130 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 Revisão/Atualização em Transplante Renal: Progressos na indução de tolerância em transplantes humanos Roberto Ceratti Manfro, Luiz Felipe S. Gonçalves, David Saitovitch Unidade de Transplante Renal, Serviço de Nefrologia, Hospital das Clínicas de Porto Alegre. Departamento de Medicina Interna, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Endereço para correspondência: Roberto C. Manfro Rua Ramiro Barcelos 2.350 CEP 90035-003 Porto Alegre, RS Fax: (0xx51) 328-9234 E-mail: [email protected] Introdução Tolerância imunológica é um fenômeno complexo que ocorre naturalmente em todo ser vivo. É por meio desse fenômeno que as células do sistema imune, mais especificamente os linfócitos T e B, aprendem o que é próprio (no timo e na medula óssea, respectivamente) e o que não é. Por meio desse conhecimento, essas células, após serem exportadas para a periferia, não reagem contra os antígenos próprios (auto-tolerância), mas estão prontas para reconhecer os antígenos estranhos (por exemplo, antígenos virais ou neoplásicos). Esse processo de educação celular, ocorre na medida em que as células imaturas e em processo de desenvolvimento entram em contato, pelos seus receptores de membrana, com a mais variada gama de antígenos (próprios), ou ligantes. Essa interação é minuciosamente monitorada por um aparato molecular especializado, como oncogenes (por exemplo bcl-2 e bcl-xL) e moléculas indutoras de apoptose (como o sistema Fas-FasL)1,2. Dessa forma, as interações de alta afinidade promovem deleção clonal no timo (seleção negativa) para os linfócitos T3 e deleção clonal4 ou re- edição do receptor de linfócitos B5 na medula óssea. Esses mecanismos impedem que células com forte potencial auto-reativo migrem para a periferia, protegendo o organismo em questão contra doenças auto-imunes. Por sua vez, as células que falham em expressar receptores que interajam com as moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) dentro do ambiente tímico ou com outros antígenos próprios na medula óssea, também não são selecionadas positivamente para povoarem a periferia e morrem negligenciadas6 ou por apoptose1. Finalmente, aquelas células com receptores com baixa afinidade pelos antígenos supra-mencionados são selecionadas (e exportadas) para povoarem o sistema imunológico periférico, processo conhecido como seleção positiva7. Apesar desses sofisticados sistemas de seleção em nível central, as células com potencial auto-reativo são exportadas para a periferia, mas, normalmente, impedidas de reagir contra os auto-antígenos por diferentes mecanismos, que variam desde a apoptose1,2,8 até a regulação ativa9,10. Acredita-se que uma falha nesses sistemas de segurança e a conseqüente quebra nesse equilíbrio homeostático predisponha o organismo a doenças auto-imunes11. Os xenos e os aloenxertos são tecidos altamente imunogênicos, ou seja, desencadeiam uma forte resposta imune que, se não modificada, leva à destruição dos mesmos processo denominado de rejeição. Isso se deve ao fato de que a freqüência de precursores de células alorreativas (que reconhecem os aloantígenos de histocompatibilidade) é extremamente alta quando comparada à freqüência de precursores de células reativas contra qualquer outro A publicação desta seção foi possível graças à colaboração da Novartis Biociências S.A. J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 131 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal antígeno estranho12. Devido à essa intensidade que leva rapidamente à destruição dos tecidos transplantados é que os antígenos MHC foram denominados de antígenos do transplante. O estado no qual um órgão ou um tecido transplantado entre seres geneticamente distintos não é rejeitado, na ausência de imunossupressão inespecífica (ou seja, com a competência imunológica preservada), é denominado de tolerância imunológica do transplante. A busca pela indução desse estado imunológico tem sido realizada desde o início dos anos 50, quando Medawar e colaboladores injetaram em roedores e em aves no período perinatal, células linfoematopoiéticas de animais da mesma espécie, mas distintos geneticamente. Os animais que receberam o tratamento, após atingirem a idade adulta, eram transplantados com pele do mesmo doador das células linfoematopoiéticas e de animais controles. Enquanto as peles de controles eram prontamente rejeitadas (demonstrando que o tratamento no período perinatal não induziu nenhuma forma de imunossupressão generalizada), aquelas provenientes dos doadores celulares, em sua maioria, eram retidas indefinidamente como se fossem próprias. Esse foi o primeiro relato na literatura especializada de tolerância imunológica ativamente induzida, conforme denominado pelos próprios autores.13 Desde esse marco histórico e científico, inúmeros pesquisadores têm aprofundado o estudo da indução de tolerância imunológica em transplantes. Destas pesquisas, ficou muito claro que: a) existe uma grande distância entre se induzir tolerância neonatal (ou seja, em um sistema imune imaturo) e no animal adulto (para o qual, alguma forma de imunossupressão deve ser administrada com o intuito de torná-lo imunologicamente mais imaturo); b) à medida em que se sobe na escala filogenética, fica mais difícil de se induzir o estado de tolerância imunológica. Apesar dessas dificuldades, estes estudos têm sido da maior importância, pois, apesar de serem poucos os protocolos que podem ter utilidade clínica, vários destes ajudaram a esclarecer os mecanismos envolvidos na indução e na manutenção desse estado tão almejado por todos. É somente por esse conhecimento que poderemos, um dia, induzir a tolerância imunológica, de forma consistente e reprodutível, em seres humanos. Mas uma pergunta (freqüente entre as pessoas que vivenciam o mundo dos transplantes de órgãos) deve ser respondida: Será que se justifica todo esse esforço para a indução de tolerância imunológica no atual contexto de sobrevida do enxerto no primeiro ano pósTx superior a 90%?14. Acreditamos que a resposta seja sim, devido aos motivos que se seguem: a) A boa sobrevida de enxertos em pacientes transplantados que se observa atualmente, não ocorre sem que se tenha um preço a pagar. Drogas imunossupressoras inespecíficas são administradas continuamente aos receptores para a profilaxia de rejeição ao enxerto. Conseqüentemente, com a vigilância imunológica suprimida, esses pacientes ficam mais suscetíveis ao desenvolvimento de infecções oportunísticas15 e de cânceres16. Não obstante, essas drogas também produzem vários efeitos tóxicos em diferentes órgãos-alvo do receptor16-20; b) Contrariamente ao que se observa no primeiro ano pós-Tx e, apesar dos recentes avanços na terapêutica imunossupressora (drogas mais potentes e mais seletivas), a sobrevida a longo prazo dos enxertos não mudou nos últimos 20 anos14. Ou seja, o atrito constante entre o enxerto e diversos fatores (como por exemplo, o sistema imune do receptor ou as drogas nefrotóxicas) levam a uma deterioração lenta, mas progressiva da função do órgão transplantado - entidade atualmente denominada de disfunção crônica do enxerto21-23. A indução de tolerância imunológica é o objetivo maior de imunologistas, clínicos e cirurgiões que se dedicam aos transplantes de órgãos. Essa busca pelo Santo Graal é plenamente justificada, pois a sua presença indicaria, necessariamente, a ausência de rejeição; conseqüentemente, o uso de drogas imunossupressoras inespecíficas seria totalmente desnecessário. Assim, os receptores de um aloenxerto não ficariam predispostos ao desenvolvimento de infecções oportunísticas, a cânceres ou a manifestações tóxicas. Da mesma forma, o processo de disfunção crônica do enxerto, pelo menos aquele secundário a processos imunológicos e/ou tóxicos, não ocorreria. Esse é o estado ideal. O quão longe estamos de concretizá-lo, de uma forma sistemática, ainda não sabemos. Sabemos, sim, que apenas com a continuidade dos estudos que buscam o maior entendimento dos mecanismos de indução e manutenção deste, é que poderemos, um dia, contar com protocolos que nos permitam tornar a tolerância imunológica em transplante clínico uma realidade. 132 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal Mecanismos Tem sido um mecanismo proposto tanto para o desenvolvimento de tolerância central quanto periférica, embora a deleção clonal ocorra de maneira mais eficiente no timo. A exemplo do que acontece nos mecanismos de tolerância aos peptídios próprios, cujos clones reativos são depletados por educação intra-tímica, células dendríticas alogeneicas ao alcançarem o timo levam ao desenvolvimento de seleção negativa de células T alorreativas25. As células T com alta afinidade/avidez pelo antígeno são, aparentemente, mais susceptíveis à deleção que as de baixa afinidade 26 . A deleção clonal seguida ou acompanhada de outros processos tolerogênicos é, possivelmente, um mecanismo fortemente envolvido no desenvolvimento permanente de tolerância aos aloantígenos. Starzl e Zinkernagel propuseram, recentemente, que para o sucesso imunológico do transplante quatro fenômenos encadeados seriam necessários: deleção clonal do sistema imune do receptor, deleção recíproca da resposta de leucócitos do doador, manutenção da exaustão clonal e redução da imunogenecidade do órgão transplantado, depletado de leucócitos do doador27. A apoptose é um dos mecanismos, possivelmente, envolvidos na deleção de células alorreativas, principalmente na periferia28. A interação Fas-Fas ligante parece estar envolvida nesse mecanismo29,30. Interessantemente, o uso de imunossupressores não especícificos pode bloquear a morte celular induzida por ativação e, dessa maneira, prevenir o desenvolvimento de tolerância31,32. Figura 1. Principais mecanismos envolvidos na indução e/ou manutenção de tolerância imunológica. Figura 2. Inter-relação entre os diferentes mecanismos centrais e periféricos na indução e/ou manutenção de tolerância imunológica. Os mecanismos responsáveis pela indução de não responsividade aos aloantígenos, assim como os potenciais mecanismos da manutenção da tolerância, continuam sob intensa investigação. Hipóteses não mutuamente exclusivas têm sido propostas para explicar a indução de tolerância central e periférica, sendo as principais: deleção, anergia, ignorância, regulação/supressão, assim como alguns dos processos imunológicos que levam ao desenvolvimento desses mecanismos (desvio imune, microquimerismo, macroquimerismo e apoptose) serão discutidos no texto que se segue. Qualquer que seja o mecanismo atuando predominantemente, em um determinado momento, é aparente que a tolerância seja um processo dinâmico e que mecanismos distintos possam estar operacionais nas fases de indução e de manutenção do estado de não responsividade24. Os potenciais mecanismos, para os quais existam evidências ou comprovação experimental do desenvolvimento de tolerância, estão representados esquematicamente na figura 1 e as suas possíveis inter-relações na figura 2. Deleção J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 133 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal Anergia É entre os mecanismos propostos para o desenvolvimento de tolerância periférica um dos que tem recebido mais atenção. Basicamente, as células T do receptor tolerante não respondem à estimulação do receptor de célula T (RCT) por antígenos aos quais esse receptor detém especificidade. Em nível celular, a anergia tem sido associada à diminuição da expressão do receptor das células T. O bloqueio com anticorpos monoclonais ou com proteínas de fusão de moléculas com características co-estimulatórias, tais como as da via B7-CD28, leva a um estado de não-responsividade em que, apesar da interação aloantígeno apresentada pela célula apresentadora de antígenos ao receptor da célula T específica, a célula T permanece não responsiva. Adicionalmente, outros achados pertinentes ao mecanismo de anergia têm sido relatados, entre eles encontra-se a não-responsividade à estimulação com IL-2, possivelmente regulada em nível pós-transcripcional33. Ignorância É o mecanismo proposto quando uma célula T não reconhece o antígeno específico presente in vivo. A ausência de reconhecimento estaria associada à baixa afinidade das células T ou a um ambiente apropriado de citocinas, conforme descrito a seguir. Potencialmente esse é um mecanismo instável, uma vez que os clones de células T mantêm o seu repertório, podendo voltar a responder a antígenos específicos quando as circunstâncias mudam. Além disso, o perfil de citocinas pode mudar em função da concomitância de infecções ou das modificações da terapia imunossupressora26. Supressão/Regulação Tem sido descrita em diferentes modelos experimentais34. Hipoteticamente, nesse mecanismo, um clone de células com atividade supressora bloquearia ou educaria as células citotóxicas, produzindo nãoresponsividade. A atividade supressora tem sido demostrada pela transferência adotiva de células de animais tolerantes a outros singênicos, que recebem enxertos também singênicos aos dos animais dos quais as células provêm, e não os rejeitam. Nesse mecanismo, um achado muito interessante é o descrito por Qin e colaboradores em que o fenômeno da tolerância infecciosa foi descrito em animais tornados tolerantes com anticorpos anti-CD4 e anti-CD8. Sumariamente, demonstrou-se que as células transferidas ao receptor tolerante são, possivelmente, educadas por uma população de células CD4 do receptor a não produzirem rejeição do enxerto35. Esta propriedade é transferível a várias gerações celulares (infecciosa), produzindo-se o estado de tolerância a longo prazo. Citocinas presentes no microambiente, quando os aloantígenos encontram as células T, parecem desviar a resposta a estes antígenos a diferentes programas, quais sejam, rejeição produzida pela predominância do perfil TH1 (IL-2 e γ-INF) e não responsividade induzida pela predominância do perfil TH2 (IL-4 e IL10). A elucidação desse paradigma TH1/TH2, assim como o estabelecimento de seu real papel, tem sido objeto de pesquisa contínua e de debates acalorados36,37. Os dados experimentais, produzidos até o presente momento, não têm sido consistentes em confirmar categoricamente o paradigma. Recentemente, foi demonstrado que a importância da barreira imunológica pode ser determinante do sucesso do desvio do programa para TH2 em permitir a aceitação do enxerto. Assim, quando a barreira é fraca, o predomínio do perfil TH2 seria suficiente para a aceitação do enxerto; ao contrário, com barreira mais forte, esse desvio de programa, apesar de presente, não garantiria tal aceitação38. A persistência do antígeno tem sido relatada como um importante fator na indução e na manutenção dos estados de tolerância. É importante lembrar que o enxerto é uma fonte contínua de antígenos liberados para a periferia, os quais podem inativar células T emergentes; sendo assim, o enxerto pode ter papel preponderante na manutenção do estado de tolerância. Isso tem sido demonstrado, experimentalmente, pela perda desse estado algum tempo após a retirada de enxerto tolerante. Um correlato dessa situação parece ser o microquimerismo descrito por Starzl e colaboradores27,39. No microquimerismo, uma pequena proporção das células imunes, presentes no receptor, são alogênicas, migram e situam-se em diferentes órgãos do receptor. Diversos mecanismos buscam explicar o potencial efeito tolerogênico do microquimerismo, entre estes estariam: a) indução de anergia nas células T do receptor que teriam os antígenos apresentados por células apresentadoras de antígeno não-profissionais, ou seja, que não provém co-estimulação, particularmente por meio da via B7-CD28; 134 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal b) presença de células do doador que inibem a atividade dos linfócitos citotóxicos do receptor contra os antígenos dos aloenxertos (células vetor); c) persistência de células ou antígenos do doador no timo levando à deleção das células T alorreativas do receptor40. Em um estudo clínico recente, nenhuma relação entre microquimerismo e rejeição aguda foi demonstrada41, embora isso possa significar que os potenciais mecanismos tolerogênicos necessitem de mais tempo para se estabelecerem. No entanto, onde o microquimerismo se situa em termos de aceitação/tolerância dos alotransplantes é objeto de intenso debate e pesquisa, permanecendo uma área cujo esclarecimento poderá implicar novas abordagens da terapia imunossupressora, especialmente a longo prazo. De forma semelhante, a persistência do antígeno é um prérequisito essencial no desenvolvimento de tolerância nos modelos pré-clínicos de macroquimerismo, atualmente, em desenvolvimento. Nessa situação, o receptor torna-se uma quimera verdadeira, em que componentes do sistema imunológico do doador e do receptor convivem em equilíbio. O estabelecimento de quimerismo e sua estabilidade parecem ser os fatores determinantes do estado de tolerância42. Dados experimentais Conforme mencionada na Introdução da presente revisão, a situação ideal para a indução de tolerância imunológica em transplantes compreende a introdução de antígenos do doador em um receptor imunologicamente imaturo. Dessa forma, as células do doador não somente serão reconhecidas como estranhas, como também haverá espaço dentro do sistema linfoematopoiético para que essas células possam povoá-lo. A esse estado final dá-se o nome de quimerismo (linfoematopoiético). A tolerância imunológica que advém desse tipo de estratégia é chamada de central, pois células do doador são produzidas na medula óssea do receptor e povoam o timo do mesmo. 1 A situação ideal acima descrita é muito difícil de ser induzida no animal adulto, cujo sistema imunológico já está maduro (ou seja, reconhece aquilo que é estranho e monta uma reação contra tais antígenos). Nessa situação, para que possamos induzir a tolerância, necessitamos empregar algum tipo de terapia imunossupressora, tornando, temporariamente, mais imaturo o seu sistema imunológico. Nesse contexto, introduziremos alguma forma de antígeno de doador que, agindo principalmente em nível periférico (como demonstrado em experimentos nos quais foram realizadas timectomias), induzirá o estado de não-responsividade imunológica específica aos antígenos do doador (tolerância)1. Podemos dividir, de forma geral, os estudos experimentais, visando à indução de tolerância imunológica em transplantes, em dois grupos: a) aqueles que objetivam o prolongamento da sobrevida do enxerto, manipulando, principalmente, o sistema imune periférico (ou, póstímico); e b) aqueles que visam à indução de um estado de quimerismo linfoematopoiético, com a manipulação do sistema imune central. Os estudos pertencentes ao primeiro grupo costumam ser mais atraentes aos olhos dos clínicos, visto que usam modalidades terapêuticas menos agressivas e, portanto, mais próximas da realidade clínica. Estes empregam alguma forma de tratamento imunossupressor (pré ou peritransplante), geralmente associados com a administração de alguma forma de antígeno geneticamente idêntico ao do doador do enxerto. Em relação ao imunossupressor, em sua maioria, são escolhidos os agentes biológicos (anticorpos monoclonais ou moléculas recombinantes), pois permitem que as populações-alvo sejam escolhidas e atacadas seletivamente. Quanto ao antígeno, desde os experimentos de Medawar e de colaboradores13 que empregaram células linfoematopoiéticas do doador, é que iniciaram dissecar qual a população celular e, desta, quais são as moléculas responsáveis pelo efeito tolerogênico do inóculo. Vários autores revelaram a importância dos diferentes tipos celulares, como linfócitos T43-45, linfó- Na verdade, a designação não-responsividade imunológica não está completamente adequada e deve ser revista. Nas últimas duas décadas, ficou claro que essa definição de tolerância não é completamente satisfatória, pois, conforme já mencionado na seção anterior, vários são os mecanismos responsáveis pela indução e pela manutenção desse estado. Esses mecanismos podem envolver componentes ativos reguladores (ou supressivos), conforme, elegantemente, demonstrado por Waldmann e colaboradores35. A terminologia correta ainda está em evolução, mas acreditamos que deva ser empregada uma designação tal como responsividade imunológica não-destrutiva ou responsividade imunológica protetora. J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 135 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal citos B46, eritrócitos47, macrófagos48, células de medula óssea49 e plaquetas48,50 na indução de tolerância. Finalmente, o grupo de Oxford demonstrou, em diferentes protocolos, que o elemento comum entre todos esses tratamentos celulares é a expressão dos antígenos do CPH51,52, que interagem com os linfócitos do receptor e, dependendo de sua imunodominância53, induzem a um maior ou menor grau de não-responsividade imunológica pós-transplante51,54. Em muitos destes estudos, foram realizadas as timectomias nos receptores, sem que houvesse interferência sobre a evolução final do enxerto35,55. Essa ferramenta experimental demonstra que os mecanismos de indução e de manutenção da tolerância imunológica, produzida por esses protocolos, são basicamente periféricos. Recentemente, com o aprofundamento no conhecimento dos mecanismos de ativação celular e de sua importância na indução da autotolerância, duas vias co-estimulatórias destacaram-se como fundamentais na ativação dos linfócitos T. A primeira destas é dependente dos sinais liberados pela interação das moléculas CD28/CTLA4 (do lado do linfócito T) com as moléculas B7-1/B7-2 (também conhecidas como CD80 e CD86, respectivamente; do lado da célula apresentadora de antígenos)56,57. A segunda, também, fundamental para a plena ativação dos linfócitos, depende dos sinais liberados após a interação entre as moléculas CD40 (expressa na superfície das células apresentadoras de antígenos) com as moléculas CD40L (também designada de CD154; expressa pelos linfócitos T ativados)58. Como os linfócitos T são as células que dirigem a resposta imune, bloquear sua plena ativação por meio das moléculas que interfiram com esses sistemas coestimulatórios, será um passo óbvio dentro das estratégias de indução de tolerância imunológica. Para isso, iniciou-se, recentemente, o emprego de uma molécula recombinante (proteína de fusão) que consiste da porção extracelular da molécula de CTLA4 ligada à porção constante da molécula de imunoglobulina G1 (IgG1), conhecida como CTLA4-Ig. Essa molécula se liga às moléculas B7 com maior afinidade que as moléculas CD28, agindo como um inibidor competitivo desta importante via co-estimulatória dos linfócitos T (59). Vários estudos têm demonstrado a importância do emprego dessa molécula recombinante no prolongamento da sobrevida de xenoenxertos de ilhotas pancreáticas (de seres humanos para camundongos)60 e de transplante cardíaco em ratos61, entre outros. O bloqueio da segunda via co-estimulatória também provou ser efetivo no prolongamento da sobrevida de enxertos cardíacos ou de ilhotas pancreáticas62-64 em roedores. É interessante notar, que estes estudos, bloqueando uma ou outra dessas duas vias co-estimulatórias, em geral, obtiveram sucesso em prolongar a sobrevida dos enxertos, mas não foram eficientes em induzir tolerância, pois, a longo prazo, os transplantes foram rejeitados. Ainda mais interessante foi o achado de que a adição de ciclosporina ao tratamento inicial com CTLA4-Ig apressou o desenvolvimento de lesões vasculares ateroscleróticas no enxerto. Além de suas óbvias implicações clínicas, a observação de que a ciclosporina possa suprimir os efeitos tolerogênicos do bloqueio co-estimulatório, também pode auxiliar na explicação do motivo pelo qual, até hoje, é muito difícil de se induzir tolerância imunológica em transplante clínico (ver adiante Dados pré-clínicos e clínicos). Recentemente, Larsen e colaboradores empregaram o bloqueio de ambas as vias co-estimulatórias de forma simultânea, e observaram que os enxertos cardíacos e cutâneos (estes representando uma barreira imunológica maior) sobreviviam de forma indefinida. O mesmo não foi observado quando um ou outro bloqueio era realizado de forma separada (nesse caso, havia apenas prolongamento da sobrevida do enxerto)32. Finalmente, os estudos desenvolvendo protocolos para a indução de tolerância imunológica clássica (ou central) serão discutidos na seção Dados pré-clínicos e clínicos, pois aqueles que, no nosso entender, são os experimentos-chave e com maior relevância clínica foram realizados, principalmente, em primatas. Dados pré-clínicos e clínicos Embora em diversos modelos experimentais, o desenvolvimento de tolerância seja alcançável por uma série de manipulações do sistema imunológico (vide dados experimentais acima), essa mesma condição está longe de ser uma realidade no contexto clínico. Indiscutivelmente, existem avanços no desenvolvimento de estratégias que poderão levar à tolerância no contexto clínico, no entanto, atualmente, exceto em alguns relatos que discutiremos a seguir, é mais realista falarmos em hiporresponsividade aos aloantígenos que em tolerância propriamente dita. Modelos pré-clínicos, nos quais as manobras tolerogênicas sejam executadas com sucesso, são 136 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal fundamentais para que estudos clínicos de indução de tolerância possam ser iniciados65. Entre os muitos estudos pré-clínicos existentes, destacamos os descritos a seguir. Em um modelo utilizando macacos rhesus, foram efetuadas manobras que combinam algumas das abordagens a seguir, com a particularidade de que a irradiação linfóide total (ILT) foi executada após o transplante renal. Macacos esplenectomizados receberam globulina antitimocitária e transfusões de células de medula óssea sem imunossupressão crônica após esse condicionamento inicial. A combinação de esplenectomia, ILT e globulina antitimocitária prolongou a sobrevida dos enxertos, e prolongamentos significativos adicionais foram proporcionados pela infusão de células de medula óssea do doador. Assim, as manobras imunossupressoras executadas após o transplante podem, potencialmente, levar ao condicionamento imunológico facilitador de estados de hiporresponsividade ou de tolerância66. O desenvolvimento contínuo desse modelo que envolve o uso de múltiplas manobras manipuladoras dos sistemas imunológicos (esplenectomia, ILT não mieloablativa, irradiação tímica, globulina antitimocitária e infusão de medula óssea do doador) levou ao desenvolvimento de quimerismo e tolerância de forma consistente, incluindo a manutenção do enxerto a longo prazo, sem imunossupressão adicional, e à aceitação de transplante de pele do doador67. Tentativas de modificação do regime indutor básico têm levado, nesse modelo pré-clínico, a diminuições das taxas de sucesso; assim, todos os parâmetros do regime original parecem ser importantes na obtenção de resultados reprodutíveis, sendo o desenvolvimento de quimerismo um correlato importante do desenvolvimento de tolerância42. Entretanto, a potencial toxicidade das manobras usadas nesses modelos acima descritos pode ser inaceitável para o uso clínico em um futuro próximo. Mesmo assim, sendo uma abordagem capaz de induzir a tolerância verdadeira em animais com sistema imunológico complexo, deve ser perseguida e aprimorada com vigor68. Outro modelo pré-clínico que merece comentário é o do bloqueio concomitante das vias B7-CD28 e CD40-CD40L, desenvolvido em macacos rhesus. A administração de uma proteína de fusão CTLA4-Ig e de anticorpos monoclonais anti-CD40L levou à sobrevida prolongada de 50% dos animais tratados sem necessidade de imunossupressão crônica 69. A aceitação de transplantes em humanos, sem imunossupressão concomitante, tem sido relatada em pacientes nos quais as drogas imunossupressoras foram suspensas por não-adesão, ou por razões clínicas, e isso não se seguiu de rejeição dos enxertos. Além disso, o mesmo tem sido constatado em relatos de experimentos como os que descrevemos a seguir. Diversas manobras têm sido tentadas com vistas à obtenção de hiporresponsividade/tolerância. Nas décadas de 70 e 80, as transfusões sangüíneas de doadores não-relacionados e relacionados produziram um significativo efeito benéfico na sobrevida dos aloenxertos renais70,71. Posteriormente, provavelmente em função da melhora na quantidade e na qualidade da imunossupressão, observou-se uma importante diminuição e quase desaparecimento do chamado efeito transfusional observável, principalmente, nos dados de estudos colaborativos internacionais retrospectivos de grande porte72,73. No entanto, em um estudo prospectivo randomizado recente, Opelz e colaboradores demonstraram um significativo efeito benéfico observável no grupo que, deliberadamente, recebera três transfusões quando comparado ao grupo transplantado sem transfusões prévias74. Mais recentemente, Barber e colaboradores descreveram os resultados de um estudo clínico em que a infusão de medula óssea criopreservada do doador foi feita no receptor de 10 a 14 dias após o transplante, 7 dias após a última dose de globulina antilinfocitária em pacientes imunossuprimidos com terapia quádrupla. Apesar do número de rejeições agudas não ter sido diferente, a sobrevida dos enxertos foi, significativamente, superior no grupo de pacientes que recebeu infusões de medula óssea. A avaliação da responsividade imunológica de células linfóides desses pacientes demonstrou hiporreatividade na cultura mista com linfócitos do doador, mas não com linfócitos não relacionados75. Adicionalmente, em outro estudo do mesmo grupo, demonstrou-se microquimerismo que foi muito mais importante em um grupo de pacientes que receberam transplantes renais com infusões de células de medula óssea comparado a um grupo controle76. Garcia-Morales e colaboradores sugerem a existência de um efeito positivo da histocompatibilidade e de efeito negativo dos episódios de rejeição aguda na manutenção, a longo prazo, do quimerismo. Por outro lado, o achado mais importante desse estudo é a diminuição na incidência de rejeição crônica no grupo de pacientes que recebeu infusão de células de medula óssea77. J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 137 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal Outra estratégia proposta para o desenvolvimento de hiporresponsividade-tolerância é a irradiação linfóide total (ILT). Essa estratégia foi descrita por Strober e colaboradores em três pacientes transplantados após serem submetidos à ILT, e cuja imunossupressão foi suspensa após o transplante com manutenção da função dos enxertos e não-responsividade aos antígenos celulares do doador (em culturas mistas de linfócitos e testes de linfólise mediada por células), a longo prazo. Deste estudo, dois outros aspectos devem ser ressaltados. Primeiro, a julgar pelos testes in vitro, os mecanismos de tolerância levaram em torno de 18 meses para se desenvolverem em humanos; segundo, além do condicionamento por ILT, todos os pacientes receberam transfusões de sangue não-específicas, e em dois deles usaram-se imunoglobulinas policlonais como parte do protocolo de imunossupressão inicial78. Relatos envolvendo casos de pacientes transplantados renais, que foram previamente transplantados com medula óssea, são disponíveis na literatura79-81. No primeiro relato, Sayegh e colaboradores descrevem dois casos de pacientes que receberam transplantes de medula óssea, seguidos, após alguns anos, de transplante renal do mesmo doador HLA idêntico. A evolução dos transplantes renais foi descrita como sendo excelente. Apesar de os autores intitularem seu relato como tolerância imunológica, é importante ressaltar-se que os rins eram HLA idênticos, que ambos os receptores foram mantidos com baixas doses de prednisona e que o tempo de observação é de apenas 1 ou 2 anos. Apesar de provável, essas considerações levantam dúvidas quanto ao real estado de tolerância ou hiporresponsividade, uma vez que além da boa compatibilidade imunológica, da imunossupressão ainda que leve, e do pouco tempo de observação, nenhum teste foi executado com células imunes desses indivíduos79. Em outro relato, descreve-se a evolução de um paciente que recebera transplante de medula de sua mãe, seguido, após 1 ano, por transplante renal da mesma doadora. Nesse caso, a imunossupressão foi completamente retirada 3 anos após o transplante renal, e o paciente permaneceu com função renal normal até o momento da descrição, 17 meses após a suspensão da medicação imunossupressora80. Perspectivas O desenvolvimento de protocolos e estratégias, que induzam tolerância em transplantes, está no topo da investigação científica neste momento, e para os médicos envolvidos com a transplantação, ainda parece uma realidade distante. O ideal a ser atingido: sobrevida ilimitada de enxertos sem os efeitos colaterais da imunossupressão e suas complicações, especialmente infecções e neoplasias. Verifica-se, a partir dessa breve revisão que, apesar dos avanços significativos, permanecem muitas lacunas no entendimento dos processos imunológicos responsáveis pelo desenvolvimento de tolerância. Entretanto, estudos experimentais em roedores e primatas não humanos têm revelado estratégias capazes de induzir tolerância específica a aloenxertos. Mesmo em humanos, pelo menos a tolerância operacional tem sido demonstrada em alguns pacientes que mantiveram seus enxertos, apesar da suspensão da imunossupressão. Os resultados promissores alcançados em estudos experimentais reforçam a necessidade de iniciarem-se experimentos clínicos para a avaliação de possíveis protocolos de indução de tolerância. Contudo, a realização de estudos clínicos enfrenta uma série de questões técnicas e éticas como: definição de padrões de estudos experimentais que permitam iniciar estudos clínicos; como ou em quais situações seria retirada ou reduzida, significativamente, a imunossupressão vigente, como monitorizar o aparecimento de rejeição ou o desenvolvimento de tolerância; que terapias de resgate seriam utilizadas quando houver rejeição; que grupo de pacientes seria mais adequado para incluir nestes estudos e adequar os termos de consentimento informado dos pacientes. Para discutir essas questões, reuniram-se especialistas em bioética, em direito e em pesquisa básica e clínica em transplantes, bem como membros do Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos65. As principais recomendações desse grupo, que deverão nortear os estudos clínicos futuros foram: - o desenvolvimento desses estudos é endossado pela ausência de melhora na sobrevida, a longo prazo, dos enxertos nos últimos 20 anos; - há a necessidade de dados experimentais extensos e, preferencialmente, com primatas não humanos previamente aos estudos clínicos; - incluir, como aferição de sucesso, a ausência de rejeição aguda ou crônica sem a necessidade de agentes globalmente imunossupressivos, e manutenção da imunidade em relação a infecções e a tumores; - incorporar aos protocolos regras definidas para resgate de pacientes com rejeição e, nesse caso, 138 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal submetê-los à imunossupressão convencional; - priorizar a segurança do paciente no delineamento do estudo, continuar a inclusão de pacientes no estudo, conforme os resultados iniciais, sendo aceitável até 20% a 25% de rejeição aguda nos primeiros 6 meses; - incorporar, nos estudos, os métodos mais sofisticados disponíveis para o diagnóstico de rejeição, incluindo patologia e expressão de genes intra-enxertos; - iniciar os estudos com transplantes de órgãos cuja falha não represente ameaça à vida, como rins e ilhotas pancreáticas; - os termos de consentimento devem ser claros, compreensíveis e aplicados por terceiros isentos com aconselhamento sobre os riscos e benefícios, disponíveis antes e após a assinatura do consentimento; - incluir pacientes que estejam sendo submetidos a transplante e que não sejam hipersensibilizados; - incluir crianças somente após os resultados confirmados com adultos; - há a necessidade de envolver bioeticistas nos delineamentos dos estudos. Outro aspecto importante a ser considerado é a aparente contradição entre imunossupressão mais intensa e o desenvolvimento de tolerância. Mesmo com a introdução de preparações mais eficazes, como ciclosporina e anticorpos monoclonais na década de 80 e de novas drogas mais potentes, como micofenolato mofetil, tacrolimus e sirolimus na década de 90, não houve melhora nos resultados, a longo prazo, na sobrevida dos enxertos. Talvez não tenha havido tempo suficiente de uso dessas drogas, especialmente as últimas, para que se pudesse comprovar esses efeitos. Entretanto, fica mais evidente, ultimamente, que o desenvolvimento de tolerância envolve mecanismos ativos, não podendo ser visto, simplesmente, como a ausência de resposta imune, mas como um complexo evento do sistema imune no sentido de direcionar a resposta imunológica para evitar ações destrutivas. Assim, é possível que os imunossupressores, mesmo mais potentes, embora reduzam a incidência de rejeição, paradoxalmente, também estejam impedindo a resposta imune no sentido de induzir tolerância32. Tal pressuposto, caso confirmado, implicará grandes transformações nos conceitos e estratégias de como manejar a imunossupressão em transplante de órgãos. As principais estratégias, desenvolvidas em animais para a indução de tolerância, agrupadas nas duas categorias fundamentais central (eventos ocorridos no timo) ou periférica (eventos em linfócitos maduros, Quadro 1 Principais estratégias para indução de tolerância Tolerância central 1. Mieloablação + reconstituição medular com células do doador e do receptor 2. Introdução intratímica de antígenos do doador + soro antilinfocitário Tolerância periférica 1. Estimulação antigênica com cobertura imunossupressora - transfusão sangüínea específica + anticorpos monoclonais anti-CD4 - administração de antígenos do doador + anticorpos monoclonais anti-CD4 - infusão de células da medula do doador + preparações antilinfocitárias 2. Deleção clonal - soro antilinfocitário - anticorpos monoclonais anti-CD3 - imunotoxina CD3 - anticorpos monoclonais anti-CD53 (Campath 1H) - irradiação linfóide total 3. Bloqueio da co-estimulação - CTLA4 imunoglobulina (CTLA4-Ig) - anticorpos monoclonais anti-CD28 - anticorpos monoclonais anti-CD40 J. Bras. Nefrol. 1999; 21(3): 130-142 139 R. C. Manfro, L. F. S. Gonçalves, D. Saitovitch - Revisão/Atualização em Transplante Renal linfonodos, baço e sangue periférico) são apresentadas no quadro 1. Teoricamente, as abordagens que envolvem a manipulação dos processos intratímicos teriam maior possibilidade de sucesso, sendo improvável o seu bloqueio pelo uso concomitante de imunossupressão. A dificuldade na aplicação clínica dessas estratégias reside na necessidade de quimioterapia agressiva ou de irradiação para ocorrer ablação da medula óssea do receptor e permitir o estabelecimento de quimerismo com a medula óssea do doador. Essa é a abordagem no transplante de medula óssea, porém os riscos daí decorrentes não permitem sua inclusão na rotina clínica da transplantação de outros órgãos. As demais estratégias agrupadas no quadro 1, sob o item tolerância periférica, têm como provável mecanismo de ação a produção de clones específicos de células T anérgicas e/ou supressoras. Como já ressaltado anteriormente, os raros estudos clínicos disponíveis apresentam resultados preliminares e inconclusivos que ainda não permitem vislumbrar qual seria o melhor método para atingir a tolerância em humanos. Parece promissor o estudo fase I do grupo de Oxford citado por Morris68, que utiliza transfusões de sangue com tipagem HLA do doador sob cobertura com anticorpo monoclonal anti-CD4 pré-transplante e transplante posterior com escolha de doador que compartilhe antígenos B e DR do doador de sangue. Outra abordagem, que poderá ganhar aplicação clínica, é o bloqueio da co-estimulação anteriormente referido. Verifica-se, também, uma tendência na literatura atual, favorecendo o uso de agentes biológicos (anticorpos monoclonais, proteínas de fusão, citocinas e seus receptores) na indução de tolerância. A particularidade dos efeitos biológicos desses agentes (eliminação de células-alvo, inibição ou bloqueio funcional das células-alvo e a capacidade de desencadear sinais imunorregulatórios que desviariam a resposta efetora alorreativa para a não destruição) parece torná-los fundamentais para o redirecionamento da resposta imune levando à indução de tolerância periférica82. Em resumo, embora a aplicação clínica de protocolos de indução de tolerância ainda se encontre distante, já é possível vislumbrar essa possibilidade e, à luz dos conhecimentos atuais, essas estratégias deverão contemplar o uso de agentes biológicos, a administração de aloantígenos e o uso das drogas imunossupressoras de forma a não interferir ou a atuar sinergicamente nesse processo. Referências 1. Crispe IN. Fatal interactions: Fas-induced apoptosis of mature T cells. Immunity 1994; 1(5): 347-9. 2. Lang J, Arnold B, Hammerling G, Harris AW, Korsmeyer S, Russell D et al. Enforced Bcl-2 expression inhibits antigenmediated clonal elimination of peripheral B cells in an antigen dose-dependent manner and promotes receptor editing in autoreactive, immature B cells. J Exp Med 1997; 186(9): 1513-22. 3. Watanabe-Fukunaga R, Brannan CI, Copeland NG, Jenkins NA, Nagata S. Lymphoproliferation disorder in mice explained by defects in Fas antigen that mediates apoptosis. 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