76 TRADUÇÃO HILARY PUTNAM (1926 – 2016)* Martha C. Nussbaum** Traduzido por Giovane Martins Vaz dos Santos*** Atualmente a filosofia é muito impopular na América. Marco Rubio diz, com deselegância típica: “precisamos de mais soldadores e de menos filósofos.” O governador da Carolina do Norte, Pat McCrory, também destacou a filosofia como sendo uma disciplina que oferece “cursos inúteis” que “não oferecem empregos para as pessoas.” Em todo o país há uma adulação ilimitada pelas disciplinas STEM1 [ciência, tecnologia, engenharia e matemática], que parecem tão rentáveis. Apesar de todas as humanidades sofrerem desdém, a filosofia permanece atraindo uma especial atenção negativa – talvez porque além de parecer inútil, também pareça vagamente subversiva, uma ameaça aos sólidos valores tradicionais. Esse nem sempre foi o caso. Ao longo da história, a filosofia apareceu muitas vezes abusando das forças da tradição e da autoridade. A fundação americana, entretanto, foi diferente: os fundadores foram homens do Iluminismo, mergulhados nas ideias e obras de Rousseau, Montesquieu, Adam Smith e dos gregos antigos e romanos – especialmente Cícero e os estoicos romanos. Como homens do Iluminismo, tinham orgulho de conduzir seus discursos pela razão e pela argumentação ao invés de conduzilos pela tradição não examinada. A independência intelectual e a reflexão teórica deles serviram bem quando se tratava de criar uma nova nação. Temos viajado um longo caminho a partir dessas raízes, e não tem sido em uma boa direção. No dia 13 de março, a América perdeu um dos grandes filósofos que essa nação já produziu. Hilary Putnam morreu de câncer aos 89 anos. Aqueles de nós que tiveram a * Texto publicado originalmente em: NUSSBAUM, Martha. Hilary Putnam (1926-2016). 2016. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/martha-c-nussbaum/hilary-putnam-19262016_b_9457774.html>. Acesso em: 27 mar. 2016. ** Martha Nussbaum é filósofa americana. Atual titular da cátedra Ernst Freund Distinguished Service Professor of Ethics and Laws na Universidade de Chicago. É a autora de diversas obras em filosofia, como A Fragilidade da Bondade (1986). *** Discente de filosofia da PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq e pesquisador do CEFA – Centro de Estudos em Filosofia Americana. E-mail: [email protected] 1 Sigla do inglês “Science, technology, engineering and mathematics”. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016 77 sorte de conhecer Putnam como seus orientandos, colegas e amigos relembram sua vida com profundo amor e gratidão, visto que Hilary não foi apenas um grande filósofo, mas também um ser humano de extraordinária generosidade, que realmente queria que as pessoas fossem elas mesmas, não seus acólitos. Mas também é bom, em meio ao pesar, refletir sobre a carreira de Hilary e o que ele nos mostra sobre o que a filosofia é o que ela pode oferecer para a humanidade. Hilary foi uma pessoa de brilhantismo inigualável, mas também acreditava que a filosofia não era apenas para os indivíduos raramente talentosos. Como dois de seus favoritos, Sócrates e John Dewey (e eu adicionaria, como os fundadores da América), ele pensava que a filosofia era para todos os seres humanos, um convite ao despertar para a humanidade em todos nós. Putnam foi um filósofo de incrível amplitude. Como ele mesmo escreveu, “qualquer filosofia que pode ser colocada em poucas palavras pertence a nós.” E na sua carreira prolífica, Putnam elaborou, consequentemente, considerações detalhadas e criativas sobre questões centrais em uma variedade extremamente ampla de áreas da filosofia. De fato, não há nenhum filósofo depois de Aristóteles que tenha feito contribuições criativas e fundamentais em todas as seguintes áreas: lógica, filosofia da matemática, filosofia da ciência, metafísica, filosofia da mente, ética, pensamento político, filosofia da economia e filosofia da literatura. Putnam também adicionou pelo menos duas áreas para a lista que Aristóteles não trabalhou, a saber, filosofia da linguagem e filosofia da religião. (Filosofia da religião porque ele foi um judeu religioso, e entendeu que o judaísmo exige uma vida de crítica permanente.) Em todas essas áreas, também, compartilhou com Aristóteles uma profunda preocupação: que a questão confusa da vida humana não deveria ser distorcida para se ajustar às demandas de uma teoria excessivamente simples, de modo que Putnam disse que “toda a agitação das ações humanas” deve ser o contexto em que a teoria filosófica faz o seu trabalho. Esse compromisso levou-o a se opor a muitos caprichos do seu tempo: pois a filosofia é propensa a modismos redutivos e simplificados, do positivismo lógico até a moda recente de modelagem computacional dos problemas filosóficos. Putnam sabia física como praticamente mais ninguém na área, e por isso mesmo ele também sabia que foi fatal reduzir a filosofia à física: a filosofia é uma disciplina humanística. (Lembrome de um curso maravilhoso e profundamente contracultural que ele lecionou em Harvard, quando o positivismo lógico estava apenas começando a perder força, intitulado “Conhecimento não científico.” O curso cobriu o conhecimento ético, o Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016 78 conhecimento estético e o conhecimento religioso, e Putnam mostrou a loucura que é imaginar que o reducionismo físico poderia substituir esses assuntos normativos). Sua independência em relação às modas também o levou a ter um grande interesse pelo pensamento dos gregos antigos, que pareciam estúpidos para os positivistas, mas que tiveram algumas ideias realmente boas! Aprendeu grego antigo para trabalhar seriamente sobre Aristóteles, e argumentou que Aristóteles teve insights importantes sobre a relação mente-corpo, que deveriam ser assumidos pelos pensadores contemporâneos. A maioria dos filósofos fala muito sobre seguir uma argumentação, mas eventualmente eles caem no erro do dogmatismo, defendendo a todo custo uma posição bem conhecida, não importando os novos argumentos que podem surgir. A glória da maneira de filosofar de Putnam foi a sua total vulnerabilidade. Porque ele realmente seguiu a argumentação, onde quer que o levasse, mudando frequentemente de ideia. Ser conduzido a mudar não era aflitivo, mas profundamente agradável evidência de que ele era humilde o suficiente para ser digno da sua própria racionalidade. Uma vez, no final dos anos 70, ministrou um curso de metafísica em Harvard com seus colegas Nelson Goodman e W. V. O. Quine. Os outros dois tinham visões muito diferentes das de Putnam, e argumentaram bem. Putnam ficou mais e mais excitado pelo debate – tanto que deixaria uma reunião de departamento no meio do lanche para andar para cima e para baixo pelos corredores com Goodman. No final daquele período, seu discurso presidencial à American Philosophical Association continha um elegante argumento contra si mesmo – um pouco no espírito de Goodman, embora não exatamente. Uma vida racional [A life in reason] era e é difícil. Todos nós – ignorantes em filosofia ou professores de filosofia – achamos mais fácil seguir um dogma do que pensar. O que a vida de Hilary Putnam oferece à nossa nação conturbada é, penso, um paradigma nobre de uma boa vontade permanente para nos submetermos à crítica da razão. Nosso país, fundado por amantes da argumentação, se tornou o brinquedo de retóricos e animadores [entertainers] (personagens que Platão conhecia muito bem). Neste dia em que perdemos um dos gigantes da nossa nação, vamos pensar sobre isso. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016