O Sistema Nervoso

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Capítulo VII: A máquina chamada
sistema nervoso
(Descreve como o sistema nervoso interage com os diversos sistemas do corpo; esboça
as bases da anatomia do sistema nervoso e a maneira como se dá sua maturação; e
fornece as bases para a compreensão de como o ambiente e a história pessoal
influenciam a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso central modificando a
propensão à fibromialgia. Pacientes não devem perder tempo com a “Anatomia
básica”, mas devem ler “O desenvolvimento do sistema nervoso central” e o resumo
final.)
“A intenção é forjar a psicologia como uma ciência natural, ou seja, representando os
processos psíquicos como estados mensuráveis de partículas materiais específicos e,
dessa forma, fazê-los acessíveis e livres de contradição... Os neurônios hão de ser
tomados como partículas materiais”. Sigmund Freud, Projeto para uma Psicologia
Científica, 1895.
O número de neurônios no córtex humano é próximo a 10 bilhões (10 10), e o número
de conexões que cada um deles faz foi estimado em 1013 [94]. Portanto, o número
aproximado de conexões em um cérebro humano é superior a 10 23. O sonho de Freud
de transformar a psicologia em uma ciência exata por meio do registro de “partículas
individuais” está muito longe de ser alcançado, se é que algum dia o será. Essa
virtualmente infinita complexidade do sistema nervoso humano levou o jovem médico
Freud a afastar-se da neurologia e neurofisiologia e ir para campos menos exatos e
mais intuitivos e continua fazendo inimigos eternos entre os atuais estudantes de
psicologia e medicina. No entanto, psicólogos (em suas diversas linhas),
neurofisiologistas, neuroanatomistas, neurologistas, radiologistas, neurofilósofos,
sociobiólogos, psicólogos evolutivos, psiquiatras, biólogos, etologistas, matemáticos e
tantos outros, cada um tateando o elefante a partir do pedaço mais próximo de si,
foram capazes de desenhar modelos funcionais do sistema nervoso que, se ainda não
permitem cálculos exatos, pelo menos conferem imensos insights sobre seu
funcionamento e opções de abordagens para os desvios desse nosso computador
central. Mesmo que grande parte do público alvo deste livro não esteja amplamente
familiarizado e confortável com detalhes neurofisiológicos do sistema nervoso central,
alguns desses insights precisam ser discutidos se quisermos entender e modificar o
que somos. Para tanto, teremos de discutir conceitos às vezes “pouco amigáveis”, que
serão simplificados e digeridos, ao máximo, nos próximos trechos deste livro. Os
efeitos colaterais da simplificação desse conjunto de sistemas hipercomplexos é o
inevitável afastamento da realidade. Isto deve ser levado em conta, mas não diminui o
mérito dos modelos aqui inseridos. Como qualquer outra verdade, eles servem ao seu
propósito, sem a pretensão de serem infinitos. Isso vai de acordo com a terceira regra
para a busca científica do conhecimento de René Descartes, considerado o “pai da
filosofia moderna”: "pensar em maneira ordenada, iniciando com as coisas mais
simples e fáceis de entender e, gradualmente, buscando o conhecimento mais
complexo, mesmo tratando como se ordenados fossem, materiais que não
necessariamente o são".
A segunda regra de Descartes: “Dividir ao máximo os sistemas em suas unidades mais
simples”, por mais útil que seja, leva a um viés indesejado: a fragmentação artificial de
nossa visão de mundo (e de nós mesmos). Estamos acostumados a pensar no corpo
humano em termos de sistemas isolados: osteomuscular, circulatório, imune,
digestivo, respiratório, linfático, reprodutor, endócrino, nervoso. O fato é que as
fronteiras de cada um deles são absolutamente artificiais. Com muita razão, os críticos
dessa abordagem dizem que isso é tão bom quanto assistir a um filme um pixel por
vez. Como veremos, substâncias secretadas pelo sistema digestivo podem causar crises
de pânico, depressão pode causar colapso do sistema imune, hormônios secretados
pelo sistema endócrino controlam o humor, nosso metabolismo e capacidade de
recuperação osteomuscular, ao mesmo tempo em que é controlado pelo sistema
nervoso central... Esses entre outros infinitos exemplos, cada um com suas múltiplas
alças de interação mútua. Corremos muito pouco risco de estarmos exagerando se
dissermos que, virtualmente, qualquer coisa que acontece em um local (ou sistema) do
corpo afeta direta ou indiretamente todos os outros. Em algumas outras condições,
isto fica tão palpável (literalmente) quanto na fibromialgia.
Anatomia básica
Uma vez apresentadas as relativizações dos “sistemas” acima, nosso Sistema Nervoso
é classicamente dividido em Central e Periférico. Esses, por sua vez, também sofrem
outras subdivisões (tabela 6).
Tabela 6: Sistema nervoso e suas subdivisões (simplificado)
Medula espinhal
Sistema Nervoso
Cérebro
Mielencéfalo
Bulbo (medula oblonga)
Metencéfalo
Ponte
Cerebelo
Mesencéfalo
Tronco cerebral
Central
Tectum
Tegmentum
Pedúnculos
do
cerebelo
Núcleos de nervos
Fascículos
Diencéfalo
Tálamo
Subtálamo
Hipotálamo
Epitálamo
Glânglios da Base Substância negra
Globo pálido
Corpo estriado
Córtex
Arquicórtex
Paleocórtex
Neocórtex
Periférico
Autônomo Simpático
Parassimpático
Somático
Entérico
Sistema nervoso periférico
O sistema nervoso periférico compreende os gânglios nervosos e nervos externos ao
cérebro e medula espinhal, e é subdividido em sistema nervoso somático e autônomo.
O sistema nervoso periférico somático executa o controle voluntário dos movimentos do
corpo, através do sistema musculoesquelético. O sistema nervoso periférico autônomo
participa do controle e execução das funções de nosso corpo que acontecem
independentemente de nossa vontade ou controle como as atividades viscerais (ritmo
cardíaco e respiratório, digestão, salivação, transpiração, dilatação pupilar, excitação
sexual, entre outros). Boa parte desses processos pode ser influenciada por nossa
vontade e pelo sistema nervoso somático como a respiração e o piscar de olhos; uma
outra parte necessita, obrigatoriamente, de ambos os controles como deglutição,
micção e defecação. O sistema nervoso autônomo é, por sua vez, subdividido em
sistema nervoso simpático e parassimpático. Esses sistemas operam de maneira
independente em algumas funções do sistema nervoso autônomo (quando,
frequentemente, têm papeis opostos) e cooperativamente em outras. Em geral, o
sistema nervoso simpático executa funções que exigem respostas rápidas e
mobilizações abruptas de sistemas, enquanto o parassimpático age, geralmente, de
forma mais vagarosa e no sentido de desacelerar sistemas, mas existem exceções para
tal generalização.
As fronteiras de cada um desses sistemas são frequentemente nebulosas. A pele, por
exemplo, tem a mesma origem embrionária do sistema nervoso (neuroectoderma),
divide com ele a característica de ter uma densidade maior de células e é, sem dúvida,
uma das principais formas de interação entre o ambiente externo e nosso sistema
nervoso. As vísceras do sistema gastrointestinal possuem um “sistema nervoso”
próprio, o sistema nervoso entérico, incluído no que se entende por sistema nervoso
periférico por alguns especialistas. Esse sistema nervoso entérico consiste em uma
malha de centenas de milhões de neurônios (mais ou menos 1% do número de
neurônios no cérebro) localizados ao longo das vísceras e tem a função de comandar
suas funções e reflexos coordenados. Em modelos animais ou em lesões traumáticas
acidentais em humanos, o sistema nervoso entérico pode ser separado do sistema
nervoso central sem perder muitas de suas características – uma amostra de sua
grande autonomia. Na prática, entretanto, ele recebe considerável influência direta
(inervação sistema nervoso autônomo) e indireta (hormônios e neurotransmissores
trafegando via sistema circulatório) do sistema nervoso central. Entender isso torna
mais fácil compreender os sintomas gastrointestinais da fibromialgia, síndrome do
cólon irritável e seus semelhantes.
Sistema nervoso central
O sistema nervoso central tem como principal função integrar as informações vindas e
coordenar as atividades de todas as partes do corpo. Representa a maior porção do
sistema nervoso (em humanos) e consiste, por definição, no cérebro e na medula
espinhal. Grosseiramente falando, o tecido nervoso que fica dentro da caixa craniana
é chamado de cérebro. Assim, a medula espinhal começa na altura da parte pósteroinferior do crânio (osso occipital) e se estende por dentro do canal vertebral da coluna
até mais ou menos entre as 1ª e 2ª vértebras lombares (desse ponto para baixo,
encontramos, dentro do canal vertebral, um feixe de nervos chamados de calda
equina). A principal função da medula espinhal é a transmissão de informação entre o
cérebro e o resto do corpo e vice-versa, mas ela também possui circuitos neurais
internos que controlam, independentemente dessa transmissão, uma série de
reflexos, alguns deles de considerável complexidade e capazes de gerar padrões
motores.
O desafio didático realmente se inicia com a descrição do cérebro. Primeiramente em
função de sua complexidade, em segundo lugar, em função de uma enorme
redundância, sobreposições e variações de nomes e termos. Outro problema é que,
frequentemente, as estruturas funcionais não respeitam as fronteiras anatômicas.
Regiões reguladoras de uma função específica podem estar dispersas por todo o
cérebro. Eu espero que a confusão de nomes e termos não seja um impeditivo para a
continuidade da leitura: introduzir o leitor à(s) anatomia(s) básica(s) do sistema
nervoso central é importante para que possamos falar a mesma língua, mas não é
necessário um conhecimento profundo do tema. Os termos mais importantes serão
destacados e reexplicados sistematicamente.
Isso posto, existem 4 principais maneiras de subdividir o cérebro: segundo as origens
embrionárias das diferentes estruturas (embriologia), segundo sua anatomia
macroscópica, segundo agrupamentos funcionais (anatomia funcional) e segundo a
idade evolutiva de cada estrutura (filogenia). Segundo a embriologia, o tubo neural do
feto é geralmente subdividido em 5 partes: o mielencéfalo, o metencéfalo, o
mesencéfalo, o diencéfalo e o telencéfalo (Tabela 6, acima). O mielencéfalo
(embrionário) dá origem à medula oblonga (ou bulbo) no indivíduo completamente
formado. O metencéfalo dá origem à ponte e ao cerebelo (entre outras estruturas). O
mesencéfalo dá origem ao cérebro intermédio, que possui uma série de estruturas
cujas funções serão detalhadas a seguir. O diencéfalo dá origem ao tálamo, subtálamo,
epitálamo e hipotálamo. O telencéfalo dá origem aos gânglios da base e ao córtex.
Todas essas importantes estruturas também serão detalhadas mais adiante.
Segundo a anatomia macroscópica, o cérebro seria dividido em 3 partes: o cérebro
posterior, o intermédio e o anterior (do inglês, hindbrain, midbrain e forebrain) (figura
5). O cérebro posterior inclui a medula oblonga, a ponte e o cerebelo e é formado pelo
mielencéfalo e metencéfalo embrionário. A medula oblonga e a ponte são
responsáveis por muitos dos comportamentos automáticos que nos mantém vivos
como respiração, regulação dos batimentos cardíacos, deglutição, pressão sanguínea.
A ponte também executa papeis importantes no controle das expressões faciais e na
ativação das partes superiores do cérebro, ajudando a controlar o sono/vigilia. Ela
ainda recebe informações sobre movimentos e orientações do corpo no espaço. O
cerebelo recebe as informações, codifica-as e memoriza-as, auxiliando a execução de
movimentos finos e criando as aptidões motoras.
O cérebro intermédio abriga o tectum (corpo quadrigeminado), o tegmentum, os
pedúnculos cerebrais, e o aqueduto cerebral. Há, aqui, uma série de núcleos (centros
de processamento de dados) e fascículos (“avenidas” de transmissão de dados),
implicados em muitas de nossas ações e na regulação de nosso comportamento. Uma
de suas estruturas centrais é a substância nigra, que recebeu esse nome por ser escura
quando visualizada em cadáveres. Essa coloração é secundária a uma abundância de
dopamina. A dopamina é essencial para o controle de movimentos e é essa a região
mais comprometida na doença de Parkinson. Além disso, a dopamina é o principal
"neurotransmissor de busca”, e como tal, é necessária em processos de aprendizagem
e está envolvida em comportamentos compulsivos e de vício. O tectum participa do
processamento de informações auditivas, visuais e do controle de movimentos
oculares.
Figura 5: Divisões do cérebro segundo a anatomia macroscópica.
A soma do cérebro posterior e intermédio é definida como tronco cerebral. Este livro
usará tal conceito sempre que possível, apenas a título de simplificação. Assim, o
tronco cerebral inicia-se na medula espinhal e segue superiormente até o cérebro
anterior. Apesar de relativamente pequeno, é extremamente importante, porque
possui os núcleos da maioria dos nervos da face e pescoço; porque, por ele, passam as
principais “avenidas” (fascículos) dos sistemas sensitivo (incluindo tato fino, tato
grosseiro, vibração, propriocepção, dor, temperatura e coceira) e motor; porque nele
estão os centros nervosos que coordenam diversas funções autonômicas; e também
pelo fato de ele possuir mecanismos de regulação de todas as estruturas superiores
(anatomicamente) a ele, promovendo os estados de consciência e ajudando a
determinar os ciclos sono-vigília. Portanto, tal estrutura está diretamente envolvida
nas funções mais básicas de um ser vivo como pulso, pressão, respiração, sentidos,
movimento, alimentação, sono e vigília. Quando o cérebro de animais é seccionado
abaixo do tronco cerebral, o animal, invariavelmente, morre incapaz de manter essas
atividades vitais. Secções logo acima dele produzem animais em estado vegetativo
com algumas respostas reflexas, mas sem nenhum outro tipo de interação com o meio
ambiente ou flexibilidade de comportamento.
Tudo que está acima do tronco cerebral é chamado de cérebro anterior, ou
prosencéfalo. A porção dele, derivada do diencéfalo embrionário é, algumas vezes,
chamada de “porção posterior do cérebro anterior”. Tal termo é muito
frequentemente substituído pelo nome da porção embrionária que dará origem a essa
estrutura: o diencéfalo. Seguirei, também, a título de simplificação essa tendência. O
diencéfalo situa-se acima do tronco cerebral e abaixo do córtex. É composto de 4
componentes: o tálamo, o subtálamo, o hipotálamo e o epitálamo. O tálamo é uma
estrutura (mais ou menos) em forma de lâmpada, com cerca de 5-6 centímetros,
estrategicamente localizado no centro, entre o tronco cerebral (onde chega a grande
maioria dos estímulos neurosensoriais) e o córtex (onde as informações são
processadas). Sua posição condiz com sua principal função: servir de estação relé para
os estímulos vindos do ambiente em seu caminho para o córtex. Quase todos os sinais
ascendentes (à exceção do olfato) que vão para o córtex fazem sinapse nos núcleos do
tálamo onde são reorganizados e/ou controlados. Mais ainda, (virtualmente) todas as
informações processadas pelo córtex descem para o tálamo e são ali redistribuídas,
inclusive para o córtex novamente. Outras funções atribuídas ao tálamo são o auxílio
no controle dos estados de sono e vigília, atenção, memória e consciência motora. Na
verdade, essa pequena peça da nossa máquina tem um papel fundamental sobre todo
o funcionamento de nosso cérebro, de nossa consciência e de como entendemos o
mundo a nossa volta, o que torna especialmente interessante a compreensão de quais
são suas “influências”. Como veremos, o tálamo está anatômica e funcionalmente
conectado ao que chamamos de sistema límbico, o centro das emoções no cérebro.
Isso implica importantes insights: 1- provavelmente não há nenhum sentimento que
não seja seguido de um pensamento, e poucos pensamentos não desencadeiam
sentimentos; 2- Todo o funcionamento de nosso sistema nervoso é amplamente
influenciado por nossa afetividade e está hierarquicamente submetido a ela.
O hipotálamo tem o tamanho aproximado de uma amêndoa e se localiza abaixo do
tálamo (figura 6). Apesar de ter origem diencefálica e estar anatomicamente acima do
tronco cerebral, é funcionalmente mais próximo ao tronco cerebral e, por muitos
autores, incluído nesse conjunto de estruturas [95]. O hipotálamo deve ser
considerado a principal região encefálica promotora da homeostase, isto é, o que
permite ao organismo manter o equilíbrio a despeito das variações externas. É o
hipotálamo que controla a temperatura corporal, o balanço de água no corpo, o ritmo
do metabolismo, o apetite, o controle do estoque de alimentos, ciclos circadianos,
todo o sistema nervoso periférico autonômico, entre outras coisas. Além de ser o
principal meio de integração entre o sistema nervoso central e autonômico, também o
é entre o central e o endócrino. A hipófise e o hipotálamo são estruturas intimamente
relacionadas anatômica e funcionalmente. Quase toda a secreção hipofisária é
controlada pelo hipotálamo e recebe informações oriundas da periferia e das outras
partes do sistema nervoso central (que vão desde dor até pensamentos e sentimentos)
e se adapta às necessidades momentâneas, inibindo ou estimulando a secreção dos
hormônios hipofisários. A secreção hipofisária, por sua vez, é o principal modo de
regulação das principais glândulas produtoras de hormônios, entre elas a tireoide, as
adrenais, as gônadas. Como o tálamo (talvez mais do que ele), o hipotálamo faz parte e
está intimamente conectado ao resto do sistema límbico. Esse acúmulo de funções
ilustra os mecanismos pelos quais nossas experiências afetivas influenciam nossos
hormônios e metabolismo.
O telencéfalo embrionário dá origem aos gânglios da base, ao bulbo olfatório e ao
córtex. Ele é a maior e a mais alta (anatomicamente falando) porção do sistema
nervoso central em humanos.
Os gânglios da base são um grupo de núcleos situados na base do telencéfalo e
fortemente conectados a estruturas tanto do diencéfalo quanto do córtex (figura 6). O
termo é definido mais de modo funcional do que anatômico. O subtálamo, como
vimos, é anatomicamente ligado ao diencéfalo, mas a maior parte dele é
funcionalmente ligada aos gânglios da base; a substância nigra é anatomicamente
ligada ao cérebro intermédio, embora, funcionalmente, seja, também, classificada
entre os gânglios da base. Além do subtálamo e da substância nigra, outros dois
núcleos compõem o cerne dos gânglios da base: o globo pálido e o corpo estriado.
Veremos, em breve, que essas estruturas são evolutivamente bastante primitivas,
além de serem a essência do que é chamado “o cérebro reptiliano”. Em uma visão
histórica e didaticamente útil, estão localizados ali planos de ação para uma série de
movimentos e comportamentos instintivos [94]. Em uma visão mais moderna, esses
“planos de ações” não estariam exatamente ali alojados. Em vez disso, os gânglios da
base ativamente escolheriam, entre as diversas possibilidades de um determinado
momento, as ações motoras e comportamentais instintivas mais adequadas a serem
seguidas. Essa “seleção de comportamentos” é influenciada por outras partes do
cérebro, tanto “superiores” quanto “inferiores”. Tal influência permite, por exemplo,
que um jogador de pôquer esconda suas emoções dos adversários. A labilidade
emocional e desintegração cognitiva observadas em doenças como Parkinson e
Huntington, nas quais essa região é progressivamente destruída, mostram que as
funções dos gânglios da base vão além das motoras e comportamentais.
Os gânglios da base, os prosencéfalos basais, as amigdalas (ver adiante) e o diencéfalo
(tálamo e subtálamo), contêm uma série de núcleos profundos e alojados logo abaixo
do córtex que agem em sinergia. Núcleos são estruturas neurais em cuja arquitetura
está contido certo “know-how”, ou “saber-fazer”, conhecimentos sobre como agir ou
o que fazer quando certas mensagens tornam aquele núcleo ativo [95].
O córtex consiste em uma camada de tecido neural de 2 a 3 centímetros de espessura
que se dobra intensamente sobre si mesma de forma a criar a maior área possível
dentro do volume em que está contido. O resultado disso é a figura retorcida que
todos temos em mente quando pensamos em cérebro. Ele envolve superior, lateral e
posteriormente quase todas as outras estruturas do sistema nervo central, do cérebro
intermédio para cima, e é dividido ao meio, o que forma os hemisférios direito e
esquerdo.
O córtex não é totalmente uniforme e também pode ser subdividido. A parte mais
externa dele, o neocórtex, é (nos mamíferos superiores) composto de 6 camadas
neuronais, o que ilustra sua complexidade e capacidade de processamento de dados.
Ele é o principal sítio envolvido na geração de nosso pensamento, linguagem,
raciocínio espacial e comandos motores voluntários. A percepção sensorial inicia-se
nas estruturas “inferiores”, mas aqui um significado cognitivo é atribuído a cada
estímulo. Em humanos, cerca de 90% do córtex é formado pelo neocórtex. Em tal nível
de complexidade, essa poderosa ferramenta foi inaugurada apenas recentemente, em
termos evolutivos, junto ao surgimento dos mamíferos (daí o prefixo “neo” - novo).
Até o momento, não é conhecido nenhum animal de outra classe equipado com um
tecido cortical de 6 camadas.
Os outros 10% do córtex humano é formado por um número menor de camadas e
encontram-se anatomicamente mais profundos e próximos do diencéfalo. O
paleocórtex é estratificado em 5 camadas e o arquicórtex em 3. Como veremos mais
detalhadamente a seguir, algumas teorias propõem que tanto o número de camadas
quanto a posição mais superior e periférica sejam inversamente proporcionais à idade
evolutiva das estruturas. Assim, o arquicórtex seria evolutivamente mais antigo que o
paleocórtex, que por sua vez seria mais antigo que o neocórtex (“paleo”, do grego,
quer dizer antigo; “arqui”, também do grego, quer dizer primeiro). As estruturas
formadas pelos páleo e arquicórtex são essenciais para o processamento dos estímulos
do olfato, memória e também emoções. Ambas são parte importante do sistema
límbico e ilustram como a afetividade modula e seleciona as memórias que serão
guardadas.
Além dessa subdivisão do córtex, baseada na idade evolutiva dos tecidos (filogenia),
outras 2 são frequentemente usadas. Anatomicamente, o córtex é formado por duas
metades, os hemisférios, uma de cada lado, separadas pela fissura longitudinal, mas
ligados profundamente por um espesso aglomerado de fibras nervosas chamado corpo
caloso. A superfície possui divisórias naturais que individualizam setores nomeados
como lobos temporais, occipitais, parietais e frontais (um em cada hemisfério) (figura
6). Profundamente, essa estrutura abriga ainda o córtex cingulado, visível apenas na
superfície interna de cada hemisfério. Funcionalmente, o córtex é descrito
compreendendo 3 partes: sensória, motora e associativas. As áreas sensórias recebem
e processam as informações recebidas pelos sentidos. As áreas motoras processam os
comandos para os movimentos voluntários. As áreas associativas produzem um
sentido conceitual para as experiências vividas, permitem uma interação mais
adequada e flexível com o mundo a nossa volta e suportam um pensamento abstrato e
a linguagem.
Figura 6: Lobos cerebrais, prosencéfalo
Abaixo dos lobos temporais e parietais, de cada lado, encontram-se os córtex insulares
ou ínsulas. Essa região, anatomicamente incluída, às vezes, nos domínios do lobo
temporal, é bastante peculiar por uma série de razões. Em primeiro lugar, enquanto
parte dela é formada pelo neocórtex, com suas características 6 camadas neurais,
outra parte carece de 2 dessas camadas e assemelha-se às estruturas mais profundas e
evolutivamente antigas. Isso pode ser visto como uma dica sobre as funções dessa
estrutura: ao córtex insular são atribuídas tanto atuações mais típicas de áreas
profundas (homeostase, percepção do estado do corpo físico, emoções) quanto de
áreas superficiais (controle motor, cognição). O mais importante é que a junção da
percepção do estado do corpo físico, emoções e cognição leva ao início do que
chamamos de “eu”, a experiência subjetiva de existir como um indivíduo. Tal assunto,
além de ser extremamente importante e atual, está intimamente relacionado à
psicopatologia de diversas condições, inclusive à fibromialgia, e será, portanto, mais
profundamente abordado no próximo capítulo.
Outra estrutura incluída nos lobos temporais que será bastante referida ao longo do
livro é o hipocampo. O hipocampo (figura 6) é uma estrutura alongada (muitas vezes
descrita como tendo o formato de um cavalo marinho) que se situa na base dos lobos
temporais e é especialmente importante por reagir às emoções e ser fundamental
para a formação da memória. Ele está em íntima ligação anatômica e funcional com a
amigdala (figura 6), um núcleo situado na extremidade interna e medial do hipocampo
e, consequentemente, do lobo temporal. As amigdalas (uma em cada hemisfério) são
estruturas capazes de reagir a certos estímulos e desencadear as reações emocionais a
que chamamos de medo. O lobo frontal possui uma região com propriedades
semelhantes, o córtex pré-frontal ventromedial que, no seu caso, é associado à
compaixão [95].
O Desenvolvimento do sistema nervoso central
Entre as diversas sensações provocadas pelo contato com um bebê recém-nascido,
uma das mais frequentes é o assombro frente a sua fragilidade e dependência. Mesmo
pais mais experimentes sentem, frequentemente, receio e insegurança ao segurar
aquele pequeno ser incapaz de levar o alimento até a própria boca, conter a saliva
dentro dela, expressar-se ou mesmo segurar ereta a própria cabeça. Tal dependência
vai sendo gradativamente alterada, mas permanece muito significante até, pelo
menos, a adolescência. Se levarmos em conta que o humano primitivo tinha uma
expectativa de vida próxima a 40 – 50 anos, isso significa que passávamos cerca de ¼
da vida aprendendo elementos básicos de sobrevivência. Vejamos a comparação com
outros animais: répteis e peixes, na maioria das vezes (com exceções notáveis), não
gozam de nenhuma ajuda ou proteção dos pais, já nascem equipados com um
conjunto de instintos e capacidades que lhes permitem buscar a homeostase. Outros
mamíferos como os cavalos, por exemplo, poucas horas após o nascimento já estão
correndo, pulando e brincando em torno dos pais. Mesmo que se considere uma
criança de 12 anos um adulto, isso não mudaria o raciocínio. Os seres humanos
continuam a ser, neste planeta, de longe, aqueles com a menor velocidade de
maturação do sistema nervoso central e com a maior proporção da vida vivida com o
sistema nervoso imaturo. Por que nossa espécie passa tanto tempo imatura? Por que
nascemos tão “inacabados”?
Ingenuidade pensar que se trata de um “erro”. Nenhum erro de tais dimensões
mantém-se imutável ao longo de centenas de milhares de anos, em todas as
subpopulações da nossa espécie. Por traz dessa aparente desvantagem, há uma
enorme vantagem – a plasticidade cerebral. Esse termo se refere à capacidade do
sistema nervoso central de se modificar para se adaptar às necessidades específicas de
cada meio-ambiente e será abordado, novamente, mais a frente. Enquanto peixes,
répteis, cavalos e outros animais são selecionados por sua velocidade, força,
resistência e outras características físicas, os seres humanos dominaram o planeta em
função da sua inventividade e capacidade de adaptação aos mais diversos ambientes.
Ao “optar” pela estratégia de nascer com um sistema nervoso tão imaturo, o homo
sapiens trocou a pronta-habilidade instintiva, em grande parte estática e imutável,
pela custosa habilidade adquirida com a experiência - uma página em branco com
infinitas possibilidades. Esse cérebro imaturo completa sua formação sob intensa
influência ambiental e, portanto, constrói suas ferramentas em função do que se faz
necessário. As crianças de hoje crescem tocando telas e clicando em links. Seu sistema
nervoso se desenvolve sob esse estímulo contínuo. Nós, nascidos há apenas algumas
décadas, não conseguimos esconder o assombro frente à facilidade com que a nova
geração domina tais máquinas. Outros animais apresentam capacidade de
aprendizado e diversidade de comportamento ínfimos, quando comparados aos de
nossa espécie. Dificilmente veremos tamanha diferença de habilidades entre gerações
tão próximas em outras espécies.
Essa imaturidade, no entanto, não é anatomicamente universal. É lógico que áreas
indispensáveis para a regulação básica de nossa homeostase como respiração,
batimentos cardíacos, regulação da pressão arterial, representação da dor, fome, frio e
outras características vitais têm de estar formadas antes do nascimento. Todo o
sistema - o nervoso periférico, a medula espinhal, o tronco cerebral, o hipotálamo (e
outras estruturas subcorticais) - está pronto já no nascimento e sofre muito pouca
modificação durante a vida. As estruturas “plásticas”, imaturas e moldáveis
correspondem, principalmente, às áreas telencefálicas corticais.
O processo de maturação também não é constante ao longo da vida. De forma geral,
quanto mais jovem somos mais rápido se dá o processo de maturação, que logo após a
puberdade está em sua maior parte completo. No entanto, diferentes aspectos de
nosso funcionamento neuronal são maturados em tempos diferentes. Alguns deles só
podem ser modificados até um período específico - “período crítico” -, outros
permanecem plásticos por toda a vida. Na psicologia e biologia do desenvolvimento, o
período crítico é aquele no qual um organismo tem a possibilidade de desenvolver
uma determinada habilidade. Se o organismo não recebe os estímulos apropriados
durante essa fase, o desenvolvimento de tal habilidade será difícil ou até mesmo
impossível. Isso é notório no desenvolvimento do sistema nervoso sensorial. A visão
binocular, por exemplo, tem dos 3 aos 8 primeiros meses de vida o período crítico de
desenvolvimento. Crianças com problemas em uma das vistas, nessa fase, nunca vão
aprender a usar as duas (e perderão o senso de profundidade), mesmo que o defeito
seja posteriormente resolvido. Crianças que cresceram cegas, nunca aprenderão a
enxergar mesmo se uma cirurgia lhes devolva a capacidade física de ver. Nelas, os
córtices, normalmente associados à visão, estão associados a outras funções. Períodos
críticos também foram identificados para o sistema auditivo e vestibular.
Outras características mais complexas, como a linguagem, por exemplo, também
parecem possuir períodos críticos. O tentilhão, um passarinho comum da África,
Europa e Ásia deve ouvir um canto adulto antes de sua maturidade sexual ou nunca
aprenderá corretamente as canções altamente complexas de sua espécie. De forma
semelhante, crianças privadas, na primeira infância, de estímulos linguísticos (raros
casos de crianças criadas por animais, vítimas de abuso infantil e crianças surdas) são
largamente incapazes de desenvolver a linguagem falada após a adolescência. Uma vez
aprendida a primeira língua (uma vez formadas, em seu devido tempo, as áreas
corticais fundamentais para a linguagem), aprender a segunda língua não está
submetido a um período crítico absoluto e permanece possível por toda a vida, apesar
de uma maior facilidade dos jovens também nesse quesito.
Cada página escrita nesse “caderno em branco” inicial deixa menos páginas em
brancos a serem preenchidas. Ao escrevermos nossa história, ampliamos nossas
habilidades, mas perdemos a capacidade de mudança. Após a adolescência, a
estrutura do que somos está em grande parte formada. Certos aspectos dela ainda
podem ser modificados, mas outros não. A esses aspectos, que não podem mais ser
modificados após seu período crítico, é dado o nome de “imprinting”, que poderia ser
traduzido em português por “impressão” ou “gravação”. A forma mais conhecida de
imprinting, amplamente difundida no início do século XX por Konrad Lorenz, é o
“imprinting familiar”. Lorenz demonstrou que gansos criados em incubadoras
acolheriam, como seus pais, a primeira coisa que se movesse na frente de seus olhos
de 13 a 16 horas após seu nascimento. Esse período é a janela onde essa forma de
identidade é formada em tais animais. Formas semelhantes de imprinting certamente
influenciam o desenvolvimento de nossa espécie, mas são menos claras pela
impossibilidade de se realizar experimentos em humanos e em função da maior
complexidade de nosso sistema nervoso e de nossa cultura. Uma forma de imprinting,
chamada de “sexual reverso”, foi descrita pelo antropólogo Edvard Westermarck em
seu livro “A história do casamento humano” (1891). Ele observou que crianças que
passam seus primeiros anos de vida em grande proximidade doméstica se tornam
insensíveis a uma posterior atração sexual mútua. Esse fenômeno já foi descrito em
diversas culturas e não acontece apenas entre irmãos geneticamente semelhantes. Em
alguns kibbutzim (fazendas coletivas) israelenses, por exemplo, crianças foram criadas
em pares baseados por idade e não por relação biológica. Um estudo de casamentos
entre essas pessoas revelou que dos quase 3000 casamentos que ocorreram, apenas
14 foram entre pessoas pareadas em tal sistema, e nenhum deles envolveu casais que
passaram os primeiros 6 anos de vida juntos (sugerindo que o período crítico para o
imprinting sexual negativo em humanos seja os primeiros 6 anos).
Interessante notar que está cada vez mais claro que diversos imprintings ocorram
antes do nascimento. Existem diversas evidências de que desequilíbrios hormonais ou
privações nutricionais durante a gestação de mamíferos podem levar a alterações
permanentes de comportamento após o nascimento e até a vida adulta - como
sugerido por experimentos nos quais hormônios sexuais foram administrados em
fêmeas de macacos prenhas.
Muitas das estruturas que compõe o sistema nervoso e foram brevemente descritas ao
longo desse capítulo serão frequentemente evocadas ao longo do livro. Mais do que
ensinar anatomia, o capítulo pretendia colocá-las em perspectiva, de forma a permitir
os próximos passos: ligar o corpo, a mente, o ambiente e a nossa história e explicar
porque somos o que somos. A caminhada já começou, quando discutimos “funções
pontes” de diversas estruturas, em especial aquelas que ligam nossas emoções e
pensamentos aos sistemas endócrino e imune, quando esboçamos as estruturas
responsáveis pela formação das imagens que temos de nós mesmos e quando
descrevemos como estímulos no momento adequado (ou a falta deles) podem
influenciar o desenvolvimento do sistema nervoso central, em alguns casos de maneira
definitiva. No próximo capítulo aprofundaremos as bases neurais das emoções.
Resumo do Capítulo VII: menciona como o sistema nervoso interage com os diversos
sistemas do corpo; esboça as bases da anatomia do sistema nervoso e de como se dá
sua maturação; fornece as bases para a compreensão de como o ambiente e a história
pessoal influenciam a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso central.
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A divisão do corpo em sistemas auxilia sua compreensão, mas é artificial e
imprecisa. Na realidade, o que acontece em qualquer parte ou sistema do
corpo repercute no todo de maneira direta ou indireta.
O sistema nervoso pode ser dividido em central (medula espinhal e cérebro) e
periférico (nervos e gânglios nervosos do corpo).
O sistema nervoso periférico liga, numa via de dupla comunicação, o corpo ao
sistema nervoso central.
O sistema nervoso central controla ou influencia o funcionamento de
praticamente todas as funções do nosso corpo, incluindo os hormônios, o
metabolismo e a imunidade. Estruturas especialmente importantes na
comunicação entre esses sistemas são o hipotálamo e a hipófise.
Diversas estruturas do sistema nervoso estão envolvidas na geração de
emoções e/ou na reação a elas.
Os bebês humanos nascem com um sistema nervoso muito mais imaturo do
que o das outras espécies. Porque maturamos nosso sistema nervoso dentro
do ambiente em que vamos viver, possuímos maior capacidade de nos adaptar
a ele, mas, por outro lado, somos especialmente vulneráveis a situações que
atrapalham esse desenvolvimento. Problemas da infância (ou gestação) podem
levar a características que repercutem por toda a vida.
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