Capítulo VII: A máquina chamada sistema nervoso (Descreve como o sistema nervoso interage com os diversos sistemas do corpo; esboça as bases da anatomia do sistema nervoso e a maneira como se dá sua maturação; e fornece as bases para a compreensão de como o ambiente e a história pessoal influenciam a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso central modificando a propensão à fibromialgia. Pacientes não devem perder tempo com a “Anatomia básica”, mas devem ler “O desenvolvimento do sistema nervoso central” e o resumo final.) “A intenção é forjar a psicologia como uma ciência natural, ou seja, representando os processos psíquicos como estados mensuráveis de partículas materiais específicos e, dessa forma, fazê-los acessíveis e livres de contradição... Os neurônios hão de ser tomados como partículas materiais”. Sigmund Freud, Projeto para uma Psicologia Científica, 1895. O número de neurônios no córtex humano é próximo a 10 bilhões (10 10), e o número de conexões que cada um deles faz foi estimado em 1013 [94]. Portanto, o número aproximado de conexões em um cérebro humano é superior a 10 23. O sonho de Freud de transformar a psicologia em uma ciência exata por meio do registro de “partículas individuais” está muito longe de ser alcançado, se é que algum dia o será. Essa virtualmente infinita complexidade do sistema nervoso humano levou o jovem médico Freud a afastar-se da neurologia e neurofisiologia e ir para campos menos exatos e mais intuitivos e continua fazendo inimigos eternos entre os atuais estudantes de psicologia e medicina. No entanto, psicólogos (em suas diversas linhas), neurofisiologistas, neuroanatomistas, neurologistas, radiologistas, neurofilósofos, sociobiólogos, psicólogos evolutivos, psiquiatras, biólogos, etologistas, matemáticos e tantos outros, cada um tateando o elefante a partir do pedaço mais próximo de si, foram capazes de desenhar modelos funcionais do sistema nervoso que, se ainda não permitem cálculos exatos, pelo menos conferem imensos insights sobre seu funcionamento e opções de abordagens para os desvios desse nosso computador central. Mesmo que grande parte do público alvo deste livro não esteja amplamente familiarizado e confortável com detalhes neurofisiológicos do sistema nervoso central, alguns desses insights precisam ser discutidos se quisermos entender e modificar o que somos. Para tanto, teremos de discutir conceitos às vezes “pouco amigáveis”, que serão simplificados e digeridos, ao máximo, nos próximos trechos deste livro. Os efeitos colaterais da simplificação desse conjunto de sistemas hipercomplexos é o inevitável afastamento da realidade. Isto deve ser levado em conta, mas não diminui o mérito dos modelos aqui inseridos. Como qualquer outra verdade, eles servem ao seu propósito, sem a pretensão de serem infinitos. Isso vai de acordo com a terceira regra para a busca científica do conhecimento de René Descartes, considerado o “pai da filosofia moderna”: "pensar em maneira ordenada, iniciando com as coisas mais simples e fáceis de entender e, gradualmente, buscando o conhecimento mais complexo, mesmo tratando como se ordenados fossem, materiais que não necessariamente o são". A segunda regra de Descartes: “Dividir ao máximo os sistemas em suas unidades mais simples”, por mais útil que seja, leva a um viés indesejado: a fragmentação artificial de nossa visão de mundo (e de nós mesmos). Estamos acostumados a pensar no corpo humano em termos de sistemas isolados: osteomuscular, circulatório, imune, digestivo, respiratório, linfático, reprodutor, endócrino, nervoso. O fato é que as fronteiras de cada um deles são absolutamente artificiais. Com muita razão, os críticos dessa abordagem dizem que isso é tão bom quanto assistir a um filme um pixel por vez. Como veremos, substâncias secretadas pelo sistema digestivo podem causar crises de pânico, depressão pode causar colapso do sistema imune, hormônios secretados pelo sistema endócrino controlam o humor, nosso metabolismo e capacidade de recuperação osteomuscular, ao mesmo tempo em que é controlado pelo sistema nervoso central... Esses entre outros infinitos exemplos, cada um com suas múltiplas alças de interação mútua. Corremos muito pouco risco de estarmos exagerando se dissermos que, virtualmente, qualquer coisa que acontece em um local (ou sistema) do corpo afeta direta ou indiretamente todos os outros. Em algumas outras condições, isto fica tão palpável (literalmente) quanto na fibromialgia. Anatomia básica Uma vez apresentadas as relativizações dos “sistemas” acima, nosso Sistema Nervoso é classicamente dividido em Central e Periférico. Esses, por sua vez, também sofrem outras subdivisões (tabela 6). Tabela 6: Sistema nervoso e suas subdivisões (simplificado) Medula espinhal Sistema Nervoso Cérebro Mielencéfalo Bulbo (medula oblonga) Metencéfalo Ponte Cerebelo Mesencéfalo Tronco cerebral Central Tectum Tegmentum Pedúnculos do cerebelo Núcleos de nervos Fascículos Diencéfalo Tálamo Subtálamo Hipotálamo Epitálamo Glânglios da Base Substância negra Globo pálido Corpo estriado Córtex Arquicórtex Paleocórtex Neocórtex Periférico Autônomo Simpático Parassimpático Somático Entérico Sistema nervoso periférico O sistema nervoso periférico compreende os gânglios nervosos e nervos externos ao cérebro e medula espinhal, e é subdividido em sistema nervoso somático e autônomo. O sistema nervoso periférico somático executa o controle voluntário dos movimentos do corpo, através do sistema musculoesquelético. O sistema nervoso periférico autônomo participa do controle e execução das funções de nosso corpo que acontecem independentemente de nossa vontade ou controle como as atividades viscerais (ritmo cardíaco e respiratório, digestão, salivação, transpiração, dilatação pupilar, excitação sexual, entre outros). Boa parte desses processos pode ser influenciada por nossa vontade e pelo sistema nervoso somático como a respiração e o piscar de olhos; uma outra parte necessita, obrigatoriamente, de ambos os controles como deglutição, micção e defecação. O sistema nervoso autônomo é, por sua vez, subdividido em sistema nervoso simpático e parassimpático. Esses sistemas operam de maneira independente em algumas funções do sistema nervoso autônomo (quando, frequentemente, têm papeis opostos) e cooperativamente em outras. Em geral, o sistema nervoso simpático executa funções que exigem respostas rápidas e mobilizações abruptas de sistemas, enquanto o parassimpático age, geralmente, de forma mais vagarosa e no sentido de desacelerar sistemas, mas existem exceções para tal generalização. As fronteiras de cada um desses sistemas são frequentemente nebulosas. A pele, por exemplo, tem a mesma origem embrionária do sistema nervoso (neuroectoderma), divide com ele a característica de ter uma densidade maior de células e é, sem dúvida, uma das principais formas de interação entre o ambiente externo e nosso sistema nervoso. As vísceras do sistema gastrointestinal possuem um “sistema nervoso” próprio, o sistema nervoso entérico, incluído no que se entende por sistema nervoso periférico por alguns especialistas. Esse sistema nervoso entérico consiste em uma malha de centenas de milhões de neurônios (mais ou menos 1% do número de neurônios no cérebro) localizados ao longo das vísceras e tem a função de comandar suas funções e reflexos coordenados. Em modelos animais ou em lesões traumáticas acidentais em humanos, o sistema nervoso entérico pode ser separado do sistema nervoso central sem perder muitas de suas características – uma amostra de sua grande autonomia. Na prática, entretanto, ele recebe considerável influência direta (inervação sistema nervoso autônomo) e indireta (hormônios e neurotransmissores trafegando via sistema circulatório) do sistema nervoso central. Entender isso torna mais fácil compreender os sintomas gastrointestinais da fibromialgia, síndrome do cólon irritável e seus semelhantes. Sistema nervoso central O sistema nervoso central tem como principal função integrar as informações vindas e coordenar as atividades de todas as partes do corpo. Representa a maior porção do sistema nervoso (em humanos) e consiste, por definição, no cérebro e na medula espinhal. Grosseiramente falando, o tecido nervoso que fica dentro da caixa craniana é chamado de cérebro. Assim, a medula espinhal começa na altura da parte pósteroinferior do crânio (osso occipital) e se estende por dentro do canal vertebral da coluna até mais ou menos entre as 1ª e 2ª vértebras lombares (desse ponto para baixo, encontramos, dentro do canal vertebral, um feixe de nervos chamados de calda equina). A principal função da medula espinhal é a transmissão de informação entre o cérebro e o resto do corpo e vice-versa, mas ela também possui circuitos neurais internos que controlam, independentemente dessa transmissão, uma série de reflexos, alguns deles de considerável complexidade e capazes de gerar padrões motores. O desafio didático realmente se inicia com a descrição do cérebro. Primeiramente em função de sua complexidade, em segundo lugar, em função de uma enorme redundância, sobreposições e variações de nomes e termos. Outro problema é que, frequentemente, as estruturas funcionais não respeitam as fronteiras anatômicas. Regiões reguladoras de uma função específica podem estar dispersas por todo o cérebro. Eu espero que a confusão de nomes e termos não seja um impeditivo para a continuidade da leitura: introduzir o leitor à(s) anatomia(s) básica(s) do sistema nervoso central é importante para que possamos falar a mesma língua, mas não é necessário um conhecimento profundo do tema. Os termos mais importantes serão destacados e reexplicados sistematicamente. Isso posto, existem 4 principais maneiras de subdividir o cérebro: segundo as origens embrionárias das diferentes estruturas (embriologia), segundo sua anatomia macroscópica, segundo agrupamentos funcionais (anatomia funcional) e segundo a idade evolutiva de cada estrutura (filogenia). Segundo a embriologia, o tubo neural do feto é geralmente subdividido em 5 partes: o mielencéfalo, o metencéfalo, o mesencéfalo, o diencéfalo e o telencéfalo (Tabela 6, acima). O mielencéfalo (embrionário) dá origem à medula oblonga (ou bulbo) no indivíduo completamente formado. O metencéfalo dá origem à ponte e ao cerebelo (entre outras estruturas). O mesencéfalo dá origem ao cérebro intermédio, que possui uma série de estruturas cujas funções serão detalhadas a seguir. O diencéfalo dá origem ao tálamo, subtálamo, epitálamo e hipotálamo. O telencéfalo dá origem aos gânglios da base e ao córtex. Todas essas importantes estruturas também serão detalhadas mais adiante. Segundo a anatomia macroscópica, o cérebro seria dividido em 3 partes: o cérebro posterior, o intermédio e o anterior (do inglês, hindbrain, midbrain e forebrain) (figura 5). O cérebro posterior inclui a medula oblonga, a ponte e o cerebelo e é formado pelo mielencéfalo e metencéfalo embrionário. A medula oblonga e a ponte são responsáveis por muitos dos comportamentos automáticos que nos mantém vivos como respiração, regulação dos batimentos cardíacos, deglutição, pressão sanguínea. A ponte também executa papeis importantes no controle das expressões faciais e na ativação das partes superiores do cérebro, ajudando a controlar o sono/vigilia. Ela ainda recebe informações sobre movimentos e orientações do corpo no espaço. O cerebelo recebe as informações, codifica-as e memoriza-as, auxiliando a execução de movimentos finos e criando as aptidões motoras. O cérebro intermédio abriga o tectum (corpo quadrigeminado), o tegmentum, os pedúnculos cerebrais, e o aqueduto cerebral. Há, aqui, uma série de núcleos (centros de processamento de dados) e fascículos (“avenidas” de transmissão de dados), implicados em muitas de nossas ações e na regulação de nosso comportamento. Uma de suas estruturas centrais é a substância nigra, que recebeu esse nome por ser escura quando visualizada em cadáveres. Essa coloração é secundária a uma abundância de dopamina. A dopamina é essencial para o controle de movimentos e é essa a região mais comprometida na doença de Parkinson. Além disso, a dopamina é o principal "neurotransmissor de busca”, e como tal, é necessária em processos de aprendizagem e está envolvida em comportamentos compulsivos e de vício. O tectum participa do processamento de informações auditivas, visuais e do controle de movimentos oculares. Figura 5: Divisões do cérebro segundo a anatomia macroscópica. A soma do cérebro posterior e intermédio é definida como tronco cerebral. Este livro usará tal conceito sempre que possível, apenas a título de simplificação. Assim, o tronco cerebral inicia-se na medula espinhal e segue superiormente até o cérebro anterior. Apesar de relativamente pequeno, é extremamente importante, porque possui os núcleos da maioria dos nervos da face e pescoço; porque, por ele, passam as principais “avenidas” (fascículos) dos sistemas sensitivo (incluindo tato fino, tato grosseiro, vibração, propriocepção, dor, temperatura e coceira) e motor; porque nele estão os centros nervosos que coordenam diversas funções autonômicas; e também pelo fato de ele possuir mecanismos de regulação de todas as estruturas superiores (anatomicamente) a ele, promovendo os estados de consciência e ajudando a determinar os ciclos sono-vigília. Portanto, tal estrutura está diretamente envolvida nas funções mais básicas de um ser vivo como pulso, pressão, respiração, sentidos, movimento, alimentação, sono e vigília. Quando o cérebro de animais é seccionado abaixo do tronco cerebral, o animal, invariavelmente, morre incapaz de manter essas atividades vitais. Secções logo acima dele produzem animais em estado vegetativo com algumas respostas reflexas, mas sem nenhum outro tipo de interação com o meio ambiente ou flexibilidade de comportamento. Tudo que está acima do tronco cerebral é chamado de cérebro anterior, ou prosencéfalo. A porção dele, derivada do diencéfalo embrionário é, algumas vezes, chamada de “porção posterior do cérebro anterior”. Tal termo é muito frequentemente substituído pelo nome da porção embrionária que dará origem a essa estrutura: o diencéfalo. Seguirei, também, a título de simplificação essa tendência. O diencéfalo situa-se acima do tronco cerebral e abaixo do córtex. É composto de 4 componentes: o tálamo, o subtálamo, o hipotálamo e o epitálamo. O tálamo é uma estrutura (mais ou menos) em forma de lâmpada, com cerca de 5-6 centímetros, estrategicamente localizado no centro, entre o tronco cerebral (onde chega a grande maioria dos estímulos neurosensoriais) e o córtex (onde as informações são processadas). Sua posição condiz com sua principal função: servir de estação relé para os estímulos vindos do ambiente em seu caminho para o córtex. Quase todos os sinais ascendentes (à exceção do olfato) que vão para o córtex fazem sinapse nos núcleos do tálamo onde são reorganizados e/ou controlados. Mais ainda, (virtualmente) todas as informações processadas pelo córtex descem para o tálamo e são ali redistribuídas, inclusive para o córtex novamente. Outras funções atribuídas ao tálamo são o auxílio no controle dos estados de sono e vigília, atenção, memória e consciência motora. Na verdade, essa pequena peça da nossa máquina tem um papel fundamental sobre todo o funcionamento de nosso cérebro, de nossa consciência e de como entendemos o mundo a nossa volta, o que torna especialmente interessante a compreensão de quais são suas “influências”. Como veremos, o tálamo está anatômica e funcionalmente conectado ao que chamamos de sistema límbico, o centro das emoções no cérebro. Isso implica importantes insights: 1- provavelmente não há nenhum sentimento que não seja seguido de um pensamento, e poucos pensamentos não desencadeiam sentimentos; 2- Todo o funcionamento de nosso sistema nervoso é amplamente influenciado por nossa afetividade e está hierarquicamente submetido a ela. O hipotálamo tem o tamanho aproximado de uma amêndoa e se localiza abaixo do tálamo (figura 6). Apesar de ter origem diencefálica e estar anatomicamente acima do tronco cerebral, é funcionalmente mais próximo ao tronco cerebral e, por muitos autores, incluído nesse conjunto de estruturas [95]. O hipotálamo deve ser considerado a principal região encefálica promotora da homeostase, isto é, o que permite ao organismo manter o equilíbrio a despeito das variações externas. É o hipotálamo que controla a temperatura corporal, o balanço de água no corpo, o ritmo do metabolismo, o apetite, o controle do estoque de alimentos, ciclos circadianos, todo o sistema nervoso periférico autonômico, entre outras coisas. Além de ser o principal meio de integração entre o sistema nervoso central e autonômico, também o é entre o central e o endócrino. A hipófise e o hipotálamo são estruturas intimamente relacionadas anatômica e funcionalmente. Quase toda a secreção hipofisária é controlada pelo hipotálamo e recebe informações oriundas da periferia e das outras partes do sistema nervoso central (que vão desde dor até pensamentos e sentimentos) e se adapta às necessidades momentâneas, inibindo ou estimulando a secreção dos hormônios hipofisários. A secreção hipofisária, por sua vez, é o principal modo de regulação das principais glândulas produtoras de hormônios, entre elas a tireoide, as adrenais, as gônadas. Como o tálamo (talvez mais do que ele), o hipotálamo faz parte e está intimamente conectado ao resto do sistema límbico. Esse acúmulo de funções ilustra os mecanismos pelos quais nossas experiências afetivas influenciam nossos hormônios e metabolismo. O telencéfalo embrionário dá origem aos gânglios da base, ao bulbo olfatório e ao córtex. Ele é a maior e a mais alta (anatomicamente falando) porção do sistema nervoso central em humanos. Os gânglios da base são um grupo de núcleos situados na base do telencéfalo e fortemente conectados a estruturas tanto do diencéfalo quanto do córtex (figura 6). O termo é definido mais de modo funcional do que anatômico. O subtálamo, como vimos, é anatomicamente ligado ao diencéfalo, mas a maior parte dele é funcionalmente ligada aos gânglios da base; a substância nigra é anatomicamente ligada ao cérebro intermédio, embora, funcionalmente, seja, também, classificada entre os gânglios da base. Além do subtálamo e da substância nigra, outros dois núcleos compõem o cerne dos gânglios da base: o globo pálido e o corpo estriado. Veremos, em breve, que essas estruturas são evolutivamente bastante primitivas, além de serem a essência do que é chamado “o cérebro reptiliano”. Em uma visão histórica e didaticamente útil, estão localizados ali planos de ação para uma série de movimentos e comportamentos instintivos [94]. Em uma visão mais moderna, esses “planos de ações” não estariam exatamente ali alojados. Em vez disso, os gânglios da base ativamente escolheriam, entre as diversas possibilidades de um determinado momento, as ações motoras e comportamentais instintivas mais adequadas a serem seguidas. Essa “seleção de comportamentos” é influenciada por outras partes do cérebro, tanto “superiores” quanto “inferiores”. Tal influência permite, por exemplo, que um jogador de pôquer esconda suas emoções dos adversários. A labilidade emocional e desintegração cognitiva observadas em doenças como Parkinson e Huntington, nas quais essa região é progressivamente destruída, mostram que as funções dos gânglios da base vão além das motoras e comportamentais. Os gânglios da base, os prosencéfalos basais, as amigdalas (ver adiante) e o diencéfalo (tálamo e subtálamo), contêm uma série de núcleos profundos e alojados logo abaixo do córtex que agem em sinergia. Núcleos são estruturas neurais em cuja arquitetura está contido certo “know-how”, ou “saber-fazer”, conhecimentos sobre como agir ou o que fazer quando certas mensagens tornam aquele núcleo ativo [95]. O córtex consiste em uma camada de tecido neural de 2 a 3 centímetros de espessura que se dobra intensamente sobre si mesma de forma a criar a maior área possível dentro do volume em que está contido. O resultado disso é a figura retorcida que todos temos em mente quando pensamos em cérebro. Ele envolve superior, lateral e posteriormente quase todas as outras estruturas do sistema nervo central, do cérebro intermédio para cima, e é dividido ao meio, o que forma os hemisférios direito e esquerdo. O córtex não é totalmente uniforme e também pode ser subdividido. A parte mais externa dele, o neocórtex, é (nos mamíferos superiores) composto de 6 camadas neuronais, o que ilustra sua complexidade e capacidade de processamento de dados. Ele é o principal sítio envolvido na geração de nosso pensamento, linguagem, raciocínio espacial e comandos motores voluntários. A percepção sensorial inicia-se nas estruturas “inferiores”, mas aqui um significado cognitivo é atribuído a cada estímulo. Em humanos, cerca de 90% do córtex é formado pelo neocórtex. Em tal nível de complexidade, essa poderosa ferramenta foi inaugurada apenas recentemente, em termos evolutivos, junto ao surgimento dos mamíferos (daí o prefixo “neo” - novo). Até o momento, não é conhecido nenhum animal de outra classe equipado com um tecido cortical de 6 camadas. Os outros 10% do córtex humano é formado por um número menor de camadas e encontram-se anatomicamente mais profundos e próximos do diencéfalo. O paleocórtex é estratificado em 5 camadas e o arquicórtex em 3. Como veremos mais detalhadamente a seguir, algumas teorias propõem que tanto o número de camadas quanto a posição mais superior e periférica sejam inversamente proporcionais à idade evolutiva das estruturas. Assim, o arquicórtex seria evolutivamente mais antigo que o paleocórtex, que por sua vez seria mais antigo que o neocórtex (“paleo”, do grego, quer dizer antigo; “arqui”, também do grego, quer dizer primeiro). As estruturas formadas pelos páleo e arquicórtex são essenciais para o processamento dos estímulos do olfato, memória e também emoções. Ambas são parte importante do sistema límbico e ilustram como a afetividade modula e seleciona as memórias que serão guardadas. Além dessa subdivisão do córtex, baseada na idade evolutiva dos tecidos (filogenia), outras 2 são frequentemente usadas. Anatomicamente, o córtex é formado por duas metades, os hemisférios, uma de cada lado, separadas pela fissura longitudinal, mas ligados profundamente por um espesso aglomerado de fibras nervosas chamado corpo caloso. A superfície possui divisórias naturais que individualizam setores nomeados como lobos temporais, occipitais, parietais e frontais (um em cada hemisfério) (figura 6). Profundamente, essa estrutura abriga ainda o córtex cingulado, visível apenas na superfície interna de cada hemisfério. Funcionalmente, o córtex é descrito compreendendo 3 partes: sensória, motora e associativas. As áreas sensórias recebem e processam as informações recebidas pelos sentidos. As áreas motoras processam os comandos para os movimentos voluntários. As áreas associativas produzem um sentido conceitual para as experiências vividas, permitem uma interação mais adequada e flexível com o mundo a nossa volta e suportam um pensamento abstrato e a linguagem. Figura 6: Lobos cerebrais, prosencéfalo Abaixo dos lobos temporais e parietais, de cada lado, encontram-se os córtex insulares ou ínsulas. Essa região, anatomicamente incluída, às vezes, nos domínios do lobo temporal, é bastante peculiar por uma série de razões. Em primeiro lugar, enquanto parte dela é formada pelo neocórtex, com suas características 6 camadas neurais, outra parte carece de 2 dessas camadas e assemelha-se às estruturas mais profundas e evolutivamente antigas. Isso pode ser visto como uma dica sobre as funções dessa estrutura: ao córtex insular são atribuídas tanto atuações mais típicas de áreas profundas (homeostase, percepção do estado do corpo físico, emoções) quanto de áreas superficiais (controle motor, cognição). O mais importante é que a junção da percepção do estado do corpo físico, emoções e cognição leva ao início do que chamamos de “eu”, a experiência subjetiva de existir como um indivíduo. Tal assunto, além de ser extremamente importante e atual, está intimamente relacionado à psicopatologia de diversas condições, inclusive à fibromialgia, e será, portanto, mais profundamente abordado no próximo capítulo. Outra estrutura incluída nos lobos temporais que será bastante referida ao longo do livro é o hipocampo. O hipocampo (figura 6) é uma estrutura alongada (muitas vezes descrita como tendo o formato de um cavalo marinho) que se situa na base dos lobos temporais e é especialmente importante por reagir às emoções e ser fundamental para a formação da memória. Ele está em íntima ligação anatômica e funcional com a amigdala (figura 6), um núcleo situado na extremidade interna e medial do hipocampo e, consequentemente, do lobo temporal. As amigdalas (uma em cada hemisfério) são estruturas capazes de reagir a certos estímulos e desencadear as reações emocionais a que chamamos de medo. O lobo frontal possui uma região com propriedades semelhantes, o córtex pré-frontal ventromedial que, no seu caso, é associado à compaixão [95]. O Desenvolvimento do sistema nervoso central Entre as diversas sensações provocadas pelo contato com um bebê recém-nascido, uma das mais frequentes é o assombro frente a sua fragilidade e dependência. Mesmo pais mais experimentes sentem, frequentemente, receio e insegurança ao segurar aquele pequeno ser incapaz de levar o alimento até a própria boca, conter a saliva dentro dela, expressar-se ou mesmo segurar ereta a própria cabeça. Tal dependência vai sendo gradativamente alterada, mas permanece muito significante até, pelo menos, a adolescência. Se levarmos em conta que o humano primitivo tinha uma expectativa de vida próxima a 40 – 50 anos, isso significa que passávamos cerca de ¼ da vida aprendendo elementos básicos de sobrevivência. Vejamos a comparação com outros animais: répteis e peixes, na maioria das vezes (com exceções notáveis), não gozam de nenhuma ajuda ou proteção dos pais, já nascem equipados com um conjunto de instintos e capacidades que lhes permitem buscar a homeostase. Outros mamíferos como os cavalos, por exemplo, poucas horas após o nascimento já estão correndo, pulando e brincando em torno dos pais. Mesmo que se considere uma criança de 12 anos um adulto, isso não mudaria o raciocínio. Os seres humanos continuam a ser, neste planeta, de longe, aqueles com a menor velocidade de maturação do sistema nervoso central e com a maior proporção da vida vivida com o sistema nervoso imaturo. Por que nossa espécie passa tanto tempo imatura? Por que nascemos tão “inacabados”? Ingenuidade pensar que se trata de um “erro”. Nenhum erro de tais dimensões mantém-se imutável ao longo de centenas de milhares de anos, em todas as subpopulações da nossa espécie. Por traz dessa aparente desvantagem, há uma enorme vantagem – a plasticidade cerebral. Esse termo se refere à capacidade do sistema nervoso central de se modificar para se adaptar às necessidades específicas de cada meio-ambiente e será abordado, novamente, mais a frente. Enquanto peixes, répteis, cavalos e outros animais são selecionados por sua velocidade, força, resistência e outras características físicas, os seres humanos dominaram o planeta em função da sua inventividade e capacidade de adaptação aos mais diversos ambientes. Ao “optar” pela estratégia de nascer com um sistema nervoso tão imaturo, o homo sapiens trocou a pronta-habilidade instintiva, em grande parte estática e imutável, pela custosa habilidade adquirida com a experiência - uma página em branco com infinitas possibilidades. Esse cérebro imaturo completa sua formação sob intensa influência ambiental e, portanto, constrói suas ferramentas em função do que se faz necessário. As crianças de hoje crescem tocando telas e clicando em links. Seu sistema nervoso se desenvolve sob esse estímulo contínuo. Nós, nascidos há apenas algumas décadas, não conseguimos esconder o assombro frente à facilidade com que a nova geração domina tais máquinas. Outros animais apresentam capacidade de aprendizado e diversidade de comportamento ínfimos, quando comparados aos de nossa espécie. Dificilmente veremos tamanha diferença de habilidades entre gerações tão próximas em outras espécies. Essa imaturidade, no entanto, não é anatomicamente universal. É lógico que áreas indispensáveis para a regulação básica de nossa homeostase como respiração, batimentos cardíacos, regulação da pressão arterial, representação da dor, fome, frio e outras características vitais têm de estar formadas antes do nascimento. Todo o sistema - o nervoso periférico, a medula espinhal, o tronco cerebral, o hipotálamo (e outras estruturas subcorticais) - está pronto já no nascimento e sofre muito pouca modificação durante a vida. As estruturas “plásticas”, imaturas e moldáveis correspondem, principalmente, às áreas telencefálicas corticais. O processo de maturação também não é constante ao longo da vida. De forma geral, quanto mais jovem somos mais rápido se dá o processo de maturação, que logo após a puberdade está em sua maior parte completo. No entanto, diferentes aspectos de nosso funcionamento neuronal são maturados em tempos diferentes. Alguns deles só podem ser modificados até um período específico - “período crítico” -, outros permanecem plásticos por toda a vida. Na psicologia e biologia do desenvolvimento, o período crítico é aquele no qual um organismo tem a possibilidade de desenvolver uma determinada habilidade. Se o organismo não recebe os estímulos apropriados durante essa fase, o desenvolvimento de tal habilidade será difícil ou até mesmo impossível. Isso é notório no desenvolvimento do sistema nervoso sensorial. A visão binocular, por exemplo, tem dos 3 aos 8 primeiros meses de vida o período crítico de desenvolvimento. Crianças com problemas em uma das vistas, nessa fase, nunca vão aprender a usar as duas (e perderão o senso de profundidade), mesmo que o defeito seja posteriormente resolvido. Crianças que cresceram cegas, nunca aprenderão a enxergar mesmo se uma cirurgia lhes devolva a capacidade física de ver. Nelas, os córtices, normalmente associados à visão, estão associados a outras funções. Períodos críticos também foram identificados para o sistema auditivo e vestibular. Outras características mais complexas, como a linguagem, por exemplo, também parecem possuir períodos críticos. O tentilhão, um passarinho comum da África, Europa e Ásia deve ouvir um canto adulto antes de sua maturidade sexual ou nunca aprenderá corretamente as canções altamente complexas de sua espécie. De forma semelhante, crianças privadas, na primeira infância, de estímulos linguísticos (raros casos de crianças criadas por animais, vítimas de abuso infantil e crianças surdas) são largamente incapazes de desenvolver a linguagem falada após a adolescência. Uma vez aprendida a primeira língua (uma vez formadas, em seu devido tempo, as áreas corticais fundamentais para a linguagem), aprender a segunda língua não está submetido a um período crítico absoluto e permanece possível por toda a vida, apesar de uma maior facilidade dos jovens também nesse quesito. Cada página escrita nesse “caderno em branco” inicial deixa menos páginas em brancos a serem preenchidas. Ao escrevermos nossa história, ampliamos nossas habilidades, mas perdemos a capacidade de mudança. Após a adolescência, a estrutura do que somos está em grande parte formada. Certos aspectos dela ainda podem ser modificados, mas outros não. A esses aspectos, que não podem mais ser modificados após seu período crítico, é dado o nome de “imprinting”, que poderia ser traduzido em português por “impressão” ou “gravação”. A forma mais conhecida de imprinting, amplamente difundida no início do século XX por Konrad Lorenz, é o “imprinting familiar”. Lorenz demonstrou que gansos criados em incubadoras acolheriam, como seus pais, a primeira coisa que se movesse na frente de seus olhos de 13 a 16 horas após seu nascimento. Esse período é a janela onde essa forma de identidade é formada em tais animais. Formas semelhantes de imprinting certamente influenciam o desenvolvimento de nossa espécie, mas são menos claras pela impossibilidade de se realizar experimentos em humanos e em função da maior complexidade de nosso sistema nervoso e de nossa cultura. Uma forma de imprinting, chamada de “sexual reverso”, foi descrita pelo antropólogo Edvard Westermarck em seu livro “A história do casamento humano” (1891). Ele observou que crianças que passam seus primeiros anos de vida em grande proximidade doméstica se tornam insensíveis a uma posterior atração sexual mútua. Esse fenômeno já foi descrito em diversas culturas e não acontece apenas entre irmãos geneticamente semelhantes. Em alguns kibbutzim (fazendas coletivas) israelenses, por exemplo, crianças foram criadas em pares baseados por idade e não por relação biológica. Um estudo de casamentos entre essas pessoas revelou que dos quase 3000 casamentos que ocorreram, apenas 14 foram entre pessoas pareadas em tal sistema, e nenhum deles envolveu casais que passaram os primeiros 6 anos de vida juntos (sugerindo que o período crítico para o imprinting sexual negativo em humanos seja os primeiros 6 anos). Interessante notar que está cada vez mais claro que diversos imprintings ocorram antes do nascimento. Existem diversas evidências de que desequilíbrios hormonais ou privações nutricionais durante a gestação de mamíferos podem levar a alterações permanentes de comportamento após o nascimento e até a vida adulta - como sugerido por experimentos nos quais hormônios sexuais foram administrados em fêmeas de macacos prenhas. Muitas das estruturas que compõe o sistema nervoso e foram brevemente descritas ao longo desse capítulo serão frequentemente evocadas ao longo do livro. Mais do que ensinar anatomia, o capítulo pretendia colocá-las em perspectiva, de forma a permitir os próximos passos: ligar o corpo, a mente, o ambiente e a nossa história e explicar porque somos o que somos. A caminhada já começou, quando discutimos “funções pontes” de diversas estruturas, em especial aquelas que ligam nossas emoções e pensamentos aos sistemas endócrino e imune, quando esboçamos as estruturas responsáveis pela formação das imagens que temos de nós mesmos e quando descrevemos como estímulos no momento adequado (ou a falta deles) podem influenciar o desenvolvimento do sistema nervoso central, em alguns casos de maneira definitiva. No próximo capítulo aprofundaremos as bases neurais das emoções. Resumo do Capítulo VII: menciona como o sistema nervoso interage com os diversos sistemas do corpo; esboça as bases da anatomia do sistema nervoso e de como se dá sua maturação; fornece as bases para a compreensão de como o ambiente e a história pessoal influenciam a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso central. A divisão do corpo em sistemas auxilia sua compreensão, mas é artificial e imprecisa. Na realidade, o que acontece em qualquer parte ou sistema do corpo repercute no todo de maneira direta ou indireta. O sistema nervoso pode ser dividido em central (medula espinhal e cérebro) e periférico (nervos e gânglios nervosos do corpo). O sistema nervoso periférico liga, numa via de dupla comunicação, o corpo ao sistema nervoso central. O sistema nervoso central controla ou influencia o funcionamento de praticamente todas as funções do nosso corpo, incluindo os hormônios, o metabolismo e a imunidade. Estruturas especialmente importantes na comunicação entre esses sistemas são o hipotálamo e a hipófise. Diversas estruturas do sistema nervoso estão envolvidas na geração de emoções e/ou na reação a elas. Os bebês humanos nascem com um sistema nervoso muito mais imaturo do que o das outras espécies. Porque maturamos nosso sistema nervoso dentro do ambiente em que vamos viver, possuímos maior capacidade de nos adaptar a ele, mas, por outro lado, somos especialmente vulneráveis a situações que atrapalham esse desenvolvimento. Problemas da infância (ou gestação) podem levar a características que repercutem por toda a vida.