o rural e às teias sociais: os “digitórios” na comunidade - Unifal-MG

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O RURAL E ÀS TEIAS SOCIAIS: OS “DIGITÓRIOS” NA COMUNIDADE DO
TERRÃO II, EM SÃO FELIPE/BA
Mateus Marcos Souza de Morais
(E-mail: [email protected]. Graduado em Geografia pela Universidade do Estado da BahiaUNEB)
RESUMO:
Este trabalho, intitulado “O rural e às teias sociais: os ‘digitórios’ na comunidade do Terrão II,
em São Felipe/BA”, empenha-se em discutir acerca as relações de sociabilidade rural, com
foco nos mutirões ou “digitórios”. Sendo assim, objetiva-se tecer discussões acerca a ajuda
mútua, os digitórios e de que forma essas relações vêm resistindo no meio rural em tempos
de tanta descrença e impessoalidade humana. Para tanto, adotou-se como metodologia o
levantamento bibliográfico, fazendo a consulta de autores clássicos e contemporâneos
sobre a ajuda mútua e temas relacionados, autores como, BRANDEMBURG (2010);
PUTNAM (1993); PINHO (1966); CORREA (2003), entre outros. O uso da observação direta
intensiva, o que indica o uso das entrevistas como instrumento. Pretende-se, nesse sentido,
entrevistar dois idosos e dois jovens agricultores e interpretação do material a fim de
apreender a visão de tais indivíduos a respeito da realização de mutirões em diferentes
contextos históricos, tecendo discussões acerca tais práticas de reciprocidade.
Palavras-chave: Mútua; Digitórios; Sociabilidade; Rural.
ABSTRACT:
This work, entitled "The rural and social webs: the 'digitórios' on the Terrão II community in
San Felipe/BA ", strives to discuss about the relations of rural sociality, focusing on task
forces or "digitórios". Thus, the objective is discussions about mutual aid, digitórios and how
these relationships have resisted weaving in rural areas in times of so much disbelief and
human impersonality. To this end, the adopted methodology the bibliographic, making query
classic and contemporary on mutual aid and issues related authors, as authors, Brandenburg
(2010 ), Putnam (1993 ) ; PINE (1966 ) ; CORREA (2003 ), among others. The intensive use
of direct observation, which indicates the use of interviews as a tool. It is intended, in this
sense, to interview two elderly and two young farmers and interpretation of the material in
order to grasp the vision of such individuals regarding the completion of task forces in
different historical contexts, weaving discussions about such practices of reciprocity.
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Keywords: Mutual; Digitórios; Sociability; Rural.
Eixo 7: Geografia Agrária
1. Introdução
Em tempos que o Brasil concentra mais de 84% de sua população em áreas
urbanas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),
devido entre outros aspectos, ao poder de atração que as cidades exercem sobre as
áreas rurais, as práticas de ajuda mútua se tornam ainda mais escassas. O que se
pode perceber é que à medida que se aproxima de áreas urbanas tais práticas se
dissipam, porém, em áreas rurais os mutirões ou os conhecidos “digitórios” do
nordeste, e “ajutórios” no sul e sudeste, também acontecem com menor frequência.
Historicamente são nas comunidades rurais onde o sentido mais pleno de
ajuda mútua se expõe mediante as relações de solidariedade, de reciprocidade que
se materializam por meio de mutirões na lavoura do/com vizinhos, na assistência em
momento de necessidade médica ou no apoio à família de um enfermo ou recémfalecido da comunidade. Brandemburg (2010, p. 420) procura explicar por que o
ambiente rural, dada a sua estrutura, é mais sujeito a essas relações, entre elas:
E, se, por um lado, a sociedade ou o poder público não provê o meio
rural de condições infra estruturais para se desenvolver melhores
condições de vida, a exemplo da vida urbana, por outro, a busca por
melhores condições de sobrevivência faz com que se desenvolvam
ações coletivas visando à construção de igrejas, escolas, pontes.
De fato, as comunidades rurais são mais propícias ao trabalho coletivo
contribuindo para a formação de uma teia social de compartilhamento e união em
grupos onde os indivíduos têm objetivos similares. Inclusive estas características são
sine qua non para formação e êxito de grupos solidários institucionalizados como
cooperativas e associações.
O sistema ideológico e econômico predominante pauta-se na ideia da maior
acumulação de capital possível, sendo que para que se faça real tal fato, o capital
migra, buscando novos mercados consumidores, bem como novas possibilidades de
acúmulo. Nessa conjuntura, entendeu que o ambiente rural brasileiro era
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potencialmente lucrativo aos interesses do capital, a partir daí fora realizada um
emprego maior de investimentos em áreas rurais.
Esta aplicação de capital que teve como marco temporal a segunda metade do
século XX exemplifica bem essa busca do capitalismo por maiores margens de
lucro. Nesse contexto, por iniciativa do governo foram realizadas diversas
construções de grande porte, incluindo a construção de rodovias, agências
bancárias, aeroportos e a própria fundação da capital federal, a fim de interiorizar o
Estado promovendo uma maior circulação de bens e capital, e consequentemente,
trazer crescimento econômico para áreas distintas do país. Isso pressupõe uma
maior influência da cultura do consumo e individualismo em áreas que antes eram
pouco influenciadas. Esta deposição maior de capital pode ser considerada uma
variável contribuinte para a menor frequência de ações coletivas em comunidades
rurais.
Assim, pretende-se nesse trabalho tecer discussões acerca a ajuda mútua, os
digitórios e de que forma essas relações de sociabilidade vem resistindo no meio
rural em tempos de tanta descrença e impessoalidade humana. Para tanto, adotouse como metodologia o levantamento bibliográfico, fazendo a consulta de autores
clássicos e contemporâneos sobre a ajuda mútua e temas relacionados, autores
como, SCHMIDT (2004); BRANDEMBURG (2010); PUTNAM (1993); PINHO (1966);
CORREA (2003), entre outros. O uso da observação direta intensiva consiste na
segunda parte da metodologia, o que indica o uso das entrevistas como instrumento
de pesquisa. Pretende-se, nesse sentido, entrevistar dois idosos e dois jovens
agricultores. Por fim, fará a interpretação do material a fim de apreender a visão de
tais indivíduos a respeito da realização de mutirões em diferentes contextos
históricos, tecendo discussões acerca tais práticas de reciprocidade.
1- Ajuda mútua, Cooperativa e Associação: diferenciando termos
Anterior a qualquer discussão cabe aqui fazer uma breve diferenciação de
termos que passam ideias parecidas por lidar, justamente, com solidariedade e
reciprocidade. Segundo Pinho (1966), as cooperativas é um tipo de organização
institucionalizada com finalidade social e econômica e pautada nos sete princípios
do cooperativismo sistematizada pelo professor francês Charles Gide. A primeira
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cooperativa que se tem informação é a dos pioneiros de Rochdale fundada em 1844
na Inglaterra.
Quanto à associação, esta consiste em outra organização institucional pautada
na doutrina associativista e na lei geral das associações, Lei n° 10.406 de
10/01/2002. Nesse sentido, juridicamente, associação corresponde, segundo o art.
53 do primeiro livro, do segundo título do Código Civil: à união de pessoas que se
organizem para fins não econômicos. Esta característica se constitui como a maior
diferença desta para com o cooperativismo, já que este último tem uma relação
inevitável com o capital e trabalha com a ideia de excedentes, com a divisão
democrática destes.
A ajuda mútua se diferencia das cooperativas e das associações por não
consistir em organização institucionalizada, porém, sabe-se que para o êxito de
quaisquer organizações solidárias rurais, constitucionalizadas ou não, a ajuda mútua
deve se fazer presente. Esta se diferencia da caridade visto que é uma relação com
benefícios para ambos, enquanto a caridade tem um viés unilateral.
Em muitas sociedades rurais do mundo contemporâneo a ajuda mútua ainda
se faz presente em algumas etapas ou atividades agrícolas, são construídas,
reconstruídas, redimensionadas a cada ação de solidariedade entre vizinhos e
parentes, além de ser materializada por apadrinhamento mútuo das crianças, este
se constitui como uma extensão das relações de parentesco. Um exemplo de
práticas ainda visíveis em comunidades rurais são os mutirões, “ajutórios” ou
“digitórios”, como são conhecidos no Recôncavo Baiano e boa parte da Bahia.
A ajuda mútua se faz presente em todos os países do globo, porém,
curiosamente no continente com as maiores dificuldades socioeconômicas, essas
práticas de reciprocidade se fazem mais presentes. A África é riquíssima na
variedade dessas práticas. Nessa perspectiva, vejamos um tipo de ajuda mútua
denominada zikao na Ilha de Mayotte (Arquipélago das Comores no continente
africano), este que se assemelha bastante ao fazer “sala” na caso do vizinho que
teve um familiar falecido (prática muito presente nas comunidades rurais do nordeste
brasileiro):
O shikao é um grupo de ajuda mútua ligado a organização de
eventos sociais como o matrimônio, a circuncisão, os funerais e
rituais para comemorar os falecidos. É composto de homens ou de
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mulheres da mesma aldeia e tradicionalmente da mesma classe de
idade. O objetivo do grupo é ajudar seus membros para assumir suas
obrigações sociais, para manter a tradição (SOURISSEAU, 2004
apud SABOURIN, 2006, p. 3).
Através de trabalhos de autores em diferentes pontos do mundo e em
diferentes temporalidades, infere-se que estas práticas não são recentes, a
cooperação e a ajuda mútua são datadas de milhares de anos, desde as antigas
civilizações pré-colombianas ou até mesmo nos períodos da civilização egípcia.
Assim, de acordo com o que apresenta Fiorin (2007, p.3), as práticas de cooperação
não podem ser classificadas como recentes, visto que estas já podiam ser
visualizadas, mesmo que informalmente, nas relações sociais em diversas
civilizações, como a chinesa, a babilônica, a egípcia e as americanas (précolombianas): incas, maias e astecas.
Em alguns países a ajuda mútua é tida como grande propulsora do
desenvolvimento local e não raramente concentra no centro de diversas pesquisas
cientificas com o apoio governamental, aliás, em muitos países da União Europeia, a
ajuda mútua é entendida como um tipo de grupo jurídico. Como na França que,
segundo Couturier (2001), é entendida como um intercâmbio de serviços recíprocos
pelo Código Rural. A saber, que para o Código Rural francês (art. L.325-1 e
seguintes) a ajuda mútua é uma convenção na qual existe uma reciprocidade de
obrigações. Tal visão é compartilhada por países como Alemanha, Espanha e Itália,
segundo Couturier (2001).
Apesar de ter grande relevância a constitucionalização da ajuda mútua em
alguns países da Europa, este fato causa uma incoerência, pois quando se
apresenta a ajuda mútua como sendo obrigatória juridicamente a devolução do
“favor”, perde-se a ideia de que tal devolução deveu-se à solidariedade ou à própria
vontade e prazer em ajudar, mas sim, por mera imposição do Estado.
2- Mutirões como estratégia de desenvolvimento comunitário
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As práticas de ajuda mútua, entre elas os mutirões, também conhecidos como
“digitórios”, estão ganhando poder de discutibilidade na comunidade acadêmica
diante da maior evidencia de temas contemporâneos tal como o capital social.
O conceito de Capital social ou capital humano foi apresentado por Putnam,
(1993) e refere-se a características de participação política, coesão social e relações
de sociabilidade em determinada comunidade, estas que podem favorecer o
florescimento de grupos sociais políticos e/ou econômicos, proporcionando o
desenvolvimento local. Tal conceito de capital social advém, segundo Correa (2003,
p. 127) justamente no intuito “dar mais significado à presença e á qualidade das
relações sociais para o desencadeamento do processo de desenvolvimento”.
Embora o conceito tenha tido grande repercussão, hoje, o mesmo é considerado
insuficiente para determinar o porquê de comunidades semelhantes em termos
estruturais apresentarem níveis de desenvolvimento distinto.
O fato é que já é realidade o incentivo governamental, tanto no Brasil quanto no
exterior, para a organização e realização de mutirões. Com tal incentivo, além de
melhorar e redimensionar o nível das relações entre indivíduos de uma mesma
comunidade busca promover o desenvolvimento local pautado na reciprocidade e na
solidariedade despertando o sentimento de trabalho coletivo. Embora Costa (2002,
p.23) tenha reconhecido que “a ideia de cooperação esteve sempre presente nas
relações humanas, pois o homem tem a necessidade de viver coletivamente e que a
ajuda mútua e a solidariedade são princípios basilares da vida em sociedade”,
despertar o interesse pela coletividade não se faz tarefa fácil. Pois no sistema
capitalista, o individuo procura beneficiar-se muitas vezes por meios indignos, como
prejudicar o outro. Devido a tal fato, como também por outros motivos há certo
receio em trabalho coletivo, que envolva a dependência do outro.
O individualismo exacerbado pode ser explicado também, segundo Holanda
(1981), pela ideia de que o nível de valor de um homem, antes de tudo, é dado
proporcionalmente, na extensão em que não precise de ninguém, ou seja, pauta-se
na autossuficiência humana.
Apesar de entraves como o individualismo, a constitucionalização dos mutirões
em países da União Europeia, como França e Espanha, além de algumas práticas
fomentadas pelo governo junto com comunidade no Brasil, demonstram grande
êxito. Exemplo dessas ações ocorreu na comunidade de Lajeado Maria, município
de Nova Horizontina- RS.
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Segundo Schmidt (2004), nos meses de Junho a Outubro de 2003 em Lajeado
Maria ocorreu a realização de um projeto piloto que consistia na realização de
mutirões na comunidade. O critério de escolha da comunidade pautou-se nos níveis
de coletivismo e espírito empreendedor de seus agricultores. Este projeto contou
com o apoio da FUNCAP– Fundação Centro de Capacitação e Atualização do
Produtor – de Três de Maio (RS), Prefeitura Municipal de Nova Horizontina,
comércio local entre outros.
Os mutirões visavam o embelezamento e a maior produtividade das
propriedades da comunidade, e centraram as ações na construção de terraços, na
pintura de áreas internas de casas, na construção de banheiros, correção de solo,
tapamento de voçorocas, entre outros. Ao todo foram 30 famílias beneficiadas e em
média compareciam 35 homens nos mutirões. Segundo Schmidt (2004), o almoço
era de responsabilidade da mulher e/ou filha(s) do anfitrião da atividade, sendo que
refrigerantes e salada era por conta dos convidados. Ao término de cada dia de
atividades contavam-se histórias antigas e tudo terminava em clima de brincadeira.
Sobre essas relações em ambiente comunitário e o sentimento de pertencimento à
mesma, entendendo-a como seu lugar, de acordo com o entendimento geográfico
que:
[...] é no universo das comunidades que são vivenciadas,
reproduzidas, compartilhadas as relações de parentesco e
compadrio, o sentimento de pertencimento, os comportamentos de
confiança, de solidariedade, de compromisso mútuo, e do próprio
modo de vida apreendido dos antepassados através de uma herança
cultural homogênea. (TÖNNIES, 1973 apud NASCIMENTO, 2007, p.
3)
De fato os mutirões são práticas predominantemente de áreas rurais e são
nesses momentos que os homens da comunidade explicitam o sentimento de
camaradagem e companheirismo para com o vizinho e/ou amigo. Geralmente
realizam as atividades em meio a piadas, brincadeiras, causos acontecidos e
cantoria que exaltam o meio rural e a vida na roça. Sobre esses “digitórios”, Seu
Orisvaldo em entrevista concedida à Associação Nacional dos Violeiros do Brasil,
(2013, p. 8) menciona: “O combinado do ‘adigitório’ era fazer um trabalho de forma
coletiva, pago pelo encomendador com um agrado, como um almoço, outros favores
ou uma diversão. E dentre os pagamentos, era muito comum a realização de uma
festa, um forró; E aí, tocava-se e cantava-se o tempo todo, onde ficavam até o
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amanhecer”. No depoimento torna-se evidente que para além de quaisquer “agrado”
vindo do anfitrião ou encomendador do mutirão, o momento de socialização e da
diversão que acontecia no final do dia era outra forma muito apreciada de
pagamento.
3- “Digitório”: Perspectiva dos pequenos agricultores do Terrão II
Coerentemente como indica a metodologia, utilizou-se se entrevistas para
conhecer como procedia a dinâmica das relações de sociabilidade típicas de áreas
rurais. Realizou-se entrevistas com quatro pessoas (Entrevistado 1, Entrevistado 2,
Entrevistado 3 e Entrevistado 4) que conviveram/convivem com a realidade dessas
relações de solidariedade e/ou compadrio, entre elas os famosos “digitórios”.
Em geral os “digitórios” são realizados em dias que não prejudique ninguém,
nesse sentido, os dias de sábado e domingo são os dias preferidos por aqueles que
solicitam ajuda de parentes, amigos, vizinhos e conhecidos, a fim de desempenhar
uma ou mais tarefas, como limpar pastos (consiste em livras o capim destinado ao
gado das ervas daninhas), construção de uma casa, preparar o terreno para o
plantio, plantar ou colher o amendoim, catar café, entre outras atividades.
Por meio da entrevista percebeu certa tristeza e saudade do período onde as
relações de sociabilidades entre amigos, vizinhos e famílias inteiras eram mais
consistentes, tais momentos que alegravam os finais de semana. Tal sentimento foi
partilhado pelos dois entrevistados mais velhos, Entrevistado 1 e 2, respectivamente,
82 e 77, anos de idade. Segundo o entrevistado 1, quando perguntado o que
significava o “digitório” o próprio, ele menciona que era momentos de alegria, o
trabalho era duro, mas no final do dia de trabalho, todos se divertiam muito e
dinheiro nenhum poderia pagar aqueles momentos. Ele revela também a falta que
sente dos companheiros de “digitório”, em sua maioria já falecida. Nessa
perspectiva:
Mutirão as pessoas se unido, a união faz a força, pra unir, mas a
gente conhece mais como ‘digitório’. Fazia assim, a pessoa que
queria o ‘digitório’ chegava na casa do outro né, tal dia tu pode ir lá
em casa cavar uns ‘camin’ de cova? Me dá um digitorinho? Aí né,
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que o povo se ajustava, e cantava boi1, aquilo era tão bom, naquela
união, era cavando cova, capinando terra, era rançar mandioca,
juntava tudo, a união faz a força. Aí depois do ‘digitório’ era a festa,
era cachaça, brincadeira, tinha dia de virar a noite, era uma fartura
retada2.
Esses “digitórios” começavam geralmente com o dia amanhecendo, havia
pausas para o almoço, este preparado pela mulher e/ou filhas do dono da terra, e
quando terminava o dia de trabalho celebravam-se com cantigas e brincadeiras de
roda, num clima amistoso todos davam as mãos e rodavam geralmente em frente à
casa no ritmo das “cantigas de boi” e das cantigas sertanejas, não raramente
festejava-se com sambas que iam até o amanhecer.
Assim como nas rezas e sambas, ainda muito vistas em ambiente rural, os
“digitórios” à moda antiga, de certa forma, eram eventos muito esperados pela
comunidade, o bom “digitoriador” e o bom anfitrião, tinham reconhecimento na
comunidade. Por vezes vinha gente de longe pra dar digitório, dada a relação de
reconhecimento pela ajuda
recebida,
relação de
amizade, compadrio
ou
solidariedade.
Quando perguntado se o “digitório” acabou, o entrevistado 2, menciona com
certa tristeza, que ainda existe alguns na comunidade, mas se centra mais entre os
parentes, e não se vê a cantoria durante o trabalho ou a festança no fim do dia como
nos de antigamente. Assim:
Matava galinha, matava galinha, comprava 15 quilos de carne, era
tudo, compadre, cunhado, os vizinhos tudo que participavam, depois
comiam, dava pra sambar até tarde [...] Hoje em dia acabou tudo, o
povo tudo tá ficando rico, passaram a qualquer coisa pegar o trator
pra arar, hoje não se ver muito não, mas ainda tem, não como
antigamente3.
Como bem aponta a entrevista 2, a aproximação do campo à cidade, as
modificações das condições de vida, a inserção mas veemente do consumismo e a
1
“As cantigas de boi” consistem em conjunto de versos e músicas que exaltam a vida no campo e ainda são
vistas, em algumas comunidades rurais, usualmente cantadas por vaqueiros durante as viagens de locomoção
do gado de um pasto para outro. Ainda são comuns também em mutirões rurais, onde os trabalhadores
cantam enquanto trabalham, no final dos mutirões ou digitórios, tais canções também eram/são vistas.
2
Entrevistado 1- Homem/Agricultor aposentado- 82 anos
3
Entrevistado 2- Mulher/Agricultora aposentada- 77 anos
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mecanização do campo, aos poucos foram reeditando as redes solidárias nas
comunidades rurais, e as ações conjuntas como “digitórios” foram aos poucos
desaparecendo, embora reconheça que ainda exista na comunidade. Aquele
pequeno agricultor que antes organizava “digitórios” para a aragem da terra, hoje
tem trator ou paga a algum dono da máquina para que faça tal trabalho de aragem
da terra.
As relações com os vizinhos se alteram também devido ao acréscimo
econômico dos pequenos agricultores. A entrevistada 2 afirma que “antigamente
ninguém tinha dinheiro pra pagar pra ‘dar dia4’ não, hoje prefere até, por que se
fazer fiança em “digitório” é difícil, hoje todo mundo tem dinheiro pra chamar alguém
pra ‘dar dia’”. Ainda de acordo com a entrevistada 2:
Eu gostava de ‘digitório’, eu ia, nós cantava, quando, quando no dia
que catava café, na hora que acabava o café, a gente cantava [...]
Chora cafezeiro, quando eu for me embora, cafezeiro chora [...] Ou
então: Cozinheira, cozinheira lava o prato pro almoço, cozinheira. Aí
o povo via e falava, olha as mulher já vem ó, de longe se ouvia, de lá
do Pau d’alho ouvia5
Desmistificando qualquer ideia de que em “digitórios” à mulher cabia apenas o
preparo do almoço e da comida que era servida no fim do dia de trabalho, a
entrevistada 2, menciona que ela própria já participou de vários “digitórios” quando ia
com outras mulher catar o café, e que no final do dia anunciavam sua chegada na
casa do dono da propriedade com cantigas típicas.
No que diz respeito aos entrevistados 3 e 4, respectivamente, têm 24 e 25 anos
de idade, são agricultores e residem na mesma comunidade, Terrão II. Eles
denotam seu entendimento e predisposição ao trabalho em “digitórios”, porém não
apresentam
declarações
empolgadas
como
os
agricultores
aposentados,
entrevistado 1 e 2. Assim observa-se a diferença de posicionamento à medida que a
temporalidade é outra. Nessa mesma direção:
4
Dar dia- Consiste em contratar um agricultor ou simplesmente ganhador de dia, para vender sua força de
trabalho, ganhando de acordo com preço de predefinido.
5
Entrevistado 2- Mulher/Agricultora aposentada- 77 anos
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‘Digitório’ tem, mas é mais com parente né, e também uns poucos
amigos assim. E é mais dia de sábado ou domingo. Só dá ‘digitório’
se o ‘cara’ for acostumado a vir também quando chama. Funciona
assim, chega de manhã cedo né, aí a gente come na casa da pessoa
[...] quando termina a gente vai embora, às vezes o dono da terra dá
cachaça, licor, essas coisas, depois ‘vamo’ pra casa6.
Nota-se em tal depoimento que assim como os entrevistados 1 e 2 revela, os
“digitórios” ainda são organizados em dias de sábado e domingo, ou seja, em dias
em que os agricultores não estão trabalhando em sua propriedade ou não está
“dando dia”. Porém, diferentemente dos antigos “digitórios”, em nenhum momento o
entrevistado 3 refere-se à cantoria ou às brincadeiras que eram comuns nos antigos
“digitórios”. Após o término do dia de atividades na roça não se realizava sambas ou
se via as “cantigas de boi”. O dono da terra agradecia e concedia o pagamento por
meio de cachaça, do licor a todos os trabalhadores e por meio da devolução do dia
de trabalho àqueles que participaram de seu “digitório”.
Outro fato a ser observado é que tais práticas coletivas, segundo o entrevistado
3, centram-se, principalmente em ambientes familiares. Isso demonstra certa
reedição de práticas coletivistas que envolvem a comunidade e enfraquecimento
dessas relações, embora o depoimento do entrevistado acuse que ainda existem
“digitórios” entre amigos. O critério usado a comparecer ou não no “digitório”
organizado por determinado indivíduo é a predisposição do mesmo em participar de
“digitórios” organizados por outros. Esse critério é criado inconscientemente e pode
excluir ou incluir alguém no círculo social daqueles aptos a receber tal ajuda.
Ainda sobre a perspectiva de jovens agricultores sobre os “digitórios”, o
entrevistado 4 expõe que há uma falta de predisposição de muitos da comunidade
ao trabalho coletivo. Segundo ele, isso se deve por motivos diversos, que vão desde
ao pertencimento de trator por algumas famílias da comunidade ao pertencimento de
maiores propriedades de terra, o que permite maior lucro com a produção e,
consequentemente, a contratação de mão-de-obra local. Nesse sentido entrevistado
4, afirma:
Muitos não quer trabalhar tudo junto porque, as vezes tem mais terra
que os outros, e tem trator, aqui mesmo tem uns que preferem
assim, mas, os mais fracos né, precisa da união, aí com o ‘digitório’
6
Entrevistado 3- Homem/Agricultor- 24 anos
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consegue preparar sua roçinha sem gastar com trator ou então,
pagar a alguém pra ajudar ele na roça.7
Entendendo o ambiente rural com heterogêneo no que concerne a perfis
sociais e econômicos distintos, nota-se mais uma vez a mecanização do campo
como agente determinante para a reedição dessas relações, porém, outro atuante
que influencia muito no que concerne à sociabilidade do campo, é a identificação
com determinado perfil social e/ou econômico. À medida que se observa as maiores
rendas ou as maiores propriedades de terra e, consequentemente, maior produção,
cresce a aversão ao trabalho coletivo, tal como os “digitórios”. O entrevistado 2, já
mencionara que nos antigos “digitórios” os mais ricos se autoexcluíam desses
eventos sociais, enquanto os pequenos proprietários ajudavam, esperando a
reciprocidade, a fim de diminuir os custos e o tempo de labuta com a produção.
Sobre a ausência de práticas solidárias entre a camada rural mais alta, Oliveira
Vianna, (1952, p. 20) afirma: “O próprio costume dos ‘ajutórios’ só é corrente entre a
gente miseranda; não tem um caráter geral: os lavradores médios e a alta classe
rural não a praticavam”. Brandemburg (2010, p. 420), ainda acrescenta: Essas
relações, no entanto, só são reproduzidas na medida em que estes agricultores
pertencem a uma mesma categoria ou mesma condição: a condição camponesa.
Nesse sentido, tanto nos antigos como nos atuais “digitórios” ou mutirões, a classe
rural mais beneficiada economicamente não participam de tais práticas sociais.
4- A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Assim é possível concluir que, o capital, inevitavelmente, interage com todas
as camadas e instâncias do território brasileiro, o que varia é sua influência. As
práticas de ajuda mútua, comumente visualizadas em ambientes rurais, são formas
de sociabilidade que foram reeditadas à medida que o capital inseriu-se nos
ambientes rurais, este alterou o processo produtivo, entre outras formas, por meio
da mecanização do campo e inseriu veementemente a cultura do individualismo e
consumismo. Nesse contexto, as relações de compadrio e solidariedade que
7
Entrevistado 4- Homem/Agricultor- 25 anos
ISBN: 978-85-99907-05-4
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caracterizam as teias de sociabilidade das comunidades rurais, como os digitórios,
foram se enfraquecendo e tornando menos comuns.
O fato é que, atualmente não se observa digitórios ao modo no qual se
praticava há algumas décadas atrás (com “cantigas de boi”, festejos pós dia de
trabalho e sambas até à madrugada do dia posterior). Atualmente existem tais
práticas, porém, são centradas em círculos menores, tornando-se mais comuns
entre membros da família, e os festejos pós dia de trabalho acontecem em curto
período de tempo, se restringindo, apenas, às bebidas, como cachaça e licor,
servido pelo anfitrião do mutirão ou “digitório”.
781
Assim, infere-se que as atuais relações de sociabilidade rural encontram-se
em suportes enfraquecidos pela ação do sistema capitalista, o que permite entender
também, o porquê de tanta dificuldade em se obter êxito em sociedades
cooperativas,
associativas
e/ou
em
outros
grupos
políticos
organizados
coletivamente para o bem comum. E dada a necessidade e importância da ajuda
mútua para o desenvolvimento local, que contribui para o desenvolvimento em
escala macro, há de se tecer maiores pesquisas e ações por governamentais a fim
de fomentar, despertar ou mesmo (re)educar comunidades e grupos interessados no
coletivismo e seus benefícios.
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