Bourdieu. O que falar quer dizer

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O QUE FALAR QUER DIZER1
Pierre Bourdieu
Se o sociólogo tem um papel, este seria, antes de tudo, dar armas e não
lições.
Vim aqui para participar de uma reflexão e tentar dar aos que têm a
experiência prática de um certo número de problemas pedagógicos, os
instrumentos que a pesquisa propõe para interpretá-los e compreendê-los.
Se, no entanto, meu discurso é decepcionante, e às vezes até mesmo
deprimente, não é porque eu tenha qualquer prazer em desencorajar; ao contrário.
É que o conhecimento das realidades leva ao realismo. Uma das tentações do
ofício de sociólogo é aquilo que os próprios sociólogos chamaram de
socioloqismo, isto é, a tentação de transformar as leis ou as regularidades
históricas em leis eternas. Daí a dificuldade que há em comunicar os produtos da
pesquisa sociológica. Temos que nos situar constantemente entre dois papéis: de
um lado, o de desmancha-prazeres e do outro, o de cúmplice da utopia.
Hoje, aqui, gostaria de tomar como ponto de partida de minha reflexão o
questionário que alguns de vocês prepararam para esta reunião. Se tomei este
ponto de partida, foi com a preocupação de dar a meu discurso um enraizamento
tão concreto quanto possível e evitar (o que me parece uma das condições
práticas de toda relação de comunicação verdadeira) que aquele que tem a
palavra, que tem o monopólio real da palavra, imponha completamente o arbitrário
de sua interrogação, o arbitrário de seus interesses. A consciência do arbitrário da
imposição da palavra coloca-se cada vez com mais freqüência, hoje, tanto a quem
tem o monopólio do discurso quanto aos que o sofrem. Por que em certas condições históricas, em certas situações sociais, ressentimo-nos com angústia ou
mal estar, desta demonstração de força que está sempre implícita ao se tomar a
palavra em situação de autoridade ou, se quisermos, em situação autorizada,
1
Intervenção no Congresso da AFEF (Associação Francesa dos Docentes de Francês), Limoges,
30 de outubro de 1977, publicada em Le français aujourd'hui, março de 1978, n° 14 e
suplemento.
1
sendo o modelo desta situação a situação pedagógica?'
Assim, para dissolver, a meus próprios olhos, esta ansiedade, tomei como
ponto de partida questões que realmente se colocaram a uma parte de vocês e
que podem se colocar a todos vocês.
As questões giram em torno das relações entre o escrito e o oral e poderiam
ser formuladas da seguinte maneira: "o oral pode ser ensinado"?
Esta questão é uma forma moderna de uma velha interrogação que já se
encontrava em Platão: "A excelência pode ser ensinada?" É uma questão
absolutamente central. Pode-se ensinar alguma coisa? Pode-se ensinar algo que
não se aprende? Pode-se ensinar isto com o que o ensinamos, ou seja, com a
linguagem?
Este tipo de interrogação não surge em qualquer momento. Se, por exemplo,
ela se coloca em tal diálogo de Platão, é, parece-me, porque a questão do ensino
se coloca ao ensino quando o ensino é questionado.
É porque o ensino está em crise que há uma interrogação crítica sobre o que
é ensinar. Em tempos normais, nas fases que podemos chamar de orgânicas, o
ensino não se interroga sobre si mesmo. Uma das propriedades de um ensino
que funciona bastante bem − ou bastante mal − é de estar seguro de si mesmo,
de ter esta espécie de segurança (não é por acaso que se fala de "segurança" a
propósito da linguagem) que resulta da certeza de não apenas ser escutado, mas
compreendido, certeza que é própria de toda linguagem de autoridade ou
autorizada. Esta interrogação não é, portanto, intemporal, ela é histórica. É sobre
esta situação histórica que eu gostaria de refletir. Esta situação está ligada a, um
estado da relação pedagógica. a um estado das relações entre o sistema de
ensino e aquilo a que chamamos a sociedade global, isto é, as classes sociais, a
um estado da linguagem, a um estado da instituição escolar. Eu gostaria de tentar
mostrar que a partir das questões concretas colocadas pelo uso escolar da
linguagem, pode-se colocar ao mesmo tempo as questões mais fundamentais da
sociologia da linguagem (ou da sócio-lingüística) e da instituição escolar. Pareceme com efeito que a sócio-lingüística teria escapado mais rapidamente da
abstração se tivesse considerado como lugar de reflexão e de constituição este
espaço particular, mas muito exemplar, que é o espaço escolar, se ela tivesse
considerado como seu objeto este uso muito particular que é o uso escolar da
linguagem.
2
Vou tomar o primeiro conjunto de questões: você acha que se ensina o oral?
Que dificuldades você encontra nisso? Você encontra resistências? Você se
choca com a passividade dos alunos?...
Imediatamente, me dá vontade de perguntar: ensinar o oral? Mas que oral?
Existe algo implícito aí, como em todo discurso oral ou mesmo escrito. Há
um conjunto de pressupostos que cada pessoa traz consigo ao colocar esta
questão. Sabendo-se que as estruturas mentais são estruturas sociais
interiorizadas, temos todas as chances de introduzir, na oposição entre o escrito e
o oral, uma oposição totalmente clássica entre o distinto e o vulgar, o científico e
o popular, de maneira que o oral tem grandes chances de ganhar toda uma aura
populista. Ensinar o oral seria assim ensinar esta linguagem que se ensina na
rua, o que já leva a um paradoxo. Dito de outra forma, será que a questão da
própria natureza da língua ensinada não importa? Ou então, será que este oral
que se quer ensinar não é simplesmente algo que já se ensina, e isto de uma
forma muito desigual, segundo as instituições escolares? Sabe-se por exemplo
que as diferentes instâncias do ensino superior ensinam o oral de uma maneira
muito desigual. As instâncias que preparam para a política como Sciences Po,
ENA; ensinaram muito mais o oral e lhe dão uma importância muito maior na
atribuição de notas do que o ensino que prepara para o magistério, ou para a
técnica. Por exemplo, na Polytechnique, faz-se resumos, na ENA, faz-se aquilo
que se chama de "grande oral", na verdade é uma conversa de salão exigindo um
certo tipo de relação com a linguagem, um certo tipo de cultura. Não há nada de
novo em dizer apenas "ensinar o oral", isto já é muito comum. E este oral pode,
portanto, ser o oral da conversa mundana, o oral do colóquio internacional, etc.
Assim, perguntar "ensinar o oral?", "que oral ensinar?", não é suficiente. É
preciso perguntar também quem vai definir que oral ensinar. Uma das leis da
sócio-lingüística é que a linguagem empregada numa situação particular depende
não apenas, como o pensa a lingüística interna, da competência do locutor no
sentido chomskyano do termo, mas também daquilo que chamo de mercado
lingüístico. O discurso que produzimos, segundo o modelo que proponho, é uma
"resultante" da competência do locutor e do mercado no qual passa seu discurso;
o discurso depende em parte (que seria preciso examinar de maneira mais
rigorosa) das condições de recepção.
Toda situação lingüística funciona, portanto, como um mercado onde o
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locutor coloca seus produtos, e o produto que ele produz para este mercado
depende da antecipação que ele tem dos preços que seus produtos receberão.
No mercado escolar, queiramos ou não, nós chegamos com uma antecipação
dos lucros e das sanções que receberemos. Um dos grandes mistérios que a
sócio-lingüística deve resolver é esta espécie de sentido da aceitabilidade. Nunca
aprendemos a linguagem sem aprender ao mesmo tempo as condições de
aceitabilidade desta linguagem. Ou seja, aprender uma linguagem é ao mesmo
tempo aprender que essa linguagem será lucrativa em tal ou qual situação.
De maneira inseparável aprendemos, a falar e a avaliar antecipadamente o
preço que nossa linguagem receberá; no mercado escolar − e nisto o mercado
escolar oferece uma situação ideal para a análise − este preço é a nota, a nota
que muito freqüentemente implica num preço material (se você não tem uma boa
nota em seu trabalho final da Polytechnique, você será administrador do INSEE e
ganhará três vezes menos...). Portanto, toda situação lingüística funciona como
um mercado onde se trocam coisas. Estas coisas são, evidentemente, palavras,
mas estas palavras não são feitas apenas para serem compreendidas; a relação
de comunicação não é uma simples relação de comunicação, é também uma
relação econômica onde o valor de quem fala está em jogo: ele falou bem ou
não? É brilhante ou não é? É uma pessoa "casável" ou não?...
Os alunos que chegam ao mercado escolar sabem antecipadamente das
oportunidades de recompensa ou das sanções prometidas a tal ou qual tipo de
linguagem. Ou seja, a situação escolar enquanto situação lingüística de um tipo
particular exerce uma censura formidável sobre todos aqueles que sabem
previamente, com conhecimento de causa, das oportunidades de lucro e de
perda que têm, dada a competência lingüística de que dispõem. E o silêncio de
alguns não passa de um interesse que eles compreendem muito bem.
Um dos problemas que é colocado por este questionário é o de saber quem
governa a situação lingüística escolar. Será que o professor é o capitão a bordo?
Será que ele tem verdadeiramente a iniciativa na definição da aceitabilidade?
Será que ele domina as leis do mercado?
Todas as contradições que as pessoas que entram na experiência do ensino
do oral encontram decorrem da seguinte proposição: a liberdade do professor é
limitada quando se trata de definir as leis do mercado específico de sua classe,
pois ele apenas criará um "império num império", um sub-espaço onde as leis do
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mercado dominante são suspensas. Antes de continuar, é preciso lembrar o
caráter muito particular do mercado escolar: ele é dominado pelas exigências
imperativas do professor de Francês, legitimado para ensinar o que não deveria
ser ensinado se todo mundo tivesse oportunidades iguais para adquirir esta
capacidade, e com o direito de correção no duplo sentido do termo: a correção
lingüística ("a linguagem fina") é o produto da correção. O professor é uma
espécie de juiz de menores em questões lingüísticas: tem o direito de correção e
de sanção sobre a linguagem de seus alunos.
Imaginemos, por exemplo, um professor populista que recusa este direito de
correção e diz: "Quem quiser a palavra que a tome; a linguagem mais bela é a
linguagem dos subúrbios". Na realidade, este professor, quaisquer que sejam
suas intenções, permanece num espaço que normalmente não obedece a esta
lógica, porque é muito provável que a seu lado haja um outro professor que exija
o rigor, a correção, a ortografia... Mas suponhamos que um estabelecimento
escolar inteiro seja transformado. O acontecimento prévio das oportunidades que
os alunos trazem para o mercado farão com que eles exerçam uma censura
prévia, e será preciso um tempo considerável para que abdiquem de sua
correção e sua hipercorreção, que aparecem em todas as situações de uma
forma lingüística (isto é, socialmente) assimétrica (e em particular na situação de
entrevista). Todo o trabalho de Labov só foi possível graças a uma série de
truques visando destruir o artefato lingüístico produzido pelo simples fato de se
relacionar um "competente" e um "incompetente", um locutor autorizado e um
locutor que não se sente autorizado; da mesma maneira, todo o trabalho que
fizemos em matéria de cultura, consistiu em tentar superar o efeito da imposição
de legitimidade que o simples fato de se colocar questões sobre a cultura
provoca. Colocar questões sobre a cultura, numa situação de entrevista (que se
parece a uma situação escolar), a pessoas que não se julgam cultas, exclui de
seu discurso aquilo que verdadeiramente lhes interessa. Elas buscam então, tudo
aquilo que lhes assemelha à cultura; assim, quando se pergunta: "Você gosta de
música?", jamais ouve-se como resposta “Eu gosto de Dalida", mas sim: "Eu
gosto das valsas de Strauss", porque isto, na competência popular, é o que se
parece mais com a idéia que se tem a respeito do que a burguesia gosta. Em
todas as circunstâncias revolucionárias, os populistas sempre se chocaram com
esta espécie de revanche das leis do mercado que parecem só se afirmar
5
quando se pensa transgredi-las.
Voltando ao ponto de partida desta digressão: quem define a aceitabilidade?
O professor é livre para abdicar de seu papel de "senhor da fala" que, ao
produzir um certo tipo de situação lingüística, ou deixando funcionar livremente a
própria lógica das coisas (o estrado, a cadeira, o microfone, a distância, o habitus
dos alunos) ou então deixando atuarem as leis que produzem um certo tipo de
discurso, produzem um certo tipo de linguagem, não apenas nele próprio mas nos
seus interlocutores. Mas em que medida o professor pode manipular as leis da
aceitabilidade sem entrar em contradições extraordinárias durante o tempo em
que as leis gerais da aceitabilidade não são modificadas? É por isto que a experiência do oral é muito apaixonante. Não se pode tocar nesta coisa tão central e ao
mesmo tempo tão evidente sem se colocar as mais revolucionárias questões
sobre o sistema de ensino: pode-se modificar a língua no sistema escolar sem
modificar todas as leis que definem o valor dos produtos lingüísticos das
diferentes classes no mercado? Sem modificar as relações de dominação na
ordem lingüística, isto é, sem modificar as relações de dominação?
Chego a uma analogia que hesito em formular mesmo me parecendo
necessária: a analogia entre a crise do ensino do francês e a crise da liturgia
religiosa. A liturgia é uma linguagem ritualizada que é inteiramente codificada
(quer se trate de gestos ou palavras) e cuja seqüência é Inteiramente previsível. A
liturgia em latim é a forma limite de uma linguagem que, não sendo compreendida
mas sendo autorizada, pode funcionar em certas condições como linguagem,
para a satisfação dos emissores e receptores. Em situação de crise, esta
linguagem pára de funcionar: ela não produz mais seu principal efeito que é o de
fazer acreditar, fazer respeitar, fazer aceitar - de se fazer aceitar mesmo que a
linguagem não seja compreendida.
A questão colocada pela crise da liturgia, desta linguagem que não funciona
mais, que não se compreende mais, na qual não se acredita mais, é a questão da
relação entre a linguagem e a instituição. Quando uma linguagem está em crise e
surge a questão de saber que linguagem falar, é porque a instituição está em
crise e coloca em evidência a questão da autoridade delegante − da autoridade
que diz como falar e dá autoridade e autorização para falar.
Por este rodeio através do exemplo da Igreja, eu queria colocar a seguinte
6
questão: a crise lingüística é separável da crise da instituição escolar? A crise da
instituição lingüística não é a simples manifestação da crise da instituição
escolar? Em sua definição tradicional, na fase orgânica do sistema de ensino
francês, o ensino do francês não constituía problema, o professor de francês
estava assegurado: ele sabia o que deveria ensinar, como ensinar e encontrava
alunos prontos a escutá-lo, a compreendê-lo e pais que compreendiam esta
compreensão. Nesta situação, o professor de francês era um celebrante:
celebrava um culto da língua francesa, defendendo-a, ilustrando-a e reforçando
seus valores sagrados. Ao fazer isto, ele defendia seu próprio valor sagrado: isto
é muito importante porque a moral e a crença são uma consciência de seus
próprios interesses, ocultada a si mesma. Se a crise do ensino de francês
provoca crises pessoais tão dramáticas, de uma violência tão grande como as
que se viu em maio de 68 e depois, é que, através deste produto de mercado que
é a língua francesa, algumas pessoas, encostadas à parede, defendem seu
próprio valor, seu próprio capital. Elas estão prontas a morrer pelo francês... ou
pela ortografia! Da mesma forma que as pessoas que passaram quinze anos de
sua vida aprendendo o latim, quando esta língua se desvalorizou bruscamente, se
transformaram numa espécie de detentores de empréstimos russos...
Um dos efeitos da crise é fazer com que se interrogue as condições tácitas,
os pressupostos do funcionamento do sistema. Pode-se, quando a crise revela
um certo número de pressuposto, colocar a questão sistemática dos pressupostos
e se perguntar o que deve ser uma situação lingüística escolar para que os
problemas que se colocam em situação de crise já não se coloquem. Atualmente,
a lingüística mais avançada concorda com a sociologia sobre este ponto, a saber,
que o objeto primeiro da pesquisa sobre a linguagem é a explicitação dos
pressupostos da comunicação. O essencial do que se passa na comunicação não
está na comunicação: por exemplo, o essencial do que se passa numa comunicação como a comunicação pedagógica está nas condições sociais da possibilidade
da comunicação. No caso da religião, para que a liturgia romana funcione, é
preciso que se produza um certo tipo de emissores e um certo tipo de receptores.
É preciso que os receptores estejam predispostos a reconhecer a autoridade dos
emissores, que os emissores não falem por sua conta, mas falem sempre como
delegados, como padres mandatários e que nunca se autorizem a definirem por si
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mesmos o que deve ser dito e o que não deve ser dito.
Ocorre o mesmo no ensino: para que o discurso professoral comum,
enunciado e recebido como óbvio, funcione, é preciso uma relação de autoridadecrença, uma relação entre um emissor autorizado e um receptor pronto a receber
o que é dito. É preciso que um receptor pronto a receber seja produzido, e não é
a situação pedagógica que o produz.
Para recapitular de maneira abstrata e rápida, a comunicação em situação de
autoridade pedagógica supõe emissores legítimos, receptores legítimos, uma
situação legítima, uma linguagem legítima.
É preciso ter um emissor legítimo, isto é, alguém que reconheça as leis
implícitas do sistema e que seja cooptado e reconhecido enquanto tal. É preciso
haver destinatários reconhecidos pelo emissor como dignos de receber, o que
supõe que o emissor tenha o poder de eliminação, que possa excluir "os que não
deveriam estar no lugar onde estão". Mas isto não é tudo: é preciso haver alunos
que estejam prestes a reconhecer o professor como professor, e pais que dêem
uma espécie de crédito, de cheque em branco, ao professor. É preciso também
que, idealmente, os receptores sejam relativamente homogêneos lingüisticamente
(isto é, socialmente), homogêneos quanto ao conhecimento da língua e quanto ao
reconhecimento da língua, e que a estrutura do grupo não funcione como um
sistema de censura capaz de proibir a linguagem que deve ser utilizada.
Em alguns grupos escolares com predominância popular, as crianças das
classes populares podem impor
a
norma
lingüística
de seu meio
e
desconsiderando aqueles que Labov chama de "caxias", e que têm uma
linguagem para os professores, a linguagem que "pega bem", isto é, afeminada e
um pouco "puxa-saco". Pode ocorrer então que a norma lingüística se choque em
algumas estruturas escolares com uma contra-norma. (Inversamente, em
estruturas de predominância burguesa, a censura do grupo dos "pares" se exerce
no mesmo sentido que a censura professoral: a linguagem que não é fina é autocensurada e não pode ser produzida em situação escolar).
A situação legítima é algo que ao mesmo tempo provoca a intervenção da
estrutura do grupo e do espaço institucional onde o grupo funciona. Por exemplo,
há todo um conjunto de signos institucionais de importância e especialmente a
linguagem de importância (a linguagem de importância possui uma retórica
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particular, cuja função é dizer o quanto aquilo que é dito é importante). Esta
linguagem de importância se porta de forma muito melhor numa .situação
eminente, num estrado, num lugar consagrado, etc. Entre as estratégias de
manipulação de um grupo, há a manipulação das estruturas do espaço e dos
signos institucionais de importância.
Uma linguagem legítima é uma linguagem com formas fonológicas e
sintáticas legítimas, isto é, uma linguagem que responde aos critérios habituais
de gramaticalidade, e uma linguagem que além daquilo que diz, diz
constantemente que o diz bem. E através disso, deixa crer que aquilo que diz é
verdadeiro; o que é uma das maneiras fundamentais de fazer o falso passar pelo
verdadeiro. Entre os efeitos políticos da linguagem dominante existe esse: "Ele o
diz bem e, portanto, é possível que seja verdade".
Este conjunto de propriedades que fazem um sistema e que estão reunidas
no estado orgânico de um sistema escolar, define a aceitabilidade social, o
estado através do qual a linguagem passa: ela é escutada (isto é, acreditada),
obedecida, entendida (compreendida). A comunicação se dá, no limite, por meias
palavras. Uma das propriedades das situações orgânicas é que a própria
linguagem − a parte propriamente lingüística da comunicação − tende a se tornar
secundária.
No papel de celebrante, que freqüentemente era o dos professores de arte
ou de literatura, a linguagem era quase interjeição. O discurso de celebração,
aquele dos críticos de arte por exemplo, não diz muito mais do que uma
"exclamação". A exclamação é a experiência religiosa fundamental.
Em situação de crise, este sistema de crédito mútuo se desmorona. A crise é
parecida com uma crise monetária: pergunta-se se todos os dtulos que circulam
não são assignats.2
Nada ilustra melhor a extraordinária liberdade que uma conjunção de fatores
favorecedores dá ao emissor do que o fenômeno da hipocorreção. Ao contrário
da hipercorreção, fenômeno característico do falar pequeno-burguês, a
hipocorreção só é possível porque quem transgride a regra (Giscard, por
exemplo, quando não faz a concordância do particípio passado com o verbo ter)
manifesta por outras coisas, por outros aspectos de sua linguagem, a pronúncia
2
N. T. - Assignats: papel-moeda da revolução de 1789, que terminou muito desprestigiado, quase
como sinônimo de dinheiro falso.
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por exemplo, e também por tudo aquilo que é, por tudo aquilo que faz, que
poderia falar corretamente.
Uma situação lingüística jamais é propriamente lingüística. Através de todas
as questões colocadas pelo questionário que tomamos como ponto de partida,
colocavam-se ao mesmo tempo as questões mais fundamentais da s6ciolingüística (O que é falar com autoridade? Quais são as condições sociais da
possibilidade de uma comunicação?) e as questões fundamentais da sociologia
do sistema de ensino, que se organizam em torno da questão última da
delegação.
O professor, quer ele queira ou não, quer saiba ou não, e principalmente
quando pensa que está rompendo com as regras estabelecidas, continua um
mandatário, um delegado que não pode redefinir sua tarefa sem entrar em
contradições, nem colocar seus receptores em contradições, a não ser quando se
transformarem as leis do mercado em relação às quais ele define negativa ou
positivamente, as leis relativamente autônomas do pequeno mercado que
instaura em sua classe. Por exemplo, um professor que recusa atribuir nota ou
corrigir a linguagem de seus alunos tem o direito de fazê-lo, mas pode, ao fazer
isto, comprometer as chances de seus alunos no mercado matrimonial ou no
mercado econômico, onde as leis do mercado lingüístico dominante continuam a
se impor. O que nem por isto deve levar a uma demissão.
A idéia de produzir um espaço autônomo arrancado às leis do mercado é
uma utopia perigosa enquanto não se coloque ao mesmo tempo a questão das
condições de possibilidade política da generalização desta utopia.
P - Sem dúvida é interessante ir mais fundo na noção da competência
lingüística para ultrapassar o modelo chomskyano de emissor e de
locutor ideal; no entanto, suas análises da competência, no sentido de
tudo aquilo que tornaria legítima uma fala, ficam às vezes muito no ar,
particularmente a análise sobre o mercado: ora você utiliza o termo
mercado no sentido econômico, ora você identifica o mercado à troca na
situação macro e me parece que existe uma ambigüidade aí. Além disso
você não faz uma reflexão suficiente sobre o fato de que a crise da qual
você fala é uma espécie de sub-crise ligada essencialmente à crise de um
sistema que nos engloba a todos. Seria preciso refinar a análise de todas
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as condições das situações de troca lingüística no espaço escolar ou no
espaço educativo no sentido mais amplo.
- Evoquei aqui este modelo da competência e do mercado após uma certa
hesitação, pois é bastante evidente que para defendê-lo de forma completa
seria preciso mais tempo e eu teria que desenvolver análises muito abstratas
que forçosamente não interessariam a todo mundo. Fico muito contente, pois
sua pergunta me permite fazer algumas precisões.
Dou ao termo mercado um sentido muito amplo. Parece-me inteiramente
legítimo descrever como mercado lingüístico tanto a relação entre duas donas
de casa que conversam na rua, como o espaço escolar ou a situação de
entrevista através do qual os executivos são recrutados.
O que está em questão, quando dois locutores se falam, é a relação
objetiva entre suas competências, não apenas sua competência lingüística (seu
domínio mais ou menos completo da linguagem legítima), mas também o
conjunto de sua competência social, seu direito a falar, que depende
objetivamente de seu sexo, sua idade, sua religião, seu estatuto econômico, e
seu estatuto social, assim como das informações que poderiam ser conhecidas
antes ou ser antecipadas através de indícios imperceptíveis (ele é cortês, ele
tem uma medalha, etc.). Esta relação passa sua estrutura para o mercado e
define um certo tipo de lei da formação de preços. Há uma micro-economia e
uma macro-economia de produtos lingüísticos, estando claro que a microeconomia nunca é autônoma em relação às leis macro-econômicas. Por
exemplo, numa relação de bilingüismo, observa-se que o locutor muda de
língua de uma maneira que não tem nada de aleatória. Pude observar. tanto na
Argélia como numa aldeia bearnesa que as pessoas mudam de língua
dependendo do assunto abordado, mas também dependendo do mercado,
dependendo da estrutura da relação entre os interlocutores, sendo que a
propensão a adotar a língua dominante aumenta em proporção à posição que a
pessoa a quem se dirige ocupa na hierarquia antecipada das competências
lingüísticas: a alguém que se considera importante, há um esforço em se dirigir
no melhor francês possível; a língua dominante domina tanto mais quanto mais
completamente os dominantes dominem o mercado particular. A probabilidade
do locutor adotar o francês para se exprimir é muito maior quando o mercado é
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dominado pelos dominantes, por exemplo, nas situações oficiais. E a situação
escolar faz parte da série dos mercados oficiais. Nesta análise, não há
economicismo. Não se trata de dizer que todo mercado é um mercado
econômico. Mas também não se deve dizer que não existe mercado lingüístico
que não implique, em maior ou menor grau, em injunções econômicas.
Quanto à segunda parte da pergunta, ela coloca o problema do direito
científico à abstração. Faz-se a abstração de um certo número de coisas e
trabalha-se no espaço por nós definido.
P - No sistema escolar que você definiu a partir deste conjunto de
propriedades, você acha que o professor conserva, ou não, uma certa
margem de manobra? E qual seria ela?
- É uma questão muito difícil, mas acho que sim. Se eu não estivesse
convencido de que existe uma margem de manobra, não estaria metido onde
estou.
Mais seriamente, ao nível da análise, acho que uma das conseqüências
práticas do que disse é que a consciência e o conhecimento das leis específicas
do mercado lingüístico que se manifestam numa determinada turma podem, não
importando o. objetivo que se tenha (preparação para o vestibular, iniciação à
literatura moderna ou à lingüística), transformar completamente a maneira de
ensinar.
É importante saber que uma produção lingüística deve uma parte
importantíssima de suas propriedades à estrutura do público de receptores. Basta
consultar as fichas dos alunos de uma classe para perceber esta estrutura: numa
classe onde três quartos dos alunos são filhos de operários, deve-se tomar
consciência da necessidade de explicitar os pressupostos. Toda comunicação
que se pretende eficaz, supõe também um conhecimento daquilo que os
sociólogos chamam de grupo de pares: o professor sabe que sua pedagogia
pode se chocar na sala de aula com uma contra-pedagogia, com uma
contracultura; esta contracultura − e é também uma escolha − pode ser
combatida dentro de certos limites, em função do que ele quer transmitir, o que
supõe que o professor a conheça. Conhecê-la é, por exemplo, conhecer o peso
relativo das diferentes formas de competência. Entre as modificações muito
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profundas ocorridas no sistema escolar francês, há efeitos qualitativos de
transformações quantitativas: a partir de um certo limite estatístico na
representação das crianças das classes populares no interior de uma sala de
aula, a atmosfera geral da sala muda, as formas de bagunça mudam, o tipo de
relações com os professores muda. E muitas outras coisas que se pode observar
e levar em conta na prática.
Mas isso tudo se refere apenas aos meios. E, de fato, a sociologia não pode
responder à questão dos fins últimos (o que se deve ensinar?): eles são definidos
pela estrutura das relações entre as classes. As mudanças na definição do
conteúdo do ensino e mesmo a liberdade que é deixada aos professores para
que vivam essa crise, se deve ao fato de também haver uma crise na definição
dominante do conteúdo legítimo, a classe dominante sendo atualmente um lugar
de conflitos a respeito do que merece ser ensinado.
Eu não posso (seria uma usurpação, eu estaria agindo como um profeta)
definir o projeto de ensino; posso simplesmente dizer que os professores devem
saber que são delegados, mandatários, e que seus próprios efeitos proféticos
ainda precisam do apoio da instituição. O que não quer dizer que eles não devam
lutar para ser uma parte atuante na definição do que têm que ensinar.
P - Você apresentou o professor de francês como o emissor legítimo
de um discurso legítimo que é o reflexo de uma ideologia dominante e de
classes
dominantes
se
expressando
através
de
um
instrumento
fortemente "impregnado" por esta ideologia dominante: a linguagem.
Você não acha que esta definição também é muito redutora? Aliás, há
uma contradição entre o começo e o fim de sua exposição, onde você diz
que a aula de francês e os exercícios orais também poderiam ser o lugar
de uma tomada de consciência e que esta mesma linguagem, que podia
ser o veículo dos modelos de classes dominantes, também podia ser, para
os outros e para nós mesmos, um meio de aceder ao manejo de
instrumentos que são instrumentos indispensáveis.
Se estou aqui, na AFEF, é porque acho que a linguagem também é um
instrumento que possui um modo de ser empregado e que não funciona
se não é empregado de modo conveniente; é porque estamos con-
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vencidos disso que exigimos maior cientificidade no estudo de nossa
disciplina. O que você acha disto?
Você acha que a troca oral na sala de aula é a imagem de uma
legalidade que também seria uma legalidade social e política? A sala de
aula também não é objeto de uma contradição que existe na sociedade: a
luta política?
- Eu não disse nada do que você põe na minha boca. Jamais disse que a
linguagem era a ideologia dominante. Também acho que nunca pronunciei aqui
a expressão "ideologia dominante"... Isto, para mim, faz parte de malentendidos muito tristes: e, ao contrário, todo meu esforço consiste em destruir
os automatismos verbais e mentais.
Que quer dizer legítimo? Esta é uma palavra técnica do vocabulário
sociológico que emprego cientemente, pois somente as palavras técnicas
permitem dizer e portanto pensar, e de maneira rigorosa, as coisas difíceis. É
legitimo uma instituição, ou uma ação, ou uso que é dominante mas
desconhecido como tal, o que quer dizer que é tacitamente reconhecido. A
linguagem que os professores empregam, a que você emprega para me falar
(uma voz: "Você também a emprega!". É claro que eu a emprego. Mas
passo o tempo todo dizendo que o faço!), a linguagem que empregamos
neste espaço é uma linguagem dominante desconhecida como tal, isto é,
tacitamente reconhecida como legitima. É uma linguagem que produz o
essencial de seus efeitos aparentando não ser o que é. Dai a questão: se é
verdade que falamos uma linguagem legitima, será que tudo o que podemos
dizer nesta linguagem não é afetado por isto, mesmo se colocamos este
instrumento a. serviço da transmissão de conteúdos que se querem críticos?
Outra questão fundamental: esta linguagem dominante e desconhecida
como tal, isto é, reconhecida como legitima, não tem uma afinidade com certos
conteúdos? Não exerce efeitos de censura? Não torna certas coisas difíceis ou
impossíveis de serem ditas? Esta linguagem legitima não é, entre outras coisas,
feita para proibir o falar espontâneo? Eu não deveria ter dito "feita para". (Um
dos princípios da sociologia é recusar aquele funcionalismo da pior espécie: os
mecanismos sociais não são produtos de uma intenção maquiavélica; eles são
muito mais inteligentes do que os mais inteligentes dominantes).
Tomando um exemplo irrefutável: acho que no sistema escolar, a
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linguagem legitima está em afinidade com uma certa relação ao texto que nega
(no sentido psicanalítico do termo) a relação com a realidade social da qual o
texto fala. Se os textos são lidos por pessoas que os lêem como se não os
lessem, é em grande parte porque as pessoas são formadas para falar uma
linguagem na qual elas falam para dizer que não dizem o que estão dizendo.
Uma das propriedades da linguagem legítima é justamente a de dês-realizar o
que diz. Jean-Claude Chevalier diz isso muito bem, com muita ironia: "Uma
escola que ensina o oral ainda é uma escola? Uma língua oral que se ensina na
escola ainda é oral?"
Vou dar um exemplo muito preciso no domínio da política. Impressionoume o fato de que os mesmos interlocutores que, em conversas faziam análises
políticas muito complicadas sobre as relações entre a direção, os operários, os
sindicatos e suas seções locais, ficassem completamente desarmados e não
dissessem mais do que banalidades quando eu lhes fazia perguntas do tipo das
que são feitas em pesquisas de opinião e também nos trabalhos acadêmicos.
Isto é, perguntas que exigem que se adote um estilo que consiste em falar de
uma maneira tal que a questão do verdadeiro Ou do falso não se coloca. O
sistema escolar ensina não apenas uma linguagem, mas uma relação com a
linguagem que corresponde a uma relação com as coisas, uma relação com os
seres, uma relação com o mundo completamente des-realizada.3
(...)
In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.
p. 75-88.
3
Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em P. Bourdieu,
"Le fétichisme de la langue”, Actes de Ia recherche en sciences sociaeles, 4, julho de 1975;
"L'économle des échanges IInguistiques" Lengue Française, 34, maio de 1917; "Le langage
autorizé, note sur les condltions sociales de l'efficacité du discours rituel", Actes de la recherche en
sciences sociales, .5-6, novembro de 1975.
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