Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 Silvia Alapanian2 The Political-Pedagogical Construction Dimension Contribution Of The Social Education And The Formation Of Social Educators Professora do Curso de Serviço Social e do Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional e Agronegócio e da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).Foi coordenadora pedagógica do curso de especialização em Gestão de Centros de Socioeducação (PósCENSE). Líder do Grupo de Pesquisa e Defesa dos Direitos Humanos Fundamentais da Criança e do Adolescente (GPDDICA) e Membro do Grupo de Pesquisa GEMDEC/UNICAMP. 1 Professora do Curso de Serviço Social e do Programa de PósGraduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Foi coordenadora pedagógica do curso de especialização em Gestão de Centros de Socioeducação. É membro do Grupo de Pesquisa e Defesa dos Direitos Humanos Fundamentaisda Criança e do Adolescente (GPDDICA). 2 Autoras para correspondência Zelimar Soares Bidarra E-mail: [email protected] Silvia Alapanian2 E-mail: [email protected] Resumo: O artigo se propõe a socializar uma experiência de formação em gestão de socioeducação realizada entre os anos de 2009 e 2011 no estado do Paraná, por meio da realização de curso de pós-graduação lato-sensu voltado aos trabalhadores que atuam em programas de socioeducação, tendo como parâmetros norteadores da ação formadora aquelesestabelecidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Discute alguns dos elementos que contribuíram para a organização e o desenvolvimento de um processo de reflexão sobre a política de socioeducação, empreendido a partir das turmas de duas universidades parceiras dos governos estadual e federal que financiaram o curso: a Universidade Estadual do Oeste do Paraná e a Universidade Estadual de Londrina. Apresenta as principais discussões realizadas a partir da apresentação da produção dos seus egressos. Palavras-chave: Política pública. Socioeducação.Formaçãoprofissional. Direitos humanos. Abstract The articles proposes to socialize an experience of formation in social education, conducted between 2009 and 2011 in Parana State, through the lacto sensupost graduation program focusing the worker who act in social education program, with guidelines of the formation action those established by the National Social Education System ( SINASE), It discusses some to the elements that contributed to the development and organization of a reflection movement about the political social education, conducted from the groups of two partner universities of State and Federal governments that financed the course, the Universidade do Oeste do Parana and the UniversidadeEstadual de Londrina. It presents the main discussions made from the presentation of production of its drop outs. Bidarra e Alapanian Zelimar Soares Bidarra1 Contribuição à construção da dimensão político-pedagógica da socioeducação e à formação de socioeducadores 6 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 Key-words: Public policy. Educacional Formation. Human rights.Social education. Introdução O envolvimento das universidades públicas do estado do Paraná nos processos de formação continuada de atores do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) remonta o final da década de 1990 quando, em julho de 1999, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Paraná (CEDCA/PR) formou uma comissão especial com o intuito de elaborar um projeto de capacitação para operadores do SGD. As universidades públicas do estado (UFPR, UEL, UEM, UEPG, UNICENTRO e UNIOESTE) formavam parte dessa comissão juntamente com representantes da sociedade civil organizada representada no CEDCA e também de representantes do Poder Executivo. A partir de um projeto piloto, construído consensualmente, criou-se o Programa de Capacitação Permanente na área da Infância e da Adolescência, cujo objetivo era: (...) criar espaços permanentes de discussões, debates e formação continuada na área da criança e do adolescente no estado do Paraná, visando efetivar a implantação e implementação do sistema de Garantia de Direitos da criança e adolescente nos eixos de promoção, controle e defesa (LAVORATTI, 2007:19). Segundo os membros do CEDCA/PR, o foco temático de cada um dos ciclos de formação foi estabelecido levando em consideração a diversidade do público envolvido e as avaliações sistemáticas realizadas, tanto durante o processo de execução de cada um deles, uma avaliação processual, quanto ao final, uma avaliação de resultado. Dessa forma, os temas escolhidos para cada ciclo variaram entre a compreensão dos parâmetros normativos que orientam a atuação de Conselheiros dos Direitos e Tutelares, de uma maneira geral, até o aspecto específico de operação do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA). Na história desses ciclos houve um que contou com a participação de conselheiros de outras políticas e segmentos (como: da assistência social, da saúde, do idoso, entre outros) com o objetivo de propiciar a reflexão sobre intersetorialidade. E, também, um outro que se centrou na discussão do orçamento público e do Orçamento Criança (OCA). 7 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 Alguns desses ciclos foram realizados por organizações da sociedade civil em convênio com o CEDCA e o órgão gestor estadual, financiado pelo FIA, outros pela rede de universidades públicas, federal e estadual, conforme disposição e interesse dos envolvidos. No caso destes últimos, as universidades, a realização das ações esteve, geralmente, vinculada a atividades extensionistas e de pesquisa, e gerou uma rede de formação de atores do SGD de crianças e de adolescentes no estado do Paraná. Vários foram os frutos dessas ações conjuntas por parte das universidades: a constituição de um grupo de pesquisa interinstitucional, a publicação de vários estudos, alguns referenciados aqui, mas, sobretudoa construção de uma expertise na formação de atores do SGD com um lastro de compromisso com a defesa e as formas de garantia dos direitos humanos fundamentais, essenciais para o exercício da cidadania de crianças e adolescentes brasileiros. Lançando mão dessa experiência acumulada pelas universidades, o CEDCA/PR, em parceria com o governo federal, construiu, em conjunto com as instituições de ensino, uma proposta de formação de pessoal na área da gestão de Centros de Socioeducação. No ano de 2007, a partir da necessidade de formar quadros de pessoas especializadas e aptas para assumir a direção de unidades de socioeducação no estado, os chamados Centros de Socioeducação (CENSE’s), a então Secretaria de Estado da Criança e da Juventude Paraná (SECJ/PR) escolheu previamente três dessas instituições públicas, a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), a Universidade Estadual de Londrina (UEL) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR), por suas localizações estratégicas e expertise, e convidou seus dirigentes para conhecer e aderir à proposta de ofertar, cada uma, simultaneamente, uma turma de um Curso de Especialização em Gestão de Centros de Socioeducação. Aceito o convite, um grupo de trabalho composto pela SECJ/PR e por professores envolvidos com a capacitação de atores do SGD de longa data, formou-se para discutir e elaborar a proposta do curso. Contudo, porque o Projeto tinha a característica diferenciada de ser resultado da conjugação de esforços e de destinação de recursos dos governos estadual e federal (Secretaria Especial de Direitos Humanos/SEDH; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente/CONANDA; SECJ/PR, CEDCA/PR) sua efetiva implementação demorou um tempo, somente se tornando possível a partir do segundo semestre do ano de 2009. 8 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 9 A organização e a dimensão político-pedagógica dos cursos propostos As autoras do presente artigo foram responsáveis pela coordenação pedagógica das turmas do Curso de Especialização em Gestão de Centros de Socioeducação, na Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e na Universidade Estadual de Londrina (UEL), cujas aulas tiveram início em novembro de 2009 e, em 2011, formaram juntas 58 especialistas1. Apresentamos, a seguir, a proposta geral da grade curricular do Curso, produto do grupo de trabalho formado pela SECJ/PR, a qual sofreu pequenas adaptações em cada uma das unidades de ensino que o ofertou: DISCIPLINAS CONTEÚDO PROGRAMÁTICO 01 Fundamentos de Conceito de gestão; legitimidade e legalidade; a gestão e o aparato burocrático. Os níveis de gestão; A importância do processo de Gestão gestão organizacional. O processo de comunicação e sua 30 horas interferência na gestão; Comportamento gerencial. Gestão e Chefia. 02 Avaliação Institucional 30 horas Histórico da avaliação institucional; Legislação pertinente à avaliação institucional; Funções da avaliação; Compromisso social da avaliação; Métodos de avaliação institucional; Fontes externas de avaliação; Características da avaliação participativa; Monitoramento e Avaliação da qualidade dos programas socioeducativos de acordo com o SINASE. 03 Metodologia de Pesquisa 30 horas Fundamentos da teoria do conhecimento, epistemologia, ciência e ideologia. Metodologia da pesquisa científica e elaboração do trabalho científico. 4 Compreensão Histórica e Social da Violência e o Sistema de Justiça Juvenil 30 horas As bases históricas e sociológicas da violência; As relações existentes entre as mudanças ocorridas nas sociedades atuais e a expressão qualitativa e quantitativa da violência; A violência juvenil na contemporaneidade; Dados e Mapa da Violência no Brasil e Paraná; Histórico do sistema de Justiça Juvenil; 05 O Sistema Socioeducativo 30 horas + 8 horas de vivência no CENSE + 8 horas de aula-síntese Papéis, Atribuições, Competências e Relacionamento entre os integrantes do Poder executivo, Judiciário e Ministério Público no sistema de justiça juvenil; Conceituação de incompletude institucional; Estratégias para articulação com as demais políticas setoriais e constituição do sistema socioeducativo; Fluxos do sistema socioeducativo. 1 Foram formados também outros 30 profissionais pela UFPR. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 10 DISCIPLINAS CONTEÚDO PROGRAMÁTICO 06 Gestão Pedagógica do Processo Socioeducativo 45 horas + 8 horas de vivência no CENSE + 8 horas de aula-síntese Fundamentos Legais e normativos internacionais (ECA, SINASE, normativas internacionais); Matrizes do Pensamento Pedagógico Socioeducativo; Adolescência X vulnerabilidade social; Famílias vulnerabilizadas; Instrumentos e relatórios de acompanhamento dos adolescentes; Fases da Socioeducação; Plano Personalizado de Atendimento. 07 O Gestor público no processo socioeducativo 30 horas + 8 horas de vivência no CENSE + 8 horas de aula-síntese O processo de gestão no setor público; o papel de dirigente no setor publico; chefia e liderança; estilos e técnicas de chefia; poder e autoridade; a importância da boa chefia; negociação interna e externa; o processo de negociação e mediação de conflitos na organização; analise padrões, etapas, perfil e ética nas negociações. O papel do gestor de um centro de socioeducação como fomentador e articulador da rede em prol de ações socioeducativas voltadas para o meio interno e externo. 08 Gestão de Recursos e Administração de Pessoal 30 horas + 8 horas de vivência no CENSE + 8 horas de aula-síntese Planejamento dos Gastos nas Esferas Públicas; Previsão Orçamentária e execução financeira. Gestão Financeira; Métodos de Previsão das Receitas e das Despesas; Controle e Método Gerencial; Atuando sobre Receitas e Despesas; Contingenciamento de Gastos; Prestando Contas. Licitação e suas modalidades; Legislação sobre recursos humanos no serviço público. 09 Sistemas de Informação e Segurança 30 horas + 8 horas de vivência no CENSE + 8 horas de aula-síntese Normas de segurança em um CENSE; Protocolo Interinstitucional de Gerenciamento de Crises; Segurança preventiva; segurança interventiva; Sistema de registro de ocorrências; fluxos de informações. 10 Monografia Orientação para elaboração de monografia ou artigo científico; Fonte: SILVA e MÜLLER, 2011, p. 33. Não foram poucas as dificuldades, tanto do ponto de vista da estrutura física, dos trâmites institucionais necessários para concretizar a proposta e até mesmo de organização do quadro docente e discente, mas a experiência foi significativa para todos os envolvidos, uma vez que o objetivo de todos era o de problematizar e apontar alternativas para o direcionamento da socioeducação para o estado do Paraná, como experiência pioneira que foi, mas também para todos que atuam na área em todo o país. Contudo, ao iniciar esta empreitada e, embora estejamos acostumados a propor e a realizar cursos de especialização, não contávamos com um corpo docente preparado para assumir a problematização de um tema tão específico como a socioeducação e fundamentalmente preparado para a discussão sobre as suas formas de Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 gestão. Na realidade, não dispúnhamos de um significativo quadro docente especializado na área. É fato inconteste que, mesmo após vinte e um anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “[...] o atendimento ao jovem que cometeu atos infracionais durante a adolescência é terra de ninguém, um terreno baldio entre as áreas da justiça, da segurança pública e da assistência social [...]” (ROSA, 2008:13). Os conhecimentos e saberes nessa área se movimentam num universo de circulação restrita e, não raras vezes, corroboram as formas de intervenção instituídas e assimiladas por determinados agentes governamentais. Neste sentido, as experiências de formação se contaminam, desde a origem, por sua orientação ideológica, o que em geral enfraquece sua envergadura crítica. Daí que para tornar a operacionalização do curso de especialização em Gestão de Centros de Socioeducação uma realidade, cujas aulas, presenciais, estavam pautadas por critérios de qualidade relacionados com a capacidade de reflexão crítica dos alunos, foi necessário adotar diversas estratégias de escolha do corpo docente e de adaptação da grade curricular. Com relação ao corpo docente, no caso da UNIOESTE, o mais importante foi poder contar com aqueles que se dispuseram a estudar o tema da socioeducação antes de pensar o conteúdo da disciplina para a qual foram convidados. No caso da UEL, contamos com o importante apoio de profissionais de outros centros onde essa discussão acontece, como São Paulo, num processo de troca significativo. Assim, o debate sobre o tema e a forma de conectá-lo com assuntos específicos da área da gestão da socioeducação foram tratados pelos docentes desde o processo de elaboração do plano de ensino de cada disciplina. Acoplado a isto, tinha-se a interlocução com a Coordenação Pedagógica e com a Coordenação de Avaliação Institucional para o caso das disciplinas que tinham as atividades práticas, no Curso da UNIOESTE, denominadas de Vivências (investigação, reflexão, proposição de alternativas), cuja finalidade era proceder etapas de avaliação institucional do processo socioeducativo, realizadas pelos serviços/programas (em meio aberto e meio fechado) nos quais os alunos do Curso estavam lotados. Nesse contexto, a avaliação institucional é uma forma de capturar a prática em seu dinamismo, sem qualquer atitude antecipatória de préjulgamento do sistema institucional existente dado 11 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 que tem como seu objeto a rede de relações instituídas e instituintes que serve de matéria-prima à instauração e ao funcionamento das formas sociais que empiricamente conhecemos, tal como: família, Estado, socioeducação [...] (ALBUQUERQUE, 1978 apud ROESLER eBIDARRA, 2011:422). Na UEL, a solução pedagógica encontrada foi articular as disciplinas práticas num espaço de reflexão intitulado Vivência, observação e síntese. Nesse espaço, os alunos do Curso mesclaram visitas monitoradas às unidades e programas de socioeducação onde eles próprios trabalhavam, com visitas a instituições do estado de São Paulo, com objetivo de sensibilização/orientação para a atividade de avaliação em campo e experimentação do processo avaliativo e síntese do processo de vivência e observação. Assim, eles foram estimulados a exercitar a avaliação observando realidades conhecidas e não conhecidas, elaborando um instrumento de avaliação com base no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), aplicando e, posteriormente avaliando, o próprio processo avaliativo2. Pode-se afirmar que os caminhos adotados foram o da valorização dos saberes dos alunos numa conjugação coletiva de esforços de docentes abertos para o novo, para se obter o maior sucesso possível. O corpo docente tinha conhecimento de que ia se defrontar com um público hábil e sapiente a respeito de certo fazer cotidiano da prática socioeducativa. Afinal, o objetivo maior do Curso era, justamente, tomar o senso comum, do cotidiano socioeducativo, e elevá-lo a um concreto pensado, uma vez que: O desafio da ação socioeducativa é harmonizar o conteúdo jurídico-sancionatório e o ético-político inerente às medidas socioeducativas. A ação educativa pretende ser focada nas potencialidades e aspectos saudáveis dos adolescentes, independente do ato infracional praticado [...]. As medidas socioeducativas são sanções, mas, sobretudo, instrumentos pedagógicos [...] (JESUS, 2011:2). Admite-se que a iniciativa de buscar se apropriar da prática cotidiana, socioeducativa, pelo ângulo da reflexão crítica não foi algo simples para a maioria dos alunos e nem para alguns dos professores. Logo, este foi sempre um campo de tensão, profícuo e fecundo, no transcorrer das disciplinas. Nesse sentido, tivemos experiências 2 Os detalhes dessa experiência estão relatados em artigo elaborado pelas docentes responsáveis da disciplina (LOLIS e DOMICIANO, 2011). 12 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 comuns nas duas turmas. Desde o início das atividades, desde a primeira disciplina ministrada, Fundamentos de Gestão, era imprescindível localizar e refletir sobre quais premissas de gestão se pautava a organização dos programas de socioeducação, quer fossem de meio aberto ou fechado. Nesta perspectiva o enfoque histórico-crítico de socioeducação deve partir da análise das realidades sociais em que estão imersos os adolescentes e familiares, bem como a própria produção dos chamados atos infracionais e sua dimensão social, econômica e cultural (MENDONÇA, 2009:7). Nas primeiras unidades do Curso foi dada ênfase a um referencial teórico que possibilitasse entender o papel e as funções do Estado, da legislação social e das políticas públicas na ordem capitalista, a partir de uma visão de Estado de classes, cuja forma de gerir as contradições, a conflituosidade e as desigualdades sociais é sempre parcial e interessada, para proteger os interesses das elites que dominam os comandos das suas estruturas. As políticas públicas são compreendidas como mecanismos originados dos conflitos e das disputas por formas diferenciadas de repartição da riqueza social que estão inscritas nos projetos políticos societários. Na atual conjuntura, tem predominado uma modalidade de projeto político3 que reivindica uma orientação gerencial para a implementação dessas políticas, sendo que tal orientação ganha repercussão quando os recursos de que dispõe o Estado são mobilizados para atender a uma lógica de descentralização e um tipo de participação política anexada, aquela que costuma se resumir no fazer número, na organização de uma plateia para uma proposta previamente selecionada. Em geral, essa plateia não externaliza qualquer manifestação e nem assume posturas contrárias às das forças dominantes ou dos dirigentes. Essa forma de participação parece oportuna para manter a centralização do poder e para reforçar as proposições que interessam e correspondem às expectativas daqueles que estão no comando e representam os interesses do grupo político dominante. Foi justamente contra essa retórica que se enfatizou a importância da reflexão sobre o 3 A noção de projeto político indica a necessidade de se prestar atenção às diferentes expectativas que as pessoas têm sobre a vida em sociedade. Nessas expectativas, estão creditados os valores tidos como significativos para as experiências coletivas, bem como os princípios orientadores das ações políticas dos grupos sociais. Uma forma de se tornarem perceptíveis às trocas sociais é mediante as disputas de projetos políticos. 13 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 que significa fazer a Gestão, referenciada pelos direitos humanos, na área da socioeducação. Na sequência, deparou-se com a dificuldade de trabalhar com o conteúdo da avaliação/análise institucional, não por não se dispor de conhecimento teórico e prático sobre este assunto, mas porque a premissa fundante da avaliação/análise institucional é tomar como ponto de partida o conceito/definição, categoria, isto é, aquilo que dá a delimitação do objeto/instituição que se vai avaliar/analisar. Neste caso, é possível afirmar que uma importante descoberta foi a da fragilidade, insuficiência, ou mesmo imprecisão, do que se entende por socioeducação nos documentos que, até então, têm nos servido como fonte de consulta e de referência, tais como: o SINASE (BRASIL, 2006) e os Cadernos do IASP (PARANÁ, 2007). No SINASE (BRASIL, 2006:46), vê-se que o conceito de socioeducação gravita em torno da seguinte compreensão: O adolescente deve ser alvo de um conjunto de ações socioeducativas que contribua na sua formação, de modo a que venha ser um cidadão autônomo e solidário, capaz de se relacionar melhor consigo mesmo, com os outros e com tudo que integra a sua circunstância e sem reincidir na prática de atos infracionais. Por outra parte, a orientação da SECJ, expressa nos Cadernos do IASP define a socioeducação da seguinte forma: O conceito de socioeducação ou educação social, no entanto, destaca e privilegia o aprendizado para o convívio social e para o exercício da cidadania [...] Deve-se compreender que educação social é educar para o coletivo, no coletivo, com o coletivo. É uma tarefa que pressupõe um projeto social compartilhado [...] (PARANÁ, 2007:19). Nas definições acima,vê-se o acento para o componente educativo da prática em tela. Contudo, no extrato do SINASE fica evidente que é uma prática para aqueles sujeitos circunscritos nos liames da autoria do ato infracional. Ainda que mediante tal prática se vislumbre uma mudança de projeto de vida para estes indivíduos, assume-se como imprescindível propiciar aos adolescentes o acesso a “direitos e às oportunidades de superação de sua situação de exclusão, de ressignificação de valores, bem como o acesso à formação de valores para a participação na vida social” (BRASIL, 2006:46). No texto, contido nos Cadernos do IASP, ela é enfatizada como uma modalidade de educação política que se pretende para 14 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 qualquer sujeito no âmbito de uma sociedade democrática, quando se almeja torná-lo protagonista de sua própria história. Pois, A socioeducação, como prática pedagógica, propõe objetivos e critérios metodológicos próprios de um trabalho social reflexivo, crítico e construtivo, mediante processos educativos orientados à transformação das circunstâncias que limitam à integração social [...] (PARANÁ, 2007:19). A tensão entre essas duas orientações conceituais estiveram presentes em todo o desenrolar do Curso, ora o debate se enfeixava na defesa de um caráter mais restritivo e ora tendia para um caráter mais abrangente de prática socioeducativa. Isto pode ser explicado pelo fato de que para alguns dos profissionais e dos autores estudados o campo da socioeducação deve ser especializado e gestionado por técnicos habilitados para tal, o que não permite a interferência daqueles que não dominam os códigos da comunicação da área. Nessa perspectiva, o sentido e a ideia da presença e da participação de uma comunidade socioeducativa, que na premissa do SINASE (BRASIL, 2006) é formada pelos técnicos da área, os gestores, as famílias, os adolescentes e os representantes dos serviços da rede de atendimento, fica comprometida. Um entendimento stricto sensu de organização de atendimento socioeducativo não está apto para incorporar e dialogar com esta pluralidade de sujeitos, pois, lamentavelmente, crê que a pluralidade compromete a identificação da fonte de enunciação do comando e das ordens, isto é, dilui a autoridade. Interessante observar que esta postura se coaduna com uma concepção política de gestão, de cunho conservador, que defende o primado da tecnocracia como requisito da qualificação do serviço prestado. Foi inevitável assumir que os confrontos políticos e ideológicos tergiversaram os estudos e reflexões durante a realização do Curso, pois, cada vez mais, éramos provocados a deslizar e partilhar da convicção proposta pelos estudiosos que têm uma perspectiva política mais democrática e progressista, de que para fazer a socioeducação no Brasil é fundamental extrapolar os limites institucionais dos programas de cumprimento de medidas, seja em meio aberto ou fechado, se com elas se pretende redesenhar e reescrever os projetos de vida desses sujeitos. Para isso, é essencial que a educação a lhes ser ofertada deva decorrer de um “[...] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (MENDONÇA, 2009:7). 15 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 Esses conflitos estiveram presentes mais intensamente nas discussões que pautaram a relação entre a socioeducação e a segurança interna das unidades. O peculiar modelo criado no estado do Paraná que imputa ao educador social ambas as funções se tornou objeto de discussão ao longo das aulas, em especial nos momentos finais cujo objetivo era a síntese reflexiva, gerando um salutar espaço de trocas e reflexão por parte de todos, como é possível observar pela produção final dos participantes do Curso que apresentamos a seguir. O produto do processo: a produção dos alunos do Curso Conforme Silva e Müller (2011), das 68 vagas para as turmas do Curso de Especialização em Gestão de Centros de Socioeducação realizadas na UNIOESTE e na UEL, concluíram o curso 58 pessoas. As temáticas dos trabalhos de conclusão do Curso refletem em boa parte o processo reflexivo dos grupos. Um primeiro grupo temático que destacamos foi composto por 08 (oito) trabalhos e discute o papel, as competências e o perfil dos socioeducadores que atuam no Sistema Socioeducativo. Os títulos de alguns trabalhos podem dar a dimensão das preocupações: Competências profissionais no contexto da socioeducação: elementos para o debate; A atuação do Psicólogo na socioeducação: uma reflexão acerca da Psicologia nas políticas públicas; Educador Social: segurança e socioeducação; O Professor no sistema da socioeducação: possibilidades e entraves; Socioeducador: uma reflexão sobre o seu perfil no sistema de socioeducação do Paraná. Outro grande grupo de preocupações esteve relacionado com questões de escolarização e profissionalização dos adolescentes e ocupou outros 07 (sete) alunos das turmas, como se pode observar nos títulos desses trabalhos de conclusão do Curso: A perspectiva de futuro dos adolescentes do Programa Estadual de Aprendizagem para o adolescente em conflito com a lei: um estudo em Foz do Iguaçu – PR; A inserção escolar de adolescentes egressos do sistema socioeducativo de internação; A relação cotidiana entre o processo socioeducativo e o trabalho formal; Reinserção do adolescente em conflito com a lei na escola; Profissionalização: suas implicações no atendimento aos adolescentes no CENSE I, II e III e semiliberdade – Londrina/PR. 16 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 A discussão sobre a gestão da socioeducação em meio aberto foi outro tema gerador de discussão, mais 08 (oito) dos trabalhos discutiram a questão. Foram títulos de trabalhos com esse foco: Monitoramento e avaliação do Centro de Referência Especializado de Assistência Social II: construções aproximativas ao atendimento socioeducativo; A medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA): contribuições e desafios; O Sistema de Garantia de Direitos da Infância e Juventude: realidade do município de Bandeirantes-PR. Mais 07 (sete) trabalhos estiveram focados na questão dos processos pedagógicos e das práticas educativas no interior das unidades. Apresentamos os títulos de alguns trabalhos com esse foco: A natureza do processo de produção pedagógica em Centros de Socioeducação do Estado do Paraná – Região3; A arte no processo de socioeducação: a contribuição das linguagens artísticas no desenvolvimento de adolescentes que cumprem medida socioeducativa; Aplicando ações educativas no Cense I de Londrina. Também foram temáticas que preocuparam os participantes do Curso e se tornaram objeto de suas pesquisas, a família, com 05 (cinco) trabalhos; o próprio SGD, com mais 05 (cinco) trabalhos; aspectos relacionados diretamente à gestão com 04 (quatros) trabalhos; a concepção e as representações de socioeducação com 03 (três) trabalhos e outros 11 (onze) trabalhos com temáticas diversas4. A produção acadêmica dos alunos constitui-se em motivo de orgulho para todos os envolvidos, pois é a síntese de um esforço coletivo para a reflexão sobre uma realidade institucional complexa, que exige muito daqueles que se dispõem a enfrentá-la. É fruto de aprendizado coletivo tanto dos agentes da academia como daqueles que estão diretamente envolvidos no fazer profissional da socioeducação, com seus limites e suas possibilidades sendo expostos. Considerações Finais Transformar a concepção e a orientação dos atendimentos prestados aos adolescentes sentenciados por autoria de ato infracional não é algo fácil. Provocar o deslocamento de uma arraigada cultura institucional de caráter repressivo e discriminatório para uma cultura política e institucional de caráter educativo, pautada pelos referenciais dos direitos humanos requer confrontar-se com práticas instituídas 4 A produção mais significativa dos alunos das duas turmas pode ser acessada nas publicações já referenciadas aqui (ROESLER e BIDARRA, 2011) e (www.ssrevista.uel.br v. 14 n.1). 17 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 pelos arcaísmos e autoritarismo social peculiares à cultura política das elites brasileiras que, ao longo de décadas, sustenta seu entendimento discricionário para com as crianças e adolescentes das camadas populares e suas experiências de exclusão e privação de toda ordem. Um traço peculiar desse autoritarismo no Brasil consiste em imprimir às relações sociais uma forma de sociabilidade construída a partir do silêncio dos dominados, o qual é forjado, cotidianamente, por meio da desqualificação e da ridicularização dos discursos, dos códigos de interação e de pronunciamento dos sujeitos falantes. A reprodução de um contingente expressivo de não cidadãos facilita a conservação das relações de submissão, refletindo um problema histórico dessa sociedade: a dificuldade de forjar um projeto que objetive a transformação radical das relações sociais. Por isso, ela tem sido signatária de um tipo de experiência democrática que estende as desigualdades e a apartação social como medidas necessárias à acumulação de capital. Para acreditar e insistir na possibilidade da transformação do campo institucional da socioeducação é preciso admitir, como ponto de partida, que as “mudanças de métodos, conteúdos e de gestões requeridas nas políticas públicas referentes às medidas socioeducativas contempladas no Estatuto ainda não foram efetivadas, pois, na prática, continuamos a ver a presença absoluta da lógica menorista” (ROSA, 2008:13). Entretanto, há um fato do qual não se pode abrir mão, qual seja: um atendimento socioeducativo em condições de preservação da dignidade é um direito fundamental do adolescente sentenciado por ato infracional (BRASIL, 1990). E este atendimento deve lhe permitir reescrever o sentido de sua vida, isto é, oportunizar-lhe a elaboração de “um projeto de vida responsável, [o qual] fundamentalmente [advém de] um processo de conscientização do próprio jovem acerca de usas capacidades e potencialidades – isto é, sua educação” (RAMIDOFF, 2011, p. 104). O Estatuto (ECA) assegura ao adolescente autor da infração a preservação do seu direito à dignidade, diante de qualquer circunstância. No entanto, o usufruto deste direito ainda é carente de materialidade, visto que a efetivação da socioeducação é atravessada por ambiguidades: ora se reafirma a necessidade da intensificação da punição e da repressão, ora se pretende uma educação social para a cidadania. 18 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (7): 06-20 Diante disso, inúmeros são os desafios para que as práticas políticas e profissionais responsáveis pela organização e condução do cumprimento das Medidas Socioeducativas, que mais amplamente devemos denominar como campo da socioeducação, indiquem novos caminhos, novas oportunidades e a germinação de formas de vida e de subsistência aportadas pelos direitos da cidadania. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7 ao.htm>. Acesso em 14 de dezembro de 2011. ____. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Texto compilado. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 14 de dezembro de 2011. ___. Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE. Brasília: CONANDA, 2006. JESUS, V. C. P. (2011). Educação e trabalho na socioeducação: possibilidades e desafios. . Disponível em: <http://histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/fil es>. Acesso em 16 de dezembro de 2011. LAVORATTI, C.(org). Programa de capacitação permanente na área da infância e da adolescência: o germinar de uma experiência coletiva. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2007. LOLIS, D.; DOMICIANO, S.C.P. Mecanismos de avaliação institucional do atendimento socioeducativo. 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