BURSITE TROCANTÉRICA TUBERCULOSA Bursite trocantérica tuberculosa Relato de um caso* ANTONIO A.M. DE BEM1, JOSÉ A.V. SANHUDO2, MARCUS V. CRESTANI3, PEDRO M.A. ESSACA4, CARLOS A.S. MACEDO5 RESUMO A tuberculose osteoarticular representa cerca de 1% do total de casos de tuberculose registrados no Estado do Rio Grande do Sul. Devido a sua infreqüência, é pouco considerada pelo ortopedista, levando a marcado atraso no diagnóstico. Os autores apresentam um caso de bursite trocantérica tuberculosa e enfatizam a importância de avaliação cuidadosa para esta doença nos pacientes com sintomas músculo-esqueléticos crônicos, incluindo os com bursite trocantérica resistentes ao tratamento conservador. Unitermos – Bursite trocantérica tuberculosa; tuberculose osteoarticular SUMMARY Tuberculous trochanteric bursitis. Report of a case Tuberculosis of bone and joint is an uncommon disorder. Only 1% of the cases of tuberculosis registered in Rio Grande do Sul involves the musculoskeletal system. The authors report a case of tuberculous trochanteric bursitis in a 71 yearold female with a history of increasing discomfort of the lateral face of her left thigh for 16 months. The authors emphasize the occurrence of tuberculosis in this site and the * Trab. realiz. no Serv. de Ortop. e Traumatol., Hosp. de Clín. de Porto Alegre (HCPA), Univ. Fed. do Rio Grande do Sul (UFRGS). 1. Resid. R3 do Serv. de Ortop. e Traumatol. do HCPA. 2. Méd. Ortoped., Ex-Resid. do Serv. de Ortop. e Traumatol. do HCPA. 3. Estud. da Fac. de Med. da UFRGS. 4. Méd. estag. do Serv. de Ortop. e Traumatol. do HCPA. 5. Prof. Adjunto; Chefe do Grupo de Quadril do Serv. de Ortop. e Traumatol. do HCPA. Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 12 – Dezembro, 1996 importance of a complete evaluation for tuberculosis in patients with chronic musculoskeletal symptoms. Key words – Tuberculous trochanteric bursitis; bone and joint tuberculosis INTRODUÇÃO A tuberculose é uma doença infecto-contagiosa de desenvolvimento crônico, causada pelo Mycobacterium tuberculosis, que acomete os pulmões, podendo, entretanto, afetar qualquer órgão ou tecido. Em 1979, Bulla revisou os registros de 22 mil casos novos de tuberculose extrapulmonar, procedentes de 22 países e, destes pacientes, 19% tinham envolvimento ósseo ou articular(2). No Rio Grande do Sul, a tuberculose osteoarticular representa pouco mais de 1% dos casos de tuberculose registrados(4). Devido a sua infreqüência, é pouco considerada pelo ortopedista, levando, de maneira geral, a grande atraso no diagnóstico e marcado prejuízo para os pacientes. Teale foi o primeiro a descrever a tuberculose do grande trocanter em 1870(12). Atualmente, poucos são os casos descritos de envolvimento da bursa trocantérica por tuberculose e, na literatura brasileira, nenhum relato foi encontrado. No presente estudo, relatamos um caso de bursite trocantérica tuberculosa em uma paciente de 71 anos, discutimos seu tratamento e procuramos enfatizar a importância de uma avaliação completa para tuberculose nesses pacientes com sintomas músculo-esqueléticos crônicos. CASO CLÍNICO Paciente feminina, 71 anos, branca, foi encaminhada ao Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre em agosto de 1994 para avaliação de 1023 A.A.M. DE BEM, J.A.V. SANHUDO, M.V. CRESTANI, P.M.A. ESSACA & C.A.S. MACEDO Fig. 1 Radiografia, dois meses após a bursectomia total, evidenciando erosão da cortical do grande trocanter e presença de ar dentro da bursa. Nesse momento a paciente apresentava fistulização e drenagem de material seropurulento. Fig. 2 – Radiografia de tórax apresentando nódulos densos e lesões fibrinosas no lobo superior direito desconforto progressivo na face lateral da coxa esquerda, que se estendia até o joelho e que tinha surgido havia 16 meses. No exame físico apresentava dor à digitopressão do grande trocanter pelo método de Little(8) e piora da dor com as rotações interna e externa do quadril. Apresentava aumento de volume local sem sinais flogísticos. Nos últimos sete meses havia sido submetida a diversas punções para drenagem de líquido, além de tratamento com antiinflamatórios, já tendo passado por quatro outros serviços. O exame radiológico não mostrou alterações e o hemograma e o VSG estavam normais. Foi realizada drenagem com agulha, obtendo-se 80ml 1024 Fig. 3 – Microscopia apresentando áreas de necrose caseosa e, no canto superior direito, granuloma tuberculoso composto de células epitelióides e células gigantes de Langhans Fig. 4 Radiografia de quadril, cinco meses após a última recidiva, não apresenta alterações de líquido amarelo-palha e conseqüente alívio substancial da sintomatologia. Retornou após três semanas apresentando as mesmas queixas e exame físico semelhante. Foi submetida a nova punção, com aspiração de 300ml de líquido e, nesta ocasião, foi infiltrado no interior da bursa um frasco de corticóide de longa duração (40mg de 21-acetato de metilprednisolona – Depo Medrol ®) acrescido de 3ml de cloridrato de lidocaína (5mg – Xilocaína ® 2%) sem vasoconstritor e sob rigorosa assepsia e anti-sepsia(5). Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 12 – Dezembro, 1996 BURSITE TROCANTÉRICA TUBERCULOSA Houve nova recidiva e outra punção foi realizada após três semanas, agora drenando 860ml de líquido. O material obtido em todas as punções foi enviado para exames bacterioscópico e cultural, que revelaram presença de leucócitos sem crescimento bacteriano. Hemogramas e VSGs seriados não mostraram alterações significativas. Em nenhuma ocasião foi realizada pesquisa de BAAR. Em outubro de 1994, após a terceira recidiva, foi submetida a bursectomia total. O anatomopatológico revelou fibrose associada a inflamação crônica do tecido conjuntivo. Permaneceu com dreno de sucção e antibioticoterapia profilática por 48 horas. Não apoiou o membro operado até seis semanas, quando iniciou carga progressiva até o abandono das muletas. Obteve boa cicatrização da ferida. Dois meses após, a paciente apresentou fistulização e drenagem de material seropurulento com crescimento de Staphylococcus aureus nos culturais. A pesquisa de BAAR foi negativa. O RX do local mostrou aumento de partes moles e presença de ar dentro da bursa, com erosão da cortical do grande trocanter (fig. 1). O RX de tórax apresentava pequenos nódulos densos e lesões fibrinosas no lobo superior direito (fig. 2). Descobriu-se que a paciente tinha história familiar de tuberculose e internações prévias por pneumonia sem etiologia definida. A paciente foi, então, submetida a nova intervenção cirúrgica com remoção de todo o tecido necrótico e curetagem do grande trocanter até o “avivamento” das estruturas. A pesquisa pelo exame direto da secreção de três amostras foi positivo em uma delas. A revisão da lâmina revelou bursite crônica granulomatosa com necrose caseosa (fig. 3) e a pesquisa de BAAR foi positiva. Imediatamente se iniciou o esquema RHZ (rifampicina – 600mg; hidrazida – 400mg e pirazinamida – 2g), associado a antibioticoterapia contra o S. aureus (cefalotina – 1g), bem como repetição do esquema de drenagem de sucção (agora com período prolongado) e restrição ao apoio. Em março de 1995, o RX do quadril esquerdo estava normal (fig. 4). Em janeiro de 1996 a paciente recebeu alta do tratamento pelos órgãos de saúde pública, totalmente assintomática. DISCUSSÃO A tuberculose extrapulmonar pode originar-se por: 1) disseminação canalicular, associada a tuberculose pulmonar ativa, particularmente de longa evolução e sem tratamento; 2) disseminação linfática e/ou hemática por ocasião da primoinfecção, usualmente não associada a tuberculose pulmonar Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 12 – Dezembro, 1996 ativa simultânea e 3) extensão de lesão em estrutura adjacente(4). A tuberculose osteoarticular resulta da disseminação hematogênica do bacilo de um foco ativo, ou não, de qualquer parte do organismo; em mais da metade dos casos não é possível encontrar o foco primário(3). Os locais comprometidos com maior freqüência na tuberculose osteoarticular são a porção anterior dos corpos vertebrais e a metáfise dos ossos longos(4). Ainda não foi bem determinado se a anormalidade inicial é a osteíte trocantérica ou a infecção de uma das bursas(10). Atualmente, parece mais aceitável que a doença se propague da bursa para o osso, conforme relatado por Alvik em 1949. Em apenas 1 a 2% destes pacientes existe envolvimento da região do grande trocanter(1). A apresentação clínica da bursite trocantérica tuberculosa é freqüentemente vaga e caracteriza-se por sintomas crônicos, pouco específicos, como dor e rigidez do quadril. Teale, em 1870(12), e em outro relato subseqüente(13) já enfatizavam a possibilidade de confusão entre a bursite trocantérica e as doenças da articulação do quadril propriamente ditas. Apesar disso, a principal dificuldade para o diagnóstico de infecção tuberculosa das bursas do grande trocanter continua sendo não incluir tal possibilidade no diagnóstico diferencial de doenças do quadril. A bursite trocantérica tuberculosa tem marcada tendência a recidiva, possivelmente devido ao tratamento inadequado(9). Em nosso relato, isso ficou bem demonstrado, tendo em vista o elevado número de drenagens a que foi submetida a paciente e as numerosas formas de tratamento que nós mesmos instituímos. Assim, a bursite trocantérica recorrente é sugestiva de etiologia não usual, devendo o ortopedista investigar possível quadro de tuberculose osteoarticular. Com relação ao tratamento, em 1952, Lindahl(7) obteve bons resultados nos pacientes tratados com antibioticoterapia prolongada isolada ou com excisão radical associada a antibioticoterapia. Lampe(6) sugere como tratamento de escolha a cirurgia radical associada a tuberculostáticos. Lynch(9) obteve bons resultados com terapia antituberculosa por um mês antes da cirurgia, combinada com irrigação pós-operatória e drenagem por sucção da área afetada, como proposto por Willeneger & Roth em 1962(14). O tratamento convencional, e que foi por nós utilizado, é a bursectomia total associada a tuberculostáticos por um ano. Salientamos a importância da inclusão de doença tuberculosa no diagnóstico diferencial dos pacientes com bursite trocantérica resistentes ao tratamento conservador, assim como naqueles com sintomatologia osteoarticular de longa duração. 1025 A.A.M. DE BEM, J.A.V. SANHUDO, M.V. CRESTANI, P.M.A. ESSACA & C.A.S. MACEDO REFERÊNCIAS 1. Ahlberg,A.: Tuberculosis of the greater trochanter and trochanteric bursae. Acta Chir Scand 97: 201-211, 1948. 2. Bulla, A.: Tuberculosis: a pulmonary disease only? Bull Int Union Tuberc 54: 291-293, 1979. 3. Dominguez, E.V.,Velasco, F.G., Velasco, J.L.A. et al: Bursitis trocantérea tuberculosa. Rev Clin Esp 164: 67-70, 1982. 4. Gutierrez, R.S., Ott, W.P., Corrêa da Silva, L.C. et al: “Tuberculose”, in Corrêa da Silva, L.C.: Compêndio de Pneumologia, 2ª ed., São Paulo, Fundo Editorial Byk, 1993. Cap. 52, p. 566-569. 5. Huber, T.A. & Ortiz, J.: Bursite trocantérica. Rev Bras Ortop 27: 723728, 1992. 6. Lampe, C.E.: Tuberculous osteomyelitis of the greater trochanter. Acta Orthop Scand 22: 307-325, 1953. 7. Lindahl, O.: Tuberculous trochanteritis. Acta Tuberc Scand 26: 289-300, 1952. 1026 8. Little, H.: Trochanteric bursitis: a common cause of girdle pain. Can Med Assoc J 17: 456-458, 1979. 9. Lynch, A.F.: Tuberculosis of the greater trochanter: a report of eight cases. J Bone Joint Surg [Br] 64: 185-188, 1982. 10. Rehm-Graves, S., Weinstein, A.J., Calabrese, L.H. et al: Tuberculosis of the greater trochanteric bursa. Arthritis Rheum 26: 77-81, 1983. 11. Schapira, D., Nahir, M. & Scharf, Y.: Trochanteric bursitis: a common clinical problem. Arch Phys Med Rehabil 67: 815-817, 1986. 12. Teale, T.P.: On the simulation of hip disease by suppuration of the bursa over the trochanter major. Lancet 2: 506-507, 1870. 13. Teale, T.P.: On suppuration of the bursa over the trochanter major and its occasional imitation of hip disease. Lancet 2: 1355-1356, 1903. 14. Willenegger, H. & Roth, W.: Die antibakterielle Spüldrainage chirurgischer Infektionen. Dtsch Med Wochenschr 87: 485-492, 1962. Rev Bras Ortop _ Vol. 31, Nº 12 – Dezembro, 1996