Futebol, gênero e identidade feminina

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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
Futebol, gênero e identidade feminina:
Um estudo etnográfico sobre o núcleo de mulheres gremistas
Marcelo Pizarro Noronha (UNISINOS)
Futebol; Gênero; Identidade
ST 71 - Futebol: feminilidades e masculinidades em jogo
Introdução
Ao abordarmos a temática do futebol avaliamos quase que exclusivamente as relações do
homem com este esporte. Apesar do crescimento do futebol feminino no Brasil, ainda é tímida a
presença da mulher neste campo, seja como atleta, dirigente ou torcedora.
Em Porto Alegre, no entanto, existe, há pouco mais de quatro anos, um grupo de mulheres
que se reúne regularmente no complexo do estádio Olímpico Monumental, de propriedade do
Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, para tratar de futebol, entre outras questões. Unidas em torno de
um sentimento de amor pelo clube, o Núcleo de Mulheres Gremistas caracteriza-se pela promoção
de diferentes atividades sociais em prol do Grêmio e da sociedade gaúcha em geral. Isto sem contar
o apoio ao time nas arquibancadas, embora as integrantes façam questão de não se deixar confundir
com uma torcida organizada.
Fundado em maio de 2004, em meio a uma das mais graves crises por que passou o Grêmio,
devido ao rebaixamento para a segunda divisão do futebol profissional do país, o Núcleo de
Mulheres Gremistas desde o início estabeleceu como meta a ajuda incondicional ao clube. Segundo
Rosa Foresti, uma das atuais coordenadoras do Núcleo, em entrevista por mim realizada no dia
14/06/2007, o grupo “busca ainda uma efetiva participação da mulher na vida política, social e
desportiva do clube”. Iniciando suas atividades com um número aproximado de 20 mulheres, o
Núcleo de Mulheres Gremistas registra atualmente, em seu cadastro, cerca de 1500 integrantes.
Cabe à coordenação distribuir tarefas entre as participantes, quando das reuniões mensais e
extraordinárias.
A investigação sobre o referido grupo está sendo realizada a partir de uma etnografia. De
acordo com Geertz (1989), este modelo de estudo implica uma “descrição densa” dos dados de
pesquisados, sendo o texto antropológico, de certo modo, uma ficção, no sentido de que é uma
construção essencialmente interpretativa.
Velho (2004, p.123), avaliando os aspectos qualitativos da pesquisa antropológica, diz que
“a observação participante, a entrevista aberta, o contato direto, pessoal, com o universo investigado
constituem sua marca registrada”. Para o autor (2004), esta metodologia possibilita a percepção de
aspectos culturais não explicitados em entrevistas objetivas, o que exige do pesquisador um maior
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esforço, inclusive no que diz respeito à análise dos dados produzidos em campo. Da Matta (1987),
por sua vez, observa que é preciso aproximar a experiência pessoal do pesquisador das teorias
correntes, num processo dialético entre o conhecimento concreto e os campos teóricos ensinados
nas universidades.
Stigger (2002, p.5) justifica a opção pela etnografia por entender que desta forma é possível
desenvolver “[...] a busca do conhecimento sustentado na observação direta dos acontecimentos
sociais, os quais ocorrem a partir da relação de comunicação entre o investigador e aqueles que são
os protagonistas do contexto cultural que se pretende conhecer”. Para o referido autor (2002), a
etnografia exige do pesquisador um trabalho de interpretação das representações que os pesquisados
fazem de si próprios.
Por fim, Magnani (2001) afirma que é preciso contemplar, numa pesquisa etnográfica, os
fatores extra discursivos, o que, no contexto do meu Doutoramento, implica observar as relações
sociais construídas entre o Núcleo de Mulheres Gremistas e diferentes grupos ligados ou não ao
universo do futebol.
1. Futebol, gênero e identidade: Uma breve revisão
O futebol é uma importante temática das Ciências Sociais, sendo considerado por Helal
(1990, p.14) um fato social, na medida em que “[...] existe fora das consciências individuais de cada
um, mas que se impõe como uma força imperativa capaz de penetrar intensamente no cotidiano de
nossas vidas, influenciando os nossos hábitos e costumes”. O aspecto imperativo observado por
Helal (1990) diz respeito, sobretudo, ao espaço expressivo que recebe o futebol na mídia. Costa
(2005) reforça esta visão, afirmando ser o futebol um fato social total, uma vez que a sua prática
está ligada a diferentes instâncias sociais e culturais.
A presença feminina no universo do futebol é complexa. Conforme Bruhns (2000), a
compreensão das relações das mulheres com este esporte implica a discussão sobre o feminismo
como teoria e como movimento social.
Castells (2006) chama a atenção para o processo de multiplicidade de identidades
feministas, ao afirmar que o feminismo deve ser discutido a partir do reconhecimento de sua
fragmentação como movimento cultural, o que implica o questionamento do modelo de organização
patriarcal. O feminismo, deste modo, pode ser mais facilmente identificado se avaliado em certas
particularidades, como no caso do Núcleo de Mulheres Gremistas.
Costa (1994, p.164) também chama a atenção para a diversidade do movimento feminista,
ao observar que “o feminismo agrupou, ou melhor, serviu de guarda-chuva para uma grande
variedade de tendências e orientações político-ideológicas”. O fator que aparenta ser universal
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dentre esta multiplicidade diz respeito, segundo a referida autora (1994), à luta pela supressão das
desigualdades entre os homens e as mulheres.
Retomando o Núcleo de Mulheres Gremistas, é possível afirmar que a sua existência
provoca o questionamento, numa importante instituição esportiva, da condição de inferioridade da
mulher em termos de participação na vida do clube, inclusive no sentido político.
Rosaldo (1979, p.33), ao analisar a subordinação da mulher, cujo caráter, na sua visão, é
universal, observa que “[...] parece que em relação ao homem de sua idade e de seu status social a
mulher em todo o lugar carece de poder reconhecido e valorizado culturalmente”. Ortner (1979)
igualmente acredita na universalidade da subordinação feminina. Para ela, o papel social feminino é
compreendido como mais próximo da natureza, por conta, dentre outros fatores, do processo de
gestação, o que possibilita, em diferentes culturas, a “domesticação” da mulher.
Butler (2003) questiona esta tese, ao afirmar que “a noção de um patriarcado universal tem
sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos de
opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe”. Sardenberg e Costa
(1994), por sua vez, acreditam que a subordinação social da mulher pode ser considerada a primeira
forma de opressão da história. A afirmação de um pensamento crítico, de caráter feminista, no
entanto, para as autoras (1994), é recente.
A pesquisa sobre o Núcleo de Mulheres Gremistas sugere uma discussão de gênero. Silveira
e Santos (2004) afirmam que o gênero é uma construção social. Seu estudo implica o
reconhecimento e a análise de estereótipos. As formas como as mulheres vêm sendo representadas
(e se representam) no mundo do futebol, deste modo, devem ser questionadas.
Conforme Prá (2004), o gênero pode ser compreendido tanto como uma variável sóciocultural quanto como uma categoria de análise. Para esta autora (2004), a melhor condição em que
se encontram as mulheres atualmente é resultado das lutas feministas. Em se tratando do Núcleo de
Mulheres Gremistas, a mobilização organizada e permanente das suas integrantes, em especial das
coordenadoras, está sendo fundamental para a garantia de um espaço no Grêmio e para a
configuração de uma agenda mínima que justifique a existência do grupo no clube e na sociedade
gaúcha. O processo de legitimação do Núcleo de Mulheres Gremistas está se dando, em larga
escala, por meio de parcerias do grupo com diferentes instituições sociais.
Terragni (2005, p.141) afirma que “[...] a pesquisa relativa a gênero, seja feminino seja
masculino, na maioria das vezes implica uma reflexão sobre as mulheres, sobre a identidade delas,
sobre os percursos de trabalho e familiares delas”. Para a melhor compreensão sobre o papel do
Núcleo de Mulheres Gremistas e para o aprofundamento da discussão sobre o lugar (histórico e
simbólico) da mulher no futebol brasileiro, pretendo explorar as biografias de algumas das
integrantes deste grupo. Numa das entrevistas que realizei com as coordenadoras do Núcleo,
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inclusive, indaguei o processo de identificação destas com o Grêmio. Rosa Foresti (18/04/2007)
salientou a influência da família quanto à sua preferência clubística: “meu avô levava minha mãe a
assistir jogos do Grêmio na Baixada (em uma época que mulheres pouco freqüentavam o futebol);
eu comecei a acompanhá-lo ao Estádio Olímpico aos 9 anos. Antes disso, lembro que muitas vezes
(pequenina ainda) fui com a bandeirinha do Grêmio (feita pela minha vó) para as ruas festejar
vitórias do Grêmio”.
Outra coordenadora do Núcleo de Mulheres Gremistas, Marta Praia, em entrevista realizada
no dia 17/04/2007, pela internet, observa que foi influenciada pelo pai quanto à sua escolha pelo
Grêmio. A sua relação com o clube é reforçada pelos novos laços familiares: “quando conheci meu
marido passei a gostar mais ainda, pois ele é muito gremista e ficávamos namorando e ouvindo
jogos no radinho o tempo todo”, afirma Praia.
Goldenberg (2001, p.317) chama a atenção para a importância da trajetória nas Ciências
Sociais, ênfase que permite a discussão sobre “[...] a questão da singularidade de um indivíduo
versus o contexto social e histórico em que está inserido”.
A adoção das histórias de vida como técnica de pesquisa possibilita ao investigador uma
“entrevista aprofundada”, conforme Combessie (2004). Para o autor, no entanto, é preciso
esclarecer quais as funções das histórias no contexto da pesquisa, para que estas não se tornem
meras narrativas, as quais, embora ricas, não venham a contribuir para a análise geral dos dados.
Por ser constituído exclusivamente por mulheres, o Núcleo torna-se, de algum modo, um
representante feminino, em termos identitários, no universo do futebol. Segundo Ribeiro (2000,
p.8), no atual cenário da globalização a problemática da identidade deve ser compreendida como
“[...] um terreno contestado, presa de contradições internas e objecto de uma negociação
permanente entre posições diferentes e, muitas vezes, antagônicas”. As contradições apontadas por
Ribeiro (2000) também são verificadas por Berger e Luckmann (2002, p.230), para os quais “a
identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade”.
Hall (2001) apresenta argumentos acerca de mudanças estruturais, de caráter internacional,
que podem estar contribuindo para a fragilização dos indivíduos sociais, processo que se dá a partir
da fragmentação da identidade moderna. É possível acreditar, segundo este autor (2001), numa
espécie de crise de identidade global. As sociedades modernas, assim, estão redefinindo-se e as
identidades modernas estão “descentrando-se”.
Zinani (2006) entende que a identidade apresenta uma dimensão simbólica, construída a
partir das interações dos sujeitos com a sociedade, não sendo, portanto, um elemento colocado a
priori, nas suas palavras.
O processo de interação entre as integrantes do Núcleo de Mulheres Gremistas e destas com
diferentes grupos sociais, deste modo, é um aspecto fundamental a ser considerado nesta pesquisa.
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Considerações Finais
Um dos objetivos da pesquisa é o de discutir o universo do futebol como um campo de
representações, o qual possibilita a construção de processos identitários e relações de sociabilidade.
O aprofundamento da discussão sociológica (e antropológica) sobre o mundo do esporte,
inclusive, conforme Bracht (2006, 35), “pode nos ajudar a entender processos sociais mais amplos e
mesmo algumas características da cultura brasileira”. É fundamental salientar, no entanto, que o
Doutoramento em Ciências Sociais não é sobre futebol e sim sobre um grupo organizado de
mulheres que atua neste contexto.
O estudo sobre o Núcleo de Mulheres Gremistas, um grupo pioneiro, assim, implica a
reflexão sobre o lugar simbólico das mulheres no mundo do futebol clubístico na sociedade
brasileira contemporânea.
É preciso chamar a atenção, ainda, para o fato de que o Núcleo recentemente ganhou
companhia: o Espaço Mulher Colorada, ligado ao Internacional, clube rival do Grêmio, já está
atuando no Rio Grande do Sul.
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