- - - - MIOCARDIOPATIA DIABETICA MECANISMOS, DIAGNOSTICO E TERAPEUTICA TEXTO_Susana Martins Susana Martins Introdução Licenciada em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Assistente hospitalar de cardiologia do Hospital de Santa Maria e é cardiologista da APDP (Associação Protectora Diabéticos de Portugal). Tem desenvolvido a sua actividade científica nas áreas da ecocardiografia, insuficiência cardíaca e diabetes. Autora ou co-autora de 98 trabalhos científicos apresentados em reuniões nacionais ou internacionais, 28 artigos publicados, quatro trabalhos premiados e dois capítulos de um livro. Participou em cinco ensaios clínicos multicêntricos, internacionais. Colabora em Cursos e acções de formação pós graduada na sua área de especialização. Resumo do artigo A elevada prevalência de insuficiência cardíaca associadas à DM não pode ser atribuível exclusivamente à doença das coronárias, sendo relevante a importância da miocardiopatia diabética. Descrita pela primeira vez por Rubler, pode ocorrer na ausência de angiopatia, doença valvular ou congénita e parece ser, essencialmente, causada por alterações metabólicas do miocárdio, com aumento da oxidação dos ácidos gordos livres e diminuição da utilização da glicose. Esta entidade que assume carácter particularmente agressivo na presença de hipertensão arterial (HTA) ou isquemia, caracteriza-se por hipertrofia e fibrose miocárdica intersticial, cursa, inicialmente, com disfunção diastólica mas evolui muitas vezes para a hipocinésia difusa ventricular. A sua terapêutica segue as linhas recomendadas para a IC em geral, ressalvando-se o papel fulcral do controlo metabólico e o tratamento agressivo da HTA. 34 O envolvimento cardiovascular constitui a causa mais frequente de morte prematura na Diabetes Mellitus (DM), sendo a incidência de doença aterosclerótica das coronárias (DC) duas a cinco vezes superior nesta população.1 Tipicamente, a DC desenvolve-se mais prematuramente, adquire expressão mais ubíqua e difusa, com envolvimento dos pequenos vasos e tem pior prognóstico. No estudo UKPDS (United Kingdom Prospective Diabetes Study) os eventos cardiovasculares fatais foram 70% mais frequentes do que as complicações microvasculares, após 9 anos de seguimento.2 Embora os doentes com DM tenham maior prevalência de dislipidémia, hipertensão arterial (HTA) e obesidade estes factores não justificam só por si o aumento da mortalidade, sendo a diabetes um forte factor de risco independente. Independentemente da DC, os diabéticos têm um aumento do risco de desenvolver insuficiência cardíaca (IC). O estudo de Framinghan foi o primeiro a demonstrar um aumento do risco de IC em doentes com DM. A incidência de IC em doentes com idades compreendidas entre 45 e 74 anos com DM foi duas a cinco vezes superior quando comparados com indivíduos não diabéticos com idênticas características epidemiológicas.3 Em particular, as mulheres com DM revelaram o dobro da prevalência quando comparadas com os homens.4 Um aumento em 1% do nível basal da hemoglobina glicosilada A1c associou-se ao aumento do risco de desenvolvimento de IC em cerca de 15%. Uma análise recente derivada do 35 estudo SOLVD (Studies Of Left Ventricular Disfunction) identificou claramente a DM como factor independente predizente de aumento da mortalidade na IC, particularmente nos doentes com cardiomiopatia isquemica.5 Essencialmente, existem três tipos de lesões histopatológicas cardiovasculares associadas à DM: doença dos grandes vasos (macroangiopatia) causando aterosclerose e trombose das grandes artérias coronárias e cerebrais; doença dos pequenos vasos (microangiopatia) com alterações ao nível dos capilares intramiocárdicos, também responsável pela retinopatia, nefropatia e neuropatia e cardiomiopatia diabética cursando com modificações das fibras miocárdicas. Vários factores estão implicados na etiologia destas alterações, desde a obesidade, HTA, dislipidémia até à resistência à insulina, glicosilação de proteínas, aumento da agregação plaquetária, factores reológicos e coagulopatia da DM. Os doentes com DM têm uma mortalidade e morbilidade mais elevadas após enfarte do miocárdio, síndromes coronários agudos, angioplastia coronária transluminal percutânea e cirurgia de revascularização miocárdica.5,6,7 Quando submetidos a coronariografia os doentes diabéticos com e sem IC não demonstraram diferenças na gravidade da DC epicárdica, sugerindo a importância da cardiomiopatia diabética como factor causal significativo para a génese da IC.8 Todavia, a DC continua a ser a causa mais importante de IC na população diabética, não sendo mais aprofundada neste artigo uma vez que já foi analisada em anteriores publicações da revista. Definição de miocardiopatia diabética, descrita pela primeira vez por Rubler e col. em 1972.9 pode ocorrer na ausência de angiopatia, doença valvular ou congénita e parece ser, essencialmente, causada por alterações metabólicas do miocárdio, com aumento da oxidação dos ácidos gordos livres e diminuição da utilização da glicose. A miocardiopatia diabética define as alterações do miocárdio observadas nos doentes diabéticos, causando um amplo espectro de anomalias esttruturais conduzindo, na maioria dos casos, a hipertrofia ventricular esquerda (HVE) e disfunção diastólica e/ou sistólica. O seu conceito reside na ideia de que é a DM o factor causal de alterações celulares e estruturais. Alterações estruturais Hipertrofia ventricular esquerda - A HVE é frequentemente definida por critérios electrocardiográficos ou ecocardiográficos (massa ventricular esquerda > 125 g/m2 para os homens e > 110 g/m2 para as mulheres. A presença de HVE associa-se a aumento dos marcadores de inflamação sistémica (fibrinogénio e proteína C reactiva) e na DM a microalbuminúria, marcador de lesão endotelial e de risco aterotrombótico. Alterações funcionais Disfunção sistólica – definida como a incapacidade do coração ejectar um volume adequado de sangue como consequência de compromisso da sua função contráctil. No contexto da miocardiopatia diabética, a disfunção sistólica Fig. 1 Etiologia da miocardiopatia diabética Resistência à insulina hiperglicémia de degradação proteínas • Alteração matriz de remodelagem • Alteração da complacência Obesidade Central Hipertensão • Aumento lípidos celulares • Alteração produtos hiperinsulinémia vascular • Activação sistema Simpático • Aumento reabsorção renal de sódio Tipos de lesões histopatológicas cardiovasculares associadas à DM: Remodelagem VE e hipertrofia ventricular esquerda 1 - doença dos grandes vasos (macroangiopatia) causando aterosclerose e trombose das grandes artérias coronárias e cerebrais Rutter MK, Parise H, Benjamin EJ. Impact of glucose intolerance and insulin resistance on cardiac structure and functio. Circulation 107;448, 2003) ocorre frequentemente após se ter estabelecido disfunção diastólica. O prognóstico da disfunção sistólica na DM é mau, com mortalidade anual de 15 a 20%. Disfunção diastólica – A diástole define o período de tempo do ciclo cardíaco desde o fim da ejecção aórtica até ao início da tensão ventricular e desenvolvimento do batimento subsequente. Bases moleculares para a miocardiopatia diabética A hiperglicemia induz excesso de produção de elementos glicados, que desactivam o óxido nítrico e comprometem a vasodilatação coronária, depósito miocárdico de colageneo e fibrose. Os ácidos gordos livres compromem a glicólise, aumentam a oxidação piruvatos e captação de lactatos resultando em apoptose. O sistema renina-angiotensina (SRA) e o sistema nervoso simpático (SNS) estão activados, conduzindo a alterações estruturais miocárdicas e a remodelagem. Na DM ocorre uma supraregulação destes sistemas mesmo quando há apenas alterações minímas da carga. Foram documentados em ensaios em animais e humanos com DM, aumentos exagerados da produção de factores como a angiotensina II. Estes achados, suportam a importância adicional da terapêutica com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) nos diabéticos. A aldosterona e a glucose medeiam a fibrose cardíaca através da estimulação do crescimento de miofibroblastos em doentes diabéticos. Os estudos clínicos, por outro lado, demonstraram importantes reduções da mortalidade cardiovascular em doentes com IC tratados com antagonistas da aldosterona. Estudos de necrópsia, experimentais e clínicos, documentaram alterações dos factores endoteliais conduzindo a espasmo arterial, lesões de reperfusão, modificações da permeabilidade dos pequenos vasos gerando edema intersticial, lesões celulares incluindo defeitos no transporte de cálcio e metabolismo dos ácidos gordos livres que induzem hipertrofia celular, fibrose miocárdica e aumento do tecido conjuntivo intersticial causando numa fase precoce disfunção diastólica que pode avançar para a disfunção sistólica.10 Apesar da doença vascular parecer ter apenas uma responsabilidade parcial na fisiopatologia da cardiomiopatia diabética, a presença de isquemia ou HTA interactuam de forma a acelerar a disfunção miocárdica.5,10 Estes dados sugerem mecanismos sinérgicos entre as três entidades, conduzindo à acumulação de tecido fibroso, com consequente disfunção 36 2 - doença dos pequenos vasos (microangiopatia) com alterações ao nível dos capilares intramiocárdicos, também responsável pela retinopatia, nefropatia e neuropatia 3 - cardiomiopatia diabética cursando com modificações das fibras miocárdicas ventricular,10 pelo que a miocardiopatia diabética isolada pode ser discreta, mas assume particular gravidade na presença de HTA e/ou DC.5 Também, a importância da neuropatia autonómica não pode ser menosprezada, tendo vários estudos comprovado a associação entre disfunção do sistema nervoso simpático e alterações da função ventricular esquerda, disfunção diastólica, sintomas de IC e aumento do risco vascular nos diabéticos.11 Clinicamente, a cardiomiopatia diabética assume algumas características de cardiomio- 37 Quadro I Factores que possivelmente contribuem para a miocardiopatia diabética • Acumulação de colagéneo conduzindo a diminuição da complacência miocárdica • Acumulação de produtos avançados da glicosilação que moodificam a matriz proteínas extracelulares • Efeitos directos de alteração substrato de energia • Disfunção endotelial por depressão da disponibilidade do óxido nítrico • Deposição de gordura intramiocárdica secundária ao aumento de acidos gordos livres circulantes • Neuropatia autonómica • Anomalias genéticas patia restritiva, caracterizando-se numa fase inicial pela disfunção diastólica, podendo posteriormente evoluir com disfunção sistólica.5 Estudos ecocardiográficos e com radionuclídeos documentaram redução do tempo de ejecção, prolongamento do período de enchimento diastólico e do relaxamento isovolumétrico do ventrículo esquerdo, particularmente em doentes com neuropatia autonómica.12,13 O aumento da massa ventricular esquerda e a HVE, independentemente da HTA ou da terapêutica com IECA, também é relativamente frequente na DM. A fibrose miocárdica pode ser documentada por técnicas ultrassónicas e a sua presença associase a complicações da DM, como a neuropatia, nefropatia e retinopatia.10 Estudos invasivos revelaram aumento da pressão telediastólica e redução da fracção de ejecção por hipocinésia difusa do ventrículo esquerdo. Tratamento Na prevenção e tratamento da miocardiopatia diabética o controlo da glicemia é essencial. O mau controlo metabólico associa-se, claramente, a risco aumentado de mortalidade cardiovascular, com um acréscimo de 11% por cada 1% aumento da HbA1c. Um estudo recente, demonstrou ainda uma associação entre os níveis de hemoglobina glicosilada e IC. Uma vez que a combinação de HTA e DM tem um efeito adverso cumulativo no miocárdio, o controlo da pressão arterial adquire particular importância. Também, a detecção precoce de isquemia do miocárdio e o seu tratamento agressivo, em particular com recurso à revascularização cirúrgica demonstrou impacto favorável no prognóstico destes doentes.5 O tratamento da IC na DM segue as linhas gerais preconizadas para o tratamento da IC.14,15 “OS DOENTES COM DM TÊM UMA MORTALIDADE E MORBILIDADE MAIS ELEVADAS APÓS ENFARTE DO MIOCÁRDIO, SÍNDROMES reverter a remodelagem cardíaca, melhorar a função ventricular e com indiscutível e enorme impacto sobre o aumento da sobrevivência. Os BB devem ser administrados em todos os diabéticos com evidência de IC, a menos que exista uma contra-indicação formal, resultando na redução do risco de mortalidade, embora seja menor o benefício quando comparado com os não diabéticos. CORONÁRIOS AGUDOS, ANGIOPLASTIA CORONÁRIA TRANSLUMINAL PERCUTÂNEA E CIRURGIA DE REVASCULARIZAÇÃO MIOCÁRDICA.” A terapêutica farmacológica deve ser escalonada em função da gravidade dos sintomas e dos sinais clínicos predominantes (congestão e/ou baixo débito cardíaco). “A FIBROSE MIOCÁRDICA PODE SER DOCUMENTADA “A TERAPÊUTICA DA POR TÉCNICAS MIOCARDIOPATIA DIABÉTICA ULTRASSÓNICAS E A SUA SEGUE AS LINHAS PRESENÇA ASSOCIA-SE A RECOMENDADAS PARA A COMPLICAÇÕES DA DM, INSUFICIÊNCIA CARDÍACA COMO A NEUROPATIA, EM GERAL, RESSALVANDO-SE NEFROPATIA E Beta-bloqueantes (BB) A estimulação crónica do SNS conduz a aumento da frequência cardíaca, alteração expressão de genes, resultando em remodelagem cardíaca quer na IC quer na DM. Tradicionalmente, tem existido alguma relutância para o uso de BB na DM, por medo de efeitos adversos na resistência à insulina ou por mascararem a hipoglicémia. Contudo, com os recentes avanços na compreensão fisiopatológica da IC, os BB tornaram-se pedras angulares para o seu tratamento, tendo demonstrado prevenir e resistência à insulina. Nos grandes ensaios clínicos que analisaram o impacto dos IECA na IC, a proporção de doentes com DM foi de 24% no estudo CONSENSUS (Cooperative North Scandinavian Enalapril Survival study), 25% no SOLVD e 20% no V-HeFT II (Veterans Heart Failure Trial) com benefícios sobre a morbilidade e mortalidade pelo menos tão elevados, quanto nos restantes doentes. O estudo HOPE (Heart Outcomes Prevention Evaluation) que incluíu um RETINOPATIA.” O PAPEL FULCRAL DO CONTROLO METABÓLICO, TRATAMENTO AGRESSIVO DA IECA O uso de antagonistas do enzima de conversão da angiotensina (IECA) que já demonstraram em múltiplos estudos grande impacto favorável sobre mortalidade e morbilidade na IC, conferem, ainda, vantagens adicionais na DM pelo efeito protector sobre o rim, olho e redução da HTA, BEM COMO A DETECÇÃO E CORRECÇÃO EFICAZ DA ISQUEMIA MIOCÁRDICA.” total de 9297 doentes de alto risco, mais de 3.000 com DM tipo 1 ou tipo 2, documentou que a terapêutica com IECA (ramipril) reduziu a incidência de morte cardiovascular em 37%, enfarte do miocárdio em 22% e acidente vascular cerebral em 33% nos diabéticos, com taxas de benefício superiores aos restantes. O estudo HOPE demonstrou, ainda, 33% de redução na taxa de desenvolvimento de IC de novo e redução de 44% no risco de desenvolver DM. A questão da dose óptima dos IECA na DM ficou parcialmente esclarecida após o ensaio ATLAS (Assessment of Treatment with Lisinopril and Survival) que incluiu 299 DM aleatorizados para alta (32,5 a 35 mg) ou baixa dose (2,5-5 mg) de lisinopril, tendose verificado uma redução na mortalidade com as dosagens mais elevadas. Em resumo, o aumento da mortalidade cardiovascular e a elevada prevalência da IC associadas à DM não podem ser atribuíveis exclusivamente à DC, sendo relevante a importância da miocardiopatia diabética. Esta entidade que assume carácter particularmente agressivo na presença de HTA ou isquemia, caracteriza-se por hipertrofia e fibrose miocárdica intersticial, cursa, inicialmente, com disfunção diastólica mas evolui muitas vezes para a hipocinésia difusa ventricular. A sua terapêutica segue as linhas recomendadas para a IC em geral, ressalvando-se o papel fulcral do controlo metabólico, tratamento agressivo da HTA, bem como a detecção e correcção eficaz da isquemia miocárdica. Susana Martins 38 39 Bibliografia 1. Gu K, Cowie CC, Harris MI. Mortality in adults with and without diabetes in a national cohort of US population, 1971-1993. Diabetes Care 1998;21:1138-45. 2. Nathan DM, Meigs J, Singer DE. The epidemiology of cardiovascular disease in type 2 diabetes mellitus: how sweet it is …or is it?. Lancet 1997; 350 (suppl I):4-9. 3. Kannel WB, McGree DL. Diabetes and cardiovascular disease. The Framinghan study. J Am Med Assoc 1979; 214:2035-8. 4. Garcia MJ, McNamara PM, Gordon T, Kannel WB. Morbility and mortality in diabetics in the Framingham population: sixteen years follow-up study. Diabetes 1974; 23:105-11. 5. Shindler DM, Kerr JB, Yusuf S, e col. 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