Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 Epistemologia e história da ciência: o caso da Educação Física 1, 2 Guanis de Barros Vilela Junior 1UNIMEP/ 2METROCAMP INTRODUÇÃO Uma vez feita a opção por uma abordagem Histórica de como a Biomecânica se inseriu na Educação Física fica evidente o quanto é importante resgatarmos os aspectos mais significativos dentro da História das Ciências, os quais viabilizaram a construção da Educação Física, com suas peculiaridades e seu modus operandi. A relevância desta discussão ocorre na medida que pretendemos analisar a estrutura histórico-epistêmica que viabilizou (e viabiliza) a inserção da Biomecânica na Educação Física, sendo assim, torna-se imprescindível uma breve revisão das principais classificações das ciências, que ressaltamos, muito mais que meramente classificatórias, estas foram historicamente construídas, e portanto, são elementos capitais neste trabalho. Logo de início nos deparamos com uma dificuldade: Como situar a Educação Física a partir das classificações tradicionalmente aceitas das ciências. Estas classificações são feitas segundo a afinidade dos seus objetos ou dos seus instrumentos de pesquisa. Ampère as classificou em Ciências Noológicas (ou do espírito) e Ciências Cosmológicas (ou da natureza). Segundo Dilthey 1 (1883), as ciências naturais procuram conhecer causalmente o objeto, que é externo, ao passo que as ciências do espírito procuram compreender o objeto (que é o homem) e assim revivê-lo intrinsicamente. Wildeband em 1894 distingue as Ciências Nomotéticas, que procuram descobrir a lei e, portanto se referem à natureza das Ciências Idiográficas que têm por objeto a História, que busca, por assim dizer, a singularidade dos processos possíveis. 1 Abbagnano,Nicola Dicionário de Filosofia, São Paulo: Mestre Jou,1982 (verbete: ciências, classificação das) Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 Carnap2 as classificou em Ciências Formais (que são sistemas de asserções analíticas auxiliares sem objeto e sem conteúdo) e Ciências Reais ou Factuais (da Natureza e do Espírito, que contêm asserções sintéticas). Este breve levantamento deixa claro que a Educação Física não se encaixa integralmente em nenhuma das classificações mais aceitas. Isto se deve, sem dúvida, a seu caráter dual, uma vez que a Educação Física tem como núcleo essencial o Homem, com todos os seus aspectos reais e virtuais. Podemos, por exemplo, dizer que o que pretendemos fazer é uma análise idiográfica de alguns aspectos nomotéticos da Educação Física. A partir de agora, faremos uma discussão sobre a importância da relação entre história da ciência e filosofia da ciência, que apesar de óbvia, muitas vezes é concebida como não relevante no desenvolvimento científico. Vale repetir: aqui a ciência é entendida como fruto da busca racional que o homem faz para tentar compreender o mundo do qual ele faz parte. Não obstante, deixamos claro que não se adota aqui uma estranha espécie de fanatismo religioso que supõe o racionalismo científico como a única vertente possível de leituras confiáveis, afinal, como veremos adiante, muitos dos avanços da ciência foram obtidos a partir de elementos não-racionais. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA - UMA SIMBIOSE ESSENCIAL Ao fazermos a opção, por uma abordagem histórica de alguns aspectos epistêmicos da Biomecânica, nos deparamos, logo de início, com um fato que julgamos crucial: a dificuldade de se realizar qualquer avanço se não recorressemos à chamada teoria do conhecimento3, uma vez que esta tem por objeto de estudo a “análise das condições e dos limites de validade dos 2 ver Readings in the Philosophy of Science, 1953, p.123, onde Carnap defende que não podemos dar um caráter absoluto e inflexível à qualquer classificação das ciências. 3 Aqui o termo teoria do conhecimento é entendido como sinônimo de epistemológico, e se referem ao estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance delas. in Dicionário Aurélio eletrônico, verbete Epistemologia. Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 processos de investigação e dos instrumentos linguísticos do saber científico” 4; portanto, qualquer análise da Ciência sob a perspectiva histórica precisa ter como "pano - de - fundo” as reflexões que emergem da Filosofia da Ciência e vice-versa. A partir de agora julgamos ser importante uma discussão mais aprofundada das relações possíveis entre a História da Ciência e a Filosofia da Ciência (especificamente no que concerne à Teoria do Conhecimento). Usando as palavras de Lakatos5: "a filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia e a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega". Laudan,L6 diz: "em vez de adotar a tese de que estudos históricos em geral são de grande valia para o filósofo da ciência e vice-versa, creio que deveríamos sublinhar que tanto a história da ciência quanto a filosofia da ciência têm, ambas, uma preocupação comum e um interesse específico numa questão particular: a História das Teorias do Método Científico". É claro que tanto Lakatos como Laudan possuem idéias que convergem para o fato de que seja qual for a metodologia utilizada por qualquer cientista, este estará adotando (mesmo não tendo consciência disto) toda uma visão de mundo, concretamente construída dentro de um determinado contexto sóciohistórico-filosófico. Para Laudan7 "seria difícil conceber uma apresentação adequada da Mecânica de Newton, da Ótica de Descartes, da Eletricidade de Ampère, da Sociologia de Comte ou do Behaviorismo de 4 Abbagnano,N. Dicionário de filosofia.São Paulo:Mestre Jou,1982. verbete metodologia. 5 Lakatos,I. History of Science and its rational reconstruction. in:RC-Cohen,RS-Boston Studies in the Philosophy of Science,V8,1971. 6 Laudan,L Teoria do Método Científico de Platão a Mach, cadernos de história e filosofia da ciência, p177,1980. 7 ibidem, ibid. Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 Skinner, que deixasse de examinar minuciosamente as idéias metacientíficas e metodológicas desses cientistas. Como mostrou Kuhn, mesmo quando são pouco pronunciadas as idéias metodológicas de um determinado cientista, os padrões metodológicos de sua época (por exemplo, os critérios para as explicações aceitáveis e os cânones de uma experimentação) afetam, muitas vezes, a prática da ciência, jamais podendo ser a priori postos de lado como irrelevantes". Alguns autores insistem que a Filosofia da Ciência teria nascido no chamado Círculo de Viena, os quais, segundo Laudan 8, conceberiam a filosofia da ciência, antes de mais nada, como uma análise cuidadosa e detalhada da estrutura lógica e dos problemas conceituais da ciência contemporânea, enquanto que as filosofias das ciências anteriores se ocupavam com problemas filosóficos de teorias científicas já superadas. A esta visão dos positivistas lógicos Laudan9 contra-argumenta que : "muitos dos problemas que ressurgem permanentemente, problemas que não são engendrados por nenhuma teoria em particular, mas por virtualmente qualquer teoria. Problemas como os da formação de conceitos, da natureza da lei, da indução, dos métodos experimentais, das hipóteses, da discriminação entre os elementos a priori e os empíricos nas teorias; esses problemas e outros semelhantes não foram inventados pela recente filosofia da ciência, nem as soluções contemporâneas que a eles se oferecem são totalmente originais e sem antecedentes". Ora, a Ciência Antiga (quero dizer, a Ciência não-contemporânea) foi construída por filósofos que eram cientistas (Descartes, Galileo, Torricelli etc) e vários 8 ibidem, ibid. 9 ibidem, ibid. Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 cientistas contemporâneos, como, por exemplo, Einstein10, têm claro que "a ciência sem a epistemologia é, na medida em que seja possível assim concebêla, primitiva e grosseira". Portanto, parece evidente que a História da Ciência não pode existir sem a epistemologia, uma vez que esta é parte de seu objeto de estudo. Évora 11, citando Lakatos faz a síntese: a) "a filosofia da ciência proporciona metodologias normativas com cujos termos o historiador reconstrói a história interna e chega deste modo a uma explicação racional do desenvolvimento do conhecimento objetivo". b) "as metodologias rivais podem ser avaliadas com a ajuda da História da Ciência (normativamente interpretada)". Évora 12 ainda ressalta "que o historiador da ciência não pode prescindir de critérios de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência, entre atividade científica e outras atividades, sob pena de estando diante de um determinado episódio da história não saber se ele faz ou não parte de seu objeto de estudo. Mas que critérios são estes? São eles absolutos? Quem os determina? É exatamente neste ponto que, a meu ver, a interdependência entre a história e a filosofia da ciência se apresenta de forma mais contundente". Para Lakatos a história da ciência abriga duas histórias: a história real e a história desta história, ou seja, a reconstrução racional da história real. Reconstrução esta, que é feita segundo uma metodologia adotada pelo cientista. De alguma maneira contamos a história que queremos contar ou 10 Einstein,A. Reply to Criticism. in: Schilpp,PA (ed) Albert Einstein: philosopher-scientist. London: Cambridge University Press,1970. 11 Évora,F.R. História e filosofia da ciência . in: Século XIX: o nascimento da ciência contemporânea Centro de Lógica , Epistemologia e História da Ciência (CLE) UNICAMP,1992 ,vol 11.p.3-20. 12 ibidem, ibid. Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 fazemos a ciência que nos interessa fazer; uma vez que os cientistas são ao mesmo tempo, sujeito e objeto diante das metodologias por eles adotadas. Concordando com Évora e Lakatos, parece claro que a escolha feita pelo historiador da ciência por qualquer teoria da racionalidade científica determina caminhos e perspectivações totalmente distintas durante a execução de sua pesquisa. Ou seja, escolher uma teoria da racionalidade científica é o mesmo que escolher uma metodologia que balizará suas condutas diante do objeto estudado (no caso, a ciência). Cumpre ressaltar que esta escolha feita pelo cientista não está isenta de muitos outros fatores (sócio-culturais, afetivos, econômicos, etc) que certamente fazem desta algo muito mais subjetivo; assim, poderíamos dizer que a conotação que a palavra escolher possui (no que se refere à suposta independência do cientista diante de seus caminhos possíveis) é um tanto quanto precária. Thomas Kuhn 13 critica Lakatos dizendo que o entendimento que este tem de história "não é, de modo algum história, mas filosofia que inventa exemplos ...a história não poderia ter, em princípio, o menor efeito sobre a posição filosófica prévia que exclusivamente lhe deu forma". Isto, (continua Kuhn) "não supõe afirmar que a reconstrução histórica não seja intrinsecamente uma tarefa seletiva e interpretativa, nem que uma posição filosófica prévia não desempenha qualquer papel enquanto instrumento de seleção e interpretação". Lakatos responde à critica de Kuhn ressaltando a diferença entre "historiografia indutivista da ciência" e "teoria indutivista da historiografia da ciência". 14 13 ver de T. Kuhn Notes on Lakatos, in: Buck,RC& Cohen,RS(eds) PSA,1970: in memory of Rudolf Carnap.Dordrecht: D.Reidel,1971,Boston Studies in the Philosophy of Science,v.8, p.137-145. 14 Para Lakatos a historiografia indutivista da ciência...é uma ciência que se desenvolve mediante o descobrimento de fatos puros (natureza) e possivelmente as generalizações indutivistas. Já a teoria indutivista da historiografia da ciência advoga que esta se desenvolve mediante o descobrimento de fatos puros (na história da ciência) e possivelmente as generalizações indutivas. Ainda segundo Lakatos alguns historiadores indutivistas podem considerar...os programas de investigação "progressivos e degenerativos" como fatos históricos puros. ibidem, ibid. Revista CPAQV - Centro de Pesquisas Avançadas em Qualidade de Vida - ISSN: 2178-7514 – v.1, n. 3, 2009 Por ora, entendemos ser suficiente esta breve análise, a respeito da simbiose existente entre estas duas áreas distintas; sendo que a História da Ciência precisa da Filosofia da Ciência pois depende da epistemologia para compreender seu objeto de estudo (a ciência) e a Filosofia da Ciência precisa da História da Ciência pois qualquer nova teoria metodológica certamente sofre influências de metodologias anteriores, na medida que o surgimento de uma eventual nova teoria metodológica ocorre enquanto superação de metodologias anteriores que já não conseguem dar conta da maioria dos problemas de relevância que surgem. É evidente que diante do principal objetivo deste trabalho, torna-se imprescindível uma discussão das principais concepções metodológicas da atualidade, uma vez que foram elas que, ou melhor dizendo: foi o resultado das múltiplas interações entre elas que balizaram (e balizam) a construção da Educação Física enquanto ciência. Especificamente em relação à Biomecânica, a discussão destes paradigmas metodológicos parece ser relevante, na medida que são os principais norteadores da problemática metodológico-epistêmica que permeia esta área. Referências Braune,W. & Fischer,O. Human Gait. Springer, 1987. Epstein,I. Revoluções científicas, São Paulo: ed Ática,1988. Gleick,J. Caos - a criação de uma nova ciência, São Paulo: ed Campus, 1990. Granger,G.G. A ciência e as ciências, São Paulo:Ed. Unesp,1994. Gruppi,L. O conceito de hegemonia em Gramsci, Rio de Janeiro:Graal, 1980. Kant,I. Crítica da razão pura, São Paulo: ed.Abril, coleção os pensadores, 1974. Kuhn,T. 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