados desses esforços individuais a bem da
diretriz geral que estabeleceram e buscam alcançar.
31
Ora, o Direito tem esse poder congênito de produzir as transformações
do mundo social, fazendo-se necessário que essa força transformadora seja posta a serviço do
resgate das populações que mais sofreram os desvios de poder impostos por aqueles que, sem
fazer muito esforço no momento de remar o barco social, bem souberam aproveitar as
potencialidades de seus capitais e, com estratégias eficientes, obtiveram em benefício próprio
mais capitais acumulados, ainda que por menor esforço pessoal, mas à custa da opressão do
outro.
O Direito Achado na Rua não é outra coisa senão o Direito estudado e
aplicado ao mundo social particular onde estão os desafortunados, vítimas concretas desses
fatores de desigualdade que atuaram isoladamente ou de maneira conjugada, mas em cujo
sentido de resgate não se perde o rumo das transformações libertadoras, includentes e
emancipadoras. Esse modo de ver o Direito difere diametralmente das concepções históricas e
clássicas com as quais essa ciência serviu aos interesses dominantes, para que assim, mudando o
modo de olhar e direção dos empreendimentos humanos, deixe de ser fluxo histórico, para ser
contra-fluxo de uma nova história em que toda dimensão humana possa ser percebida e
respeitada em um ambiente de justa participação democrática, tanto no esforço individual como
na repartição dos benefícios alcançados pela soma de todos os esforços nos quais são
despendidas as energias vitais da sociedade.
Se o Direito até então foi visto de cima para baixo, sob perspectivas
liberais; sob perspectivas predeterminadas a impor ou conservar relações fetichizadas de poder
simbólico, o Direito Achado na Rua propõe outro ângulo para se ver o mesmo Direito, i. é, que
ele seja visto de baixo para cima. Essa alteração de ponto de vista sobre o Direito não o distorce,
mas permite uma nova visão do seu alcance social a partir da constatação de que o poder de
nomeação que dele emana é capaz de construir o mundo real segundo os valores ou ideais do
discurso jurídico também produzindo sob as perspectivas dos deserdados. Afinal, é com esse
discurso novo que o Direito Achado na Rua será capaz de reconstruir o mundo social, ocupandose com questões outras que até então escapavam de interesses dominantes, como, por exemplo, a
outorga de condições mínimas de acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à
segurança, à previdência social, à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados,
conforme enumera o art. 6º da Constituição Federal.
As tradições conservadoras que guiaram os rumos dados pelos interesses
dominantes pouco empreenderam, pela força do Direito, visando outorgar tais valores mínimos
aos grupos sociais dos menos favorecidos. Até certo ponto isso é explicável, posto que aquilo
que não se vê não é sentido ou vice-versa. Por outras palavras, os detentores do poder,
privilegiados pela detenção de tantos capitais, não sentiram, ou negligentemente não viram as
necessidades dos excluídos. Esses dominantes não foram privados desses desejos sociais para
então senti-los, de modo que essas aspirações populares, expressadas pela respectiva
potencialidade políticas, terminaram ser catalogadas no texto constitucional, para que então não
32
constituam apenas avisos, mas compromissos democráticos firmados no ordenamento jurídico
positivo máximo, para que assim sejam resgatados em proveito dos seus beneficiários.
A unidade democrática se mantém, na medida em que os compromissos
coletivos assumidos são cumpridos. Sob uma perspectiva simplista e positivista, os direitos
sociais prescritos na Constituição Federal conduzem à aplicação da norma no viés que lhe afirme
efetividade, concretude plena para que assim nenhum excluído permaneça em situação de
exclusão. Porém, não obstante esse seja o rumo explicitamente determinado pela vontade
política ao construir o texto constitucional, do jurista se exige a pavimentação - pelo discurso
jurídico – das construções que levem acesso a resultados práticos, harmônicos com o sentido
teleológico da norma. Esse pensamento positivista linear é, por sua natureza, reducionista e,
como tal, levado a extremo, pode esvaziar o sentido da norma. Daí o cuidado para que a
indiferença hermenêutica não ponha a perigo o valor democrático maior, que está representado
pela unidade política do Estado.
Propõe-se então que os direitos sociais sejam vistos sob uma perspectiva
diferente, sob a perspectiva do mundo onde o fato real nasce e se apresenta nas relações
intersubjetivas tal como prega o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, pelo qual “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum.”
Parece-se nos que o Direito visto como um desses instrumentos voltados
à construção da felicidade do homem sempre exigiu a interpretação da norma com esse sentido
libertador e emancipador. Mas, para que isso ficasse indene de dúvidas, foi preciso positivar o
bom senso, foi preciso editar o Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1.942, para que assim
não se pusesse dúvidas sobre uma clareza solar preexistente. E, escrita que foi não autoriza dizer
que dela se esqueceu (LICC, art. 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a
conhece”).
O Direito Achado na Rua é essa visão social com a qual se pretende
extrair dos postulados jurídicos, por um método que enaltece a visão sociológica capaz de
perceber o homem ou os grupos humanos na sua essência, sem reduções que lhes subtraiam os
sentidos perceptivos, as emoções, os sonhos, o bem-estar, enfim, todo aspecto com aptidão para
refletir no estado de felicidade humana, propiciando aos indivíduos as condições existenciais
favoráveis ao crescimento pleno de suas potencialidades, que ninguém pode ser negado, sob
pena de cometer-se lesão permanente, irreversível ou irreparável.
Sim, é preciso ver o homem sob perspectivas jurídicas, mas entrelaçadas
- pelo menos - com a dimensão sociológica, antropológica e psicológica.
Imagine-se que, por falta de acesso à educação, uma criança nascida na
ingenuidade de um lar inteiramente carente de recursos materiais, ainda assim sobreviva a todas
33
as adversidades e cresça, envelheça, e termine a vida sem ao menos ter conseguido - por falta de
conhecimento mínimo que a sua condição social negou - a consciência de si mesmo.
Será que a responsabilidade e sentido de uma vida tão miserável como
esta somente recai sobre o próprio infeliz? Será que em situações tais não se está a ceifar uma
vida em sentido metafísico amplo, para circunscrevê-la em uma órbita de vida puramente
biológica? Se assim for, será a condenação do indivíduo-vítima do infortúnio a ser o prisioneiro
perpétuo do cárcere da miséria.
Ora, infortúnio de tamanha magnitude - conforme o exemplo tomado se repete reiteradamente, vitimando milhões de pessoas. Se a falta de acesso à educação pode
gerar tamanha barbárie, o que se dizer quando a essa carência específica quase que
obrigatoriamente se juntas outras, todas decorrentes do mesmo matiz sociológico, econômico e
político? O resgate dos direitos sociais constitucionais, como princípio fundamental inerente à
dignidade da pessoa humana, como assim proclamada o art. 1º, inc. III da Constituição Federal é
a chave que haverá de abrir os caminhos para a formação de uma sociedade verdadeiramente
democrática e pluralística.
Logo, segundo a concepção que o Direito Achado na Rua preconiza,
será preciso compreender o Direito a partir de uma nova concepção, de uma concepção que
escape dos reducionismos positivistas, mais humanística e na qual o homem individual ou
coletivo seja visto por inteiro; de um modo mais inter e até mesmo multidisciplinar, onde se
reúnam os elementos históricos, sociológicos, antropológicos, psicológicos, enfim, todos os
elementos que estão sob o domínio das Ciências Sociais, para que então - nessa riqueza maior de
subsídios científicos - passam ser elaboradas propostas e executadas políticas capazes de abrigar,
na mesma proporção e protegida das reduções, a riqueza humana em toda a sua largueza.
Enquanto juristas, somos forjados nos pensamentos positivistas que
ainda impregnam o mundo acadêmico. Levamos esse viés mecânico para o cotidiano forense, ou
os reproduzimos aos novos juristas do mesmo mundo acadêmico de onde viemos. Será
necessária a mudança interior que alargue o ângulo de visão do jurista, permitindo-lhe perceber e
compreender o mundo pós-moderno complexo em que até então atuou produzindo cegas
transformações. O viés político e ideológico deve ser reconhecido e adotado como prática
jurídico, sem, contudo, descurar-se de um sentido crítico consentâneo com o campo manejado.
Somente assim poderão ser equacionados, em modos de pensamentos jurídicos igualmente mais
complexos, o sentido sociológico do qual o Direito moderno não abdica, sobretudo mais livre
dos grilhões positivistas.
É na elaboração do produto jurídico que o jurista vai encontrar (ou não)
a aceitação do seu trabalho pelo mercado social dos nossos dias. E é nesse grau de aceitação que
se obterá, na mesma proporção, a legitimação das instituições democráticas enquanto operam
com a ordem jurídica.
34
Luis Alberto Warat apresenta interessante metáfora, que nos convida a
uma reflexão prática a respeito do mundo social que se forma pela teoria sem prática do jurista
de discurso hábil. Conta o autor que a partir da passagem bíblica onde os homens, na sua soberba
cega, intencionaram construir uma torre bastante alta que lhes permitisse tocar o céu. Assim,
empreenderam construir a Torre de Babel. Porém, para castigá-los, Deus confundiu-lhes a língua
e, pela confusão do linguajar, não se entenderam. E porque não se entenderam nada puderam
empreender.27 Portanto, é a hora do discurso unívoco, cujo sentido uníssono tem que ser
alcançado a partir de um compromisso democrático que se acha claramente consubstanciado já
nos primeiros dispositivos da Constituição Federal, no momento sintomático em que começava a
construção de um grandioso projeto de democracia brasileira, para viger em lugar de um modelo
autoritário anacrônico.
Essa agradável metáfora waratiana é bem mais rica. Ela toca o espírito
pobre e positivista do jurista clássico, concitando-o a ver o mudo sob novos olhares, sob uma
perspectiva multidimensional, entrecortada pelos elementos multiculturais e científicos mais
diversos, que ainda tomem toda a dimensão do mundo e toda a dimensão do ser, para somente
então promover as nomeações ideológicas aptas à outorga da felicidade humana.28
Decerto o autor não está a amaldiçoar o mundo dos livros, das
bibliotecas. Afinal, o poder de nomeação das coisas é exercido por meio de palavras que, quando
pronunciadas, esvaem-se com o vento ou sobejam somente os seus fragmentos na memória ou no
WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010, p. 1. ”Com tantos discursos
diferentes os homens não se entenderam e ficaram impossibilitados de continuar com a construção da torre. Para a
continuidade era preciso contar com uma língua única, uma linguagem universal que serviria como significante de
um pensamento único.”
27
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit., pp. 2 e 3 “No fundo seria a utopia impossível da procura de uma palavra
verdadeira, infinita, e sem esperança. A torre de Babel seria como essa biblioteca infinita sonhada por Borges, uma
biblioteca que procurando sem esperança a palavra única condenava aos seus fregueses a não sair nunca dela. O
grande devaneio do Quixote, diz Umberto Eco, foi o inverso ao de Borges. Ele acreditou ter encontrado a palavra
verdadeira em suas incursões delirantes pelo livresco, e assim decidiu sair pela vida a procurar a confirmação nas
aventuras da existência; saio pelo mundo para confirmar as verdades dos livros, pretendendo encontrar o original da
fotografia das palavras aventurando-se na vida. Fecho, assim, o círculo de seu delírio. Nós intelectuais e os cientistas
em geral, e sociais em particular, temos muito de Quixotes, fazemos quase o mesmo que ele; somos uma espécie em
extinção de Dom Quixotes das verdades. Borges e o Quixote tinham uma pretensão utópica no fundo análoga. O
primeiro procurou encontrar no mundo damas, amores, acontecimentos que a sua biblioteca prometeu; quis acreditar
que o mundo fosse como sua biblioteca. O segundo decidiu que a sua biblioteca era como o universo e, portanto, não
precisava mais sair dela; sustentou assim o que chamamos de mundo real não passa de uma bolha de palavras
infinitas, o balão semântico que substitui o útero prometendo uma sabedoria impossível: a sabedoria infinita, a
sabedoria de Babel, que representa simbolicamente o campo de associações com o qual o indivíduo substitui suas
saudades pela primeira mamada, as saudades do momento mítico-primordial no qual o homem tem a fantasia da
plenitude que o dispensa de sua angústia diante do seu próprio e inevitável desamparo.”
28
35
inconsciente, mas de qualquer modo reduzidas ou transubstanciadas na nossa impossibilidade de
tecer reproduções fiéis de tudo o que nos chega pelos sons das palavras, razão pela qual
procuramos guardá-las nos livros, para não perdê-las na nossa incapacidade de transmissão fiel,
sem perdas ou deformações dos sentidos que expressam. Por isso, o registro físico das palavras e
de toda a comunicação, de toda arte e de todos os significados que revelam o conhecimento
humano tendem a ser depositado nas páginas dos livros, mantendo-se esse repositório como
matriz de conteúdos exatos, que sirvam ao depois como paradigma de novas emissões e
registros. Portando, o conhecimento e a arte produzidos pelo homem na sua longa história estão,
em geral, nos livros. E estes, nas bibliotecas. Daí porque não há como negar valor aos livros ou
às bibliotecas, não constituindo a metáfora na qual inspira este trabalho motivo ou objetivo de
mitigar o valor desses arquivos.
Desse modo, feita essa ressalva reverencial a toda literatura, pode-se
prosseguir com a proposta waratiana, quando autor prossegue na sua metáfora acusando
particularmente o jurista de não ver o mundo social pelo viés da rua, esta como sendo o campo
onde se dá a dinâmica concreta das relações intersubjetivas; onde desenrolam as tramas inerentes
às relações de poder, ou simplesmente o lugar no qual a felicidade ou a infelicidade dos homens
se faz vista, ao vivo e a cores.29
As verdades são relativas, no espaço e no tempo. E os livros registram
verdades que estão compartimentadas nos espaços temporais ou geográficos em que ser reportam
ou foram escritos. Carregam com isso uma parte de um mundo social que até mesmo já se perdeu
no tempo ou no espaço. Portanto, ainda que os livros agasalhem conhecimento que pode ser
reproduzido ou tomando como paradigma do desenvolvimento de outros saberes, deve o jurista
ter em conta que os livros não reproduzem verdades incontestes ou eternas, posto que serão
sempre necessários novos livros para registrar, a todo instante, os aspectos fotográficos do
cotidiano.
Acresça-se, também, que os livros agasalham sentidos que foram
absorvidos ou conhecimentos que foram produzidos, mas não abrigam conhecimentos ou
WARAT, Luis Alberto. Ob. cit. pp. 2 e 3. “ ... a biblioteca que nos condena a não sair nunca dela pode ser
enxergada como a pretensão onipotente de certos intelectuais apegados ao estado de ânimo cientificista e das razões
e os conceitos universais que privilegiam radicalmente as formas abstratas de seus pensamentos à própria
experiência, optam por não sair nunca de seus pensamentos, eles os satisfazem plenamente, não precisam sair para a
experiência, sair para a vida; vivem enclausurados em seus próprios pensamentos como os leitores da biblioteca de
Borges. A maioria dos intelectuais marcados pelo paradigma da modernidade não saem nunca de seus pensamentos,
que os sentem como potenciais portadores de verdades únicas, reveladores das infinitudes do mundo real (seriam os
alicerces da segunda torre de Babel, a torre de Babel que alberga as formas perversas da razão abstrata). Gostaria
também de estender a metáfora para o mundo do Direito e o estado de ânimo que sustenta a cultura do litígio; a
mesma pode ser vista metaforicamente como uma versão juridicista da biblioteca borgeana, no sentido que para a
cultura do litígio a única realidade que importa é a que está nos livros que integram o acervo de uma biblioteca
infinita, de Babel. Dito de outra maneira: para a cultura do litígio a única realidade que importa é a que está nos
processos.”
29
36
experiências novas que ainda não foram inteiramente dominadas pelas percepções ou
observações humanas.
O conhecimento está em toda parte, esperando alguém que o descubra e
o registre, até mesmo em um novo livro, de modo que as suas palavras, os seus sentidos não se
percam pelo vento que sopram os seus sons. Logo, se a verdade está em toda parte à espera de
descobridores, no campo do Direito as verdades consideradas não podem ser tão somente as
verdades ou teorias que estão armazenadas nas infinitas páginas dos livros. Será necessário
descortinar essas verdades onde eles se escondem, onde elas mais se apresentam em estado de
proximidade ou reprodução fiel da realidade do mundo social, preferencialmente em seu
ambiente natural e livre dos constrangimentos que a degeneram. A verdade está nas esquinas, nas
escolas, nos ambientes de trabalho, nos lugares dos encontros sociais e no qual se manifestam
com espontaneidade e, por isso, as verdades mais se mostram verdadeiras nos parlamentos
populares, ... na rua, entendo-se a rua como o espaço no qual se desenvolvem as relações sociais
em estado natural, e onde acontecimentos de interesse jurídico podem ser percebidos com
fidelidade de seus contornos, qualidade e extensão. É, pois, o espaço no qual o cientista encontra
o campo fértil da pesquisa.
30
O Direito e o seu poder de nomeação valem-se da dialética e esta
fornece idéias pré-concebidas sobre todas as coisas e, assim, torna possível a comunicação.
Aliás, posto que os homens da Torre de Babel foram confundidos em suas línguas, não mais
puderam se entender e com isso o seu soberbo empreendimento se perdeu pela impossibilidade
do diálogo, da compreensão mútua. A linguagem e os significados não são universais. São
próprios dos seus respectivos espaços e tempos; i. é, o tempo e o lugar dos acontecimentos
sociais reproduzidos de acordo com o campo sobre o qual há de incidir, p. ex., a concretude dos
direitos sociais constitucionais.
Também é inevitável pontuar que o Direito é valor e, como tal, também
os valores se modificam no tempo e no espaço. Daí porque não se pode perder de vista a precisa
compreensão da realidade social sobre a qual faz recair a incidência normativa, ou o Direito em
uma concepção social mais ampla e tolerada pela hermenêutica jurídica.
Logo, para compreender os significados forjados pelo poder de
nomeação de todas as coisas, para compreender o sentido de valor será necessário conhecer o
meio, a rua, de onde emanam todos os elementos de percepção sensitiva.
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU. 1999, p. 16. “O conhecimento
foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais
precisa, por mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana. O
conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem, algo com um germe do conhecimento. De fato, diz
Nietzsche, o conhecimento tem relação com os instintos, mas não pode estar presente neles, nem mesmo por ser um
instinto entre os outros; o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e
do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término
de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este é o conhecimento.”
30
37
Afinal, muitos são os conceitos abertos do Direito, que se determinam
por meio de subsídios hermenêuticos fornecidos pelo meio social ou por ciências afins. Por isso,
não é possível ver o mundo real somente pelas bibliotecas, pelos devaneios quixotescos ou
borgeanos.
Essa perspectiva de direito altera qualitativamente os resultados
elaborados a partir da mudança do ponto de vista das percepções desses valores quando
preenchem os conceitos indeterminados do Direito. São conceitos tais como o de “mulher
honesta”, de “bom pai de família”, de “boa-fé”, “de razoabilidade e proporcionalidade” etc. Para
compreender a dimensão desses conceitos abertos é necessários compreender os valores sociais
do ambiente nos quais são produzidas as manifestações com interesse jurídico, pois que sem tal
compreensão prévia as soluções construídas com preceitos jurídicos terminam por constituir
soluções despóticas ou solipsistas, de qualquer modo distantes do ideal de felicidade vigente em
um determinado tempo e lugar.
Assim, as concepções que procuram ver o Direito a partir do ponto de
vista da rua, i. é, do ambiente mais natural onde as relações sociais e as relações de poder se
mostram como o palco vivo das venturas e tragédias humanas, esse campo fornece os elementos
significativos naquilo que interessam à semiologia jurídica; elementos estes que poderão
fornecer uma visão mais próxima dos anseios e das particularidades a serem consideradas na
construção de soluções jurídicas verdadeiramente libertadoras e emancipadoras. A essa linha de
pensamento filosófico-jurídica nova os seus idealizadores houveram de denominá-la O Direito
Achado na Rua, corrente de pensamento desenvolvida pelo saudoso professor Roberto Lyra
Filho, que tem entre seus ilustres seguidores e defensores os professores José Geraldo de Souza
Júnior e Alexandre Bernardino Costa, da Universidade de Brasília.
Em trabalho coletivo que teve o como organizadores, entre outros, o
referido Professor Alexandre Bernardino, em série que se denominou O Direito Achado na Rua,
tem-se delimitado o ângulo filosófico com o qual uma percepção do novo jurista bem se atrela às
demandas jurídicas de repercussão social.31
COSTA, Alexandre Bernardino. O Direito Achado na Rua. Brasília: CEAD/Unb, 2008. p. 17. “O Direito Achado
na Rua, caracterizando-o muito sucintamente, para aludir a uma concepção de Direito que emerge, transformadora,
dos espaços públicos – a rua -, onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a
consciência de novos sujeitos para a cultura de cidadania e de participação democrática.
31
Essa expressão, criada por Roberto Lyra Filho, passou a designar uma linha de pesquisas e um curso organizado na
Universidade de Brasília, com três módulos já publicados, formando uma série (Introdução Crítica ao Direito,
Introdução Crítica ao Direito do Trabalho e Introdução Crítica ao Direito Agrário), com o objetivo de capacitar
assessorias jurídicas de movimentos sociais que possam reconhecer a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e
as experiências por eles desenvolvidas de criação de direito, e, assim, 1) determinar o espaço político no qual se
desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do
sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a suja representação teórica
38
A vertente com a qual se vê o Direito nessa concepção nova já mereceu
elevado reconhecimento não apenas no meio jurídico nacional, com também além fronteiras. A
começar por Luis Alberto Warat, nascido na Argentina e radicado no Brasil onde ministrava
aulas na Universidade Federal de Santa Catarina, em face da concepção de direito que tem o seu
olhar a partir do lugar comum do povo, a rua, lugar para onde convergem as diversas espécies de
excluídos dos processos sociais de orientação liberal, sobre O Direito Achado na Rua a ele assim
se referiu o autor: “Como dizem alguns juristas brasileiros, o Direito se encontra na rua, no grito
da rua, e alguém deve aprender a escutá-lo.” (A Rua Grita Dionísio, ob. cit., p. 53)
É necessário romper com os métodos clássicos de compreensão e
afirmação das manifestações jurídicas. De um modo geral as ciências produziram conhecimentos
de interesse tecnológico e mercantilista, segundo propósitos que visavam apenas a eficiência da
produção e lucro. Mas a Ciência enquanto histórica mais serviu como instrumento a serviço de
ideais liberais, sem muito se preocupar com a produção de desigualdades sociais, a exemplo das
tecnologias de ponta que aumentam a produção e o lucro, mas reduzem os empregos com os
quais se faz repartição das riquezas. Conseqüentemente, concentra rendas e riquezas em mãos
dos detentores das fórmulas tecnológicas, enquanto distribuem pobreza em detrimento das
massas dos excluídos desse “progresso” alcançado a bem dos ideais capitalistas. O progresso da
humanidade não se mede apenas pela riqueza alcançada pelos meios de produção. Sobretudo, o
progresso se mede também pela eficiência da organização social e política de um povo (e nisso
atuam as forças jurídicas em busca desse equilíbrio social e político), propiciando a justa
distribuição das riquezas em proveito de todos, sem exclusões.
Por esse viés, a aplicação do conhecimento jurídico requer olhares
hermenêuticos que possam compatibilizá-lo com a função libertadora e emancipadora das
massas de excluídos sociais e econômicos, atuando concretamente de modo a trazer novo
equilíbrio às relações intersubjetivas. Somente pela mudança de postura, pela compreensão do
mundo social visto sob o ângulo de quem vai à rua e sente na pele, p. ex., a ineficiência de
funcionamento dos meios de transportes coletivos; quem vai à rua vê e entende o que significa a
busca inglória pelo emprego, freqüentemente instável e mal remunerado; percebe a dinâmica do
trabalho informal, mesmo quando ele opera vigorosos efeitos no meio econômico, refletindo na
sobrevivência direta ou indireta dos que a tanto se ocupam por não ter acesso ao trabalho formal;
compreende o dia-a-dia daqueles que não tem acesso à alimentação, ao sistema de saúde ou ao
sistema educacional; compadece dos que não encontram espaços de laser e de convívio social;
vivencia o sofrimento dos que não têm um teto digno para abrigar ou repousar, o lugar do justo
como sujeito coletivo de direito: 3) enquadrar os dados derivados dessas práticas sociais criadoras de direitos e
estabelecer novas categorias jurídicas.”
39
descanso noturno, sujeitando-se a todas as intempéries e insegurança em face das violências
urbanas.
Não é possível fingir que as injustiças sociais inexistem, seja pela
condescendência com o semelhante ou por razões práticas daqueles que, por desejo de conservar
seus próprios domínios já conquistados - temerosos que o descontentamento geral atue como o
embrião de convulsões sociais com potencial para causar desarranjos nos respectivos nichos de
privilégios - tendam a flexibilizar dominações para assim “contribuir” para as soluções paliativas
que levam à perpetuação do estado das coisas, simplesmente “administrando” desilusões
correntes.
Na interpretação das normas há espaço para o vesgo artifício de moldar
a lei ao gosto e conveniência do intérprete. Afinal a lei, como afirma Warat,“Ela permite
“simular decisões fundamentadas”, por mais que seja efeito da ideologia, que nos convida a crer
que as decisões são fundamentadas.” (ob. cit., p. 54),
Ora, se distorções hermenêuticas são possíveis, certo é que elas tiveram
a sua contribuição na construção desse mundo social impregnado de injustas desigualdades
sociais. Não se propõe a mudança total do sentido de direção que o Direito permitiu nessa
“hermenêutica” tergiversada, para que doravante uma inversão radical também não venha
produzir a dominação vingativa dos que antes dominavam. Um erro ou uma injustiça não
justifica outra. Sempre haverá relações de poder e, por conseguinte, de dominação, de modo que
então seria utopia ridícula a imaginação de uma sociedade plenamente linear. O que é preciso ter
em conta não é necessariamente a completa deshierarquização social, mas a equalização com a
qual sejam afastadas as injustiças sociais.
Porém, cientes de fenômenos passados, que se ligam à responsabilidade
pelos desajustes do presente, cumpre que se tenha uma nova visão do mundo social e do Direito
que nele atua produzindo transformações, para que o sentido político das soluções e da própria
interpretação do Direito tome em conta os elementos de integração que são fornecidos, p. ex.,
pela Sociologia, pela Psicologia, pela Política, pela Economia Social, pela Antropologia.32
WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Ob. cit. p. 52. “Um fantasma percorre toda a concepção moderna
do Direito baseado no normativismo: o medo, a insegurança jurídica ou a origem de um grande sistema de ilusões;
uma Matrix que se vem arrastando por séculos, que faz crer aos juristas que podem controlar racionalmente os
processos decisórios da magistratura. O sentido comum teórico dos juristas é uma força de expressão que assumi há
mais de trinta anos para referir-me ao racionalismo jurídico, como o magma de conceitos e redes de sentidos que
expandem uma força ideológica altamente eficaz. Conceitos e abstrações transformados em crenças e ilusões que
capturam. O sentido comum teórico dos juristas como expressão equivalente ao racionalismo jurídico. Neste ponto
se torna necessário distinguir a razão jurídica do racionalismo. A primeira seria somente a sensatez do
conhecimento, a segunda uma sensatez tóxica, uma febre virótica da razão, uma razão excedida em suas funções,
tornada idéia maligna como se fosse uma célula que se reproduz excedida em seu funcionamento. O racionalismo
seria algo assim como um processo tóxico que torna lugar comum a sensatez, depois de pretender depurar através de
mecanismos de simplificação e trivialização. Uma razão que contamina seu valor como nutriente até torná-lo
toxina.”
32
40
A Ciência moderna fornece elementos de provas que apresentam o
universo em plena desordem. Mas também atuam forças tendentes a dar-lhe sentido lógico e
funcional, organizando o seu funcionamento. Logo, do mesmo modo que há um ponto no qual se
pode ter um equilíbrio ideal no movimento celeste, posto que o também o homem é parte desse
mesmo universo e à suas leis gerais igualmente se recolhe resignado, também o Direito fornece
esses elementos de equilíbrio inerentes ao universo social.33 Assim, tal como essas forças
cósmicas que também atuam sobre nós, é preciso que se alcance certo equilíbrio também quanto
ao nosso modo de pensar, de pensar nossos horizontes individuais e o mundo natural e social que
nos rodeio, ... o modo de pensar o Direito como instrumento de transformações pois, pensando o
Direito, estar-se-á pensando nas próprias transformações que pode produzir.
O Direito opera segundo o âmbito da natureza humana. Mas a natureza
humana e o seu mundo social são caóticos no seu microcosmo; pelo caos que é produzido
segundo as mesmas leis que regem o macrocosmo, não obstante em meios às instabilidades
também vigem leis com desejo de ordem e equilíbrio.34 35
AGUIAR, Roberto A. R. de. Os Filhos da Flecha do Tempo. Brasília: Letraviva. 2000, p. 102. “Tomando por
base as hipóteses astrofísicas contemporâneas, o cosmos conhecido surge contraditório, caminhando no sentido do
ser e do não-ser, da simetria e da assimetria, da construção e da destruição, do sublime e do terrível, em um contexto
de equilíbrio instável e dinâmico, no qual a mudança de uma constante poderá desmoronar o todo.
O momento inicial não acessível à nossa cognição é um momento de desequilíbrio, de desarmonia: algo
anterior, simétrico, bastante em si mesmo, sofre um abalo e explode, sai de si, expressando-se num grito
infinitamente pungente que traduz o despedaçamento de uma harmonia solitária anterior, uma autoparição
traumática, uma mudança de essência. Desse momento traumático, o que é expelido, desde as partículas mais
simples, apresenta uma dupla natureza: a de se informar e organizar e a de desagregar e morrer.
Esse momento originário dá à energia e à matéria a faculdade de se entropizar, de se esvanecer, segundo o
que convencionamos chamar de Segunda Lei da Termodinâmica, e a de se organizar em sínteses mais complexas e
qualitativamente mais conscientes.
Perscrutando a questão sob o ângulo teológico, poderíamos dizer que a criação, muito mais que um
momento positivo, é uma queda, o paroxismo da suprema solidão de Deus, que rompe seu fechamento simétrico e
ensimesmado e cria seu espelho no cosmos. A partir daí, todos os entes são contraditórios, não somente por terem a
possibilidade de saltar para sínteses mais altas ou de se desenvolver, como também por apresentar facetas que,
embora aparentemente contraditórias, são complementares e constituem sua natureza. A contradição não mai se põe
entre ser e não ser, mas entre ser e outro ser no mesmo ser, como a luz que o corpúsculo e a onda, senda a mesma
luz, olhada sob um ângulo e outro.”
33
AGUIAR, Roberto A. R. de. Ob. cit. p. 109. “A admissão da existência de um único philum que presida o
movimento de certos fenômenos implica a crença em conexões necessárias, como na causalidade. Acontece que os
fenômenos mais parecem turbilhões do que linhas, apresentando facetas complementares, naturezas díspares e
camadas de profundidade variável, o que os torna probabilísticos ou até mesmo singulares e, raramente, necessários
e determinados. Das certas condições, eles podem acontecer, têm maior ou menor probabilidade de vir à tona, mas
nunca certeza, numa determinação absoluta.
O universo dos fenômenos é probabilístico e pleno de inesperados, fraturas e acontecimentos singulares.
Ele não é homogêneo; ele não pode ser, em sua totalidade, circunscrito por categorias globalizantes baseadas na
semelhança, pois ele é sempre o outro e pode ser o diferente e o atípico.
Enquanto tivermos pagando alto preço à lógica das semelhanças e às totalizações típicas do saber do século
XIX, não conseguiremos trabalhar com as diferenças, que são condições para a própria unidade dos sistemas de
fenômenos, pois é a complementariedade das diferenças que dá coesão aos sistemas estudados.”
34
41
Logo, nesse modo de pensar em busca de sínteses equilibradas, não há
como adotar proposições exclusivamente catalogadas, métodos racionais puros, pois que nesse
viés extremo já se terá espaço para a irracionalidade, a insensatez. Os raciocínios exclusivamente
lineares ou positivistas (como esses herdados do modo de pensar vigente no Século XIX), são os
mais perversos enquanto produzem reduções da dimensão humana, castrando ou marginalizando
os indivíduos. E a isso já não se pode dizer que é racionalismo, é algo que beira a estupidez.
Para mudar o mundo é preciso, antes, mudar a forma de ver o mundo
que se quer mudar. Por isso o idealista Roberto Lyra Filho propôs uma nova forma de
compreender o mundo tomando-o sob uma perspectiva diferente, vendo-o com o olhar de quem
está na rua, com o olhar das multidões, com o olhar das pessoas comuns e nem tanto como o
olhar dos tecnocratas de plantão ou dos arquivistas utópicos que somente enxergam o mudo de
acordo com os relatos dos acervos das bibliotecas. Logo, enxergando o mundo sob ângulos
novos, o objeto adquire novos contornos, oferece novas perspectivas que antes não poderiam ser
percebidas a partir de um ponto de vista tradicional. Com isso a compreensão do próprio mundo
passa a ser mais exata na sua complexidade, permitindo aos agentes de transformação
empreender políticas mais consentâneas com as necessidades que os solipsistas em geral não
percebem.
Com a visão e compreensão do mundo social por outros ângulos,
também a essas compreensões novas se ajustam a compreensão do Direito, pois o Direito é parte
desse mundo complexo do qual somos parte inseparável.
AGUIAR, Roberto R. A. de. Ob. cit. pp. 125 e 126. “O pensamento moderno exilou o ser humano do universo.
Isolou-o de tal forma que ele passou a se considerar um ente autônomo do todo e insignificante diante da dimensão.
Esse entendimento o levou a paradoxos peculiares: o ser humano se orgulha em ser nada e cultua o relativo como
um novo deus. (...)
A separação do ser humano do cosmos tem um efeito multiplicador. Segundo essa visão, conhecer é separar,
explicar e reduzir. A fundamental relação do gênero, que poderia ser traduzida como união, aliança e celebração,
transformou-se em dominação, disputa e cizânia. Além disso, os seres humanos se separam por países, por religiões,
por crenças políticas, por idiossincrasias, negando não somente sua unidade enquanto fenômeno do mundo, mas
também sua participação enraizada no planeta Terra. Nem mesmo seu habitat é reconhecido. Apesar do
conhecimento científico acumulado, a humanidade ainda age como se a Terra, essa frágil espaçonave, fosse
inesgotável e eterna. É a grande alienação da separação que faz da política a arte da guerra e da disputa, e do direito,
a regração do contencioso tatuado no interior dos sujeitos.
O ser humano é composto pelas mesmas substâncias da Terra, vive segundo os princípios e tendências de
seu planeta, que lha garante a vida e a subsistência, além de apresentar-lhe dos riscos e desafios. O corpo humano,
após o ciclo da vida, reintegra-se ao regaço da Terra e torna-se condição para a sobrevivência de outros seres. Essa
Terra vive em equilíbrio dentro do sistema solar e participa das relações complexas de todos os planetas com o Sol.
A matéria terrestre é matéria do sistema solar e a do sistema solar é a do universo. Há uma identidade físico-química
do universos, como se tudo fosse constituído da mesma carne, participa da mesma origem e viajante dos mesmos
sentidos.”
35
42
7 - A COMPLEXIDADE
O homem visto apenas em suas dimensões biológica e psicológico traz
em si mesmo a complexidade de seu universo interior, que sequer consegue desvendar por
inteiro, ainda que no mais avançado estágio da sua autoconsciência. Esse ser essencialmente
social relaciona-se com o complexo mundo natural e seus seres, como também com os outros de
sua espécie no complexo mundo social, formando com ambos relações que se tornam ainda mais
complexas pelas somas de complexidades.
Ainda que um ser humano vivesse só, como Robinson Crusué durante
um quarto de século em sua ilha perdida ao salvar o naufrago, no mundo pós moderno já não se
poderia vê-lo absolutamente isolado da teia das relações jurídicas sociais. Por maior e duradouro
que tenha sido a sua privação do convívio social, persistia na sua solidão deveres morais para
consigo mesmo, além de deveres legais para com os valores ambientais dos nossos dias. Nem
Crusoé está fora da teia jurídica.36
Se no mundo de isolamento de Crusóe isso não bastou para afastá-lo por
inteiro do alcance de relações jurídicas inerentes ao mundo complexo, tal faz ver que
complexidade de questões de interesse jurídico somente aumentam no instante em que o
indivíduo isoladamente considerado passa a relacionar-se com outro, e outros, surgindo desses
relacionamentos de mão dupla aspectos cujos números indicam o quase-infinito. Se as relações
sociais bipolares são complexas, muito mais são as multipolares.
Acrescente-se ao complexo mundo das relações sociais os efeitos das
comunicações da massa, das comunicações em tempo real, da rede de comunicações por meio da
Internet, da globalização que se instalou por força própria ou por desejos localizados.
Acrescente-se aí a consciência da finitude dos bens da vida, que o planeta Terra tem emito sinais
de exaurimento, circunstância que acirra os conflitos na medida em que representam os campos
de incidência de poder e de disputas pela própria sobrevivência.
As possibilidades de sobrevivência da espécie humana inquieta as
relações intersubjetivas, especialmente as grupais ou coletivas, locais ou globais. Todos os
fenômenos relacionados à continuidade existencial dos indivíduos são também pontos de tensão
e de confrontos com repercussão jurídica. As mesmas leis do Universo cósmico que ditam o
caos e tentam estabelecer o equilíbrio são também as leis que regem o universo dos homens,
igualmente instável e desejoso de equilíbrio. Tanto o caos como o equilíbrio são o resultado de
forças que os põe em movimento, que lhes dão vida. E assim também o é o Direito, que embora
neutro na sua essência e potencialidade, dá sentido de força aos caos ou ao universo do mundo
jurídico e suas conseqüências no mundo social, também caótico e desejoso de equilíbrio.
DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. São Paulo: Scipione. 2010, p. 74. “Não entendi o que disse, mas sua voz me
soou extremamente agradável: era o primeiro som humano que ouvia, fora os que eu resmungava, depois de vinte e
cinco anos!”
36
43
A Política - pelo Direito - tem o dever ético de promover o equilíbrio das
forças de ordem e de desordem do universo social, organizando cientificamente as relações de
poder de modo a produzir inclusões e evitar exclusões sociais, mesmo porque estas últimas
agasalham em si um elevado potencial para criar desarranjos na ordem do seu universo
particular. Ao pensamento e à ação políticos cumpre a elaboração de sínteses racionais com a
utilização de todos os elementos do tabuleiro social, cuja proporcionalidade considerada no
pluralismo das acomodações reside a chave do sucesso ou do fracasso naquilo que se empreender
a benefício da felicidade coletiva. O pensamento complexo, então, entra em cena.37
A complexidade enfronha-se no universo das Ciências naturais ou
sociais, pois é aspecto inseparável do homem no seu microcosmo, como também está em todo o
Universo macrocósmico.38
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina. 2007, pp. 33 e 34. “Na ciência, no
entanto, a complexidade surgira sem ainda dizer seu nome, no século XIX, na microfísica e na macrofísica. A
microfísica desenbocava não apenas numa relação complexa entre o observador e o observado, mas também numa
noção mais do que complexa, desconcertante, da partícula elementar que se apresenta ao observador, ora como
onda, ora como corpúsculo. Mas a microfísica era considerada caso limite, fronteira ... e esquecíamos que esta
fronteira conceitual dizia respeito de fato a todos os fenômenos materiais, aí compreendidos os de nosso próprio
corpo e de nosso próprio cérebro. A macrofísica, por sua vez, fazia depender a observação do local do observador e
complexificava as relações entre o tempo e espaço concebidos até então como essências transcendentes e
independentes.
Mas estas duas complexidades micro e macrofísicas eram lançadas para a periferia de nosso universo, ainda
que se tratassem dos fundamentos de nossa physis e dos caracteres intrínsecos de nosso cosmos. Entre as duas, no
campo físico, biológico. Humano, a ciência reduzia a complexidade fenomênica à ordem simples e unidades
elementares. Esta simplificação, reiteramos, tinha alimentado o impulso da ciência ocidental do XVII ao final do
século XIX. A estatística, no século XIX e início do XX, permitiu tratar da interação e multivariância mas sempre
num grau insuficiente, e sempre na mesma ótica redutora que ignora a realidade do sistema abstrato no qual se
insere os elementos a considerar.”
37
MORIN, Edgar. Ob. cit. pp. 35 e 36. “O que é a complexidade? À primeira vista, é um fenômeno quantitativo, a
extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades. De fato, todo
sistema auto-organizador (vivo), mesmo o mais simples, combina um número muito grande de unidades da ordem
de bilhões, seja de moléculas numa célula, seja de células no organismo (mais de 10 bilhões de células para o
cérebro humano, mais de 30 bilhões para o organismo).
Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de unidades e interações que desafiam nossas
possibilidades de cálculo: ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A
complexidade num certo sentido sempre tem relação com o acaso.
Assim, a complexidade coincide com uma parte de incerteza, seja proveniente dos limites de nosso
entendimento, seja inscrita nos fenômenos. Mas a complexidade não se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de
sistemas ricamente organizados. Ela diz respeito a sistemas semi-aleatórios cuja ordem é inseparável dos acasos que
os concernem. A complexidade está, pois, ligada a certa mistura de ordem e de desordem, mistura íntima, ao
contrário da ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina no nível das grandes populações e a
desordem (pobre, porque pura indeterminação) reina no nível das unidades elementares.
Quando a cibernética reconheceu a complexidade, foi par contorná-la, pô-la entre parêntese, mas sem negála: é o princípio da caixa preta (black-box); considera-se as entradas no sistema (inputs) e as saídas (outputs), o que
permite estudar os resultados do funcionamento de um sistema, a alimentação de que ele necessita, de relacionar
inputs e outputs, sem entrar entretanto entrar no mistério da caixa preta.
Ora, o problema teórico da complexidade é o da possibilidade de entrar nas caixas pretas. É considerar a
complexidade organizacional e a complexidade lógica. Aqui, a dificuldade não está apenas na renovação da
concepção do objeto, está na reversão das perspectivas epistemológicas do sujeito, isto é, do observador científico:
38
44
Interessa-nos, aqui, apenas um olhar sobre as complexas causas que
atuaram na formação de tantas e tamanhas diferenças entre os seres humanos individualmente
considerados, em um quadro onde tão poucos tanto têm, mas onde a tantos pouco coube, fazendo
aí o delineamento do fosso das desigualdades sociais e econômicas produzidas sobretudo pelo
liberalismo secular.
Não há necessidade, para os objetivos aqui propostos, de produzir dados
relativos às desigualdades sociais e econômicas referidas. Afinal, elas estão nos noticiários, nos
livros, na percepção de cada um enquanto simplesmente se deslocam pelos espaços das periferias
urbanas das grandes, médias e pequenas cidades brasileiras, onde por vezes a linha geográfica
limítrofe entre a riqueza e a pobreza é tênue, mas bem retrata o contraste: entre o morro pobre e
o asfalto rico, a linha da divisa é o sopé.
Certamente que além de complexidades que são mais próximas dos
domínios da Política, outras coexistem e se interagem mesmo quando são objeto da Economia,
do Direito, da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia.
No âmbito do Direito já se delineia considerável quantidade e qualidade
de elementos que se interagem no campo, desafiando reflexões e ações complexas na elaboração
de sínteses capazes de resolver problemas sócio-jurídicos que afetam de cheio a questão
relacionada à outorga de direitos sociais. São aspectos que estão ao mesmo tempo presos ao fio
da intercomunicação de diversos ramos do Direito, p. ex., o Direito Civil, o Direito Processual
Civil, o Direito Administrativo e o Direito Constitucional. Somente nesse âmbito mínimo já se
vê a necessidade de construção de pensamentos e sínteses capazes de entremear o conhecimento
e a prática jurídica com a harmonia hermenêutica necessária e apta a produzir soluções
concretas, que ao depois venham representadas na entrega de moradias dignas a quem delas é
credor social.
8 – OS DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONAIS.
Compreendendo-se os motivos da criação normativa, abre-se maior
possibilidade de compreensão justificada em relação ao modo de realizar, por nomeação, o
era próprio da ciência, até o momento, eliminar a imprecisão, a ambigüidade, a contradição. Ora, é preciso aceitar
certa imprecisão e uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos conceitos, e um dos grandes
progressos da matemática de hoje é a consideração dos fuzzi sets, os conjuntos imprecisos (cf. Abraham A. Moles,
As ciências do impreciso, Le Seuil, 1990).
Uma das conquistas preliminares no estudo do cérebro humano é a compreensão de que uma de suas
superioridades sobre o computador é a de poder trabalhar com o insuficiente e o vago; é preciso, a partir de então,
aceitar certa ambigüidade e uma ambigüidade precisa (na relação sujeito/objeto, ordem/desordem, auto-heteroorganização). É preciso reconhecer fenômenos, como liberdade ou criatividade, inexplicável fora do quadro
complexo que é o único a permitir sua presença.”
45
objeto criado pela norma. Reporta-se aqui à criação dos denominados direitos sociais pela
Constituição Federal de 1988, art. 6º, com destaque para o Direito Social de Moradia, eis que
serve de inspiração ao presente trabalho.
É possível perceber, até mesmo por abstração, que as dívidas sociais do
Estado Brasileiro se constituíram ao longo de um processo histórico marcado pela hegemonia
dos interesses dominantes.39 A Constituição Federal apenas reconheceu e catalogou tais dívidas,
deixando à ordem infraconstitucional os meios para o devedor estatal saldá-la voluntariamente,
ou os credores sociais exigirem a satisfação nas hipóteses de inadimplemento concreto.
O Direito de Moradia Social é direito material sintetizado a partir de
conceitos constitucionais democráticos, conceitos que foram incluídos em razão de princípios
republicanos voltados a alcançar a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo
político (art. 1º, II, III e V). A cidadania estará assegurada na medida em que sejam realizados os
direitos individuais na sua dimensão civil, política e social. A dignidade da pessoa humana se
dará pela outorga de possibilidades reais de inclusão do indivíduo ao meio social no qual tenha
acesso às condições mínimas de sobrevivência, livre das mutilações que a violência estrutural é
capaz de produzir. O pluralismo político não fica restrito apenas à discussão de ideias políticopartidárias. Considera também a discussão ideológico-partidária que produza inclusões e elimine
a exclusão de grupos sociais minoritários, fazendo-os presentes no equilíbrio democráticonormativo na proporção dos seus interesses manifestados, em contraposição com os interesses
majoritários. Contemplar tão somente os interesses das maiorias é exemplo clássico de
democracia meramente formal, ou de uma ditadura das maiorias, coisa que a sociologia
moderna abomina em face do caráter liberalista que a alimenta, e de cuja lembrança histórica não
se tem saudades.
O moderno constitucionalismo tem visão larga sobre a sociedade, nela
fazendo incluídas todas as diversidades para, em seguida, produzir hegemonia abrangente, não
linear, onde os indivíduos não estejam fora ou à margem dos limites constitucionais
estabelecidos. É, pois, aí o domínio do pluralismo democrático.40
39
COSTA, Alexandre Bernardino. Desafios da Teoria do Poder Constituinte no Estado Democrático de Direito:
Tese. Belo Horizonte, UFMG. 2005, pp. 129 e 130. “Em relação aos limites do poder constituinte cumpre observar
que eles são muito mais condições de possibilidade do que propriamente limites. Como poder democrático em
expansão, sua limitação está ligada à idéia de democracia. Como conceito aberto, sua conformação está vinculada ao
seu exercício como inclusão permanente das minorias e excluídos, como afirmação da igualdade e da liberdade.
Também estão condicionados o poder constituinte e as demais categorias correlatas ao contexto histórico
paradigmático no qual está inserido. Sabemos que nosso conhecimento é conformado por sua historicidade, da
mesma forma, o poder constituinte somente pode expandir-se dentro dos parâmetros históricos que possibilitam o
seu exercício. Logo, a limitação do poder constituinte não é dada pelo ordenamento jurídico com o qual ele fez uma
ruptura, e muito menos por classificações pré-estabelecidas por uma pretensa ciência do direito ou mesmo pelo
constitucionalismo.”
COSTA, Alexandre Bernardino. Ob. cit., p. 130. “A observância dos direitos fundamentais, bem como de
procedimentos que assegurem a possibilidade de participação de todos e de que se leve em consideração os
40
46
Viver é preciso, já diziam os poetas. O jurista apenas reafirma a
constatação sociológica que o literato fez. A vontade-de-viver 41se manifesta na dimensão que
lhe é dada pelo poder político do povo, conforme consignado por Alexandre Bernardino Costa ao
reportar-se ao momento em que se organiza a força constituinte. As forças constituintes se
entrelaçam e produzem unidade na convenção sistêmica que estabelecem, unidade que em
seguida deve ser apta a garantir a sobrevivência individual e coletiva, no âmbito das próprias
fronteiras dessa mesma coletividade.
Por outros termos, os interesses comuns de sobrevivência são
equacionados em texto que abriga essas convenções individuais ou de grupos homogêneos,
criando direitos e obrigações, fazendo surgir nesse consenso o que se tem por uma constituição
política.
As sociedades modernas, ou pós-modernas, na sua complexidade
histórica, cultural, econômica, étnica, social, ideológica etc., somente poderão ter sucesso
existencial se conseguirem alcançar, no plano de sua identidade coletiva, um pacto que a todos
sirva segundo as medidas que se ajustarem para representar suas aspirações maiores, ainda que
tenham de fazer concessões mútuas em torno de interesses menores.
Assim, a Constituição vem para servir como a expressão da
possibilidade real de querer-viver, fruto da soma de interesses individuais postos no cenário do
possível coletivo, no qual as mediações de interesses conflitantes terminam por ceder lugar às
transações capazes de tornar concreta a convivência coletiva; em cuja comutatividade na
formação dos institutos sociais reside a força e a identidade do povo unido em torno de objetivos
comuns. É um verdadeiro pacto coletivo e social, que a todos obriga e assegura, pressupondo a
igualdade jurídica de seus signatários diretos ou indiretos.
Então, esse pacto coletivo, condensando elementos formais e materiais,
manifestamente pluralístico naquilo que contempla e equaciona os interesses das maiorias ou das
minorias na sua respectiva proporcionalidade e razoabilidade, marcado pela sua aceitação geral a
interesses de todos afetados pelas decisões do poder constituinte são muito mais sua condição do que limitação. Se
esses elementos estiverem ausentes, o poder constituinte perde sua legitimidade e não poderá ser concebido como
tal.”
41
DUSSEL, Enrique, tradução de RODRIGUES, Rodrigo. 20 Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular.
2007, p. 9. Tese 2: “O ser humano é um ser vivente. Todos os seres viventes animais são gregários; o ser humano é
originalmente comunitário. É assim que comunidades sempre acossadas em sua vulnerabilidade pela morte, pela
extinção, devem continuamente ter como uma tendência o instinto ancestral de querer permanecer na vida. Este
querer-viver dos seres humanos em comunidade denomina-se vontade. A vontade-de-vida é a tendência originária
de todos os seres humanos – corrigindo a expressão trágica de A. Schopenhauer, a dominadora tendência da
“vontade-de-poder” de Nietzche ou de M. Heidegger.”
47
render-lhe eficácia normativa, a ele se dará integral e irrestrito cumprimento a bem daquilo que
se convencionou previamente por inteiro. Afinal, na comutatividade convencional não se cumpre
apenas o que convém ao devedor da obrigação prevista. Cumprem-se também e por inteiro todas
as suas cláusulas, das mais expressivas às de menor significação material, pois que a eficácia
geral do pacto não compraz das execuções apenas parciais, ainda que de maior relevo.
Foi com esse viés de boa-fé geral, de uma confraternização ideológica
momentânea, retrospectiva e prospectiva, em torno de interesses comuns ou possíveis, que se
escreveram os primeiros artigos da Constituição Federal de 1988. Era o instante no qual os seus
atores se davam à construção de um pacto fortemente democrático, i. é, que representasse o
pluralismo de uma sociedade que embora heterogênea, se via reduzida nas suas riquezas pela
repressão autoritária que fora imposta pelo regime anterior e com o qual se rompia. Tal qual a
boa-fé objetiva que Direito Civil enaltece (CC, art. 422) o espírito de confraternização
democrática que fez o pacto - liberto que foi do cativeiro autoritário - não pode agora fenecer
ante o inadimplemento dessas obrigações sociais lançadas à conta do Estado.
Os Direitos Sociais do art. 6º são corolários dos fundamentos
republicanos tratados no art. 1º. São, pois, dimensão da cidadania.42
Não se pode olvidar, ainda, quão relevantes são as considerações
tomadas na construção do pacto constitucional, no tocante à dignidade da pessoa humana.43
42
CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de. A Democratização do Poder Judiciário. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 1998, p. 30.“Os cientistas sociais, de acordo com Mariza G. S. Peirano têm grande dificuldade para definir
cidadania, pois, mesmo reconhecendo o fenômeno como resultado de um processo histórico, há uma inevitável
tendência para discorrer sobre uma tipologia dos direitos do cidadão, de modo que, classicamente, essa tipologia tem
origem nos trabalhos de T. H. Marshall que, embora afirme que sua análise é ditada “mais pela história do que pela
lógica”, divide o conceito em três partes:
“a) os direitos civis, compostos dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir,
liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o
direito à justiça;
b) os direitos políticos, como o de participar no exercício do poder político como um membro de tal
organismo;
c) os direitos sociais, que se referem a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar
econômico e segurança ao direito de participar, por completo da na herança social e levar a vida de um ser civilizado
de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.”
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 105. “... é um
valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido
como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital
Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu
amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o
sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais,
ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as
43
48
Vê-se, pois, que a realização do sonho democrático brasileiro em que se
apóiam os ideais da Constituição de 1988 ao esquadrinhar e determinar o modelo adotado de
Estado Democrático de Direito, não há como olvidar da efetividade formal e substancial de seus
fundamentos inaugurais, a exemplo de quando proclama a cidadania e a dignidade da pessoa
humana como fundamentos republicanos.
Não é demais considerar que o parágrafo único do referido art. 1º,
seguindo preceitos doutrinários universais, deixa lembrar que “Todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Nesse particular aspecto, o exercício do poder, pelos representantes eleitos ou diretamente na
forma determinada no texto constitucional, impõe verdadeira vinculação dos agentes políticos do
Estado, para que no exercício do poder que lhes foi delegado, atuem de modo a conferir eficácia
plena aos fundamentos e princípios em que se assentou o próprio Estado.
Fala-se, hodiernamente, na crise de legitimidade das instituições
democráticas, podendo-se atribuir a tal constatação empírica o fenômeno da fetichização do
poder, com o qual os agentes delegados atuam de modo a atender interesses particulares em
detrimento da delegação recebida, não obstante lhes era exigível a fidelidade na execução do
bem comum, especialmente naquelas situações onde o objeto fora previamente determinado pelo
comando normativo constitucional, a exemplo do que se passa com as medidas de garantia para a
plena cidadania e a outorga da dignidade da pessoa humana. O exercício fetichizado do poder
põe o agente público – e por via reflexa – a instituição, ao deserviço daqueles a quem o poder
delegado – por força da mesma delegação – haveria de servir: o povo. O descumprimento de
princípios fundamentais por parte desses agentes políticos fetichizados produz duplo efeito
indesejável: o primeiro, resultante do prejuízo que o desvio de finalidade traz à coletividade a
que o Estado devia tutelar; o segundo, pelo descrédito que o desvio de poder representa,
enfraquecendo a instituição em um primeiro momento e, no instante subseqüente, enfraquecendo
o próprio Estado. Poder-se-ia acrescentar um terceiro e indesejável efeitos, se não fosse
demasiado largo observar os motivos que levam o agente político a agir com desvio de finalidade
fundamental, como também a quem restaria benefício indevido pelo desvio praticado.
Todavia, retomando a linha das prescrições constitucionais positivas a
respeito dos princípios fundamentais em que se assenta o Estado Brasileiro, verifica-se, a rigor
do art. 3º, que o legislador constituinte construiu claro projeto de libertação social em face dos
objetivos fundamentais relacionados em seus incisos I, II, III e IV: “construir uma sociedade
livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
bases da existência humana”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos a existência
digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da
pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como
indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.”
49
Sem exageros, a diretriz constitucional determinada no art. 3º, por seus
incisos, significa, essencialmente, meio para resgate das premissas anteriores, no que toca ao
direito à cidadania em sentido amplo e às ações que visam emergir a dignidade da pessoa
humana, conforme anunciado no art. 1º, incisos II e II.
Na concretização do projeto democrático-constitucional voltado ao
atendimento de diretrizes sociais, bastava então, sob o ponto de vista estratégico, tratar mais
amiúde de determinadas prioridades políticas. E ao fazê-lo, o texto constitucional vigente
estabeleceu em seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), duas espécies de direitos:
individuais e coletivos (Capítulo I, art. 5º e seus incisos e seus parágrafos) e os denominados
‘direitos sociais’ (Capítulo II), entre outros o Direito à Moradia – “Art. 6º: São direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Ao assim instituir, o constituinte teve em mira o claro propósito de
assegurar a dignidade da pessoa humana, outorgando-lhe meio para alcançar um mínimo
existencial.
As bases normativas foram suficientemente estabelecidas, tornando-se
possível extrair o respectivo sentido hermenêutico.44
Certamente que o elemento histórico, especialmente a sucessão histórica
que a cada dia vai plasmando antigos valores de acordo com a plasticidade moral dos novos
tempos, permitirá uma compreensão hermenêutica que igualmente se renova e se reinventa. Mas
não é menos verdadeiro que a compreensão de valores normativos estáveis está interligada com a
44
AMARAL, Rafael Caiado. Peter Häberle e a Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2004, p. 42. “Há, portanto, no processo de compreender, uma figura muito importante que é a mediação.
Essa é o entrelace entre o objeto do conhecimento e o sujeito intérprete, pois, como o saber sobre algo é inesgotável,
sempre haverá novas interpretações sobre um mesmo objeto, com o desenvolver do tempo.
Dois elementos são fundamentais nessa estrutura da compreensão: o tempo e a produtividade do processo
hermenêutico.
Como já dito acima, o fenômeno da interpretação é um fenômeno historicamente situado e datado. Está
efetivamente inserido e condicionado a um determinado contexto histórico, haja vista ser nossa pré-compreensão
modificada e ampliada com o tempo e com as modificações históricas que sofremos. Dessa forma, a cada tempo,
teremos uma visão diversa de um mesmo objeto, em virtude do transcurso do tempo e da modificação de nossos préjuízos. A compreensão, como já noticiado, possui uma temporalidade intrínseca. O tempo constitui uma parte
integrante desse processo.
O tempo não é obstáculo para compreender o passado, senão o autêntico âmbito em que se realiza.
Gadamer, inclusive, demonstrou que essa distância no tempo era precisamente fato que permitia a compreensão.
Cada nova leitura de um texto é uma leitura diferente, pois cada época o entenderá segundo o seu próprio interesse
objetivo e suas circunstâncias.”
50
historicidade do próprio instituto, sedimentado ou consolidado de acordo com a experiência
humana e sua ancestralidade até mesmo remota.
A inserção da moradia entre os referidos direitos sociais proclamados na
Constituição Federal tem fundamentos históricos, diante de notórias e profundas desigualdades
sociais, resultantes de repetidas exclusões perpetradas ao longo de séculos pelas classes políticas
dirigentes.
Razões dessa nefasta e dolorosa exclusão estão associadas às
dominações, onde o poder simbólico ou o poder formal explícito se beneficiaram das riquezas
privatizadas a favor de poucos, mas negada a repartição com os muitos.45
Esse poder simbólico de que fala Bourdieu, que é um “poder invisível”,
dissimulado ou por outras vezes eufemístico, está e sempre esteve presente nos espaços
temporais, sociais e geográficos, merecendo especial atenção sociológica quando tomado em
consideração o campo jurídico no qual ele se torna real e pode ser legitimado pela atuação
estatal, mesmo na divisão de seus poderes.
Tão natural como o próprio homem, manifesta-se pela eterna luta de
classes, onde os respectivos interesses individuais ou coletivos se sobrepõem ou sucumbem
reciprocamente, e o Direito vem a ser utilizado como instrumento de universalização de valores,
de modo que, por excelência, serve aos interesses dominantes, legitimando as soluções dadas aos
conflitos.
Assim é natural perceber que as exclusões sociais têm origem no
aprisionamento do poder pelos que detinham os meios econômicos, sociais, culturais, científicos
ou quaisquer outros aptos a produzir dominação. Mas, mesmo podendo, não produziram a
repartição democrática das riquezas, dos meios de produção, nem o conhecimento científico
sequer foi partilhado já que a educação é artigo de luxo que não chega com qualidade aos menos
afortunados.
A realidade social brasileira mostra hordas de desabrigados, de
habitantes residentes na informalidade das ocupações estabelecidas em locais impróprios para
moradia, íngremes, insalubres, perigosos, mortais. Outros se estabelecem sem saneamento
45
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand. 2010, pp. 7 e 8.“No entanto, num estado do
campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros temas não se queria reconhecê-lo nas situações em
que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o
dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma” - é necessário saber
descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder
simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”
51
básico, sem infra-estrutura urbana mínima, sem garantia jurídica alguma de que lá permanecerão.
Terminam empurrados, pelas circunstâncias, pela violência estrutural, às periferias, aos morros,
ao alcance das marés e das enchentes, enfim à marginalidade de um dos aspectos da dignidade da
pessoa humana no que concerne à necessidade de amparo do lugar de repouso, da habitação apta
a atender aspecto abrangido por instinto que se formou desde o tempo dos abrigos nas cavernas.
A história da formação dos meios de produção baseados em modelos
liberais mostra a concentração das riquezas em mãos de uns poucos, com a multiplicação da
pobreza e dos excluídos.
Não só os modelos capitalistas sobrepujantes ao socialismo produziram
desigualdades sociais mundo afora, mas também as próprias concepções normativas que
serviram de embasamento do Direito e sua aplicação cotidiana.46
A combinação dos ideais capitalistas com as concepções positivistas e as
manifestações de poder simbólico não só produziram, mas também consolidaram o fosso social,
o fenômeno das exclusões e, entre esses, a violência à dignidade das pessoas que não puderam,
por razões econômicas ou sociais, alcançar abrigo em moradias dignas.
É esse o quadro que se deseja ver revertido, reversão que se dará a partir
do conhecimento desses elementos científicos em que estão inseridos nessa complexidade de
fatores quantitativos e qualitativos sobre os são necessárias estratégias críticas no viés de
políticas públicas eficientes e factíveis.
9 – O QUADRO SOCIAL SEGUNDO OS DADOS DO CAMPO.
Já se advertiu que a Política, a Economia e o Direito têm forte poder de
transformação do mundo social. Desejamos prospectivamente que essas transformações sejam
sempre positivas a bem da felicidade geral da humanidade. Mas, como fonte de poder e em mãos
que tendem a privilegiar interesses pessoais, a mundo social que se formou está permeado de
injustiças sociais, de dívidas sociais que se formaram com o sucesso proporcionalmente inverso
aos processos que facilitam acumulação de riquezas.
46
WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010, p. 84. “O normativismo funda
sua particular e eficaz visão do Direito apoiada em uma identidade erguida na idéia de força: a do Direito e o Estado,
claramente enunciados por Kelsen como um dos pilares conclusivos da sua Teoria Pura. O principal efeito dessa
identidade foi a legitimação simbólica do monopólio da coerção estatal, um grande passo preliminar para fundação
da dominação moderna. A partir desse momento, nos tornamos impossibilitados para pensar, no interior dessa
concepção, nos caminhos de emancipação. Mas além das aparências o normativismo não pode ser instrumento de
emancipação.”
52
Com autoridade do ofício público, Maria Teresa Saenz Surita Jucá,
enquanto Secretária Nacional de Programas Urbanos bem retrata o efeito dessas desigualdades
sociais em meio aos programas oficiais de desenvolvimento urbano.47
A gravidade da situação dessas ocupações, de algum modo irregular,
não se resume à irregularidade em si mesma. Outros desdobramentos indesejáveis também se
divisam. Tome-se em consideração situações relativamente freqüentes nas quais esses ocupantes
informais se vêem privados da simples faculdade de ausentarem-se de sua moradia, p. ex., para
trabalhar, sem a certeza de que, ao retornar, não encontrarão essa mesma morada ocupada por
um terceiro, não tendo prova registral de que a coisa lhe pertence para assim recuperá-la diante
do Estado-jurisdição. São situações onde a ausência de provas quanto ao direito real de
propriedade dá lugar a demandas judiciais com incerta solução, pela falta de regularidade de
situação dominial que se possa provar em juízo.
A informalidade dessas ocupações também conduz à exclusão dessas
unidades residenciais do mundo real dos bens, retirando-as do comércio jurídico. Logo, não
servem de garantia às operações de crédito para execução de projetos de simples reformas,
construções ou ampliações que melhor atendam às necessidades familiares, potencializando a
dignificação da pessoa. No instante seguinte, essa exclusão econômica deixa de fomentar o seu
ciclo, sem nenhum incremento para gerar de gerar demanda de serviços, de bens de consumo, de
conseqüentes empregos e tributos.
Por fim, a irregularidade dessas moradias reduz o valor da coisa,
frustrando o enriquecimento maior que as pessoas poderiam alcançar, se o imóvel pudesse servir
ao comércio jurídico.
O das irregularidades das ocupações é fenômeno histórico. Jorge Fontes
Hereda, Vice-Presidente de Governo da Caixa Econômica Federal (ob. cit., também em
prefácio), registra os aspectos da mesma perversão.48 A melhoria das condições de moradia
47
Regularização Fundiária Urbana no Brasil – Ministério das Cidades. Brasília, 2009 – Coordenação:
CARVALHO, Celso Santos e GOUVEIA, Denise de Campos – ISBN 978-85-60133-99-4) “No Brasil, mais de 13
milhões de domicílios urbanos são irregulares. São milhões de famílias que não estão seguras se podem ou não
permanecer em suas moradias e se vão poder deixá-las como herança para seus filhos. São domicílios que, em sua
maioria, não contam com acesso às redes de infra-estrutura urbana e, muitas vezes, estão localizados em áreas de
risco ou de proteção ambiental.
Historicamente, este é um quadro que faz parte da estrutura injusta das cidades e da
sociedade brasileira. É sabido que a maioria da população não possui condições financeiras para comprar uma
moradia legal. O mercado é voltado apenas para atender a uma camada privilegiada da população.”
48
HEREDA, Jorge Fontes, em prefácio. Regularização Fundiária Urbana no Brasil, ob. cit.. “Quando o tema é
propriedade da terra e regularização fundiária, o conflito legalidade versus ilegalidade remota quase à formação do
53
urbana somente contempla aspectos positivos, que bem combinam com os princípios
democráticos em que se está assentado o Estado Brasileito, conforme aponta Inês Magalhães,
Secretária Nacional de Habitação.49
No Distrito Federal a então Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Urbano e Habitações – SEDUH – divulgou o seu Diagnóstico Preliminar dos Parcelamentos
Urbanos Informais no Distrito Federal, que em lugar de destoar da crise de moradia popular no
Brasil, a confirma no âmbito local.50
Estado e do território brasileiro. A falta de sintonia entre o social e o econômico amplia o abismo entre ricos e
pobres e cria um caráter desigual excludente nas cidades brasileiras.
Esse processo perverso gera um resultado paradoxal por meio do qual o crescimento econômico que, a rigor,
deveria ser fonte de desenvolvimento sustentável, resulte na condenação de boa parte da população a uma condição
de subcidadania. Considerável parcela da população é forçada a migrar para regiões cada vez mais periféricas, quase
sempre não dotadas de infraestrutura básica e, ocupando áreas impróprias e/ou terras não tituladas e quase sempre
em desconformidade com os preceitos urbanísticos. Em última análise, a segregação social leva à segregação
espacial que, por sua vez leva à ilegalidade.
A ausência de uma visão integrada da cidade com o indivíduo, do social com o espacial, pode levar a
investimentos públicos que, a despeito da aparente modernização e progresso, resulte no aprofundamento da
segregação social, com o agravante de se converter em instrumento ao serviço da acumulação e da concentração de
renda.
A grave situação de irregularidade urbana existente no Brasil indica que a principal saída deve se dar por
meio da regularização fundiária e urbanística. Neste contexto, a despeito dos sérios problemas ainda vivenciados em
nosso país, é inquestionável que o Estatuto da Cidade, que foi resultado de amplo debate e que contou com
importante participação da sociedade, se constituiu em uma das legislações mais avançadas nesta área. No entanto,
não basta ter o arcabouço jurídico adequado; é imprescindível adotar medidas práticas destinadas a transformar
idéias em ações e “direitos legais” em “direitos reais”.”
49
MAGALHÃES, Ines. Regularização Fundiária Urbana no Brasil. Ob cit., prefácio. Melhorar a qualidade de vida
da população historicamente excluída do mercado formal por meio do acesso à terra regularizada e à moradia digna
é o alvo e implementar efetivamente as ações de regularização fundiária é uma das condições necessárias para
atingi-lo.”
50
Diagnóstico Preliminar dos Parcelamentos Urbanos Informais no Distrito Federal. Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Urbano e Habitação – SEDUH. 2006, p. 13.“HISTÓRICO. Desde o início do processo de
desapropriação das terras do quadrilátero no Distrito Federal visando à transferência da Capital Federal, em 1966, o
parcelamento irregular do solo já ocorria nessa região, a exemplo de loteamentos como Nossa Senhora de Fátima, na
Fazenda Mestre D’Armas e Planaltinópolis, na Fazenda Paranauá, implantados no entorno do Distrito Federal.
Embora a transferência da capital e a ocupação do Distrito Federal tenham sido objeto de muitos estudos e
planos de ordenamento territorial desde a emissão do relatório da Comissão Cruls e do Relatório Belcher, até a
aprovação do Plano Diretor de Ordenamento Territorial – PDOT, em 1997, o território tem sido ocupado
ordenadamente, por um lado, e de forma desordenada, por outro, com proliferação de parcelamentos informais e
invasões com características urbanas.
54
Dados oficiais51 dão conta do quadro urbanístico que se formou e cuja
informalidade tem enorme potencial para degradar o interesse difuso em que se consitutui a
ordem urbanística e o elevadíssimo ônus que recai sobre o Estado para preservá-la em face do
preceito agasalhado no art. 182 da Constituição Federal: “A política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
de seus habitantes.”
Não pendem dúvidas quanto à situação de desigualdades sociais que
muito contribuem para a formação dessas ocupações informais, porquanto a fatores econômicos
comuns a essas populações as condenam a viver em áreas periféricas, destituídas de
infraestrutura urbana e serviços públicos, em circunstâncias que formam ambientes de miséria
sintomática a atrair outros miseráveis, numa espécie movimento de aderência e concentração
perversas dos que se encontram na mesma igualdade de infortúnios,unidos que estão pela mesma
falta de moradia digna.
A parte planejada delineou-se como um modelo de ocupação polinucleada, que reserva ao Plano Piloto a
função simbólica de Capital da República e de pólo gerador de emprego e renda, e aos demais núcleos a função de
cidades-dormitórios. Com isso, ao longo dos anos de história do Distrito Federal muitas ocupações resultaram de
projetos do governo, consolidando o modelo polinucleado, com a implantação de Ceilândia, Samambais, Santa
Maria, Gama e Recanto das Emas, enquanto outras resultaram de ações irregulares, tanto em terras públicas quanto
em particulares, como da Vila Estrutural, dos diversos parcelamentos nos Núcleos Rurais de Vicente Pires, Águas
Claras, Arniqueira, entre outros, e os diversos loteamentos espalhados pelo DF.”
51
Diagnóstico Preliminar dos Parcelamentos Urbanos Informais no Distrito Federal. Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Urbano e Habitação – SEDUH. 2006, pp. 16 e 17. “Hoje, a realidade do Distrito Federal, de
acordo com o levantamento realizado pela SUPAR e em consonância com a metodologia explicitada ao longo deste
documento é a de que foram identificados 513 parcelamentos do solo no Distrito Federal, dos quais 379 são urbanos
e 134 são rurais. Dentre os urbanos, 317 são informais e encontram-se implantados; 30 são objeto de processos de
regularização, mas não foram implantados; 28 são formais, ou seja, estão em processo de aprovação e 4 encontramse registrados.
Os parcelamentos informais implantados, cuja população atual estimada pela SUPAR é de 545.651habitantes,
abrigam cerca de 24% de toda a população do Distrito Federal.
Pelo exposto, diante do fato deque Brasília é a Capital Federal e patrimônio cultural da humanidade e diante
da abrangência e complexidade do tema, urge promover a maior integração dos órgãos dos poderes executivo,
legislativo e judiciário, seja do Governo Federal ou Distrital, para que tenha uma base de dados consolidados
confiável, que evite a produção de informações duplicadas ou até mesmo divergentes e, fundamentalmente, permita
a definição de diretrizes e estratégias, facilitando o desenvolvimento de ações conjuntas voltadas ao melhor
disciplinamento do uso e ocupação do solo em nosso território.”
55
O trabalho produzido pela SEDUH/DF, já referido, em sua página 43,
informa que de um contingente de 533.578 habitantes de ocupações informais, 69% (369.692
pessoas) são de baixa renda; 30% (158.484 pessoas) são de média renda; e, apenas 1% (5.402
pessoas) são de alta renda. Eis, pois, a prova cabal de que o fator econômico tem reflexo
profundo nessa crise.
Por esses números se vê, também, que a situação do quadro social
autoriza e exige que se dê soluções com forte viés político (e nem tanto jurídico), voltado a
produzir a emancipação social desses brasileiros esquecidos pela roda viva econômica e social de
viés liberal e opressora.
Certamente que a vertente jurídica dessa questão não pode ser
descartada, eis que ser coadjuvante na condução de processos de libertação e emancipação,
atuando para legitimar as políticas públicas voltadas ao atendimento dos que se acham afastado
do círculo da cidadania, como no que toca ao direito de moradia.
Afinal, se por fetichizadas razões na aplicação do Direito tantas
injustiças sociais foram legitimadas ao longo da nossa história, que então agora os discursos
jurídicos sirvam para legitimar as ações políticas que empreendam no sentido de outorgar
cidadania ao conjunto dos excluídos, dos oprimidos, dos desafortunados urbanos que não têm
sequer moradia digna.
A injustiça social é gritante. Está escancarada na divulgação quase diária
pelos meios de comunicação; está nos dados de pesquisa levantados pelas autoridades públicas
de urbanismo e habitação; está nas perigosas encostas por onde cresceram as grandes, médias e
pequenas cidades brasileiras.
Essa exclusão está à vista de quem simplesmente caminha pelas
periferias das cidades. Não é um mal exclusivo do Brasil, eis que alcança do mesmo modo
generalizado as cidades latino-americanas, pois que a história da formação continental tem muito
em comum daquilo que foi o domínio português ou espanhol e do modo de proceder dos
legatários das nações que se formam nesses séculos, que em tudo se parecem pelas primeiras
sementes de desigualdades que se plantaram nessas terras que herdamos.
Esses sintomas não são sentidos apenas no Distrito Federal, Rio de
Janeiros, Recife, Porto Alegre, Manaus, Cuiabá, São Paulo ou qualquer outra cidade brasileira. O
Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, fez publicar, em periódico, Número Especial
Sobre a América Latina (organizado por Edésio Fernandes e Betânia Alfonsín), Ano 9, nº 54,
Belo Horizonte, novembro/dezembro 2010, Editora Fórum (ISSN1676-6962) trabalhos que
deixam clara a mesma situação em que se acham as cidades latino-americanas de um modo geral.
Não fossem as fronteiras geográficas, o que se passa no Brasil, Argentina, Bolívia, Chile,
Colômbia, México e Uruguai, pelos testemunhos trazidos, tem o mesmo matiz e a mesma
gravidade. Diversos autores adiante referidos subscrevem os respectivos artigos relatando com
56
enorme proximidade situações que, de algum modo se repetem, para revelar o quadro de
excluídos sociais, que por essa mesma circunstância termina vítima da submoradia.
Ao assinar o Editorial o referido trabalho seus coordenadores dão a
advertência dessa similitude.52
Em testemunho do caso argentino o articulista Sebastián Tadeschi faz
coro com os seus colegas latino-americanos.53
Noutro trecho, após considerar os freqüentes conflitos sociais inerentes
às disputas pela terra rural, que por sua vez produz os deserdados do campo que vão para as
cidades em busca da sobrevivência, o articulista referido faz conexão do fenômeno social com a
premissa constitucional em que se apóia a proteção aos direitos humanos54, de modo que a
perspectiva do direito social de moradia encontra amparo no plano jurídico-político mais
elevado.
52
FERNANDES, Edésio e ALFONSÍN, Betânia. Belo Horizonte: FDUA, nº 54. 2010, pp. 7 e 8. “A tradição
civilista tem historicamente dominado nos países latino-americanos, sendo ainda hegemônica uma leitura dos
códigos civis que enfatiza os direitos individuais de propriedade privada de maneira quase absoluta. A própria
naturalização dos poderes do proprietário e, no caso brasileiro, a ausência de um módulo máximo de terras,
transfere-se para o meio urbano através de um imaginário social, cultural e jurídico altamente protetivo do direito
individual de propriedade,limitando as iniciativas legislativas, a atuação reguladora do poder público e o próprio
exercício do poder de polícia.
Tal interpretação civilista da política urbana está na base da ordem jurídica tradicional que tem
historicamente dado suporte a um padrão de urbanização excludente, segregador, especulativo e poluidor, além de
socialmente injusto e politicamente autoritário, já que a gestão da política urbana, ainda se dá de forma centralizada
e pouco transparente, afastando o cidadão comum da possibilidade de interferir nos processos de tomada de decisão.
De fato, a prevalência dessa ordem jurídica na qual o solo urbano se converte em uma mercadoria bastante
cara, tem sido um dos principais fatores que tem determinado o processo crescente de acesso informal ao solo e a
moradia nas cidades latino-americanas.”
53
FDUA, ob. cit.,p. 21 “Finalmente el siglo XX fue el tiempo de la urbanización acelerada de América Latina. Con
uma la extensión de asentamientos informales en la mayoría de los países de América latina ha sido un fenómeno
bastante extendido. En las grandes metrópolis de América latina la ocupación de tierras públicas y privadas ha sido
la forma normal de acceso a la tierra de la población de bajos ingresos. El grado de informalidad en la ocupación del
suelo urbano varía entre el 10% y el 70% de acuerdo a las distintas ciudades. Estas formas de ocupación del espacio,
em principio toleradas por los gobiernos, pero una vez que existem proyectos de renovación urbana, desarrollo
turístico, extensión vial, o impulso del sector especulativo inmobiliario sobre el área, se impulsan procesos de
desalojos masivos y acoso inmobiliario para expulsar a quienes allí viven.”
FDUA, ob. cit. p. 27. “El derecho internacional de los derechos humanos ofrece un amplio marco de proteción de
quienes padecen las injusticias provenientes de estos conflictos. Sin embargo subyacen algunos conceptos
pendientes de definición y algunos temas que no han sido abordados pues existen complejas discusiones acerca de
los derechos de propriedad.”
54
57
O desafio da regularização de moradias urbanas informais é comum a
todos os Estados latino-americanos.55
Noutro artigo assinado pela advogada boliviana Jaroslava Zápotocká de
Ballón , ao descrever a situação de seu país, muito bem poderia estar se reportando a uma
situação brasileira ou de qualquer outro recanto latino-americano.
56
A história da formação dos Estados latino americanos e as estruturas de
dominação econômica, social e cultural deixaram por legado esse quadro de injustiças que se
alastram ou e reproduzem com similitude por todo o continente. Por isso as experiências comuns
acabam por constituir fonte de inspiração para solução de problemas generalizados, que afeta a
todos indistintamente.
Essas desigualdades decorrem dos fatores históricos que produziram
forte exclusão social. O quadro que se apresenta é o fruto de políticas (ou de falta de políticas)
públicas comprometidas com as bases democráticas em que se apóia o Estado plural e
verdadeiramente justo, por vezes a própria ausência do Estado, que de há muito foi capturado
pelos dirigentes liberais e dele fazem instrumento voltado ao atendimento de seus interesses
privados, quando muito empreendendo insossos sinais políticos de ação, mas que apenas visam
produzir efeitos de legitimação mínima a justificar o próprio poder que continuam a exercer em
benefício próprio.
A política serve-se do Direito para legitimar injustiças. E o faz
deliberadamente, valendo-se do poder que o conhecimento científico - o saber das ciências
sociais em particular - confere aos que o detém o monopólio da dominação.
55
FDUA, ob cit. p. 48. “La realidad nos marca que las prácticas ilegales para el acceso a la tierra han proliferado de
variadas formas, en las que un número creciente de personas se encuentra al margen del mercado formal de la tierra
y la vivenda, viéndo-se forzados a vivir sin la seguridad em sua tenencia, en condiciones precarias y en zonas
periféricas.”
56
FDUA, ob. cit. p. 51. “Tal como en otros grandes centros urbanos de Latinoamérica y el mundo, también la
concentración de la población boliviana en las capitales de departamento, principalmente, gênero una serie de
problemas: déficit cuantitativo y cualitativo de vivendas, insuficiencia del equipamiento urbano, falta de
infraestructura de servicios básicos, aumento de distancias y problemas de transporte, violência e inseguridad
ciudadana. Pero de igual forma incidió en el crescimiento de manchas urbanas a costa de ocupación de tierras
agrícolas y florestales, y en surgimiento de asentamientos humanos llamados ilegales o irregulares. Aunque mucha
gente migró a las ciudades buscando mejores condiciones de vida, su situación no varió significativamente. La
pobreza del campo persiguióa los migrantes a las urbes donde terminaram segregados espacialmente, excluidos de
acceso a servicios públicos – como luz, água, recojo de basura, etc. - , desprovistos de la seguridad jurídica de la
tenencia de su lote o vivenda, expuestos a estafas por parte de loteadores inescrupulosos y sujetos a extorsión
político partidaria.”
58
A Economia tem lá suas dívidas particulares com esse quadro de
injustiças sociais, na medida em que não obrou no sentido de organizar o sistema produtivo com
o intuito de conceber inclusões. O conhecimento científico da Economia, enquanto capital de
poder também foi capturado pelos ideais liberais. Afinal, os interesses liberais naturalmente não
perdem espaços, não perdem oportunidades de se impor, de modo que o conhecimento da
organização dos meios de produção e circulação das riquezas converte-se facilmente em
instrumento de dominação.
Mas o conhecimento científico não é, em si mesmo, bom ou mal. Os fins
é que deverão ser alvo de valoração ética. Portanto, se o conhecimento científico de um modo
geral serviu aos interesses de dominação, será ele que também poderá reversamente produzir
efeitos de libertação e emancipação. A libertação vem pelo conhecimento. Pelo acesso ao
conhecimento a todos os cidadãos, independentemente de sua condição social ou econômica,
poderão vir transformações vigorosas e duradouras. O ensino deve, por isso, ser público e
gratuito, mas, sobretudo, de qualidade, único modo de promover a democratização do
conhecimento, para que esse traga consigo a consciência da liberdade mais profunda, a
consciência da cidadania. A emancipação toma por pressuposto a consciência de liberdade
cidadã e, em ambiente de inclusões e pluralismo participativo na vida econômica e social o
indivíduo encontrará condições para a expansão de suas potencialidades, fazendo-se assim
inserido no meio produtivo de onde emanam não apenas os bens materiais, mas também os bens
culturais ou serviços de interesse coletivo, sinais de prosperidade das nações.
Portanto, será por meio da inversão das ações políticas legítimas e
democráticas, apoiadas em instrumentos fornecidos pelas ciências sociais que se poderá
alcançara a reversão do quadro de desigualdades sociais, a começar pela concretização do direito
de moradia com alcance social, resgatando – em parte – a cidadania e a dignidade humana.
10 – CONCLUSÃO
O poder.
Ao longo da história, as relações de poder bem souberam preencher
espaços em razão de capitais que em geral são comuns às castas dominantes. Entre esses capitais
destacam-se o capital cultural, que possibilita a organização social hierarquizada e dominante, o
capital do conhecimento científico, que assegura aos detentores dos segredos sobre os elementos
sociais e sobre os elementos naturais e suas fórmulas secretas utilizadas para a construção de
engenhos tecnológicos; o capital propriamente econômico, que permite o monopólio dos meios
de produção de riquezas; o capital bélico, que como força bruta subjuga sem sequer argumentar.
59
A política.
Ao seu modo, a política utiliza dos recursos ou meios disponíveis para
assim alcançar determinados fins. Também registra a história que a política serviu com grande
habilidade de conhecimentos com os quais impôs e manteve dominações sociais, restringindo o
acesso ao conhecimento (considerando que o conhecimento é, por excelência, meio de libertação
na medida em que outorga consciência ao indivíduo). Se a política restringiu o conhecimento,
por outro lado empreendeu obras liberais com as quais as riquezas migraram com melhor fluxo
ao domínio dos dominadores e, ao mesmo tempo, produziu leis que legitimaram a acumulação de
riquezas, mesmo com o aprofundamento do abismo social que segrega ricos e pobres.
A Política e o Direito servem-se mutuamente, especialmente porque o
Direito enquanto ciência é facilmente domesticado pelos interesses dominantes, e o discurso
jurídico tem o poder de nomeação e valoração das coisas, fazendo o mundo social conforme os
ideais de orador. A política produziu ações que bem aproveitou aos ideais liberais,
descompromissados com a causa popular.
O Direito
O sentido com o qual as classes dominantes houveram por dar ao Direito
fez dele instrumento por excelência de dominação. Os discursos jurídicos exercem forte poder de
moldar o mundo social ao gosto dos que estão autorizados a obrar no mundo jurídico. Com isso
legitimam relações de dominação por meio de seus discursos, sem olvidar que o reduzido espaço
de positivismo que lhe resta é predominantemente formado por normas construídas no plano
político segundo o gosto de legisladores pouco comprometidos com a causa popular.
As Ciências Naturais e as Ciências Sociais.
O conhecimento científico poucas vezes é produzido com o propósito de
trazer felicidade geral aos homens. Serve a investigação como meio de conhecimento dos
mistérios naturais ou sociais com os quais são construídos os engenhos tecnológicos, engenhos
estes que antes de reduzir a carga de trabalho estão voltados ao aumento dos lucros. É o que
ocorre com a automação bancária, onde cada vez menos são criados novos empregos, mas a cada
incremento de automatização são alcançados maiores lucros em proveito das instituições
financeiras. As Ciências, afora o compromisso (ou falta de compromisso) têm elevadas dívidas
sociais por saldar.
De todo modo, as Ciências, o Poder, a Política e o Direito são apenas
instrumentos que poderão ser utilizados numa determinada direção social. Se até então foi dado
sentido de dominação, de exclusão social, de acumulação de riquezas, nada obsta – ao contrário,
60
recomenda – a inversão do sentido de direção de tão poderosas forças de transformação, as quais
poderão moldar o mundo social com a diretriz primeira de buscar o resgate da dignidade das
pessoas mais afastadas dos centros de convivências humana, outorgando-lhes acessos aos
benefícios conquistados pelo conhecimento e pela experiência humana.
Acredita-se que sugestões, estudos de casos e propostas possam ser
apresentadas em trabalho complementar a este, no sentido de resgatar necessidades sociais
básicas, sobretudo no que tange ao Direito Social de Moradia.
No presente momento contenta-se com a demonstração da existência de
um estado de exclusão grave que afeta significativa parcela da população brasileira, como ainda
relacionar o estado atual das coisas aos fenômenos políticos, sociais e jurídicos do passado.
11 – BIBLIOGRAFIA BÁSICA
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2 – AMARAL, Rafael Caiado. Peter Häberle e a Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre:
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62
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