Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS Cultura, identidade e o ensino de história. Viviana Benetti* Wagner dos Santos Chagas** Resumo: A busca por uma reflexão sobre o ensino de história como promotor da cidadania e agente no entendimento das construções identitárias, nos remeteu a uma breve reflexão sobre a cultura Afro/Movimentos etnicorraciais e a construção da identidade do ‘gaúcho’ no âmbito do estado nacional. Trabalhamos no sentido de compreender a importância dos movimentos etnicorraciais e o significado da criação de um mito regional que serviu/serve para reforçar interesses de uma classe dominante. Fazendo dos temas, objetos para experiência e análise do papel do professor de história, em seu ofício. É apresentado um breve contexto histórico de cada temática, destacando os interesses das classes dominantes no âmbito do estado-nação, contrapondo o papel do professor vinculado às propostas curriculares e “verdades” oficiais encontradas nos livros didáticos e/ou nas manifestações culturais. Palavras chave: Cultura. Identidade. Tradição. Ensino de história. Abstract: the search for a reflection on the teaching of history as a promoter of citizenship and agent in the understanding of identity constructions, referred to a brief reflection on the Afro culture/etnicorraciais Movements and the construction of the identity of the ' Gaucho ' within the framework of the national State. We work to understand the importance of the etnicorraciais movement and the significance of the creation of a regional myth that served/serves to reinforce the interests of a ruling class. Making of the subjects, objects to experience and analysis of the role of professor of history, in his craft. Is presented a brief historical context of each theme, highlighting the interests of the dominant classes in the framework of the nation State, opposing the role of professor linked to curriculum proposals Algumas considerações * Professora ULBRA- Universidade Luterana do Brasil e Doutoranda da UNISINOS em Educação. Professor da Rede de Ensino Municipal de Esteio -RS, Doutorado da UNISINOS em Educação. ** Página Keywords: Culture. Identity. Tradition. Teaching of history. 378 and "truths" official found in textbooks and/or cultural events. Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS As discussões acerca das temáticas como cultura e identidade, história nacional e história regional, no campo da história, são frequentes, pois toda pesquisa, sob certo aspecto, aborda determinado espaço e um grupo social. Neste texto não pretendemos aprofundar questões teóricas, mas apresentar algumas reflexões sobre a questão cultural étnica e a construção de identidades, para salientar a necessidade de estudos sobre objetos que nos possibilitem conhecer melhor a história de nosso país e o papel do professor de historia, partindo e valorizando as suas peculiaridades. O interesse em abordar o ensino da cultura Afro e o mito do gaúcho é porque serem temáticas que perpassam a história nacional e regional, e são fundamentais para auxiliar na formação de professores, bem como nas discussões dentro das escolas devido a sua presença nos currículos. Tais proposições abarcam elementos sobre o ensino da história e a análise da construção de identidades. São grupos sociais que constituem a formação da construção da identidade nacional. De maneira abrangente consideramos o conceito de história regional, quando trabalhada pelo historiador, e esta não se apresenta (...) associada apenas a um recorte administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, (...) cultural, ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico em que irá examinar (BARROS, 2004, p.152) A importância dos estudos regionais destaca-se no sentido de se trabalhar com as diferenças, uma vez que, na maioria dos casos, os estudos nacionais ressaltam as semelhanças dentro do todo. Com isso, a possibilidade de estudar aspectos, os quais não seriam abordados e/ou percebidos em um contexto maior, torna-os mais evidentes. O estudo das temáticas propostas proporcionam um grande leque para análise de cunho nacional, apresentando-se sob vários aspectos, tais como movimentos sociais, ação do estado, atividades econômicas, a identidade cultural, dentre outros. A partir destes elementos, o historiador, que apresenta conhecimento e afinidade com a região de análise e O Objeto de Estudo As temáticas que se pretende examinar tratam das relações etnicorraciais, ainda abordadas nas escolas com características as quais foram estabelecidas no período Página alguma forma, ignoradas e/ou não possíveis de ser contempladas dentro do todo. 379 seu objeto, poderá desenvolver seus estudos contemplando as peculiaridades que ficariam de Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS escravocrata brasileiro, através de representações sociais e experiências de subalternidade pautada pelo racismo, pelo preconceito e discriminação racial que estabeleceram uma espécie de imobilidade social para a população afrodescendente; e outro tema a identidade do “gaúcho”, este individuo descrito como errante e vago, o qual tornou-se o elemento aglutinador, identitário de uma região do Brasil. Iniciaremos com as proposições a cerca da temática etnicorracial, trazendo um breve contexto sobre a tradição de um grupo social e como foi sendo transformado através de interesses das classes dominantes. As tradições de muitos povos africanos ensinam que a palavra é a força fundamental capaz de criar, conservar ou destruir todas as coisas. A palavra é a grande força criadora porque ela desencadeia um movimento rítmico que gera a vida e dá ação aos seres, podendo criá-los, conservá-los ou destruí-los. A palavra também possui, na obra de Paulo Freire, um caráter dialético no processo de criação, recriação e transformação do mundo. Esse movimento dialético da palavra se dá pela mediação da leitura do mundo e pela socialização do mundo lido que se materializa através do diálogo entre as pessoas, pois essa visão reflete a situação no mundo em que as pessoas se constituem. Mas no decorrer da história das relações estabelecidas na sociedade brasileira, essa socialização da visão do mundo não se dá através do diálogo, mas através do monólogo de uma pequena parcela da sociedade que detêm os privilégios políticos e econômicos, silenciando as vozes do conjunto da sociedade, mantendo os sujeitos mudos. E mais grave que emudecer a sociedade, é decretar que apenas a palavra das classes dominantes seja considerada verdadeira. Ou seja, se estabelece uma espécie de monólogo social, onde apenas uma visão de mundo é considerada a base de todo o pensamento, da cultura e das relações entre os sujeitos de uma determinada sociedade. Essa visão de mundo unilateral estabelece, não só uma espécie de monólogo social, mas um monólogo nas relações etnicorraciais. Pois, conforme LOPES (2006), as relações sociais estabelecidas no período escravocrata brasileiro criaram, ao longo de séculos de história, tanto no escravizado quanto no escravocrata, representações sociais e experiências de Em uma situação de imobilidade social, as classes dominantes não precisam utilizar a coerção física ou a formulação de regras e regulamentos explícitos para dirigir os demais grupos sociais, porque, esses grupos estão “‘imersos’ na própria engrenagem da Página estabeleceram uma espécie de imobilidade social para a população afrodescendente. 380 subalternidade pautada pelo racismo, pelo preconceito e discriminação racial que Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS estrutura dominadora” (FREIRE, 1999, p.34). Essa imersão na engrenagem estrutural da dominação dos grupos hegemônicos representa a internalização dos valores da ideologia das classes dominantes pelos demais grupos que formam a sociedade brasileira. Nesse estágio de dominação exercido pelos grupos sociais dominantes, os demais grupos que estão em uma relação de subalternidade, inconscientemente, participam de sua opressão. Essa participação na própria opressão acontece porque o opressor está “aderido” a sua consciência, ou seja, conforme MCLAREN (1997) os grupos dominantes buscam estabelecer uma visão de mundo comum, capaz de disseminar as relações de poder e privilégio através da mídia, das escolas, instituições governamentais e burocracias do Estado. Sendo assim os sujeitos são condicionados a reagir a ideias e opiniões de maneira prescritas. Essa construção de uma visão de mundo comum, capaz de disfarçar as relações de poder e de privilégio, pode ser identificada na sociedade brasileira através do mito da democracia racial e através dos currículos escolares. O mito da democracia racial aliada aos currículos escolares invisibilizaram a história dos povos africanos legitimando uma “geopolítica do conhecimento” centrada nas teorias, nos conhecimentos e nos paradigmas europeus. Para transformar essa leitura de mundo que coloca a população negra em uma posição de inferioridade, os intelectuais que lutam contra o preconceito nas relações etnicorraciais atuam para romper com o senso comum através da difusão de uma concepção de mundo crítica e libertadora. Uma concepção de mundo crítica, para que a sociedade possa refletir sobre a origem e as estruturas de sua opressão. E uma concepção de mundo libertadora, pois não basta apenas identificar e compreender a fonte da opressão sofrida pelos afrodescendentes, mas desenvolver ações que elevem a sua consciência e a consciência dos opressores para realmente instaurar um processo de transformação das relações etnicorraciais na sociedade brasileira. A relação entre negros e brancos, “não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo” (FREIRE, 1999, p.90). Em busca da construção de uma sociedade equânime e para romper com o processo de uma das mais importantes formas de luta pela igualdade racial. Através de movimentos sociais que tinham por objetivo questionar as relações etnicorraciais existentes em nosso país, dentre eles o Movimento Negro, foi no início do século XX que se iniciou a preocupação com Página estratégias sociais e políticas onde, a valorização da educação formal, se consolidou como 381 invisibilidade social imposto desde a escravidão, a comunidade negra passou a criar Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS as questões educacionais. GONÇALVES; SILVA (2000) apontam alguns momentos em que houve mudanças de perspectiva em relação à educação. Nas primeiras décadas do século XX a educação era vista, pelos Movimentos Sociais Negros, conforme GONÇALVES; SILVA (2000), como uma estratégia para nivelar as condições entre negros e brancos dando-lhes oportunidades iguais no mercado de trabalho. A educação também era encarada como um instrumento de ascensão e integração social e como instrumento de conscientização por meio do qual os negros aprenderiam a história e a cultura de seu povo para reivindicar direitos sociais e políticos, direito à diferença e respeito humano. Já nas décadas de 1940 e 1950, os Movimentos Sociais Negros reivindicavam pela universalização do ensino fundamental, ou seja, um projeto educacional que visava o atendimento a negros e brancos. Essa situação muda no que tange as reivindicações a cerca do atendimento a população negra no ensino médio e no ensino superior. “Neste caso, há a defesa de seu grupo étnico. Fala-se em subsídios para os negros, uma vez que, nesses dois níveis de ensino, a democratização está longe de ser realizada”. (GONÇALVES; SILVA, 2000, p.49). Na década de 1980 os Movimentos Sociais Negros intensificaram as reivindicações acerca da democratização do ensino, com a denúncia do racismo perpetuado pela ideologia escolar e a pela busca de ações concretas para lutar contra o racismo no cotidiano escolar. Essa luta continuou uma das principais bandeiras de luta dos movimentos sociais que formam o Movimento Negro nas décadas seguintes. A grande contradição dessa forma de luta pela igualdade social é a de que a mesma escola que pode ajudar a comunidade afrodescendente a iniciar o seu diálogo com a sociedade é a mesma que serviu como instrumento de invisibilização da História e Cultura Africana e Afrobrasileira através dos tempos. E a questão que se apresenta é que a escola utilizada desta forma se constitui em um dos fatores que levam ao insistente fracasso escolar de crianças e jovens negros. Essa condição que a escola assume de legitimar a hegemonia das culturas dominantes acontece porque, na maioria das vezes, os professores não conseguem reconhecer que a sua formação e a formação de seus formadores, foi construída por meio de descreve essa situação vivida por ele e por muitos de nós professores, pois segundo o autor: “A hegemonia estava em ação nas minhas próprias práticas como professor de escola primária. Porque não ensinei meus estudantes a questionarem esses Página aceito como verdade” (MCLAREN, 1997, p.215). O próprio professor Peter McLaren 382 “conhecimentos escolares que distorcem a compreensão e produzem o que é comumente Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS valores, as atitudes e as práticas sociais prevalentes da sociedade dominante sob uma perspectiva crítica consistente, minha turma preservou a hegemonia da cultura dominante (MCLAREN, 1997, p.206).” Para romper com o currículo que não emancipa, não problematiza e coloniza a consciência de professores e alunos, os instrumentos normativos antirracistas indicam que um dos caminhos para essa ruptura seria através da formação docente, ou seja, deve ser inserida a discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular, tanto dos cursos de licenciatura como nos de formação continuada de professores em todos os níveis de ensino. Pois conforme o professor português José PACHECO (2008), a formação docente deve se caracterizar como um processo de ruptura e inovação contínuo e participativo de ação e reflexão crítico sobre a ação, pois através da reflexão crítica que são questionadas formas de legitimação. Através da formação os professores devem evoluir do estado de “fazer” para um estado do “que fazer”, ou seja, um estado que não dicotomize teoria e prática. Contudo, se os homens são seres do que fazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. É a transformação do mundo. Nessa perspectiva, a escola tem o dever de se constituir em um espaço receptivo à pluralidade e à multiplicidade de significado das muitas culturas e dos valores plurais dos grupos que formam a sociedade. Isso significa que os diferentes grupos (sejam elas étnicos, religiosos, raciais, de gênero, etc.), historicamente excluídos dos espaços escolares, têm uma chance em um tipo de escola que não deve ser mais indiferente à diferença. A escola abandonaria as antigas estratégias excludentes, sejam elas curriculares ou de acesso e permanência ao espaço escolar. O respeito à alteridade seria uma importante meta a ser desenvolvida na e pela escola. Nessas condições, somente uma escola plural tem algo de valor a oferecer a um mundo de significados múltiplos em uma grande diversidade cultural. A diversidade cultural está presente em todas as sociedades e a questão racial brasileira localiza-se dentro do amplo e complexo campo da diversidade cultural. Nesse Os termos e conceitos revelam não só a teorização sobre a temática racial, mas também as diferentes interpretações que a sociedade brasileira e os atores sociais realizam a respeito das relações raciais. Nesse contexto, é importante destacar o papel dos movimentos Página relações sócio-raciais em nosso país. 383 campo existem vários conceitos-chave que norteiam o entendimento e a discussão das Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS sociais, em particular, do Movimento Negro, os quais redefinem e redimensionam a questão social e racial na sociedade brasileira, dando-lhe uma dimensão e interpretação políticas. Nesse processo, os movimentos sociais cumprem uma importante tarefa não só de denúncia e reinterpretação da realidade social e racial brasileira como, também, de reeducação da população, dos meios políticos e acadêmicos. (GOMES, 2005 p. 39) Essa reeducação da população, dos meios políticos e acadêmicos, pelos movimentos sociais, inicia a partir do conhecimento dos múltiplos conceitos, expressões e designações construídas “ao longo das relações entre negros, brancos e outros grupos étnicos que vivem em nosso país” (MUNANGA; GOMES, 2005. p.172). Já que, alguns desses termos podem ser utilizados e interpretados de maneira a valorizar um grupo ou submetê-lo a uma posição de subalterno e inferior. Um desses conceitos, construído ao longo das relações sociais, é o de identidade. Para MUNANGA, identidade é “uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, In: GOMES, 2005. p. 40)”. Aqui podemos identificar uma das características do conceito de identidade, que é a defesa da unidade do grupo e a manipulação ideológica que pode servir para cimentar o “conjunto dos órgãos por meio dos quais a hegemonia e a coerção da classe dominante (ou classes dominantes) são exercidas sobre as classes subalternas da sociedade. Quando isso acontece, se institui um “bloco que reúne, numa “harmonia” promovendo historicamente a unificação provisória, ideológica as diversas e cultural forças sociais, da nação” histórico quando se vê realizada a hegemonia de uma classe sobre o conjunto da sociedade. Página que, segundo o pensamento de Gramsci, é denominado de bloco histórico. Existe um bloco 384 (MOCHOCOVITCH, 1990, p. 43), Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS “O bloco histórico (...) [deve ser visto] como o complexo de atualização de uma hegemonia determinada numa dada situação histórica. (...) Verifica-se a existência de um bloco histórico precisamente quando, pela hegemonia que exerce, a classe dirigente chega a fazer passar os seus próprios interesses pelos interesses do conjunto do corpo social e a sua visão do mundo – que reflete, justifica e legitima o seu domínio – como a visão universal” (GRISONI & MAGGIORE, In: MOCHOCOVITCH, 1990, p. 43-44) Mas também pode ser utilizada a mesma característica do conceito de identidade já descrito, defesa da unidade do grupo, como arma de luta dos movimentos sociais negros contra a desigualdade sócio-racial reivindicando uma “maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (GOMES, 2005. p. 43). Neste mesmo sentido colocaremos a outra temática que discute acerca da identidade do “gaúcho”, o tema é pertinente pois perpassa pela a identidade de um grupo social, à margem de uma sociedade conservadora e dominante, para a seguir tornar-se elemento aglutinador desta mesma sociedade. A forma como é apresentado e estudado o tema nas escolas, nos remeteu uma reflexão sobre este grupo mestiço, que passou a ser incorporado e destacado como homogêneo, aglutinador, e invisibilizando os grupos étnicos que o compõem. As comemorações cívicas, de caráter regional, vinculadas a memória construída em torno do Movimento Farroupilha (1835-45) e Movimento Federalista (1893-95), são trabalhadas nas aulas de história, nas escolas das redes públicas municipais e estaduais, de forma abrangente e não apresentam os traços culturais dos diferentes grupos que compõem a origem étnica do ‘gaúcho’. A identificação e analise dos grupos étnicos que compõem o ‘gáucho, faz com que o professor de história perceba os modos de construção histórica e os processos por que passa o ensino da história. A invenção da tradição está presente nas construções culturais da maioria dos grupos sociais. HOBSBAWM chama de “tradição inventada” e destaca que o termo “é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Segundo o ele, “inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas” (HOBSBAWM,1997, p. vencedores e os vencidos neste processo de construção histórica identifica-se os lugares de memória sobre estes movimentos, dentro do ensino da história em sala de aula, livros didáticos, nos monumentos, vestimentas e rituais alusivos a data comemorativa. Compreender Página Observando a forma como a história oficial e tradicional interpreta e relativisa os 385 9). Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS os mecanismos e a forma de transmissão de uma ideologia regional, a qual denominamos de gaúcho é o desafio. De acordo com CERRI (1996), (...)é pacifico entre nós que a história-estudo é uma construção vinculada a uma série de fatores determinantes relacionados ao local de produção deste conhecimento. (CERRI, 1996, p.136) Assim como é uma construção, esta tradição, também apresenta critérios e períodos, o que reforça a regionalização. Para CERRI (1996, p.137), a regionalização acaba sendo “a condição básica de toda e qualquer ideologia, para que possa existir como tal, e sustentar a hegemonia de uma classe sobre outras”. A postura critica do professor remeta à percepção de que, muitas vezes, é necessário desconstruirmos “verdades” que foram colocadas em um determinado momento histórico e que se perpetuam, reafirmando ideologias. E essas situações devem ser compreendidas de forma contextual, visto tratarem-se de situações históricas que nos são apresentadas quando trabalhamos com o ensino, e que, de alguma forma estamos reproduzindo e difundindo a hegemonia dominante, mesmo quando queremos fazer o contrário. Chamamos a atenção para o fato de que o Estado-nação nos impõe uma certa homogeneidade, um caráter nacional, uma identidade, a partir de leis, normas e/ou diretrizes, e que esta homogeneidade torna-se difícil de ser afirmada, dentro do recorte que se estabelece para fins de estudo, pois sabemos que a multiplicidade e a diversidade étnica e cultural passam ao largo desta homogeneização. O discurso ideológico de pertença, mesmo que distante desta realidade homogênea, apresenta uma identidade, e esta, por sua vez, representa interesses comuns definidos dentro da região e/ou dentro do Estado-nação, mas que está distante das peculiaridades regionais e locais. A construção da identidade do gaúcho faz parte de um processo histórico na busca da identidade nacional. Como não apresentávamos elementos comuns em todo o território, o caminho foi à construção das identidades regionais, logo a regionalização era um problema político. Não por ameaçar a unidade nacional, mas por ser um elemento que propicia o verdadeiros focos do trabalho. Albuquerque Jr. (2000), em sua análise referente à Foucault, apresenta de forma clara como ocorrem manipulações em relação aos objetos históricos. Segundo o autor, “os objetos são construções discursivas, que as elites inventam como Página sociais, e contribui para reforçar as questões de gênero e classe, desviando a atenção para os 386 desenvolvimento de preconceitos regionais, torna ideológica a discussão sobre os problemas Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS problema político e como objeto da história regional” (ALBUQUERQUE JR, 2000, p.127). O autor apresenta o objeto imagético-discursivo, cujas imagens e significações variam de acordo com o tempo, e o embate das forças políticas que o tomam como objeto de saber. Destaca então que não devemos tratar apenas as repercussões econômicas, políticas ou sociais, mas sim, a história da própria invenção do objeto. No caso de seu estudo, o autor refere-se à seca do nordeste. Em nosso objeto de estudo, analisamos o gaúcho e o uso deste elemento como identidade de uma região, percebemos que a criação desta identidade regional reforça a unidade dentro do que o próprio Estado-nação desejava. A história, colocada de forma coerente com a sua cientificidade, respeitando a lógica histórica e seus processos, tem o dever de discutir o ensino e a forma como é colocado uma dada ideologia. Pois, um ensino que se deseja crítico, não pode perder de vista a perspectiva de mudança da sociedade em que se insere. Questionamos, então, qual a intencionalidade do Estado-nação no processo da educação nacional? O momento histórico da construção da identidade do Estado-nação brasileiro, perpassou, também, pela construção de uma tradição regional, como foi o caso da Província do Rio Grande de São Pedro, e a construção do gaúcho. Podemos observar que a região, mais que uma fração da nacionalidade, é também uma construção da classe dominante em caráter regional. A construção da identidade regional sul-rio-grandense estava ligada a aristocracia agrária sulina a qual construiu uma tradição ligada à figura do gaúcho. O processo de transfiguração do gaúcho-pária para o gaúcho aristocrata cheio de virtudes civis e militares, não foi instantânea nem uniforme. O rastreamento da imagem positiva do gaúcho remete-nos ao Movimento Farroupilha (1935-45) que foi um conflito regional marcado por interesses geopolíticos e pela luta por maior influência na vida econômica do império brasileiro, motivada por descontentamentos dos estancieiros rio-grandenses. De acordo com CERRI (1996), ao nos preocuparmos em buscar a identidade de uma região, corremos o risco de desconsiderar que inexistem identidades puras, verdadeiras ou Na busca de elementos teóricos sobre a temática e de alguma forma questionarmos a construção do mito do gaúcho, foi necessário buscarmos em sua origem, quem foi este elemento, o qual consolidará toda a identidade de uma região. Domingo Faustino Sarmiento, Página históricos. 387 estáticas, já que as identidades são construídas pelas classes sociais em diferentes momentos Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS em 1845, escreve a obra “Facundo”, à qual apresenta o habitante das províncias argentinas, que ocupa suas vastas planícies e toda a Buenos Aires, são considerados cristãos selvagens e conhecidos sob o nome de hauchos (para dizer gaúchos). O autor discorre sobre os ‘tipos’ que habitavam toda a região dos pampas, denominando-os de “o rastreador” (é o que segue o rastro, personagem grave e circunspecto), “o vaqueano” (é um gaúcho reservado, é do pampa, que conhece, a palmo as planícies, bosques e montanhas), “o gaúcho malo” (é o divorciado da sociedade, proscrito das leis, rouba, é certo, mas esta é sua profissão) e o “o cantor” (é o trovador que anda de pago em pago, cantando seus heróis do pampa). Estes personagens, no decorrer da própria história da região, vão surgindo e sendo identificados pelas suas características específicas que permanecem e ultrapassam as fronteiras argentinas. As correntes historiográficas rio-platenses – a liberal e a revisionista - foram responsáveis pela afirmação e permanência das características apresentadas na obra “Facundo: Civilização e Barbárie”, as quais destacam a necessidade de construir uma história nacional para forjar, reforçar ou até mesmo criar um sentimento nacional ou de nação. Esse processo ocorreu em toda a região Platina, pois os Estados, agora constituídos enquanto nações sentiram a necessidade de reafirmar sua identidade. Nesta obra, SARMIENTO (1996) apresenta a superioridade do homem branco urbano sobre o rural, enquanto aquele era cosmopolita em sua cultura e em seu posicionamento político, este se apresentava “bruto” e sem um posicionamento político claro, era visto como a “barbárie continental”, vinculado a uma economia rural dispersa, com fortes laços servis, sem vínculos e sem ligação política. Por isso, a necessidade da construção de uma identidade regional. Enquanto isso, na província do sul do Brasil, encontramos a mesma fisionomia, ou seja, o gaúcho dos pampas sul-rio-grandense, trabalhando nas atividades diárias das fazendas. Este que é o filho da índia com o europeu (espanhol ou português), que não terá uma identidade “original”, ficará “vago”, por não pertencer a nenhum grupo social. Nascerá de uma índia, porém terá que viver fora da tribo. Aqui já incorremos no risco de negligenciar “pouco se sabia desses indivíduos denominados gaudérios ou gaúchos. Sua origem residia tanto na dispersão das Missões quanto no estupro das índias, Página Segundo Gonzaga, 388 uma identidade pura. Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS prática corriqueira de bandeirantes e soldados. Eram tipos indiáticos, mestiços, raros os brancos” (GONZAGA, 1980, p.114). A herança cultural deixada por estes indivíduos provém de sua origem Charrua, Minuano e Guarani. Herdaram dos Guarani a habilidade para a lide pastoril, a capacidade de montar, mas perderam sua identidade, tornando-se ‘marginais’. De acordo com Reichel e Gutfreind (1998), foi com os Charrua que adquiriram a rapidez com o laço e a boleadeira, para a caça e a presa de animais. O gaúcho, filho da mistura indígena e européia, carrega os elementos culturais de ambos, ao mesmo tempo, criaram novos costumes e se adaptaram a uma vida sem regras, livre pelos pampas, porém, participavam como trabalhadores avulsos. Para GONZAGA (1980), esta relação não foi tranquila, pois, na medida em que não se adaptavam as regras do capitalismo, ou seja, trabalhar presos no mesmo espaço, nas charqueadas e lidas campeiras, eram afastados, evitando-se assim a rapinagem. Ainda que fossem considerados semibárbaros, alguns estancieiros trataram de incorporá-los ao processo produtivo, e constituíram uma mão-de-obra especializada, e demonstrando extrema fidelidade aos patrões. Na medida em que os campos vão se privatizando e os latifúndios avançavam rumo a atual fronteira, os “vagos” tendiam a ser absorvidos, convertendo-se em peões ocasionais e permanentes. Após todo o processo de colonização, que ocorre na segunda metade do século XIX, no Rio Grande do Sul, e de organização da estrutura latifundiária-pastoril, os peões vinculados a um patrão passam a não ser denominados de gaúchos ou gaudérios, esses adquirem um sentido unívoco: são os inimigos da ordem. Já no século XIX, o vocábulo gaúcho retorna, e passa a ser empregado para designar várias espécies de trabalhadores das estâncias: peões, diaristas, changadores, etc. Quando se imaginava esta figura extinta, surge apta a renascer como instrumento de sustentação e imposição ideológica dos mesmos grupos que o tinham destruído. Porém, esse processo de transfiguração do gaúcho, não foi imediato. Nos últimos quartéis de oitocentos, quando o verdadeiro gaudério já havia sido riscado ressaltada no cotidiano, nas manifestações da cultura popular e do conjunto de discursos jornalísticos, literários e políticos, que traduziam a cultura das elites, reforçando os predicados de um tipo cada vez mais genérico, e dissociado de uma camada específica da população. Página mitificadas e confortantes, que traduzem a origem da imagem positiva do gaúcho. Esta será 389 do mapa, buscou-se no passado, especificamente na Revolução Farroupilha, belas mentiras, Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS A oportunidade dos intelectuais de se aliarem as frações dominantes, na época, era pequena, pois os grandes proprietários exerciam um domínio absoluto. A coesão dos “coronéis” parecia indestrutível, porém o grupo precisava de uma imagem viril e lisonjeira para uso externo, para enfrentamento às outras autoridades econômicas do Império. Inicia-se aqui o processo de construção do mito gaúcho. Em âmbito nacional, a jovem República Brasileira estava em busca de uma identidade. Era o momento em que surgem obras como “o Gaúcho” de José de Alencar (1870), o qual se propôs a construir um amplo painel sobre a realidade brasileira, assim como a sua obra “O Sertanejo”. Outros Poetas e literatos executaram esta tarefa no Brasil, do final do século XIX e meados do XX, tais como Euclides da Cunha e sua obra “Os Sertões”, que traz um retrato das identidades regionais brasileira. No século XX, ‘a invenção das tradições’ arrebatará com força a criação do mito do gaúcho, com o surgimento dos Centros de Tradições Gaúchas, os quais reforçavam a imagem do “Centauro” dos pampas. Considerações Finais A construção mítica do gaúcho, tal como discorrida acima, reforçou a identidade regional, engendrando-a dentro da malha hegemônica das classes dominantes nacionais. Atendendo aos interesses do Estado-nação, durante um período histórico, que a partir de seus discursos, alimentaram e alimentam o nacionalismo e/ou regionalismos, contribuindo para forjar identidades e tradições inventadas e que se julgavam perdidas, alimentando a necessidade de serem resgatadas. De outro lado, as comunidades negras, na história recente, passaram a criar estratégias sociais e políticas a partir dos movimentos sociais, na busca da construção de uma sociedade equânime e tentando romper com o processo de invisibilidade social imposto desde a escravidão, onde, a valorização da educação formal, se consolidou como uma das mais importantes formas de luta pela igualdade racial. Nossa proposta foi examinar os elementos culturais que pertencem a cada grupo, sem sobre a memória coletiva regional, sua construção e manutenção pelos grupos dominantes. A intenção é analisar o processo como um todo, percebendo-se que o ensino de história nos Página agindo de forma a garantir o pleno entendimento, dos elementos identitários indagando-se 390 perder de vista as diferenças, e com isso levar a reflexão sobre o ensino destas temáticas, Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS remete a compreender, e ao mesmo tempo, trabalhar as diferenças que até hoje alimentam a ideologia dominante, o que dificulta o processo da cidadania. Diante disso, o papel do professor é estar preparado para entender e participar dos debates teórico-metodológicos que estão por trás de aparentes propostas curriculares e discursos oficiais encontrados nos livros didáticos e/ou nas manifestações culturais presentes nos espaços regionais. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. Um leque que respira: a questão do objeto em história. In: BRANCO, Guilherme Castelo; PORTOCARRERO, Vera. 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