Portugal Por uma nova cooperação China África GLÓRIA REBELO 1 A COOPERAÇÃO PORTUGAL/CHINA PROFESSORA UNIVERSITÁRIA E INVESTIGADORA Aquando da eliminação de barreiras ao comércio têxtil chinês decidida pela DOUTORA PELO ISEG/UTL Comissão Europeia para a União Europeia a partir de Janeiro de 2005, tive a oportunidade de publicar no jornal Público um artigo intitulado “Os gigantes da produção mundial” onde, referindo o acontecimento, destacava igualmente o crescente poder económico dos países asiáticos, em particular da China. Volvido um ano e meio, falar da China implica um imprescindível trabalho de actualização. É que se a distância-tempo que invoco parece curta, para a China não o é. E não se trata de uma discrepância de calendário; neste período muito mudou. Se em Janeiro de 2005 a China ocupava nos rankings de avaliação da economia mundial o sétimo lugar, em Dezembro de 2005 a imprensa mundial conferia grande protagonismo ao facto de – e em virtude da revisão do crescimento do Produto Interno Bruto chinês em 2004 – a China se ter tornado a sexta economia mundial, à frente da Itália. Este crescimento comprova também um incremento do consumo interno (encontrando-se associado ao aumento do peso do sector privado da economia) e uma evolução positiva no sector dos serviços, em particular nas telecomunicações, na distribuição e no imobiliário. E, em 2006, o forte crescimento registado em 2005 coloca a economia chinesa à frente da francesa e mesmo da inglesa, ficando – por enquanto – em terceiro lugar e atrás das economias alemã, japonesa e norte-americana. 118 CADERNOS DE ECONOMIA POR UMA NOVA COOPERAÇÃO: PORTUGAL, CHINA, ÁFRICA | GLÓRIA REBELO Acresce ainda o facto de o ano de 2005 ter sido central para a existentes entre Portugal e a China – nomeadamente no que integração regional asiática: a China, o Japão, a Coreia do Sul e respeita à cooperação para o desenvolvimento e à os países da ASEAN – Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, diversificação das relações entre os dois países – Portugal e a Tailândia, Brunei, Vietname, Laos, Birmânia e Cambodja – China celebraram, em 2005, um Acordo sobre Cooperação iniciaram o processo gradual de criação de uma zona de Económica (quadro 1). Este acordo – que vigorará por um comércio livre na Ásia Oriental, ideia lançada pelo primeiro- período de cinco anos, renovável automaticamente por ministro chinês, Wen Jiabao, em 2003, que visa concretizar o períodos sucessivos de um ano – pretende incrementar uma fim das barreiras tarifárias à circulação de bens até 2010. “parceria estratégica” entre os dois países, sendo de realçar que, actualmente, Portugal e a China mantêm relações Ora, a Europa não ignora o desenvolvimento desta zona do bilaterais de cooperação em diversas áreas da sociedade, mundo e a União Europeia é, actualmente, um parceiro nomeadamente no plano judicial, da saúde, sanitário, privilegiado da China em áreas de cooperação diversas, assim cultural, da educação e da investigação. como um grande parceiro comercial, com um elevado volume de comércio bilateral. No âmbito da União Europeia, Um dos aspectos mais relevantes deste acordo é, sem dúvida, é conhecida a intenção desta intensificar acordos com os o da cooperação no domínio do turismo no sentido de se países asiáticos no intuito de ganhar mercados: procura-se tirar partido das potencialidades oferecidas pelo Acordo sobretudo que as grandes economias emergentes – com um sobre Estatuto de Destino Autorizado. E, porque importa grande potencial exportador – abram reciprocamente os dinamizar parcerias empresariais entre os dois países, seus mercados às empresas europeias de forma efectiva, considerando o leque de vantagens negociais recíprocas, a apostando no multilateralismo. aposta no turismo apresenta-se, inquestionavelmente, válida a diversos níveis. Não só porque permitirá ao sector do Tendo em vista o fortalecimento das relações económicas turismo em Portugal crescer, mas também porque os Quadro 1 A COOPERAÇÃO PORTUGAL/CHINA SEGUNDO O DECRETO N.º 17/2006, DE 27 DE JUNHO (DR 122 SÉRIE 1-A) (*) 1 Mecanismos de cooperação a institucionalização de um canal de consultas permanentes sobre assuntos de natureza económica entre instituições públicas homólogas; b cooperação regulamentar em áreas/sectores de interesse comum; c intensificação dos contactos e iniciativas empresariais recíprocas; d apoio à cooperação interempresas, sobretudo entre pequenas e médias empresas (PME), e interassociações empresariais, incluindo a criação de um conselho empresarial luso-chinês; e desenvolvimento de esforços no sentido de viabilizar a realização de programas de formação na área económica com o objectivo de proporcionar um melhor conhecimento da realidade económica de cada país e das potencialidades oferecidas pelas duas economias. 2 Incentivos financeiros das operações de comércio e investimento nos dois sentidos. 3 Facilitação do estabelecimento de estruturas e escritórios permanentes de representação, tendo em vista a promoção das actividades económicas entre os dois países. 4 Cooperação no domínio do turismo no sentido de se tirar partido das potencialidades oferecidas pelo acordo sobre Estatuto de Destino Autorizado (ADS), celebrado entre a União Europeia e a República Popular da China. (*) Aprova o acordo sobre Cooperação Económica entre a República Portuguesa e a República Popular da China, assinado em Pequim em 12 de Janeiro de 2005. OUTUBRO | DEZEMBRO 2006 119 investimentos no turismo podem revelar-se uma importante Segundo os dados relativos ao Investimento Directo “referência” para o sector industrial e terciário, permitindo – Estrangeiro (IDE) divulgados pela OCDE em Junho de 2006 de forma directa ou indirecta – relançar também estes (quadro 2), a China tem vindo a mostrar intenção de sectores. Pode mesmo representar uma oportunidade única aumentar as saídas de capitais de investimento para o de assegurar crescimento económico num ciclo longo, estrangeiro, emergindo também como uma nação significando ainda criação de emprego. investidora no estrangeiro3. São várias as razões que justificam o reforço das relações 2 A COOPERAÇÃO CHINA/ÁFRICA: entre a China e os países africanos. Uma prende-se com a O INVESTIMENTO CHINÊS tentativa das autoridades chinesas controlarem a gestão de E A PROCURA DE RECURSOS NATURAIS um muito rápido e eufórico período de investimentos em De forma surpreendente, a Cimeira do Fórum de Cooperação território chinês. Tentando travar a vaga explosiva de fluxos China-África(1) – que decorreu entre 3 e 5 de Novembro de de investimento e, paralelamente, conter o crescimento 2006 em Pequim – revelou a crescente influência da China “excessivo” dos empréstimos, o Banco Central Chinês junto do continente mais pobre do mundo. anunciou, em Abril de 2006, um aumento das taxas de juros. Para esta instituição, trata-se de uma medida que, além de Apresentando indicadores de crescimento muito fortes e promover a “estabilidade nos mercados financeiros”, ajuda a associada à imagem de “mundo de oportunidades para os deter o excessivo volume de investimento que ameaça fazer negócios” – quer ao nível da produção, quer do consumo –, a disparar a inflação. De facto, a decisão de aumento das taxas China tem suscitado a curiosidade mundial e entusiasmado de juro – a par de quebrar os lucros das empresas e de investidores e potenciais parceiros de negócio ocidentais(2), aumentar o crédito mal parado – permitiu abrandar o uma vez que oferece, como é sabido, vantajosos factores de crescimento económico chinês que, no segundo trimestre atracção para as empresas: mão-de-obra muito mais barata, deste ano, superava já os 11%. E embora a economia prossiga custos de instalação comparativamente baixos e um um crescimento rápido, contínuo e de boa qualidade, no mercado de consumo de 1,3 mil milhões de pessoas. terceiro trimestre de 2006 o crescimento fixou-se nos 10,4% do PIB. Apesar deste afrouxamento – consequência da Mas olhar a China como um mundo de oportunidades locais iniciativa governamental de controlo macroeconómico – o de investimento é, cada vez mais, redutor. E, ao que parece, é crescimento segue fortemente pressionado pelo in- essa também a mensagem que as autoridades chinesas vestimento e pelas exportações (por exemplo, o querem passar. A verdade é que a “estratégia chinesa” parece investimento em capital fixo aumentou cerca de 27,3% pretender agora – e depois da atracção de um volume desde Janeiro e o excedente comercial totaliza 109,85 mil imenso de investimento no território – redireccionar-se para milhões de dólares, ou seja, +60,76% do que em 2005, já em o investimento no estrangeiro. si um ano excepcional para as exportações chinesas). Quadro 2 FLUXOS DE IDE DE 2002 A 2005 (em biliões de dólares) Investimento directo do país no exterior China 2004p* 2003 2004p* -0,2 1,8 53,5 60,6 Fonte: OECD, 2006, Trends and Recent Developments in Foreign Direct Investment, OECD, Paris. 120 CADERNOS DE ECONOMIA Investimento directo do exterior no país 2003 *p – valor preliminar. POR UMA NOVA COOPERAÇÃO: PORTUGAL, CHINA, ÁFRICA | GLÓRIA REBELO Ora, procurando um interregno voluntário – necessário para Acresce que a China não pretende limitar a sua produção aos pôr “ordem na casa” – as autoridades chinesas voltam-se produtos alimentares, objectos em plástico, têxteis, calçado, para a consolidação de uma política diplomática e electrodomésticos e electrónica de baixa gama; pretende económica. Foi isso que aconteceu na III Cimeira deste apostar – a curto prazo – na produção massiva de telefones e fórum sino-africano. Realçando que este encontro ficará “na de veículos motorizados e de aviação civil, pelo que necessita História”, o Presidente chinês Hu Jintao enfatizou que é de assegurar elevadas reservas de minério. Para o conseguir preciso procurar aumentar a influência chinesa nesta região. negoceia localmente com as autoridades africanas direitos Assim, a China prepara-se para – até 2009 – duplicar a sua de exploração sobre estes recursos, procurando também “ajuda” a África, mediante a concessão de empréstimos no desenvolver parcerias. O que não deixa de ser curioso valor de cerca de cinco mil milhões de dólares. O objectivo? observar é que – embora as parcerias sino-africanas pareçam Estreitar as relações com os países africanos, nomeada- ter futuro, existindo já nalguns países africanos escolas onde mente nas áreas da exploração dos recursos naturais se ministra o mandarim e onde os dirigentes chineses africanos e na obtenção de novos mercados. A verdade é aconselham a formação a milhares de africanos – as parcerias que a África – sem ser um parceiro comercial privilegiado existentes não se têm traduzido por um incremento na para a China, tal como o é a Europa, os EUA ou os países da criação de emprego local pois, em muitas destas situações, as ASEAN – vem atraindo, desde 2000 e de forma progressiva, a autoridades chinesas entregam o trabalho a mão-de-obra atenção deste gigante asiático. Ao que parece, as relações chinesa, deslocada a África especialmente para esse efeito. comerciais agradam mutuamente. Desde logo porque existe um equilíbrio: a China procura recursos energéticos e em certas situações (como no caso das trocas com o trio 3 O DINAMISMO DO SECTOR FINANCEIRO produtor de petróleo Sudão, Angola e Nigéria), parece até CHINÊS E A APOSTA CRESCENTE verificar-se um ligeiro excedente para os países africanos. NO TURISMO AFRICANO Por seu turno, a China procura também em África uma Para lá das considerações já apresentadas, gostaria de oportunidade para escoar as suas exportações. E se o salientar dois outros aspectos que considero igualmente mercado de consumo – comparado, por exemplo, aos países interessantes na análise do processo de aproximação entre a europeus – é relativamente fraco, a importação de produtos China e África: o dinamismo do sector financeiro chinês e a low cost, mesmo de baixa qualidade, é bem aceite nos aposta crescente no turismo africano. mercados africanos e não encontra concorrência. O primeiro prende-se com o facto de todo este fulgor de Além do mais, a China procura em África outras matérias- investimento chinês em África parecer estar acompanhado primas. Actualmente, e para fazer face ao seu grande por uma forte aposta no sector financeiro. Aliás, ao anúncio desenvolvimento interno, a China tem necessidades de que a China vai conceder a África um conjunto de importantes em minério, pelo que o leque mineiro do empréstimos durante os próximos três anos, encorajando as continente africano – sobretudo manganésio, cobre, empresas chinesas a investir no continente africano, não é crómio, níquel – aguça o apetite chinês. A razão é simples: indiferente a simultânea estratégia de desenvolvimento do para fazer face ao desenvolvimento das suas infra- sector financeiro chinês. estruturas, a China é, actualmente, um dos grandes consumidores mundiais de minério, em especial de níquel, A banca chinesa – que ganha, desde 1999 e progressiva- de aço (indispensável à construção de barragens e de auto- mente, grande pujança mundial – tem-se revelado um estradas), de carvão e de chumbo (utilizado nas instrumento fundamental para a eficaz diplomacia econó- telecomunicações e na indústria automóvel). mica chinesa. Por exemplo, o banco chinês Industrial & OUTUBRO | DEZEMBRO 2006 121 POR UMA NOVA COOPERAÇÃO: PORTUGAL, CHINA, ÁFRICA | GLÓRIA REBELO Commercial Bank of China (ICBC) – com cerca de 70% de rizado”(6). Moçambique passa, assim, a integrar uma lista de capitais públicos e que conta com 19.000 agências e vinte e nove países africanos – e dos quais já fazem parte aproximadamente 360.000 trabalhadores, ocupando um alguns países da África Austral como a Tanzânia, o notório sétimo lugar no ranking mundial do sector bancário Zimbabué, as ilhas Maurícias, a Zâmbia, a Namíbia e – surge, por decisão das autoridades chinesas, como um Madagáscar – classificados como destino turístico suporte financeiro central da actividade comercial expansiva “recomendado” para os turistas chineses. Através deste da China. Desejando acompanhar o ritmo de crescimento da estatuto, o Estado chinês permite que os seus cidadãos – sua economia, o sector bancário chinês começa a procurar estima-se que a China seja, em 2020, a maior fonte mundial aumentar regularmente os fundos próprios, cotando-se em de turistas, com mais de 115 milhões de chineses a viajar bolsa. Para tanto procede ao saneamento interno das suas fora do país – visitem outros países sem necessidade de contas e procura a cotação em Bolsa(4). Realce-se que a autorização da saída, através de agências de viagem recente entrada do ICBC na Bolsa de Hong Kong – já tida autorizadas pelo governo. E, assim, está criada a como a mais importante entrada na história da bolsa expectativa para que a China invista na área da hotelaria mundial –, pelo volume de capital envolvido, ganhou tal moçambicana, criando novas estruturas. protagonismo que fez esquecer a entrada precedente do gigante japonês NTT DoCoMo. Para Portugal – como foi realçado aquando do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países No plano da política externa, o sector bancário chinês – ainda de Língua Portuguesa, realizado em Setembro de 2006 –, país que, por enquanto, internacionalmente pouco conhecido – com uma riquíssima e longa experiência histórica de parece emergir como um importante instrumento para a conhecimento cultural e de aproximação quer à China quer a estratégia diplomática e económica chinesa. Particularmente África, a nova política sino-africana deve ser conjuntamente em África – onde a China procura assegurar o acesso aos vista como uma oportunidade para encetar uma profícua recursos naturais – a política desenvolvida assenta na ideia cooperação triangular em diversas áreas da sociedade e da de que à medida que este gigante asiático exporta crédito, economia. >< promove o crescimento económico local. Contudo, uma dúvida persiste. Não obstante um novo pacote legislativo aprovado em 31 de Outubro de 2006 – que visa, NOTAS entre outros aspectos, combater o branqueamento de (1) Criado em Outubro de 2000 para aproximar, no plano comercial, a África da China. bancário –, a estrutura e o ambiente dos grandes bancos (2) Sobretudo nos últimos seis anos, isto é, desde 1999/2000. estatais chineses pouco mudou nos últimos anos. E, num país (3) Que, em 2005, atraiu o seu maior recorde de sempre em IDE, mundialmente apenas superado pelo IDE atraído pelo Reino Unido e pelos EUA (cfr. OCDE, 2005, Rapport annuel 2005, OCDE, Paris, pp. 83-86 e, ainda, OCDE, 2006, Trends and Recent Developments in Foreign Direct Investment). (4) Por exemplo, o relançamento do ICBC – e porque o saneamento dos bancos públicos chineses, se bem que real, parece frágil – implicou: o recurso a ajudas públicas em volume de capital significativo; o encerramento de duas mil agências; e um aumento de capital de 3,8 mil milhões de dólares, subscrito pela Goldman Sachs, pela American Express e, pela seguradora Allianz. (5) Veja-se o caso, ocorrido em 2004, com a seguradora China Life, que alguns meses após a sua entrada em Wall Street, teve de reconhecer problemas de fraude contabilística. (6) Estatuto de que Portugal também já beneficia no âmbito do acordo sobre Estatuto de Destino Autorizado (ADS), celebrado entre a União Europeia e a República Popular da China. capitais e, paralelamente, disciplinar as regras no sector onde não existe uma verdadeira “cultura de auditoria financeira”, o risco de solidez é ainda elevado(5). Um segundo aspecto interessante que resulta desta aproximação da China a Africa é a possibilidade de, através da China, os países africanos poderem afirmar-se enquanto fortes destinos turísticos mundiais. Por exemplo: em Novembro último, à margem da Cimeira do Fórum, a China atribuiu a Moçambique o “Estatuto de Destino Auto- 122 CADERNOS DE ECONOMIA