1.1.Título pleno em Português: Vigotski e a filosofia da linguagem humboldtiana: Um diálogo interdisciplinar 1.2.Sugestão de título abreviado: Vygotsky e Humboldt: Diálogos 1.3.Título pleno em Inglês: Vigotski and the humboldtian phylosophy of language: An interdisciplinary dialogue 1.4.Título pleno em Espanhol: Vygotsky y la filosofia del lenguaje humboldtiana: Un dialogo interdisciplinario 1.5.Sugestão de título abreviado em português, inglês e espanhol: Vigotski e Humbodlt: Diálogos Vygotsky and Humboldt: Dialogues Vygotsky y Humboldt: Diálogos 2. Resumo: O presente artigo busca recuperar parte do contexto dialógico no qual Vigotski construiu sua teoria sobre a relação entre pensamento e linguagem. Neste contexto, buscamos discutir a forma a partir da qual Vigotski trabalhou duas questões centrais da filosofia da linguagem humboldtiana, quais sejam: a origem da linguagem e a relação entre linguagem e concepção de mundo. A análise destes aspectos permitiu demarcar um universo dialógico interdisciplinar entre Vigotski e Humboldt, indicando zonas de aproximação e afastamento entre as perspectivas destes autores. Consideramos que a psicologia histórico-cultural de Vigotski, fundamentada no materialismo histórico dialético, promove uma inversão dialética na filosofia da linguagem de Humboldt, ressaltando uma compreensão da linguagem como prática social objetivada. Assim, é possível indicar que a perspectiva vigotskiana acerca da origem da linguagem e da construção de uma concepção de mundo representa uma superação dialética em relação às proposições de Humboldt, uma vez que considera a linguagem como um elemento concreto e objetivo, que se modifica no devir histórico e guarda estreitas relações com a base material da qual é proveniente. Palavras-chave: Psicologia histórico-cultural; pensamento; linguagem 2.1. Abstract This article aims to recover part of the dialogical context in which Vygotsky built his theory about the relation between thinking and speech. In this context, we discuss how Vygotsky comprises two central issues of humboldtian philosophy of language, namely: the origin of language and the relation between language and worldview. The analysis of these aspects allowed the demarcation of an interdisciplinary dialogic universe between Vygotsky and Humboldt, indicating similarities and differences between their perspectives. We consider that Vygotsky’s historic-cultural psychology, based on the historic-dialectical materialism, promotes a dialectic reversal of Humboldt’s philosophy of language, by emphasizing an understanding of language as an objectified social practice. Thus, it is possible to indicate that vygotskian perspective about the origins of language and the construction of a worldview is a dialectical overcoming regarding Humboldt’s propositions, since it considers language as a concrete and objective element, which changes in historical development and has close relations with the material basis from which is derived. Keywords: Historic-cultural psychology; thinking; language 2.2. Resumen: Este artículo tiene por objeto la recuperación de parte del contexto dialógico en el que Vygotsky construyó su teoría sobre la relación entre pensamiento y lenguaje. En este contexto, se discute cómo Vygotsky trabajó dos temas centrales de la filosofía del lenguaje humboldtiana, a saber: el origen del lenguaje y la relación entre el lenguaje y visión del mundo. Al examinar estos aspectos se ha podido señalar el universo interdisciplinario entre Vygotsky y Humboldt, apuntando las conexiones entre las distintas perspectivas de estos autores. Consideramos que la psicología histórico-cultural de Vygotsky, basado en el materialismo histórico dialéctico, promueve una inversión dialéctica en la filosofía del lenguaje de Humboldt, con sus énfasis en la comprensión del lenguaje como práctica social objetivado. De este modo, es posible indicar que la psicología de Vygotsky sobre los orígenes del lenguaje y la construcción de una visión del mundo plantea una superación dialéctica da las proposiciones de Humboldt, al considerar el lenguaje un elemento concreto e objetivo que lleva en su desarrollo histórico una estrecha relación con la base material que la sostiene. Palabras clave: Psicología histórico-cultural; pensamiento; lenguaje 3. Texto: A relação entre pensamento e linguagem é uma discussão que, por sua natureza interdisciplinar, tem colocado em articulação diversos campos do conhecimento. As raízes deste debate remontam à Filosofia e à Arte e, em seus desdobramentos, foram fundamentais para a constituição da ciência moderna. Neste campo de problemas, a filosofia humboldtiana ganha destaque por fazer parte de um conjunto de estudos que colocou a linguagem no centro da discussão acerca da constituição do indivíduo ao estabelecer, do ponto de vista teórico, que a linguagem possui um papel constitutivo em relação ao pensamento (Marcondes, 2010). Neste entendimento, os desdobramentos da tese humboldtiana foram fundamentais para o estabelecimento e consolidação de diferentes disciplinas, como a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia – uma vez que ao compreender a linguagem como uma atividade constitutiva, estabelece que o estudo da língua de um povo pode ser uma estratégia metodológica para a compreensão de seus processos de pensamento (Taylor, 1985; Lafont, 1993). A importância da filosofia de Humboldt para a delimitação das ciências sociais e humanas e, em específico, para a constituição da Psicologia, foi objeto de investigação de teóricos que buscaram compreender as formas a partir das quais suas formulações influenciaram alguns pensadores deste campo de problemas. Nesta perspectiva, Jahoda (1992) afirma que o debate entre a Filosofia e a Psicologia ganhou nuances teóricas ainda mais complexas a partir da filosofia da linguagem humboldtiana, uma vez que um dos seus temas privilegiados foi a relação entre linguagem, pensamento e a construção e acesso a uma concepção de mundo em diferentes culturas. Assim, o autor argumenta que a filosofia humboldtiana antecipa alguns elementos que constituem a base da Völkerpsychologie de Wundt e, em seus desdobramentos, também contribuiu para a constituição da psicologia histórico-cultural de Vigotski. Contemporaneamente, tem sido realizado um grande esforço por parte de um conjunto de pesquisadores (Markova, 1983; Van der Veer, 1996; Kozulin, 1990; Veresov, 1999; Wertsch, 2000, 2007; Zinchenko, 2007; Hardcastle, 2009; Bertau, 2011) que tem como objetivo fundamental a investigação dos aspectos basilares da obra de Vigotski, explicitando o contexto dialógico de sua produção. Neste debate, os autores citados afirmam, em uníssono, que a filosofia da linguagem de Humboldt ocupa um lugar importante na delimitação da psicologia histórico-cultural de Vigotski, especialmente em suas formulações acerca da natureza da relação entre linguagem e pensamento. É nesta direção que seguem Kozulin (1990), Van der Veer (1996), Veresov (1999), Wertsch (2007) e Zinchenko (2007) ao afirmar que Vigotski assumiu um dos pressupostos básicos da filosofia da linguagem de Humboldt ao se posicionar, teoricamente, ao lado daqueles que consideram a linguagem como um processo, uma atividade que tem como uma de suas finalidades a constituição do pensamento. Bertau (2011), por sua vez, ao discutir a importância da filosofia de Humboldt no interior do contexto histórico-cultural no qual Vigotski trabalhou, afirma que a filosofia humbodltiana encontrou um terreno fértil na então União Soviética, tendo em vista que os pensadores daquele contexto se questionavam acerca das diferentes funções desempenhadas pela linguagem em sua dimensão dialógica. Em sua argumentação, Bertau (2011) ressalta a importância de A. Potebnia para a divulgação e o desenvolvimento da filosofia humboldtiana na Rússia, especialmente por meio de sua principal obra, ‘Pensamento e língua’, que pode ser considerada como uma discussão sistemática das principais teses defendidas por Humboldt acerca da relação entre linguagem e pensamento. Assim, a autora afirma que os estudos da linguagem soviéticos do início do século XX foram marcados pelo denominado humboldtianismo russo, uma vez que se apropriam do entendimento de que a linguagem é uma atividade dialógica e que a palavra é fundamental para a formação do conceito, ou seja, a linguagem é essencial para a constituição do pensamento. Para Van der Veer (1996), Kozulin (1990), Veresov (1999) e Bertau (2011) a obra de Potebnia despertou grande interesse em Vigotski, tendo contribuído para seu entendimento de que o estudo da linguagem é de fundamental importância para a Psicologia. Assim, a teoria de Potebnia atua como um elo entre a psicologia histórico-cultural de Vigotski e os estudos da linguagem de Humboldt, uma vez que nos textos de Vigotski, as referências à Potebnia são mais frequentes do que à Humboldt – porém, sempre trazem elementos centrais que delimitam e sustentam a filosofia humboldtiana. Nesta perspectiva, Bertau (2011) aponta que o núcleo da pesquisa empírica de Vigotski acerca da relação entre pensamento e linguagem é formulado como uma ressonância da filosofia romântica de Humboldt – uma vez que o pressuposto de que a linguagem é uma atividade dialógica que constitui o pensamento é central para suas reflexões. Sendo assim, partindo do entendimento de que a perspectiva filosófica de Humboldt é importante para a constituição do arcabouço teórico vigotskiano, o objetivo deste artigo é discutir a forma a partir da qual Vigotski compreende dois aspectos fundamentais de seu sistema filosófico, quais sejam: 1. A origem da linguagem e 2. A relação entre linguagem e concepção de mundo. Consideramos que a análise destes aspectos fundamentais para ambas as teorias pode explicitar as relações dialógicas entre estes dois autores, ressaltando a importância do diálogo com a filosofia na delimitação do campo de problemas da psicologia – bem como indicar alguns limites da afirmação de que a psicologia histórico-cultural está enraizada na filosofia de Humboldt. No contexto deste artigo, a importância da filosofia da linguagem de Humboldt para a delimitação da perspectiva de Vigotski, conforme a indicação de Kozulin (1990), Van der Veer (1996), Veresov (1999), Wertsch (2007) e Zinchenko (2007), coloca em destaque o fato de que o debate que pretendemos desenvolver deve ser compreendido como a recuperação de parte do diálogo estabelecido entre Vigotski e seus interlocutores, colocando em articulação sua base epistemológica materialista histórico-dialética e tendo a filosofia da linguagem de Humboldt, gestada no interior de um contexto filosófico idealista, como um como interlocutor privilegiado. É fundamental ressaltar, no entanto, que o nosso esforço teórico representa apenas um recorte específico do estudo acerca do complexo quadro de referenciais teórico-filosóficos com os quais Vigotski dialogou na delimitação de sua teoria, não podendo ser tomado como uma palavra final acerca das questões aqui trabalhadas. Sendo assim, partimos da necessidade de compreendermos as linhas teóricas gerais que compõem a filosofia de Humboldt, especialmente suas formulações sobre a origem da linguagem e sua relação com a construção de uma concepção de mundo, uma vez que estes elementos atuam como a chave de leitura da obra de Vigotski. Após a delimitação destes aspectos na perspectiva do filósofo alemão, a busca por referências explícitas e implícitas à perspectiva humboldtiana nas obras de Vigotski se constituiu como nosso principal procedimento metodológico. Desta forma, concentramos nossos esforços investigativos nas obras “A construção do pensamento e da linguagem” (Vigotski, 1934/2001) – bem como o texto “História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores” (Vigotski, 1931/2001), uma vez que nestas obras estão concentradas as discussões do autor acerca da origem da linguagem e a forma a partir da qual Vigotski compreendia o processo de construção da concepção de mundo nos indivíduos. Além disso, buscamos também os elementos epistemológicos da perspectiva vigotskiana a partir do texto “O significado histórico da crise da psicologia” (Vigotski, 1982/2004) uma vez que tais pressupostos oferecem as diretrizes fundamentais do processo de construção de sua teoria. No que tange à organização deste artigo, inicialmente serão delimitadas as linhas gerais da filosofia da linguagem de Humboldt em suas formulações sobre a origem da linguagem, bem como acerca da construção de uma concepção de mundo para, posteriormente, discutirmos a forma como Vigotski compreende tais questões. Sendo assim, a metodologia de exposição deste trabalho procura favorecer a compreensão do debate que estamos propondo e não pode ser considerada como uma reprodução do caminho percorrido na delimitação e análise de nosso objeto de pesquisa. Antes, a exposição de nossa análise é uma parte da trajetória percorrida para a consecução dos objetivos deste estudo, que assume a teoria de Vigotski como o ponto inicial e final de seu desenvolvimento. Wilhelm von Humboldt: Uma breve contextualização Nascido no ano de 1767 em Potsdam, Alemanha, Wilhelm von Humboldt era o filho primogênito de uma família cuja condição socioeconômica permitia oferecer aos seus filhos uma ampla e rigorosa educação (Mueller-Vollmer, 2011). Para Lafont (1993), sua produção filosófica está intimamente ligada ao movimento cultural romântico, o que o coloca entre os filósofos mais importantes da passagem entre os séculos XVIII e XIX. A este respeito, a autora indica que a filosofia humboldtiana compõe um conjunto de estudos da linguagem denominado como o expressivismo alemão, responsável por lançar as bases epistemológicas de uma revolução nos estudos da linguagem que passou, mais tarde, a ser conhecido como a virada linguística – colocando a linguagem no centro da discussão filosófica sobre a natureza humana. Robins (1967) destaca que o romantismo foi um dos fenômenos culturais de maior peso para a produção intelectual no início do século XIX, profundamente marcado pelo historicismo e pelo nacionalismo, especialmente na Alemanha. É importante ressaltar que, embora a teoria de Humboldt guarde em si aspectos bastante comuns às formulações de sua época e sofra influências bastante claras do Romantismo e da Gramática Comparada, sua teoria se difere dos filósofos de sua geração ao estudar a linguagem sem uma preocupação predominantemente histórica, evitando a simples comparação entre gramáticas para estabelecer a origem da linguagem. É neste sentido que Milani (2012) argumenta que Humboldt supera seus contemporâneos ao buscar, por meio da comparação gramatical, uma fórmula padrão de desenvolvimento intelectual do processo linguístico em diferentes culturas. No que se refere à fundamentação epistemológica da obra de Humboldt, os estudiosos de sua teoria não oferecem uma palavra final, no entanto, ressaltam a importância da filosofia transcendental de Kant para sua constituição. Neste aspecto, o tensionamento entre as contribuições de Cassirer (1923/2001), Valverde (1954), Robins (1967), Lafont (1993), Losonsky (1999) e Milani (2012) é fundamental para a compreensão dos aspectos epistemológicos da filosofia humboldtiana, na medida em que permitem afirmar que sua filosofia representa uma ruptura e, ao mesmo tempo, uma continuidade em relação à filosofia transcendental. Sob este prisma, suas contribuições podem ser consideradas uma continuidade da tese kantiana – posto que também compreendem que a base do conhecimento está na confluência entre sensibilidade e razão, porém –, são uma ruptura em relação a Kant, uma vez que discordam deste filósofo no que se refere à existência de uma razão pura, desvinculada do uso criativo da linguagem e das condições históricas que a fundamentam. Em síntese, Valverde (1954, p. 27, tradução nossa) indica que “Humboldt permanece dentro do que é lícito segundo Kant. (Ou, se preferir outra tradução: ‘depois de Kant’). Ou seja, Humboldt se instala dentro das fronteiras kantianas, em um criticismo que restringe antidogmaticamente as possibilidades cognitivas”. A filosofia da linguagem de Humboldt: A origem da linguagem e a construção de uma concepção de mundo Para a realização do debate que estamos propondo, centralizamos nossos esforços de investigação na obra “Sobre a Diversidade da Estrutura Linguagem Humana e sua Influência Sobre o Desenvolvimento Espiritual da Humanidade” (Humboldt, 1836/1990) – em cotejamento com sua edição inglesa (Humboldt, 1836/1999), uma vez que, embora os estudos sobre a linguagem de Humboldt tenham sido realizados em uma série de obras específicas, é nesta que o tema se concentra e ganha maior expressão (Valverde, 1954). No entendimento de Humboldt (1836/1990), a linguagem está profundamente articulada com o desenvolvimento espiritual da humanidade e pode ser considerada como a expressão deste processo: A linguagem é, pode-se dizer, a manifestação externa do espírito dos povos. Sua língua é seu espírito e seu espírito é sua língua: nós nunca poderemos pensá-los suficientemente idênticos (Humboldt, 1836/1990, p.60, tradução nossa). Dessa forma, ao compreender a linguagem como uma manifestação do espírito de um povo, a investigação acerca da origem da linguagem não pode ser remetida a um processo histórico ou analisado por meio da gramática comparada. Antes, Humboldt afirma que a linguagem é uma atividade que nasce dela mesma: A linguagem, de fato, surge das profundezas da natureza humana, e isto nos proíbe de compreendê-la como obra e criação dos povos. É uma atividade que nasce dela mesma (...) e cuja essência não admite explicação, de modo que, vista desta forma, a linguagem não é produto da atividade do homem, mas uma emanação espontânea do espírito (Humboldt, 1836/1990, p.27, tradução nossa). A questão da origem da linguagem também está relacionada com o entendimento de que a linguagem é uma rede dinâmica, na qual cada elemento é capaz de manifestar em si a totalidade de seu conteúdo. Neste sentido, uma palavra é capaz de refletir em si todo o sistema linguístico ao qual pertence e sua compreensão pressupõe a existência prévia da linguagem como totalidade simbólica articulada. Dessa forma, não é possível afirmar que o surgimento da linguagem se deu por meio de um longo processo de desenvolvimento histórico. Antes, a linguagem surge sob um único golpe e em sua totalidade. Nesta direção, Humboldt (1836/1990) é bastante crítico em relação às teorias da linguagem que situam seu surgimento na atividade designativa, bem como aquelas que estabelecem seu surgimento a partir da necessidade de socorro mútuo diante de algum perigo. De acordo com o autor, estas visões situam a humanidade num fictício estado de natureza e são duas das ideias mais equivocadas em relação à linguagem. (...) Mesmo em sua origem mais profunda a linguagem já está presente na humanidade em sua totalidade e se estende sem finalidade deliberada sobre todo o conjunto de objetos que a casualidade coloca ao alcance da percepção de seus sentidos e de sua elaboração interior (Humboldt, 1836/1990, p. 83, tradução nossa). Assim, a argumentação de Humboldt (1836/1990) situa a origem da linguagem – em sua totalidade – no mesmo momento em que surge o homem, uma vez que ela é um elemento definidor da natureza humana e não pode ser reduzida a nenhum outro elemento do qual poderia surgir. A linguagem não é algo que se constrói mas sim, algo que se desenvolve, uma vez que já está presente no homem desde sua constituição. Desta forma, a linguagem não é somente um atributo que qualifica a natureza humana, ela é também uma capacidade – um elemento que se desenvolve a partir da interação entre os diversos indivíduos de uma nação. De acordo com Milani (2012), o sistema humboldtiano representa um modelo linguístico no qual o indivíduo, por meio do exercício do pensamento e do trabalho criativo da linguagem, pode alcançar planos cada vez mais complexos e mais próximos de um ideal estético, ou seja, de uma fórmula linguística perfeita. Assim, a língua de um povo é o que vincula o pensamento abstrato de seus nativos, estabelecendo uma relação complexa entre o pensamento e a língua na qual a prática discursiva constante segue em contínuo aperfeiçoamento. Sendo assim, é possível indicar que na perspectiva de Humboldt a linguagem é, ao mesmo tempo, um atributo e uma capacidade humana, uma vez que – embora seja um elemento que não permite a investigação de suas origens e está enraizada na natureza humana, ou nas profundezas do espírito humano, ela é algo que, necessariamente, só se desenvolve socialmente. É neste sentido que o autor argumenta a respeito da diversidade da linguagem, indicando a língua de um povo como um dos produtos da atividade criadora da linguagem, sem deixar, no entanto, de remeter tal atividade ao conjunto ao qual pertence o indivíduo, ou seja, à sua nação. As considerações sobre a origem da linguagem, ao indicar suas relações com a língua, são elementos que apontam para a relação entre a linguagem e a construção de uma concepção de mundo, elemento capital na perspectiva de Humboldt (1836/1990). Deste modo, o autor argumenta que a linguagem é o elemento a partir do qual a força do espírito humano entra em uma atividade de criação incessante que, ao constituir a natureza humana, ultrapassa sua dimensão comunicativa, sendo indispensável para desenvolvimento de suas capacidades espirituais e para construção de uma concepção de mundo, a que o homem só pode chegar na medida em que eleva seu pensamento a uma maior clareza e determinação, o que é fruto do pensar em comunidade com os demais (Humboldt, 1836/1990, p. 32, tradução nossa). De acordo com Humboldt (1836/1990), não se pode considerar cada nação como a expressão de uma individualidade humana, porém, não se pode compreender um homem, ou sua obra, sem a remissão de suas ações e produtos à nação a qual pertence. Do seu ponto de vista é o despertar da capacidade criadora da linguagem que possibilita a constituição do indivíduo e a construção da realidade – processos que estão inextricavelmente relacionados: “da mesma forma que sem a linguagem não pode haver nenhum conceito, também não pode haver nenhum objeto para a alma sem a linguagem, pois a realidade não possui uma existência plena, exceto pelo conceito” (Humboldt, 1836/1990, p. 82, tradução nossa). Ao conceber a linguagem como o elemento que possibilita a construção da realidade, Humboldt (1836/1990) condiciona o processo de ordenação e compreensão do mundo ao despertar da capacidade linguística do indivíduo, ou seja, à apropriação de sua língua materna. Dessa forma, ao considerar a dependência entre pensamento e linguagem, a língua é, antes de qualquer coisa, um meio de construir a realidade e não apenas seu modo de representação. Uma vez que a linguagem é considerada como definidora das categorias da razão, responsável pela ordenação e compreensão do mundo, ela representa o elemento a partir do qual o indivíduo se insere e se apropria da cultura – o que nos leva a compreender o fato de que na perspectiva de Humboldt, a língua determina a concepção de mundo dos indivíduos, bem como seu modo de pensar e configurar sua experiência. Nesta perspectiva, a relação entre linguagem e a construção de uma concepção de mundo para Humboldt (1836/1990) guarda em si um caráter relativista, uma vez que ao considerar que a língua de um povo determina sua concepção de mundo e configura sua experiência considera-se, necessariamente, que para cada língua há uma perspectiva de mundo diferente. Sendo assim, é neste contexto que é possível indicar o idealismo romântico da filosofia de Humboldt – bem como o caráter relativista de sua tese – posto que em sua filosofia o real está condicionado aos processos linguísticos e não possui existência plena, exceto no interior do conceito. Outra questão importante para o sistema teórico-filosófico humboldtiano é que, assim como existem diferenças no processo de pensamento e concepção de mundo entre indivíduos que falam diferentes línguas, também não existe uma forma unívoca de compreender um conceito no interior de uma mesma língua. Assim, uma mesma palavra não suscita exatamente o mesmo significado para indivíduos diferentes: “Ao escutar uma palavra, não há duas pessoas que pensam exatamente o mesmo, e esta diferença, por menor que seja, se estende, como as ondas na água, por todo o conjunto da língua” (Humboldt, 1836/1990, p. 88, tradução nossa). É neste sentido que Humboldt (1836/1990, p.88, tradução nossa) afirma que “toda compreensão é ao mesmo tempo uma incompreensão e toda coincidência de ideias e sentimentos aponta também para uma divergência nas mesmas ideias”. Deste modo, é por meio de pequenas diferenças no significado das palavras, que reverberam na estrutura formal da língua e expressam seu caráter dinâmico, que o indivíduo reage, na mesma proporção e em direção oposta à força que a linguagem exerce sobre si próprio e, ao reagir a tal força o indivíduo mantem a língua de sua nação viva, modificando-a no devir histórico. Tendo delimitado as principais diretrizes da forma a partir da qual Humboldt (1836/1990) compreende a origem da linguagem e sua importância para o acesso a uma concepção de mundo, o próximo tópico deste artigo busca discutir a forma a partir da qual Vigotski trabalhou estes aspectos, demarcando suas zonas de aproximação e afastamento em relação à perspectiva humboldtiana. A psicologia histórico-cultural de Vigotski: Relações dialógicas com a filosofia de Humboldt Escrita no início do século XX na antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviética), a obra de Vigotski discute aspectos teóricos, metodológicos e epistemológicos fundamentais para a Psicologia e, a despeito de seu imenso valor heurístico e inovador, passou por um longo período de obscurantismo em seu país de origem – tendo sido proibida por Stalin a partir de um decreto em 1936, sendo reeditada apenas em 1956 após a morte do ditador soviético (Prestes, 2010; Prestes e Tunes, 2012; Friedrich, 2012). A volta do pensamento vigotskiano ao meio acadêmico colocou Vigotski, mais uma vez, como um dos principais pilares de sustentação da discussão acerca da formação do indivíduo por meio da análise do desenvolvimento histórico das funções psicológicas superiores. Neste sentido, a importância de suas contribuições à Psicologia reside, sobretudo, no explícito esforço de superação das dicotomias constitutivas deste campo de problemas, como a cisão entre natureza-cultura, sociedade-indivíduo, que culminou em diferentes perspectivas de análise no interior desta disciplina (Pino, 2005). A discussão acerca do entendimento vigotskiano em relação à origem da linguagem e à construção e acesso a uma concepção de mundo – mediada pela prática discursiva –, pode ser considerada uma forma de explicitar as vinculações epistemológicas das formulações de Vigotski, ressaltando a forma a partir da qual sua teoria procura superar os impasses estabelecidos pela cisão material-idealista no interior deste campo de problemas. Neste debate, as considerações vigotskianas acerca da origem da linguagem também podem ser consideradas um dos pontos centrais que demarcam sua zona de afastamento em relação à perspectiva humboldtiana, uma vez que considera que A comunicação, estabelecida com base em compreensão racional e na intenção de transmitir ideias e vivências, exige necessariamente um sistema de meios cujo protótipo foi, é, e continuará sendo, a linguagem humana, que surgiu da necessidade de comunicação no processo de trabalho (Vigotski, 1934/2001, p. 11). Para Friedrich (2012), a necessidade de um olhar histórico sobre o desenvolvimento do pensamento e da linguagem é um elemento fundamental para a compreensão da proposta vigotskiana no interior de uma proposição materialista histórico dialética de investigação. Neste sentido, Vigotski (1934/2001) vai além da afirmação de que a linguagem humana surge a partir da necessidade de comunicação proveniente do processo de trabalho e amplia tal discussão ao ancorar sua perspectiva no estudo filogenético e ontogenético do desenvolvimento destas funções psicológicas. Dessa forma, Vigotski (1934/2001) indica que tanto do ponto de vista filogenético, quanto ontogenético, pensamento e linguagem se desenvolvem em linhas genéticas distintas. A respeito da filogênese, o autor se ampara nos experimentos de Köhler e Yerkes e indica que em suas origens, tanto o pensamento quanto a linguagem possuem raízes distintas e seu desenvolvimento segue por linhas genéticas diferentes e independentes uma da outra. É neste sentido que o psicólogo soviético ressalta a existência de uma fase pré-linguística no desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem. Embora as pesquisas de Köhler e Yerkes sejam fundamentais para as conclusões vigotskianas sobre as raízes genéticas do pensamento e da linguagem na filogênese, Vigotski (1934/2001) afirma que tais conclusões não são nenhuma novidade teórica para os estudiosos do materialismo histórico dialético. Tal argumentação ressalta que ao analisar as pesquisas de Köhler e Yerkes, Vigotski buscava evidências experimentais que comprovassem aquilo que ele já tinha conhecimento por meio da filosofia de Marx e Engels. No que se refere à ontogênese, a argumentação de Vigotski parte do mesmo princípio ao afirmar que, também no desenvolvimento do indivíduo, as raízes genéticas do pensamento e da linguagem são distintas. No entanto, prescindindo de qualquer paralelismo entre filogênese e ontogênese, posto que as relações interfuncionais e históricas que fundam a consciência humana se dão por meio de saltos dialéticos que modificam radicalmente sua estrutura, Vigotski (1934/2001) ressalta que em um determinado momento do desenvolvimento do indivíduo as linhas genéticas do pensamento e da linguagem, até então separadas, se cruzam e formam uma nova forma de comportamento: o pensamento verbal. É importante ressaltar, portanto, que a busca pelas raízes genéticas do pensamento e da linguagem realizada por Vigotski (1934/2001) o coloca em oposição à perspectiva humboldtiana, uma vez que compreende a necessidade de comunicação nos processos de trabalho como um fator de grande importância para o desenvolvimento da linguagem e para um salto qualitativo que modifica a forma a partir da qual o homem atua no mundo. Nesta direção, a investigação filogenética e ontogenética do pensamento e da linguagem marca uma posição teórica e epistemológica diferente daquela delimitada no idealismo de Humboldt (1836/1990) e demonstra que a perspectiva histórico-cultural não pode ser caracterizada como uma mera adaptação materialista da filosofia humboldtiana. Antes, Vigotski parte de uma perspectiva epistemológica realista, o materialismo histórico dialético – que implica em modificações, tanto em suas formulações em relação à origem da linguagem, quanto na concepção do autor acerca da construção de uma concepção de mundo. Sendo assim, ao considerarmos a importância do materialismo histórico dialético como solo epistemológico que sustenta a produção teórica de Vigotski (Zanella et al, 2007; Romanelli, 2011; Friedrich, 2012;), é importante ressaltar que – se a linguagem possui sua origem na necessidade de comunicação, gestada no interior dos processos de trabalho, ela deve ser compreendida, necessariamente, como prática social objetivada – e não como o trabalho do espírito conforme a proposição de Humboldt (1836/1990). No que se refere à base epistemológica que fundamenta sua produção científica, Vigotski (1982/2004) rechaça qualquer perspectiva eclética de conciliação entre as perspectivas idealistas e materialistas no interior da Psicologia e estabelece duas teses fundamentais. A primeira delas refere-se à base material dos conceitos científicos: Todo conceito científico-natural, por mais alto que seja seu grau de abstração em relação ao fato empírico, encerra também uma concentração, um sedimento da realidade concreta e real de cujo conhecimento científico surgiu, ainda que seja só em uma solução muito fraca. Ou seja, a qualquer conceito, ainda que se trate do mais abstrato – do último – corresponde um certo grau de realidade, representada no conceito em forma abstrata, segregada da realidade; (...) Inclusive um conceito tão abstrato como a série numérica, inclusive uma ficção tão patente como o zero (isto é, a ideia da ausência de qualquer magnitude) são, como mostrou Engels, plenamente qualitativos (Vigotski, 1982/2004, p. 232/233). Por outro lado, se a primeira tese defende a argumentação de que todo conceito – seja ele científico ou não –, está vinculado à objetividade da mediação social da qual é proveniente, a segunda tese apresentada por Vigotski (1982/2004) é seu par antitético. Nesta perspectiva, todo fato empírico já é produto de uma abstração: A segunda tese que é necessário estabelecer para realizar uma análise de princípio do problema da ciência geral é oposta à primeira. Se aquela afirmava que na mais alta abstração científica há um elemento da realidade, esta, como teorema contrário, estabelece que todo fato científico-natural isolado, por mais empírico e pouco maduro que seja, já encerra uma abstração primária. (...) Os corpos físicos, o movimento, a substância, são abstrações. O próprio ato de denominar um fato mediante a palavra supõe superpor a ele um conceito, o de destacar nele uma de suas facetas significa interpretá-lo assimilando-o à categoria dos fenômenos reconhecida anteriormente pela experiência (Vigotski, 1982/2004, p. 234). As citações anteriores indicam que a perspectiva vigotskiana se fundamenta no solo epistemológico delimitado por Marx e Engels, uma vez que as teses estabelecidas pelo autor compõem uma oposição dialética que delimita alguns princípios básicos na produção do conhecimento, ressaltando as relações com sua base objetiva e material. No interior desta perspectiva ontológica e epistemológica, o desenvolvimento da linguagem, atrelado às relações de trabalho, pressupõe sua objetividade e atua como um elemento concreto de mediação entre indivíduo e sociedade – o que modifica a forma a partir da qual Vigotski compreende as diferentes formas de pensamento. Assim, se por um lado, a perspectiva de Humboldt (1934/1990) afirma que a diversidade da estrutura da linguagem implica em diferentes formas de construção da realidade, por outro, a perspectiva de Vigotski (1934/2001) argumenta que as condições objetivas de existência determinam os processos linguísticos e, consequentemente, os diferentes processos de pensamento. Neste sentido, é possível afirmar que, assim como Marx inverte a dialética de Hegel ao indicar a objetividade como elemento motriz do devir histórico, Vigotski também promove uma inversão dialética na filosofia humboldtiana, indicando o caráter objetivo e material da linguagem. Neste entendimento, não é a linguagem que determina a realidade, antes, é a realidade (objetiva) que determina a linguagem e, em última instância, os processos de pensamento. Dessa forma, a inversão dialética entre linguagem e realidade realizada por Vigotski (1934/2001) é um elemento epistemológico que promove a superação do relativismo linguístico presente na teoria humboldtiana. No entanto, Vigotski se aproxima da perspectiva humboldtiana ao argumentar que, nos processos de comunicação, uma palavra não significa exatamente a mesma coisa para dois falantes de uma língua. Na obra “Psicologia da arte” (Vigotski, 1965/1999), em uma das poucas citações explícitas à Humboldt presentes em sua obra, Vigotski afirma que “como formulou com inteira razão Humboldt, toda interpretação é uma incompreensão, ou seja, os processos de pensamento que o discurso do outro suscita em nós, nunca coincidem plenamente com os processos que ocorrem com o falante” (p. 49). A discussão acerca dos diferentes processos de pensamento suscitados no indivíduo a partir da relação dialógica também está presente na argumentação de Vigotski em “A construção do pensamento e da linguagem” (1934/2001). Neste sentido, as suas formulações a respeito do desenvolvimento do significado das palavras colocam em relevo que, embora adultos e crianças consigam se comunicar e se compreender mutuamente, não há identidade entre os conceitos suscitados pelas palavras proferidas por um ou outro. Antes, o que permite a comunicação e o entendimento entre adultos e crianças é a coincidência dos referenciais concretos envolvidos no contexto da ação comunicativa e não os seus significados propriamente ditos. Por fim, a proposição de Vigotski acerca da construção de uma concepção de mundo também aponta para uma superação dialética da filosofia humboldtiana. Se na perspectiva de Humboldt (1836/1990) a linguagem é o único fator envolvido na constituição da consciência – construindo concomitantemente a realidade, a concepção de mundo e as possibilidades cognitivas do indivíduo –, a perspectiva de Vigotski amplia este entendimento ao indicar a apropriação da objetividade social como critério definidor da subjetividade. Para Vigotski (1931/2001), a concepção de mundo “é tudo aquilo que caracteriza a conduta global do homem, a relação cultural da criança com o mundo exterior” (p. 328, tradução nossa). Assim, o autor amplia o entendimento humboldtiano a respeito da construção de uma concepção de mundo e argumenta que todas as funções psicológicas são importantes neste processo. Em suas palavras, se examinarmos nossa pesquisa em seu conjunto, numa visão panorâmica, veríamos os complexos e emaranhados fios que entrelaçam e ligam entre si todos os seus capítulos. Por exemplo, a linguagem, que é o meio fundamental de desenvolvimento da personalidade, nos leva a forma principal da memória mnemotécnica, que se faz compreensível somente à luz da função indicadora dos signos da atenção. A palavra é a ferramenta direta da formação dos conceitos. A linguagem é o meio fundamental do pensamento e está vinculada ao desenvolvimento do gesto, do desenho, do jogo e da escrita. A atenção, por sua vez, nos proporciona a base necessária para o desenvolvimento dos conceitos que, sem ela não seriam claros; jamais poderíamos relatar a história da personalidade ou da concepção infantil do mundo, se tais fios reiteradamente entrelaçados não houvessem sido delimitados em nossa exposição anterior (Vigotski, 1931/2001, p. 329-330, tradução nossa) Sendo assim, a concepção de mundo para Vigotski é um elemento histórico e social, construído a partir de relações interfuncionais, nas quais a linguagem é um meio a partir do qual o indivíduo se apropria da cultura, além de se constituir como um elemento de mediação entre as demais funções psicológicas superiores. Deste modo, Vigotski também amplia e supera dialeticamente as contribuições de Humboldt ao ressaltar que a construção da concepção de mundo não pode se limitar a uma função psicológica em específico. Antes, deve se voltar ao conjunto das funções psicológicas, colocando em evidência o caráter histórico e social das complexas relações interfuncionais que, mediadas simbolicamente, fundam a consciência humana. Considerações Finais A discussão sobre as relações dialógicas entre a filosofia da linguagem humboldtiana e a psicologia histórico-cultural de Vigotski, desenvolvida ao longo deste artigo, envolveu a consideração de aspectos epistemológicos, metodológicos e teóricos – explicitados a partir do tensionamento entre estas duas teorias. Sendo assim, ao discutirmos os principais aspectos que compõem o sistema teórico humboldtiano, especialmente aqueles relacionados à origem da linguagem e à construção de uma concepção de mundo, em articulação com as formulações de Vigotski acerca das mesmas questões, foi possível indicar alguns limites da afirmação de que a psicologia histórico-cultural possui suas raízes no sistema filosófico de Humboldt. De modo específico, é possível indicar que a perspectiva vigotskiana acerca da origem da linguagem e da construção de uma concepção de mundo mediada pela prática discursiva representa uma superação dialética em relação às proposições de Humboldt, uma vez que considera a linguagem como um elemento concreto e objetivo, que se modifica no devir histórico e guarda estreitas relações com a base material da qual é proveniente e pela qual é sustentada, em meio a práticas sociais diversas. Nesta argumentação, a análise acerca da origem da linguagem na perspectiva vigotskiana foi um elemento importante para retomar algumas questões epistemológicas que compõem o sistema teórico proposto por Vigotski e representam um ponto no qual o psicólogo soviético se difere, radicalmente, da perspectiva de Humboldt. Se a análise do tratamento dado por Vigotski (1934/2001) em relação à origem da linguagem representa um afastamento de sua perspectiva em relação ao idealismo humboldtiano, as formulações de Vigotski acerca da construção de uma concepção de mundo indica diferentes matizes no diálogo entre os autores. Assim, embora Vigotski não considere a linguagem como o único elemento responsável pela construção de uma concepção de mundo, ele não desconsidera sua participação neste processo, uma vez que ressalta a importância da mediação simbólica para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores que, por sua vez, também participam do processo de construção de uma concepção de mundo nos indivíduos. Por fim, consideramos que a relação dialógica entre a filosofia da linguagem de Humboldt e a psicologia histórico-cultural de Vigotski só pode ser compreendida se remetermos sua análise à base epistemológica a partir da qual Vigotski desenvolveu sua teoria. Sendo assim, consideramos que o materialismo histórico-dialético direciona o trabalho criativo de Vigotski e implica em uma compreensão de sua teoria que ultrapassa a recapitulação dos pressupostos teórico-filosóficos que lhe serviram de base, guardando em si uma grande potencialidade crítica em sua tarefa de orientar o pensamento em direção a uma prática social transformadora. 4. Referências Bertau, M. C. (2011). Language for the Other: Constructing cultural-historical psycholinguistics. Activity Theory – Journal of activity-theoretical research in Germany, 5, 13-49. Cassirer, E. (1923/2001). A Filosofia das Formas Simbólicas I - A Linguagem. São Paulo: Martins Fontes. Friedrich, J. (2012). Lev Vigotski – Mediação, Aprendizagem e Desenvolvimento: Uma leitura filosófica e epistemológica. Campinas: Mercado de Letras. Hardcastle, J. (2009). Vygotsky’s enlightenment precursors. Educational Review, 61(2), 181195. Humboldt, W. V. (1836/1990). 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