A Megera Domada vai ao Cinema Contemporâneo Danielle Corrêa Macieira Freire Universidade Federal da Bahia (UFBA) Resumo O artigo objetiva analisar os traços de releitura contemporânea da peça A Megera Domada de William Shakespeare, no filme 10 Coisas Que Odeio Em Você (10 Things I Hate About You) - dirigido por Gil Junger, com roteiro de Karen McCullah Lutz e Kirsten Smith - uma comédia romântica teen, produzida nos Estados Unidos da América, em 1999. O filme esteve em cartaz nos cinemas brasileiros e faz parte, constantemente, da programação da televisão aberta. Por esse motivo foi meta deste trabalho analisar de que forma as atualizações, neste caso 10 Coisas Que Odeio Em Você, permitem que um público brasileiro, não privilegiado, tenha acesso às obras canônicas de William Shakespeare através de suas adaptações cinematográficas. Tendo como base as teorias de tradução intersemiótica, foi possível analisar as adaptações cinematográficas como facilitadoras no processo de familiarização de um público específico com a obra de Shakespeare, por meio da refração ou transposição do cânone para um sistema mais próximo ao espectador. Palavras-chave: William Shakespeare - A Megera Domada - 10 Coisas que odeio em você. Abstract The article analyses the features of contemporary re-telling of William Shakespeare’s play “The Taming of the Shrew” in the film 10 things I hate about you – directed by Gil Junger, written by Karen McCullah Lutz and Kirsten Smith – a teen romance/comedy, produced in the United States of America, in 1999. This movie was shown in the Brazilian cinemas and also is always in the open television program grids. For this reason, the article analyzes in which ways the film 10 things I hate about you allows an unprivileged Brazilian audience to access the canonical works of William Shakespeare through its cinematographic adaptations. Having as fundamental principle the theories of intersemiotic translation, it was possible to analyze the cinematographic adaptations as facilitators in the process of familiarization of a specific audience with the work of Shakespeare, through refraction or transposition of the canon to a system that is closer to the spectator. Key-words: William Shakespeare - The Taming of the Shrew - Ten things I hate about you. “A velocidade de ação em Shakespeare, suas rápidas mudanças de cena requerem - se se deseja naturalismo - um veículo tão flúido como o cinema, e foi através dos filmes que Shakespeare acabou sendo revelado para muitas pessoas em nossa época.” Esta citação de Anthony Burgess demonstra que a platéia do teatro inglês elisabetano, uma mistura de aristocratas, letrados, almofadinhas, gatunos, marinheiros e soldados de licença, estudantes e aprendizes – se assemelhava à moderna platéia de cinema, quando comparada à elite dos letrados, que podem comparecer aos grandes espetáculos das peças de William Shakespeare nos palcos do teatro. Esta platéia da Inglaterra dos séculos XVI e XVII tinha que receber o que queria e, como havia grande 2 variedade entre os espectadores, era preciso que peças variadas fossem apresentadas. E Shakespeare conseguia satisfazê-los como poucos dramaturgos. Ao associar-se ao cinema, a dramaturgia canônica de Shakespeare é remetida ao seu princípio popular e ao seu público fragmentado, já que o teatro era, naquela época, a forma de entretenimento das massas. Este detalhe nos é especialmente importante, porque as adaptações feitas das obras de Shakespeare para o cinema, como 10 Coisas Que Odeio em Você (dirigida ao público adolescente, exibida nos cinemas brasileiros e na televisão aberta), possibilita aos expectadores brasileiros acessar uma dramaturgia canônica, que de outra forma, talvez, não poderiam alcançar. Octavio Paz, em seu livro Traducción: Literatura y Literalidad, afirma que “todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original.” E complementa, enfatizando que “esse argumento pode ser modificado sem perder sua validade: todos os textos são originais porque toda tradução é, até certo ponto, uma criação e, como tal, constitui um texto único.” Partindo da idéia gerada por esta citação de Octavio Paz, podemos entender do que se trata a tradução intersemiótica, aquela que se dá entre signos diferentes. Tomemos como exemplo a tradução do script de uma peça de teatro, para o cinema, situação em que podemos observar a construção de um novo texto, uma transformação. Assim, o texto de partida, no caso o script da peça de teatro, não poderá ser igual ao texto de chegada, o script do filme, muito embora seja possível observar, neste último, vestígios do primeiro, por serem as adaptações recriadas ou transformadas a partir de outros lugares de fala. Em outras palavras, a tradução de qualquer texto será fiel, não ao texto “original”, mas àquilo que é considerado ser o texto “original”, que, na verdade, é produto daquilo que uma determinada comunidade interpretativa é, sente e pensa. Este ato de interpretar nunca se esgota, e cada releitura intersemiótica ou interlingual comprova este fato. No caso particular das adaptações, podemos observar que alguns críticos esperam cópias do texto “original” ou texto-fonte, porque o consideram verdadeiro, puro, inatingível. A razão disso está no fato de que suas opiniões estão pautadas na subserviência e no apagamento do ponto de vista do tradutor, papel desempenhado também pelo diretor e pelo roteirista. Ao serem atualizadas e deslocadas, através de escolhas feitas pelos diretores/roteiristas (aqui entendidos como tradutores intersemióticos), as adaptações 3 podem possibilitar ao espectador brasileiro, que não tem acesso ao espetáculo ao vivo, em geral acessível apenas a platéias letradas, entrar em contato com interpretações do cânone deslocadas para universos mais próximos do seu cotidiano. Assim, a arte pode ser democratizada, em um país em que a maioria da população analfabeta e pobre está excluída das grandes platéias formadas pela elite dos “eleitos” considerados dignos de desvelarem a sacralização canônica. O objetivo desta pesquisa é, portanto, observar e analisar os traços de releitura contemporânea da peça The Taming of the Shrew (A Megera Domada) uma comédia de William Shakespeare, no filme 10 Things I Hate About You (10 Coisas Que Odeio Em Você) uma comédia teen dirigida por Gil Junger, com roteiro de Karen McCullah Lutz e Kirsten Smith, 1999; e de que formas as atualizações permitem que um público não privilegiado tenha acesso às obras de William Shakespeare. Aqui vale lembrar uma interessante curiosidade. Embora a data da primeira encenação da peça seja incerta, sabe-se que Shakespeare a refez entre 1596/7, e que a própria peça considerada a “original” A Megera Domada, é uma adaptação de uma outra mais antiga e de mesmo nome publicada por autor desconhecido, em 1594. Comprova-se, assim, a tese de Octavio Paz de que “nenhum texto é completamente original.” A peça A Megera Domada gira em torno das duas filhas de Batista, Catarina, a mais velha – a megera, rebelde e mal-educada; e Bianca, a mais nova – retrato da esposa ideal, obediente e submissa. O pai deseja casá-las, mas a mais nova não pode casar-se antes da mais velha. Petruchio se habilita a casar com a fera Catarina e promete domála. No final, obtém sucesso no seu intento, conseguindo tornar Catarina ainda mais obediente e submissa que a irmã. O filme Dez Coisas que Odeio em Você traz ao espectador a figura de Cameron, que em seu primeiro dia em Padua High School, se apaixona por Bianca Stratford. A moça, no entanto, o avisa de que só pode namorar se sua irmã mais velha, Katarina, também estiver namorando. O problema é que Katarina é conhecida como o terror da escola, a megera mala insuportável; e ninguém quer sair com ela. O interessante é que a antipatia advém da atitude extremamente crítica da moça com relação a questões como feminismo, igualdade de direitos e outros assuntos discutidos na contemporaneidade. Cameron e seu novo melhor amigo, Michael, acham que o misterioso bad-boy Patrick Verona, um aluno novo com péssima reputação, é o par ideal para Kat. Eles se apaixonam, mas ela descobre que Patrick está sendo pago para sair com ela. Katarina, 4 em seu trabalho de conclusão de Literatura, escreve o poema (que dá nome ao filme), ao estilo shakespeareano, dirigindo-o a Patrick. No texto, enumera o que odeia nele. Patrick, para fazer as pazes, compra, com o dinheiro que recebeu, uma guitarra – objeto de desejo da personagem – e a dá de presente a Kat. A cena final é do tradicional beijo entre os dois amantes. A adaptação do filme ocorre através do deslocamento dos signos no tempo, no espaço, na linguagem, nos valores e nas atitudes. Assim, a cidade de Pádua, na Itália do século XVI é deslocada para os subúrbios de Seattle, estado de Washington, nos Estados Unidos, no século XX. Com a mudança de tempo e espaço, foi também modificada a variante lingüística. O inglês renascentista (early modern English) é deslocado para o linguajar comum ao adolecente norteamericano do fim do século XX. A importância dada ao casamento na Europa dos séculos XVI e XVII, presente no texto shakespeareno, é transposta para a preocupação com a popularidade na high school, tipicamente freqüentada por jovens provincianos, inseridos na classe média-alta norte-americana. A rebeldia e a insubordinação da mulher diante dos padrões estabelecidos para uma esposa é de certa forma mantida, embora a discussão seja ampliada à rebeldia comumente atribuída ao adolescente. Embora na visão de muitos, inclusive de alguns críticos e autores canônicos, adaptar seja equivalente a profanar o sagrado e corromper a aura da arte erudita, a pesquisa que desenvolvo, no momento, tem por objetivo demonstrar o papel das adaptações como facilitadoras no processo de acesso democrático à alta cultura, particularmente, em nosso país. Essa democratização é possível devido ao poder de penetração e alcance que os meios de comunicação em massa detêm, permitindo que atinjam um público infinitamente maior que o do texto literário escrito e do que o texto representado nos palcos dos teatros, em especial em língua estrangeira. As adaptações de obras literárias canônicas podem torná-las mais familiares aos expectadores. E, apesar de ainda ser o cinema um espaço menos acessível à massa, muitas dessas adaptações são exibidas em televisão aberta, superando em milhares de vezes o número de leitores dos textos literários escritos. Ao migrar da página do livro para a tela do cinema, as obras literárias e teatrais saem do território sacralizado da arte para um de fruição popular. O cinema reformula a literatura e a dramaturgia, por meio de sua própria modalidade discursiva. A adaptação de obras literárias e dramáticas para o cinema é, também, uma experiência de leitura, 5 apropriação e interpretação, sendo uma entre outras leituras possíveis, tanto por parte do espectador, quanto do diretor e roteirista. No cinema, o texto literário visto através da perspectiva do diretor e do roteirista, sob o ângulo cinematográfico, adquire uma linguagem diferente. Sendo uma tradução, torna-se impossível apreender integralmente o significado de uma obra, até porque, os significados não são imutáveis, não são fixos. Por isso, a adaptação deve ser considerada uma tradução, uma construção coletiva e autônoma em relação ao textobase. As ‘alterações’ no conteúdo e na estrutura, em relação ao texto-fonte, são, principalmente, resultantes de outros lugares de fala e motivadas pela necessidade de atingir um certo público. São o produto de um processo de eleição, seleção, estilização que, de forma alguma, se propõe inocente. É importante lembrar o que nos ensina André Bazin, em O cinema: ensaios: [...] por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar danos ao original junto à maioria que o conhece e aprecia; quanto aos ignorantes, das duas uma: ou se contentarão com o filme [...], ou terão vontade de conhecer o modelo, o que é um ganho para a literatura [...] Este raciocínio está confirmado por todas as estatísticas da edição, que acusam um aumento surpreendente da venda das obras literárias depois da adaptação para o cinema.”. Assim, acreditamos que enquanto o cinema se utilizar da literatura e da dramaturgia para compor seus textos, muito teremos a ganhar. Referências ARROJO, Rosemary. 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