REUNIÃO DE DIRETRIZES DE DOENÇAS COLESTÁTICAS E HEPATITE AUTOIMUNE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE HEPATOLOGIA INTRODUÇÃO A Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) promoveu na cidade de São Paulo em 18 de outubro de 2014 a I Reunião sobre Doenças Colestáticas e Autoimunes do Fígado com o intuito de promover uma ampla discussão sobre os principais avanços recentes no diagnóstico e tratamento destas enfermidades, visando elaborar um documento com diretrizes que possam nortear o manejo dos pacientes com hepatite autoimune, colangite esclerosante primária e cirrose biliar primária. Dentro da sistemática adotada, foi escolhido pela atual diretoria da SBH um comitê organizador composto por três sócios-titulares com linha de pesquisa e/ou publicações na área que elencaram os principais temas a serem debatidos em seis módulos: 1) hepatite autoimune, 2) colangite esclerosante primária, 3) cirrose biliar primária, 4) síndromes de sobreposição, 5) manifestações da colestase, 6) situações especiais. Cada módulo foi divido em três a seis tópicos. Cada tópico foi elaborado por um relator escolhido pelos coordenadores de cada modulo, tendo ficado o relator responsável por: revisão sistemática de literatura do seu tópico respondendo aos questionamentos previamente levantados pelos seus respectivos coordenadores; elaboração de um resumo em inglês e em português da evidência disponível em duas páginas A4 Times New Roman 12 espaço 1,5 (além de 5-10 referências bibliográficas) a serem entregues dentro do prazo estipulado no cronograma da diretriz; elaboração da proposta de recomendações para incorporação na diretriz acerca do seu tópico; apresentação oral do seu tópico em 15 minutos no dia 18/10/14 (com exceção do módulo situações especiais que contará apenas com apresentação da diretriz); revisão do documento final após o evento e as sugestões dos associados da SBH enviadas via homepage. O coordenador, por outro lado, teve como incumbência a elaboração dos principais questionamentos a serem abordados em cada um dos tópicos, a revisão dos resumos e das propostas de recomendações de seus respectivos tópicos, a adequação das recomendações à realidade nacional, a elaboração de um documento final conciso referente ao seu módulo seguido da elaboração das diretrizes e a revisão final de todos os módulos após o evento e sugestões via homepage dos associados da SBH. A diretoria da SBH também escolheu doze sócios titulares de notório saber que não estavam fazendo parte da elaboração do documento final para discussão presencial das diretrizes apresentadas durante o evento levando em consideração a evidencia apresentada e a possibilidade de sua implementação diante da realidade nacional, além da moderação dos temas apresentados. A comissão organizadora ficou responsável em conjunto com a diretoria da SBH pela viabilização do evento e publicação da diretriz em inglês em periódico indexado e em português em fascículo suplementar. A coordenação da reunião ficou a cargo dos Drs. Paulo L Bittencourt (BA), Eduardo Luiz Rachid Cançado (SP), Gilda Porta (SP) e Antônio Eduardo Benedito Silva (SP). Os discutidores de notório saber escolhidos pela diretoria da SBH foram Fernando Wendhausen Portella (RJ), Renata de Mello Perez (RJ), Angelo Alves de Mattos (RS), Tiago Sevá-Pereira (SP), Henrique Sérgio Moraes Coelho (RJ), Maria Lúcia Gomes Ferraz (SP), Edmundo Pessoa de Almeida Lopes Neto (PE), Janaína Luz Narciso Schiavon (SC), Helma Pinchemel Cotrim (BA) e Alberto Queiroz Farias (SP). Os nomes dos coordenadores e relatores estão descritos abaixo dos seus respectivos módulos e tópicos. A participação de cada um vocês durante esta etapa de consulta pública é crucial para o sucesso da nossa diretriz. O sistema de graduação das recomendações adotado foi adaptado da American College of Cardiology and the American Heart Association, sendo empregado de acordo com classificação abaixo:1,2 Classe I: Situações para as quais existem evidências e/ou consenso que uma avaliação diagnóstica, procedimento ou tratamento sejam benéficos, úteis e efetivo. Classe II: Situações para as quais existe evidencias conflitantes e/ou divergências de opinião sobre a utilidade e/ou eficácia de uma avaliação diagnóstica, procedimento ou tratamento. Classe IIa: O peso da evidencia e/ou opinião é favorável a sua utilidade e/ou eficácia. Classe IIb: Utilidade e/ou eficácia é pouco sustentada pelas evidencias e/ou opiniões Classe III: Situações nas quais existe evidencia e/ou consenso que uma avaliação diagnóstica, procedimento ou tratamento não sejam úteis, efetivos ou mesmo deletérios em alguns casos. Referências bibliográficas: 1) Methodology Manual for ACC/AHA Guideline Writing Committees: Methodologies and Policies from the ACC/AHA Task Force on Practice Guidelines April 2006. 2006. 2) Shiffman RN, Shekelle P, Overhage JM, Slutsky J, Grimshaw J, Deshpande AM. Standardized reporting of clinical practice guidelines: a proposal from the Conference on Guideline Standardization. Ann Intern Med 2003;139:493-498. MÓDULO 1: HEPATITE AUTOIMUNE Coordenadores: Eduardo Luiz Rachid Cançado e Gilda Porta Tópico I. Formas de apresentação e quadro clínico Andreia Silva Evangelista (SP) A hepatite autoimune (HAI) é doença hepática crônica caracterizada por hepatite de interface associada com hipergamaglobulinemia e reatividade de autoanticorpos, sendo, na maioria dos casos, responsiva à terapia com corticoides e imunossupressores. Tipicamente, em 50% dos casos, o paciente pode se apresentar de maneira insidiosa, com fase prodrômica que perdura por semanas ou meses, caracterizada por sintomas inespecíficos como astenia, náuseas, anorexia, desconforto em abdome superior, artralgia, mialgia, rash cutâneo e oligomenorréia. Metade dos pacientes com essa forma de apresentação insidiosa pode apresentar icterícia e, em um terço dos casos, pode haver sinais clínicos de cirrose hepática na apresentação inicial, como ascite, hepatomegalia, esplenomegalia e até mesmo encefalopatia. Em cerca de 30% dos casos, especialmente em meninas jovens, a apresentação se dá de forma aguda, que mimetiza os quadros de hepatite aguda viral. Dessa maneira, o paciente apresenta icterícia, colúria, acolia fecal e eventualmente prurido, porém não apresenta tanto mal-estar geral como aqueles que se apresentam de forma insidiosa. O paciente pode estar assintomático em 15-20% dos casos, sendo detectadas alterações em exames laboratoriais realizados para outros fins, como rastreamento clínico, avaliação de doenças autoimunes concomitantes, como diabetes do tipo 1 e doença tireoidiana ou artrite reumatoide.1,2 Em estudo comparativo com 115 indivíduos brasileiros e 161 pacientes norteamericanos, todos portadores de HAI do tipo 1 (HAI-1, cujos marcadores são o anticorpo antimúsculo liso [AAML] e o anticorpo antinúcleo [AAN]), observou-se que os pacientes brasileiros eram mais jovens que os norte-americanos ao início do quadro clínico e exibiam alterações laboratoriais sugestivas de doença mais grave e maiores níveis de gamaglobulinas. Além disso, observou-se também que esses pacientes apresentavam maior frequência de HLA DR13, quando comparados aos norte-americanos, em que foi notada maior frequência de HLA DR3.3 Em estudo de casuística de 268 pacientes com HAI avaliando a experiência de 20 anos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 4, a forma de apresentação mais comum da HAI foi a aguda (56%). Em 25% da casuística, sinais de hepatopatia crônica estavam presentes inicialmente e 10% eram assintomáticos. Essas diferenças nas formas de apresentação certamente têm explicações regionais, porém deve contribuir a maneira como foi analisado o conjunto manifestações clínicasexames complementares, uma vez que ao se analisar o exame anatomopatológico do fígado, em mais da metade dos pacientes, fibrose avançada é encontrada (F3 ou F4). Ao contrário do que ocorre em adultos, em crianças a doença caracteriza-se por início agudo, com menor período prodrômico e maior incidência de cirrose hepática na apresentação do que os adultos (60-80%).5 Na análise de pacientes brasileiros com HAI-1, a comparação entre grupos divididos por idade (maiores de 18 anos versus menores de 18 anos), verificou-se que as crianças/adolescentes apresentaram maior frequência de forma aguda, presença mais frequente de AAML, menor frequência de doenças autoimunes concomitantes e maior frequência de HLA-DR13. Aqueles com idade maior do que 18 anos apresentavam características clínicas semelhantes aos pacientes norte-americanos quanto à frequência de doenças autoimunes extra-hepáticas e ao perfil de AAN e AAML.3 Em crianças, é frequente a concomitância de achados colangiográficos compatíveis com colangite esclerosante, sendo esses quadros conhecidos como colangite esclerosante autoimune.6 Essa forma certamente existe em adultos, contudo, não está definido que se trata de entidade diferente da HAI ou se faz parte do espectro de uma mesma doença. A frequência de pacientes que apresentam forma de apresentação grave ou fulminante variou de 2-16% em diferentes populações como paquistaneses, britânicos, turcos, norte-americanos, africanos e japoneses. Essas frequências podem estar subestimadas, uma vez que os pacientes com formas agudas graves podem ser erroneamente classificados como criptogênicos, devido ao fato de se apresentarem com fenótipo incompleto ou não clássico. A frequência de insuficiência hepática aguda em pacientes com diagnóstico incerto varia de 16-47%, podendo chegar a 57% no Japão. 7 Trinta a 50% dos pacientes com HAI têm pelo menos uma doença autoimune extra-hepática. As mais comuns são a doença tireoidiana (tireoidite de Hashimoto ou doença de Graves) e artrite reumatoide. Outras doenças autoimunes concomitantes são o diabetes do tipo I, síndrome de Sjögren, polimiosite, deficiência de IgA, trombocitopenia idiopática, urticária, vitiligo, doença de Addison, doença inflamatória intestinal e doença celíaca.1,2 No Brasil, as manifestações extra-hepáticas mais comuns foram poliartrite soronegativa seguida da artrite reumatóide nos pacientes com HAI-1 e tireoidite foi a mais comum nos pacientes com HAI do tipo 2 (HAI-2, cujos marcadores são os anticorpos antimicrossoma de fígado e rim tipo 1 [anti-LKM1] e anticitosol hepático do tipo 1 [anti-CH1].8 Na casuística de 268 pacientes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a tireoidite foi a doença autoimune associada mais comum, seguida da artrite reumatoide.4 Nas crianças, a frequência das manifestações extra-hepáticas tende a ser menor quando comparadas aos adultos, no entanto, não diferem com relação à natureza dessas manifestações.3 Recomendações: 1) A HAI tem como forma de apresentação mais comum a hepatopatia crônica agudizada. Outras formas frequentes são as formas de hepatopatia crônica descompensada ou não ou manifestações gerais inespecíficas. As formas como hepatite aguda confirmada por biópsia hepática, as formas assintomáticas e a insuficiência hepática aguda grave são menos frequentes. (Classe IIa) 2) A doença tem predomínio em mulheres 4:1, em todas as faixas etárias, mas preferencialmente na faixa de 5 a 25 anos de idade. (Classe IIa) 3) A associação com doenças autoimunes ocorre com frequência e as da tireoide são as mais prevalentes. (Classe I) Tópico II. Critérios diagnósticos Elze Maria Gomes de Oliveira (SP) O diagnóstico de HAI é baseado em características clínicas, bioquímicas, histológicas e sorológicas e requer a exclusão de outras causas de doença hepática, como hepatites virais, hemocromatose, deficiência de alfa-1 antitripsina, lesões induzidas por drogas, doença de Wilson, doença hepática gordurosa não alcoólica e alcoólica. 9,10 Os níveis de aminotransferases, que em fase de atividade podem estar bastante elevados, isto é, mais de 10 vezes o limite superior ao da normalidade (LSN); os da fosfatase alcalina em geral são menos de três vezes o LSN enquanto os da gamaglutamil transpeptidase são bastante variados. A hipergamaglobulinemia é uma característica da doença, geralmente policlonal, mas com predomínio da fração IgG. 10,11 A determinação dos autoanticorpos é muito importante para o diagnóstico e caracterização das doenças autoimunes do fígado. Na maioria das vezes não são órgãoespecíficos e sua expressão pode variar durante o curso da doença, podendo ainda estar presente em outras doenças hepáticas infecciosas, em doenças reumatológicas, ou mesmo ausentes em 10% dos casos. 9,12 Autoanticorpos AAN, AAML e anti-LKM1, constituem os marcadores clássicos para diagnóstico e classificação da HAI. A técnica apropriada para detectá-los é a imunofluorescência indireta (IFI). O substrato antigênico utilizado são cortes não fixados de rim, fígado e estômago de roedores.13 O título de autoanticorpos em adultos não se correlaciona com gravidade da doença, evolução clínica e resposta ao tratamento. Na população pediátrica (menores de 18 anos), são marcadores úteis de atividade de doença, e podem ser utilizados para monitorar resposta ao tratamento.1,14 Pelos critérios internacionais, títulos de autoanticorpos a partir de 1:40 tem valor diagnóstico em adultos, enquanto em crianças títulos de 1:20 para AAN e AAML, e 1:10 para anti-LKM1 são relevantes.15 Os padrões de AAN mais frequentes na HAI são o homogêneo e o pontilhado fino.9,11,13,16 Outros padrões como o nucleolar, centromérico, o de pontos nucleares isolados e o envelope nuclear não podem ser considerados como marcadores da HAI. O AAML caracteriza, isoladamente ou em associação ao AAN, a HAI tipo 1 (HAI-1) e pode negativar com o tratamento. 31,14 É classificado em padrões, de acordo com as estruturas fluorescentes: vascular (AAML-V), glomerular (AAML-G, vasos e glomérulos) e tubular (AAML-T, vasos, glomérulos e fibrilas tubulares). Os padrões AAML-G e principalmente o AAML-T são os mais relacionados com a HAI, enquanto o padrão AAML-V é encontrado com frequência em hepatites virais.17 A especificidade para antígenos presentes nos microfilamentos (actina filamentosa, polimerizada) é uma marca do AAML da HAI, mas não é patognomônica. 18 A falta de padronização de técnicas que não a IFI limita seu uso na prática clínica.11,13 A faixa de idade dos portadores de HAI com esses marcadores é variável, mas geralmente os que têm reatividade para o AAML são mais jovens do que os têm reatividade para o AAN. Aqueles com AAML com especificidade para antígenos dos microfilamentos têm como marcadores genéticos de suscetibilidade o HLA DR13 e DR3 em países sul-americanos e DR3 e DR4 em países do oeste europeu e nos Estados Unidos da América. O anticorpo anti-LKM1 caracteriza a HAI tipo 2 (HAI-2). 19,20 Reage com grande especificidade contra o citocromo monoxigenase CYP2D6 reconhecido como seu autoantígeno alvo. Pode estar presente em 5% dos pacientes com hepatite C.21 Portadores de HAI-2 são mais jovens que os de HAI-1, têm níveis menores de gamaglobulinas e têm como HLA de maior suscetibilidade o DR7 e DQ2.22,23 Podem apresentar formas mais graves de apresentação como a insuficiência hepática aguda grave. Outros autoanticorpos podem ser úteis para caracterizar pacientes que não possuem os anticorpos convencionais. O anticorpo antiantígeno hepático solúvel (antiSLA), cujo antígeno alvo é o-fosfoserina (Sep)-tRNA:selenocisteina (Sec)-tRNA sintase, cuja denominação pela comissão de nomenclatura da organização do genoma humano é SepSecS. 24,25 O anti-SLA (anti-SepSecS) é marcador altamente específico da HAI, porém com sensibilidade limitada.26,27 É detectado mais frequentemente em associação ao AAN (alta associação com o anti-Ro 52) e AAML, contudo pode estar reativo isoladamente e sua presença está associada à maior chance de recaída após suspensão do tratamento e com o antígeno HLA DR3, sendo descrito por alguns autores como marcador de formas graves de HAI. 26,27 O anticitosol hepático tipo 1 (anti-LC1) é o segundo marcador da HAI-2 e é detectado em 24 a 32% dos pacientes com anti-LKM1 e raramente de forma isolada. Ocorre principalmente em pacientes jovens com inflamação hepática mais grave e rápida progressão para cirrose. 28,29 O anticorpo anticitoplasma de neutrófilo, padrão perinuclear atípico (p-ANCA) e o anticorpo antirreceptor de asialoglicoproteína são pouco utilizados na prática clínica pela menor especificidade como marcadores diagnósticos da doença. 27,30 Para melhor definir o diagnóstico da doença, o grupo internacional de HAI (GIHAI) estabeleceu sistema de escore diagnóstico que permitiu caracterizar a HAI como provável ou definitiva. 10 (Tabela 1) Em 2008 sistema de escore simplificado foi proposto, de fácil aplicabilidade clínica, com apenas quatro variáveis independentes: reatividade de autoanticorpos, níveis de IgG, histologia e ausência de marcadores virais (Tabela 2) 31 Os dois critérios têm alta sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de HAI, com maior sensibilidade descrita para os critérios originais. Cada um pode ter valor em determinadas situações clínicas, demonstrando papéis complementares. Os critérios originais têm maior valor diagnóstico em pacientes com características atípicas de HAI, especialmente em pacientes com cirrose criptogênica ou hepatite crônica com autoanticorpos negativos. Os critérios simplificados ajudam a excluir o diagnóstico de HAI em pacientes com doença hepática crônica de etiologia distinta, que têm uma doença autoimune associada.32 Contudo, não pontua a resposta terapêutica favorável nem a recidiva após a suspensão do tratamento. Da mesma forma não há pontuação negativa para a presença de características de outras doenças hepáticas. A biópsia hepática deve ser realizada, sempre que possível, para estabelecer o diagnóstico, orientar a decisão do tratamento, afastar outra etiologia, além de fornecer informação prognóstica, pois 30 a 50% dos pacientes têm cirrose na apresentação. 9,10 A hepatite de interface, o infiltrado inflamatório rico em plasmócitos e as rosetas hepatocitárias são achados típicos, mas não são patognomônicos de HAI. A inflamação lobular, necrose em ponte e necrose multiacinar podem estar presentes. Os granulomas raramente ocorrem e os ductos biliares são geralmente poupados. A biópsia hepática é requisito para diagnóstico nas HAI e oportunidade para estabelecer a intensidade da fibrose e inflamação na apresentação. Testes não invasivos de fibrose poderiam ser aplicados no momento do diagnóstico ou para avaliar a eficácia do tratamento na prevenção ou reversão da fibrose, porém na HAI testes que avaliam inflamação são mais importantes do que os que avaliam a fibrose. Esses métodos foram pouco estudados nas HAI, e seu papel no diagnóstico e no acompanhamento dessa doença é incerto, em decorrência da intensa atividade inflamatória, o que limita o seu uso na prática clínica diária. A HAI pode ter um início agudo, mimetizando hepatite viral aguda ou tóxica, ou ainda ter apresentação fulminante. Pacientes com essas formas de apresentação, sobretudo a fulminante, podem ter títulos baixos ou ausentes de autoanticorpos, níveis normais de IgG, além de histologia atípica, com necrose centrolobular em zona 3, presença de perivenulite central (infiltrado inflamatório com linfócitos e/ou plasmócitos em torno das veias centrais), infiltrado de plasmócitos, necrose hepática maciça ou submaciça, além de agregados linfoides. 7,33,34 Os sistemas de escore diagnóstico podem auxiliar o diagnóstico em casos difíceis, mas deve-se ter em mente que eles foram elaborados para diagnóstico de formas clássicas da doença. Teste terapêutico com corticosteroides por período curto (≤ duas semanas) pode ser aplicado para melhor caracterização desses pacientes. Recomendações 1) O diagnóstico de HAI deve ser feito em paciente que curse com níveis elevados de aminotransferases e de gamaglobulinas, com reatividade para um dos autoanticorpos específicos para a doença (anticorpo antimúsculo liso, antímicrossomal de fígado e rim tipo 1, anticitosol hepático tipo 1 ou antiantígeno hepático solúvel), com alterações histológicas características. (Classe I) 2) Outras etiologias para a doença hepática como hepatites virais, hemocromatose, deficiência de alfa-1 antitripsina, lesões induzidas por drogas, doença de Wilson, doença hepática gordurosa não alcoólica e alcoólica, devem ser afastadas. (Classe I) 3) Os dois sistemas de escore disponíveis são úteis para diagnosticar formas clássicas da doença. Os casos menos típicos são mais bem avaliados pelos critérios diagnósticos expandidos de 1999. (Classe IIa) 4) Biópsia hepática é importante para o diagnóstico e avaliação prognóstica, devendo ser realizada sempre que possível. Contudo é possível diagnosticar as formas clássicas da HAI sem realizá-la. (Classe IIa) 5) A pesquisa dos autoanticorpos deve ser realizada em cortes de estômago, fígado e rato utilizando a imunofluorescência, reservando a técnica de ELISA para anticorpos que não são pesquisados pela primeira técnica. (Classe I) 6) O anticorpo antinúcleo deve ser considerado marcador da hepatite autoimune quando estiver presente nos padrões homogêneo e pontilhado enquanto o anticorpo antimúsculo liso deve ser considerado nos padrões antimúsculo liso tubular e glomerular. (Classe IIb) 7) A pesquisa de HLA-DR não é necessária na rotina diagnóstica, embora a suscetibilidade genética esteja relacionada com os autoanticorpos marcadores: AAML/AAA com DR13, anti-LKM1 com DR7, anti-SLA (anti-SepSecS) com DR3. (Classe IIb) 8) Pacientes com anticorpos AAML/AAA e anti-SLA cursam com quadro clínico e laboratorial semelhante, enquanto pacientes com anti-LKM1 são mais jovens e evoluem mais frequentemente com insuficiência hepática aguda grave. (Classe I) Tópico III. Manejo inicial no adulto e abordagem do paciente sem resposta terapêutica Eduardo Luiz Rachid Cançado (SP) Debora Raquel Benedita Terrabuio (SP) O tratamento inicial da HAI deve ser feito com duas drogas, corticosteroide associado a um imunossupressor. No caso do corticosteroide usa-se a prednisona ou a prednisolona indiferentemente. Teoricamente a prednisolona poderia ter alguma superioridade à prednisona, pois a esta teria de ser metabolizada na primeira para ter efeito terapêutico. Contudo, essa superioridade não foi demonstrada na prática. O imunossupressor a ser administrado, desde os trabalhos originais da década de setenta, tem sido a azatioprina. No tratamento combinado a dose inicial da prednisona é de 30 mg/dia e da azatioprina de 50 mg/dia. Embora as diretrizes da Sociedade NorteAmericana para estudo das doenças hepáticas propõem a redução semanal da dose do corticosteroide, a redução em nosso meio é feita mais lentamente, geralmente mensal. 9 Se houver diminuição importante dos níveis das aminotransferases ao fim do primeiro mês, reduz-se a dose do corticosteroide de 30mg para 20 mg e mantém-se a dose da azatioprina em 50 mg/dia. Após o segundo mês de tratamento avalia-se novamente a redução da dose de prednisona/prednisolona para 15 mg/dia. A partir do momento em que os níveis das aminotransferases deixarem de cair ou mesmo voltarem a se elevar, ou para se manterem normais há necessidade de doses mais altas de corticosteroides, elevase a dose de azatioprina. Em geral, ao final do sexto mês de tratamento espera-se que as doses de manutenção devam ser de 10 mg de prednisona/prednisolona e 75-100mg de azatioprina, mas esses valores são muito variáveis a depender dos marcadores sorológicos e imunogenéticos da HAI, estadiamento da doença, tolerância aos medicamentos. Considera-se aceitável para manter as enzimas normais valores de até 15mg/dia e 150 mg/dia (2 mg/kg/dia) de prednisona e de azatioprina respectivamente no tratamento combinado.35 No caso do tratamento em monoterapia, o que raramente é realizado durante todo o tempo, inicia-se com 60 mg/dia de prednisona/prednisolona, com redução após 15 dias para 40 mg/dia e, ao final do primeiro mês, para 30 mg/dia. Ao final do segundo mês deve-se reduzir a dose para 20mg/dia e, provavelmente, deve ser essa a dose de manutenção. Caso as enzimas continuem normais pode-se tentar dose menor, como 1015mg/dia, mas geralmente essa dose é insuficiente para levar a remissão histológica. O uso da budesonida, corticoide de primeira passagem pelo fígado, é atrativo em razão de reduzir os efeitos colaterais. Em estudo piloto da Mayo Clinic a utilização dessa medicação não redundou em resultados satisfatórios. 36 Por outro lado, a associação de azatioprina e budesonida, em estudo multicêntrico e randomizado, resultou em resultados terapêuticos superiores e os efeitos colaterais foram menores que os da associação de azatioprina e prednisolona, em pacientes virgens de tratamento e não cirróticos. 37 Nesse estudo a dose da prednisolona foi reduzida semanalmente como é a proposta das diretrizes da Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fígado, enquanto a dose de 6-9 mg de budesonida foi mantida por período muito prolongado. A budesonida está contraindicada em pacientes cirróticos em razão das alterações dos altos níveis séricos em razão da diminuição do metabolismo hepático e em pacientes com hipertensão portal em razão da maior incidência de trombose de veia porta. Ela deve ser evitada também em pacientes com manifestações (doenças) autoimunes extra-hepáticas que melhoram com o corticoide, pois pode haver piora dos sintomas. Como se trata de medicação muito mais cara que a prednisona/prednisolona, não se justifica a troca de corticoide baseando-se nesse estudo que obteve níveis surpreendentemente baixos (60% versus 39%) de resposta terapêutica e com viés desfavorável ao grupo prednisona em vários parâmetros, embora os pacientes tenham sido randomizados. A mensuração dos níveis dos metabólitos da azatioprina pode ser de valor em determinadas situações clínicas, pois as informações obtidas pela dosagem dos metabólitos favorecem o melhor controle do paciente. Além de melhor adequar a dose do imunossupressor, identifica a má aderência dos pacientes ao tratamento. Como usualmente não existe disponível essa metodologia, a dosagem de metabólitos acaba tendo papel secundário no controle terapêutico da HAI. Se o paciente obtiver fácil controle terapêutico com doses habituais de azatioprina, 50-100 mg/dia, também esse controle deixa de ter importância prática. No entanto, nos pacientes com controle bioquímico difícil, que requeiram doses mais elevadas da azatioprina, a dosagem dos metabólitos torna-se ferramenta muito útil para definir os próximos passos no tratamento. Dois metabólitos são usualmente mensurados na prática clínica: a 6-tioguanina e a 6metilmercaptopurina. A 6-tioguanina é o metabólito responsável pelo efeito terapêutico e também pela mielossupressão. Valores considerados terapêuticos, com efeito mielossupressor baixo, estão na faixa de 235 a 450 pmol/8 x 108 hemácias, enquanto valores hepatotóxicos da 6-metilmercaptopurina encontram-se acima de 5.700 pmol/8 x 108 hemácias. 38 Se o paciente estiver em controle clínico adequado, com níveis dentro da normalidade das aminotransferases e sem efeitos colaterais, não se deve modificar a terapêutica em razão dos valores encontrados para esses metabólitos. No entanto, se não houver resposta adequada, o aumento progressivo da imunossupressão pode incorrer em erros facilmente evitáveis com a dosagem dos metabólitos. Se os níveis de 6-tioguanina ou de 6-metilmercaptopurina estiverem muito elevados, continuar a aumentar a dose da azatioprina pode levar a maior mielossupressão ou a hepatotoxicidade respectivamente. Ao contrário, se o nível de tioguanina não estiver adequado e os de 6metilmercaptopurina elevados, a melhor conduta seria administrar alopurinol na dose de 100 mg/dia e reduzir a dose da azatioprina a 25-50% da dose que estava sendo administrada.39 Essa manobra desvia o metabolismo da azatioprina para o metabólito 6tioguanina enquanto os níveis de 6-metilmercaptopurina reduzem para faixa adequada não hepatotóxica. Algumas considerações devem ser feitas ao se medir os níveis dos metabólitos da azatioprina. Esses valores de referência foram obtidos a partir de estudos de tratamento da doença inflamatória intestinal, não se sabendo se podem ser extrapolados para a HAI. Outra crítica é que os resultados são obtidos de acordo com a concentração dos metabólitos em hemácias e não em linfócitos que seria o mais interessante, já que são as células-alvo da terapêutica. Ademais há outros metabólitos que podem ter efeito imunossupressor e que não são habitualmente mensurados. Contudo, há publicações favoráveis a essa prática na HAI. 40 O objetivo inicial da terapêutica é melhorar os sintomas clínicos, o que geralmente é obtido rapidamente nos primeiros dois meses de tratamento, porém o critério inicial mais adequado é acompanhar a queda dos níveis de aminotransferases. Automaticamente haverá redução dos níveis de bilirrubinas e de gamaglobulinas e melhora dos parâmetros de coagulação e dos níveis de albumina. O primeiro grande objetivo a ser atingido é a normalização dos níveis de aminotransferases e esse deve ser o guia para melhor adequar o esquema imunossupressor. 10 O tempo mínimo de tratamento da HAI é bastante variável e não deve ser por menos de 24 meses. Geralmente são necessários seis meses para se obter completa normalização dos valores das aminotransferases e atingir a dose de manutenção das medicações. Por outro lado, o tempo exigido para o controle histológico é variável de acordo com os diferentes Serviços. Como a atividade histológica é particularmente importante na HAI, as alterações inflamatórias não regridem simultaneamente com a normalização bioquímica. Por esse motivo não se justifica realizar a biópsia hepática precocemente e foi sugerido que isso seja feito após 18 meses da normalização das aminotransferases. Se a biópsia for realizada muito rapidamente, pode ser que o processo inflamatório, ainda presente, tenha potencial de regressão caso se postergasse a avaliação histológica. Ao se fazer a biópsia e ainda existir atividade de interface, a conduta é de aumentar a dose das medicações. Se o paciente estiver em remissão histológica, há argumentação teórica para se tentar uma abordagem alternativa ao tratamento que vinha sendo realizado e a suspensão do tratamento é uma delas. Na verdade essa decisão deve ser discutida com o paciente explicando-lhe os altos índices de recidiva, cerca de 70-80%. A reatividade para o antiSLA (anti-SepSecS) indica maior risco de recidiva pela experiência da maioria dos centros de estudos da HAI26 e isso deve ser ponderado com o paciente também. O que inviabiliza qualquer tentativa de suspensão do tratamento é a impossibilidade do paciente fazer controles frequentes, pelo menos uma vez ao mês nos primeiros seis meses, já que aproximadamente 75% das recidivas ocorrem nesse período. 4 Em geral a recorrência da doença não é de forma abrupta, com valores elevados e icterícia no primeiro mês. Vem anunciada pelo aumento progressivo dos valores das aminotransferases e se o paciente faz os controles periódicos e frequentes no primeiro ano, a recidiva é diagnosticada precocemente. Outra informação que deve ser dada ao paciente é que se houver recidiva, tudo será repetido como anteriormente. Deve ser atingida a remissão bioquímica e depois de 18 meses, se esse for o critério do Serviço, será necessária a realização de nova biópsia. Não se deve considerar que, pelo fato da remissão histológica ter sido atingida com determinada dose de prednisona e de azatioprina, ocorrerá remissão histológica novamente, pois isso nem sempre é observado. 4 Há pelo menos quatro alternativas a seguir após se obter a remissão histológica: a) continuar com o mesmo esquema de imunossupressão, pois o maior objetivo máximo do tratamento da HAI foi atingido; b) suspender o tratamento, apostando na chance, ainda que pequena, do fator precipitante da doença ter sido controlado pelo paciente, o que ocorre em cerca de 20-30%.41 Nos casos de HAI induzida por drogas, a conduta deve ser sempre de se tentar a suspensão, pois a recidiva praticamente inexiste, pois o fator precipitante foi retirado. c) Manter a azatioprina e tentar a suspensão do corticosteroide. Nessa situação, é prudente acompanhar o paciente para avaliar a persistência da remissão bioquímica. O ideal seria repetir a biópsia 18 meses depois (critério que pode ser variável de acordo com os diversos centros de estudos da doença), pois o fato de permanecer em remissão bioquímica não quer dizer que a remissão histológica ainda permaneça. Para se ter garantia maior de controle da doença, está justificado, em caso do paciente não apresentar efeitos colaterais importantes da azatioprina, aumentar a dose do inibidor das tiopurinas, quando o corticoide for suspenso, até atingir 2 mg/kg/dia. d) Introduzir drogas alternativas, como a cloroquina. O estudo piloto conduzido em 14 pacientes sugere que essa possa ser uma alternativa. 42 Para ser definida a ocorrência de recidiva adotamos o critério do GIHAI, que é o aumento de duas vezes o LSN das aminotransferases.10 O que não está claramente definido é qual a dose das medicações a ser administrada após a recidiva. Como geralmente os níveis de aminotransferases na recidiva não são tão elevados como os da época do diagnóstico, não há necessidade de se utilizar doses como as do início do tratamento. Se a elevação das aminotransferases ocorrer em ritmo lento, também não há necessidade de iniciar o re-tratamento imediatamente. Com certa frequência ocorre elevação dos valores de aminotransferases, com critério de recidiva estabelecido, mas os níveis não se elevam de forma tão pronunciada. Não é incomum que, ao acompanhar mais frequentemente o paciente, constate-se a queda e até normalização dos níveis de aminotransferases. Dessa forma, o fato de se diagnosticar recidiva da doença não deve ser motivo para retorno imediato do tratamento, mas isso é assunto muito pouco abordado nas diretrizes sobre a HAI. Em razão desse fato, pode ser que o mais correto para se diagnosticar recidiva e indicar o reinício do tratamento da HAI seja adotar valores mais elevados dos níveis das aminotransferases, de três até cinco vezes o valor superior da normalidade. Durante a gravidez e durante o aleitamento, não há necessidade de mudar o tratamento. Há trabalhos que mostram que os riscos de efeitos teratogênicos da azatioprina na criança são pequenos.43 No entanto, observa-se atrofia tímica e linfopenia no recém-nascido das pacientes que a mantêm. Em razão dos altos níveis de estrógeno na gravidez, observa-se desvio de citocinas para um perfil que favorece a diferenciação e proliferação de linfócitos T citotóxicos no fígado que tem um padrão anti-inflamatório e consequentemente a atividade da doença pode até reduzir. Aliado ao fato da azatioprina ser classificada como categoria D pela FDA norte americana não está incorreto suspendêla tão logo seja constatada a gravidez. A conduta seguida pelo Serviço de Hepatologia do Hospital das Clínicas Faculdade de Medicina da USP é de suspender o imunossupressor e manter a dose da prednisona mais elevada (15-20 mg) ao longo de toda a gravidez. 44 Deve-se ter em mente que com a queda dos níveis de estrógeno ao final da gravidez e no puerpério é observada recrudescência frequente da doença. A decisão por parto normal ou por cesariana depende das condições clínicas da paciente. Sempre será melhor o parto normal em pacientes com doença hepática sem alteração estrutural importante ou naquelas com cirrose sem evidências de hipertensão portal. Na presença de cirrose com hipertensão portal, como para qualquer cirurgia abdominal, há maior risco de hemorragia e de desenvolvimento de ascite no pósoperatório. Todavia, nas pacientes com hipertensão portal, especialmente com varizes de esôfago há maior risco de hemorragia digestiva em virtude da maior volemia. Nessa situação o correto seria erradicar as varizes de esôfago antes da gravidez. Se isso não for possível, opta-se por cesariana, pelo maior risco de ruptura de varizes durante a gestação.45 Como foi discutido acima, o padrão-ouro no tratamento da HAI é associação de azatioprina e prednisona, que resulta, em literatura, em resposta completa (remissão bioquímica e histológica) em cerca de 70-80% dos casos em três anos. Dados nacionais sugerem que essa resposta pode ser mais baixa, próxima de 35% em cinco anos.4 Nos casos de não resposta ou refratariedade (7-9% dos casos) e de resposta incompleta (1013%), deve-se considerar o uso de tratamentos alternativos, entres eles, os inibidores de calcineurina, micofenolato mofetil, ácido ursodesoxicólico, agentes anti-TNF alfa, rituximabe e outros. Esses medicamentos também podem ser indicados naqueles doentes que apresentam efeitos colaterais (em cerca de 10-15%) com necessidade de suspensão do tratamento convencional.9,11,46-50 O uso dessas medicações foi estimulado a partir da experiência com elas em transplante hepático. Foram utilizadas em estudos clínicos pequenos, de centro único e não randomizados, como séries de casos ou relatos de casos em que seu uso foi motivado por doenças autoimunes extra-hepáticas associadas. Além das dificuldades supramencionadas, há provavelmente viés de publicação, com sub-registro de resultados negativos, bem como falha nas informações sobre dosagem, segurança, custos, estratégias de monitorização e ausência de controle histológico para avaliar resposta completa. A escassez de grandes estudos randomizados deriva, em parte, da pouca frequência da doença, bem como da ausência de rede internacional de investigação colaborativa e restrições orçamentais ao uso dessas drogas. A administração cautelosa e criteriosa dessas medicações não padronizadas é uma prática clínica frequente diante da inexistência de grandes ensaios clínicos randomizados, comparando sua eficácia com a do tratamento imunossupressor habitual.9,11,46-50 Embora os inibidores de calcineurina sejam eficazes para prevenção da rejeição após o transplante hepático, aparentemente são menos eficazes no tratamento de longo prazo de doenças autoimunes complexas como a HAI. Ciclosporina e tacrolimo foram utilizados para tratamento de resgate de curto prazo em casos refratários ao uso de corticoide. Existem vários relatos sobre uso de ciclosporina na HAI, com mais de 100 pacientes nos últimos 26 anos, com melhora das enzimas hepáticas em 93% dos casos e 7% de não resposta ou intolerância.9,11,46-50 Em estudo com 19 pacientes adultos (nove virgens de tratamento) na dose de 2-5mg/kg/dia, com nível sérico de 12 horas após última tomada entre 100-300 ng/ml, por 26 semanas, houve redução significativa das transaminases, melhora histológica e boa tolerância.51 O tacrolimo é utilizado no tratamento da HAI desde 1995, na dose que variou de 0,5-3 mg/d, com as menores doses utilizadas em pacientes cirróticos e nível sérico abaixo de 6 ng/ml. Em experiência com cerca de 40 pacientes houve melhora das enzimas hepáticas em 98% e intolerância ou ausência de resposta em 2%.11,46-50 Os efeitos colaterais das duas drogas são semelhantes. No entanto, diabetes, neurotoxicidade, nefrotoxicidade, diarreia, prurido e alopecia são mais comuns com o tacrolimo e hipertensão arterial, dislipidemia, hirsutismo e hipertrofia gengival com a ciclosporina.46 O micofenolato de mofetil foi utilizado em pacientes virgens de tratamento, intolerantes a azatioprina e não respondedores ao tratamento convencional, com dose que variou de 0,5-3 g/dia (na maioria dos estudos 2 g/d). A resposta terapêutica parece ser melhor no grupo intolerante a azatioprina que na doença refratária (58% vs. 12% de melhora bioquímica). Ao contrário da azatioprina, sua via de metabolismo independe da enzima tiopurina metiltransferase. Em pacientes virgens de tratamento, o uso do micofenolato por 92 meses promoveu normalização das enzimas hepáticas e dos níveis de gamaglobulina em 88% dentro de três meses, com 12% de resposta parcial e possibilidade de retirada do corticoide em 58% (geralmente dentro de oito meses). 52 A frequência de efeitos colaterais variou de 3 a 33%, sendo os mais frequentes os gastrintestinais (náuseas, diarreia e dor abdominal). 2,46,48-50,52 Embora eficaz e seguro, seu uso como tratamento de primeira linha ainda não pode ser recomendado pela ausência de controle histológico na maioria dos estudos, pela necessidade de suspensão por efeito colateral em 3-13% e por seu maior custo quando comparado com azatioprina (no Brasil 3,7 vezes maior). Relatos iniciais revelaram sucesso do rituximabe (anticorpo anti-CD20) no tratamento tanto da HAI como das doenças autoimunes extra-hepáticas associadas a ela, tais como púrpura trombocitopênica idiopática, glomerulonefrite crioglobulinêmica e anemia hemolítica autoimune. O estudo com maior casuística foi composto por três pacientes com intolerância ao tratamento habitual e três com HAI refratária. Os pacientes receberam 1g de rituximabe no D1 e 14 dias após e mantidos com dose estável de azatioprina e prednisona três meses antes e três meses após a infusão, sendo que após esse período era feita a redução da dose da prednisona quando possível. O tempo de seguimento foi de 72 meses, com 24 semanas houve queda significativa dos níveis de aminotransferases e IgG, com possibilidades de redução da dose de prednisona. Na semana 48, quatro de seis pacientes foram submetidos à biópsia hepática e todos estavam em remissão histológica. A droga foi bem tolerada, sem efeitos colaterais significativos.53 Os agentes antifator de necrose tumoral alfa: infliximabe, etanercept e adalimumabe são medicações, com ação anti-TNF alfa, comumente usadas para tratamento de doenças autoimunes como artrite reumatoide, psoríase, doença inflamatória intestinal. Weiler-Normann et al54 relataram a primeira série de casos de 11 pacientes com HAI refratária, sete com cirrose hepática, com falha terapêutica aos tratamentos alternativos, e que foram tratados com infliximabe 5mg/kg nas semanas 0, 2 e 6 e a cada 4-8 semanas a depender da resposta terapêutica. Após três infusões da medicação, todos os pacientes apresentaram diminuição das enzimas hepáticas e dos níveis de IgG, sendo que oito pacientes normalizaram os níveis de aminotransferases. Dos cinco pacientes submetidos à biópsia hepática para controle histológico, todos apresentaram diminuição da atividade inflamatória. Embora com resultados promissores, a medicação deve ser usada com cautela, já que há descrições de HAI induzida pela droga em pacientes que fizeram uso de infliximabe para tratamento de doenças autoimunes extra-hepáticas. Além disso, seu uso associa-se a risco de infecções graves, como foi também demonstrado na série de Weiler-Normann et al.,54 em que sete de 11 pacientes apresentaram infecções bacterianas ou virais graves, o que limita seu uso na doença hepática mais avançada. Alguns autores recomendam seu uso no tratamento da HAI refratária apenas após falha terapêutica dos inibidores de calcineurina e micofenolato de mofetil. A respeito do etanercept e adalimumabe, há relatos de caso esporádicos sobre seu uso para tratamento de doenças autoimunes extra-hepáticas em portadores de HAI com melhora das aminotransferases e possibilidade de redução de dose do corticoide, entretanto essas drogas ainda não podem ser consideradas como opção terapêutica na HAI. O ácido ursodesoxicólico (AUDC) tem múltiplos possíveis mecanismos de ação, apresentando como resultado final, melhora da função mitocondrial e da resposta imune e diminuição da lesão hepatocelular. Seus efeitos motivaram seu uso na HAI, particularmente em dois estudos de maior importância. Numa casuística japonesa de oito pacientes, sabidamente com forma menos agressiva de doença hepática, o uso do AUDC 600mg/dia por dois anos resultou em melhora clínica, bioquímica e histológica, sem progressão de fibrose. 55 Já em estudo americano, com perfil de doença mais parecido com o brasileiro, o uso de AUDC 13-15mg/kg/d por seis meses em 37 pacientes não trouxe benefícios laboratoriais, histológicos e nem a possibilidade de redução da dose do corticoide56 Em casuística nacional,4 a associação de AUDC foi feita ao esquema imunossupressor habitual nos pacientes que persistiram com aumento dos níveis de aminotransferases acima do valor normal, com aumento de gamaglutamil transpeptidase acima de cinco vezes o LSN ou da fosfatase alcalina acima de duas vezes o LSN (25% da casuística total). O uso da medicação levou a normalização laboratorial em 67% dos que a usaram e remissão histológica em 10%, numa população de difícil resposta. Tópico IV. Considerações do tratamento da HAI em crianças Gilda Porta (SP) Pacientes com contagem de plaquetas maior do que 50.000/mm3 e de leucócitos maior do que 3.000/mm3 devem ser tratados com terapia dupla à base de corticoide, prednisona (prednisolona) na dose de 1,5-2 mg/kg/dia (dose máxima de 60mg) e azatioprina na dose de 1-2 mg/kg/dia. A dose de prednisona (prednisolona) é reduzida a cada 4-6 semanas, sendo 50% no primeiro retorno e depois 20-30% a cada retorno (4-8 semanas). A dose de manutenção é 2,5–5 mg ao dia. Deve-se manter sempre azatioprina, a não ser que sejam observados efeitos colaterais (leucopenia, trombocitopenia). A dose de azatioprina poderá ser aumentada dependendo da evolução clínica/laboratorial. Em crianças com contagem de plaquetas menor do que 50.000/mm3 e de leucócitos menor do que 3.000/mm3, inicia-se prednisona (prednisolona) na dose de 1,5 2,0 mg/kg/dia. A dose é reduzida conforme a descrição anterior, até normalização das aminotransferases e gamaglobulinas ou IgG.57 Na infância, o uso de budesonida não está bem definido. Há apenas um estudo randomizado na infância, com pequena casuística, comparando budesonida versus prednisona. Os critérios para a utilização incluíram pacientes sem cirrose hepática, sem descompensação hepática e ausência de outras doenças autoimunes extra-hepáticas. A budesonida não foi superior à prednisona na indução e na manutenção da remissão, mas acarretou menos efeitos colaterais. Dessa forma os resultados foram insuficientes para se recomendar o uso de budesonida na infância, associada à experiência ainda pequena, ao custo alto e à forma pouco prática de administração (três vezes ao dia). 58 A experiência com outros imunossupressores na infância ainda é limitada e, os estudos não foram controlados e randomizados. A utilização da ciclosporina induz remissão clínica e bioquímica em pacientes com HAI sem plaquetopenia, cirrose hepática e boa função hepática.59 As desvantagens foram os efeitos adversos como toxicidade renal, hirsutismo, tumores, hiperlipidemia, hipertensão arterial. O tacrolimo tem eficácia limitada em crianças e os dados são insuficientes para avaliar se o paciente atinge remissão completa.60 O micofenolato mofetil pode ser usado nos casos de intolerância à azatioprina em associação com prednisona.61 Anticorpos anti-CD20 (rituximabe) podem ser utilizados como terapia de resgate em pacientes refratários ao tratamento convencional. Há apenas um trabalho relatando dois pacientes pediátricos com HAI refratária ao tratamento usando anti-CD20 mostrando remissão da doença. 62 Os critérios utilizados para avaliar a resposta terapêutica devem ser clínicos, laboratoriais e histológicos. Clinicamente o desaparecimento dos sintomas gerais e regressão das manifestações de hepatite devem ser obtidos. Do ponto de vista laboratorial a normalização das aminotransferases deve ser obtida, assim como das gamaglobulinas ou da IgG. Histologicamente a atividade inflamatória deve ser mínima ou ausente.63 O tempo mínimo de tratamento é de 24 meses. Recomenda-se sempre fazer biópsia hepática antes de suspender o tratamento nos pacientes com HAI-1. Nos pacientes com HAI-2, mesmo com remissão histológica recomenda-se não suspender o tratamento, pois o índice de recaída é muito elevado. Recomendações: 1) Sempre deve ser feita opção para tratamento inicial com prednisona e azatioprina nas doses de 30mg/dia e 50mg/dia respectivamente, respeitando as contraindicações específicas para cada uma dessas medicações. (Classe I) 2) Redução mensal da dose de prednisona e elevação da dose de azatioprina de acordo com a resposta terapêutica e com a tolerância da medicação até atingir a normalização das aminotransferases. No sistema combinado, a dose máxima de manutenção da prednisona não deve ultrapassar 15mg/dia e da azatioprina 2mg/kg/dia. (Classe IIb) 3) Se houver contraindicação à azatioprina, iniciar com prednisona na dose de 60mg/dia, com redução para 40 mg/dia em 15 dias e para 30mg/dia ao final do primeiro mês. Posteriormente realizar controles mensais para avaliar redução do corticoide, com dose de manutenção não superior a 20 mg/dia. (Classe IIb) 4) Embora haja estudo randomizado com budesonida sugerindo melhor efeito terapêutico do que a prednisolona, não sugerimos a utilização daquela medicação no tratamento da hepatite autoimune. (Classe IIb) 5) Seria recomendável a mensuração dos níveis de metabólitos da azatioprina em pacientes com doses elevadas dessa medicação (1,5 a 2 mg/kg/dia) sem normalização dos níveis de aminotransferases, para orientação mais adequada do esquema de imunossupressão. (Classe IIa) 6) O objetivo do tratamento é induzir a remissão dos sintomas, normalização dos níveis de aminotransferases e remissão histológica (atividade de interface 0 ou 1). (Classe I) 7) A duração do tratamento nunca deveria ser por menos de 24 meses. Dessa forma deve ser realizada a biópsia hepática pelo menos após 18 meses de normalização dos níveis de aminotransferases. (Classe I) 8) Em caso de remissão histológica, deve ser oferecida ao paciente, com esclarecimento, a opção de suspender o tratamento ou de mantê-lo por tempo indefinido nas mesmas doses em que foi atingida a remissão histológica ou entrar em protocolos de monoterapia com azatioprina na dose de até 2 mg/kg/dia. (Classe I) 9) Só deveria ser tentada a suspensão da medicação se houver condições de controle mensal nos primeiros seis meses e bimensal nos seis meses posteriores, para documentação de recidiva precoce, pois em 80% dos pacientes ela ocorre dentro de 12 meses. (Classe IIa) 10) Em pacientes com reatividade para o anticorpo anti-SLA, a suspensão do tratamento é questionável, pela alta taxa de recidiva da doença que é caracterizada quando ocorre elevação dos níveis de aminotransferases acima de duas vezes o valor superior da normalidade. Em crianças com reatividade para o anti-LKM1 a suspensão do tratamento está contraindicada. (Classe IIa) 11) Durante a gravidez, se a paciente estiver bem controlada pode ser tentada monoterapia com corticosteroide na dose de até 20 mg/dia. (Classe IIb) 12) O parto normal deve ser indicado a todas pacientes com função hepática normal e sem hipertensão portal documentada pela presença de varizes de esôfago de médio calibre. (Classe IIa) 13) Em caso de varizes de esôfago de médio calibre ou com sinais vermelhos, deve ser realizada cesariana ou ligadura elástica prévia para se tentar parto normal. (Classe IIb) 14) Se o paciente não atingiu a remissão bioquímica e histológica e se houver facilidade de mensurar os metabólitos da azatioprina, pode ser avaliado o uso de alopurinol e redução da dose do inibidor de tiopurinas de acordo com o perfil dos metabólitos encontrado. (Classe IIb) 15) Se o paciente não atingiu a remissão bioquímico e histológica a preferência pela terceira droga recai para um inibidor de calcineurina (ciclosporina ou tacrolimo) e as doses das três medicações devem ser ajustadas até que se defina a dose de cada uma delas nessa situação. (Classe IIa) 16) Entre os inibidores da calcineurina, a preferência inicial recai para a ciclosporina pelo maior número de estudos com essa medicação, mas devem ser respeitadas as contraindicações ao seu uso. (Classe I) 17) Em caso de intolerância/efeitos colaterais ao corticoide, a medicação a ser introduzida seria inibidor de calcineurina em associação ao inibidor de tiopurinas. (Classe IIa) 18) Em caso de intolerância/efeitos colaterais à azatioprina, a medicação a ser introduzida é o micofenolato mofetil/sódico. Antes de processar a troca, considerar a dosagem dos metabólitos se houver disponibilidade. (IIb) 19) O uso de rituximabe (anti-CD20) ou anti-TNF alfa pode ser considerado em casos refratários, após insucesso com tentativas com as drogas mencionadas anteriormente. (Classe IIb) 20) O uso de ácido ursodesoxicólico pode ser considerado se o paciente tiver aumento das enzimas gamaglutamil transpeptidase (5x) e fosfatase alcalina (2x). (Classe IIb) Referências bibliográficas 1. MacFarlane IG. Autoimmune hepatitis: diagnostic criteria, subclassifications, and clinical features. Clin Liver Dis 2002;6:605-21. 2. Thiele DL. Autoimmune hepatitis. Clin Liver Dis 2005;9:635-46. 3. 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COLANGITE ESCLEROSANTE PRIMÁRIA Coordenadores: Antônio Eduardo Benedito Silva (SP) e Gilda Porta (SP) Tópico I: Formas de apresentação, quadro clínico e critérios diagnósticos Luciana Faria (MG) Antônio Eduardo Benedito Silva (SP) A colangite esclerosante primária (CEP) é uma doença hepática colestática crônica, caracterizada por inflamação difusa, fibrose e estenoses dos ductos biliares intrae extra-hepáticos1. A etiologia da CEP é desconhecida, mas existem evidências da importância de fatores genéticos2. A predominância do sexo masculino é de aproximadamente 2:1 e a média de idade ao diagnóstico situa-se em torno de 40 anos3. A apresentação clínica da CEP é variável. Atualmente, muitos pacientes são assintomáticos ao diagnóstico, investigados devido a elevação das enzimas canaliculares fosfatase alcalina (FA) e gama glutamil transferase (GGT) em exames de rotina, tipicamente em adulto jovem do sexo masculino com doença inflamatória intestinal (DII) associada. Os sintomas típicos incluem prurido, dor no quadrante superior direito do abdome, fadiga, perda de peso e episódios de febre e calafrios4. O curso clínico de pacientes com CEP pode ser complicado pelo desenvolvimento de estenoses dominantes da árvore biliar. Complicações de doença hepática avançada, incluindo hipertensão portal, coagulopatia e insuficiência hepática podem ocorrer, bem como deficiências de vitaminas lipossolúveis e doença óssea osteopênica. É uma condição pré-maligna, e a maioria dos óbitos decorre de neoplasias como colangiocarcinoma e câncer de cólon. A CEP usualmente acomete toda a árvore biliar. Aproximadamente 20% dos pacientes apresentam acometimento isolado dos ductos biliares intra-hepáticos e 5%, apenas dos ductos biliares interlobulares e septais (CEP de pequenos ductos), identificados apenas à biópsia hepática, com colangiografia normal5. Existe uma forte associação entre CEP e DII. Essa associação é observada em 70 a 80% dos pacientes com CEP. A maioria dos casos de DII em pacientes com CEP são de colite ulcerativa (80%), a doença de Crohn e a colite indeterminada ocorrem em 10% dos casos cada6. Diversas condições foram descritas em associação à CEP: hepatite autoimune (HAI), doença celíaca, artrite reumatoide, doença de Sjögren, glomerulonefrite, lúpus eritematoso sistêmico, anemia hemolítica autoimune, púrpura trombocitopênica idiopática, e outras. No entanto, não está claro se essas associações são verdadeiras ou se ocorrem meramente por acaso7. Pacientes com CEP e colite ulcerativa associada são mais comumente do sexo masculino e assintomáticos à apresentação clínica e têm estenoses biliares intra- e extrahepáticas. A CEP clinicamente progressiva está associada mais frequentemente a formas leves de colite ulcerativa e há menor indicação de colectomia. Pacientes com doença de Crohn são mais comumente do sexo feminino e apresentam CEP de pequenos ductos5. A colangite associada a IgG4 é a manifestação hepatobiliar da doença relacionada a imunoglobulina G4, uma condição fibroinflamatória sistêmica, com ampla variedade de apresentações clínicas e manifestações em diversos órgãos, que predominantemente acomete as vias hepatobiliares e o pâncreas (pancreatite autoimune). É associada a um curso clínico mais grave, ocorre predominantemente em homens idosos e pode apresentar boa resposta aos corticosteroides. A forma de apresentação clínica mais comum é icterícia obstrutiva de início abrupto, sem dor associada. Pode ser confundida com neoplasia pancreática ou das vias biliares, bem como colangite esclerosante primária ou secundária. Também podem ocorrer manifestações clínicas decorrentes do acometimento da vesicular biliar, glândulas salivares, retroperitônio, rins, pulmões e próstata. Os níveis séricos de IgG4 e a imunohistoquímica com anticorpos anti-IgG4 podem ser úteis para se estabelecer o diagnóstico. A colangite esclerosante associada a IgG4 não apresenta associação com a DII. Em muitos casos, a estenose está localizada na porção distal da via biliar, mas o espessamento da parede das vias biliares pode ser encontrado mesmo nos segmentos em que não se observam alterações na colangiografia8,9. A CEP é diagnosticada em pacientes que apresentam colestase clínica e/ou laboratorial associada a um exame de imagem (colangiopancreatografia endoscópica retrógrada [CPRE], ou colangiografia por ressonância magnética ou colangiografia transparietohepática) que demonstre alterações nos ductos biliares intra- e/ou extrahepáticos, com estreitamentos multifocais e dilatações segmentares.10 Nos testes hepáticos a atividade das enzimas canaliculares está aumentada. As aminotransferases estão elevadas na maioria dos pacientes (2 a 3 vezes o normal), mas também podem ser normais. O aumento desproporcional destas enzimas pode sugerir a presença de síndrome de sobreposição. Na maioria dos pacientes, as bilirrubinas estão normais ao diagnóstico e há um aumento discreto da IgG em 60% dos pacientes (1,5 vez o normal)11. Autoanticorpos podem estar presentes sem qualquer significado. A maioria deles tem prevalência baixa e apresentam títulos baixos. Não são importantes para o diagnóstico, incluindo o pANCA que é não específico, embora possa chamar a atenção para o envolvimento do cólon na síndrome colestática.10 Causas secundárias de exclusão obrigatória no diagnóstico diferencial da CEP incluem doenças que apresentam alterações colangiográficas secundárias a cirurgia prévia na árvore biliar, a pancreatites de repetição, a quimioterapia intra-arterial e a presença de litíase, tanto intra-hepática como coledociana, com infecções de repetição. Outras associações a serem consideradas no diagnóstico diferencial da CEP com a colangite esclerosante secundária incluem pancreatite autoimune, biliopatia portal, colangite supurativa recorrente e colangiopatia associada à infecção pelo HIV.12 Em pacientes que apresentam características clínicas e laboratoriais de CEP com estenoses e dilatações nas vias biliares, a presença de cálculos intra-hepáticos em exame de imagem não descarta o diagnóstico, uma vez que podem secundários à estase biliar, à cirurgia prévia e à própria doença das vias biliares. O quadro clínico, a distribuição dos achados colangiográficos e a presença ou não de DII devem ser considerados ao se avaliar um colangiograma anormal quanto à natureza do processo primário ou secundário. A CEP está fortemente associada às DII. Nas grandes séries europeias e norteamericanas, a prevalência de DII em PSC oscila entre 60% e 80%13. A associação mais frequente é com a colite ulcerativa. Assim, a colonoscopia com múltiplas biópsias está sempre indicada na avaliação inicial de todos os pacientes com CEP, mesmo que assintomáticos. Habitualmente, a DII antecede o aparecimento da CEP em anos, porém a apresentação pode ser concomitante ou anteceder o seu diagnóstico. Naqueles que já têm diagnóstico de DII, a colonoscopia deve ser periódica para rastreamento de carcinomas colônicos10. Pacientes com características clínicas, laboratoriais e histológicas de CEP, porém com colangiografia normal são classificados como CEP de pequenos ductos. O diagnóstico diferencial com outras causas de colestase intra-hepática nesta situação é bastante desafiador. A presença de DII concomitante, assim como a exclusão de outras causas, principalmente as medicamentosas, podem favorecer o seu diagnóstico.10 Os achados da biópsia podem fazer o diagnóstico da CEP, Entretanto, em estágios iniciais da doença as alterações são inespecíficas, diagnosticando-se apenas a presença de doença hepatobiliar. A fibrose concêntrica periductal (aspecto em casca de cebola) é característica clássica da CEP, mas seu achado é infrequente e também pode ser encontrada nas colangites secundárias14. A biópsia hepática deve ser sempre realizada naqueles que têm suspeita de CEP de pequenos ductos. Naqueles em que o diagnóstico da CEP é feito pela colangiografia (endoscópica ou por ressonância magnética), a biópsia hepática não está indicada10. Quando se suspeita de CEP de pequenos ductos ou quando há dúvida quanto à presença de síndrome de sobreposição, a biópsia deve ser sempre indicada. Esta última situação é suspeitada quando ocorrem elevações desproporcionais das aminotransferases, especialmente se o fator antinúcleo (FAN) e/ou o anticorpo antimúsculo liso (AML) forem positivos e/ou a IgG sérica estiver aumentada10. Nas doenças hepáticas crônicas avançadas os exames de imagem demonstram uma rarefação das vias biliares decorrentes da distorção do parênquima. Na CEP, alterações semelhantes podem ocorrer, dificultando ainda mais o diagnóstico diferencial. Alterações colangiográficas típicas de CEP, principalmente nas vias biliares extrahepáticas, e a associação com DII, são importantes neste contexto. Recomendações: 1. Pacientes com diagnóstico de colestase devem realizar colangiografia por ressonância magnética ou endoscópica para se diagnosticar CEP. (Classe Ia) 2. A biópsia hepática está indicada para aqueles pacientes com suspeita de CEP de pequenos ductos, ou seja, com colangiografia normal. Naqueles com diagnóstico colangiográfico de CEP a biópsia é desnecessária. (Classe Ib) 3. Pacientes com aminotransferases elevadas (> 5 vezes o normal) devem realizar biópsia hepática para se afastar síndrome de sobreposição de CEP com hepatite autoimune. (Classe Ib) 4. Colonoscopia é recomendada para todos os pacientes com diagnóstico de CEP no início do tratamento. Múltiplas biópsias devem ser realizadas mesmo que o exame seja considerado normal. (Classe Ia) 5. Pacientes com diagnóstico de DII devem realizar colonoscopias periódicas após o diagnóstico de CEP para rastreamento de câncer colorretal. (Classe Ib) Tópico II. Tratamento farmacológico da CEP Roberto José de Carvalho Filho (SP) Não há opções de tratamento farmacológico que comprovadamente sejam capazes de modificar a história natural da CEP. Entretanto, o ácido ursodesoxicólico (AUDC), um epímero do ácido quenodesoxicólico, tem sido amplamente utilizado no manejo de portadores de CEP desde a década de 9015. Os mecanismos potenciais de ação do AUDC nas hepatopatias colestáticas envolvem: 1) aumento da hidrofilia do pool circulante de ácidos biliares (AB); 2) estimulação da secreção hepatobiliar de AB, de ânions orgânicos e inorgânicos e de trifosfato de adenosina (ATP); 3) redução da citotoxicidade contra hepatócitos e colangiócitos induzida por AB e citocinas; e 4) efeitos imunomodulatórios e anti-inflamatórios16. É importante enfatizar que a contribuição relativa de cada um destes mecanismos no efeito anticolestático do AUDC é desconhecida. No contexto da CEP, o AUDC foi avaliado em doses baixas (10 a 15 mg/kg/dia), intermediárias (17 a 23 mg/kg/dia) e altas (25 a 30 mg/kg/dia), em diversos estudos clínicos, compilados em três meta-análises17-19. Além de possuírem doses e desenhos diversos e alto risco de vieses, estes estudos usaram critérios de resposta diferentes e, em geral, incluíram grande contingente de pacientes com doença avançada, o que dificulta a obtenção de conclusões definitivas sobre a eficácia e segurança do AUDC na CEP. Entretanto, a despeito das limitações metodológicas citadas e até que novas evidências sejam geradas em estudos adicionais, pode-se concluir que: a) doses baixas de AUDC podem resultar em melhora clínica e bioquímica, mas sem incremento na sobrevida; b) doses elevadas podem ter impacto negativo sobre a evolução da doença, mesmo em pacientes com doença precoce; e c) doses intermediárias podem induzir resposta bioquímica e histológica, sem associação com eventos adversos graves, mas com impacto ainda incerto sobre a sobrevida. Portadores de CEP sob tratamento com AUDC devem ser periodicamente monitorados com exame clínico e testes hepáticos habituais, com dois objetivos principais: determinar resposta ao tratamento e identificar eventual progressão da doença. Recentemente, três estudos identificaram evolução clínica favorável em portadores de CEP que apresentaram redução significativa do nível sérico da FA, definida como normalização da FA ou redução para níveis inferiores a 1,5 vez o limite superior da normalidade em qualquer momento do seguimento ou redução ≥ 40% após 1 ano de tratamento com AUDC20-22. Embora estes critérios careçam de validação prospectiva, eles podem ser úteis para fins prognósticos. Todavia, é importante ressaltar que a resposta pode ocorrer tardiamente (após dois anos de terapia) e que a suspensão do AUDC pode ocasionar piora clínica e laboratorial significativa15,23. Assim, não há evidências de que o AUDC deva ser interrompido na ausência de resposta, exceto nos casos suspeitos de progressão da doença relacionada ao próprio AUDC. Agravamento do prurido e/ou fadiga, piora dos testes hepáticos de síntese, elevação progressiva da FA sérica e surgimento/aumento/ruptura de varizes esofagogástricas são indícios de progressão da doença. Atualmente, não existem alternativas farmacológicas para o tratamento específico da CEP. Agentes antimicrobianos antifibróticos (vancomicina, (colchicina, minociclina, penicilamina, silimarina, metronidazol), etc.), imunobiológicos (infliximabe, etanercept) e imunossupressores (prednisona, prednisolona, budesonida, azatioprina, metotrexato, tacrolimo, ciclosporina, micofenolato mofetil/sódico) não se mostraram eficazes e/ou seguros no tratamento da CEP e o seu não é recomendado 10. São exemplos de drogas promissoras sendo avaliadas em ensaios clínicos em andamento: ácido 24-norursodesoxicólico (homólogo do AUDC; identificador NCT01755507 no sítio ClinicalTrials.gov), ácido docosahexaenoico (ácido graxo do tipo ômega-3; NCT00325013), ácido obeticólico (agonista do receptor farnesoide X; NCT02177136), BTT1023 (anticorpo anti-Vap-1; NCT02239211) e simtuzumab (anticorpo monoclonal humanizado contra a enzima lisil oxidase-like 2 [LOXL2]; NCT01672853). Bezafibrato foi utilizado com sucesso como alternativa farmacológica na CEP em poucos casos relatados na literatura, de tal forma que não há evidências suficientes para recomendar seu uso24,25. Corticosteroides e outros agentes imunossupressores não são recomendados para o tratamento da CEP, exceto nos casos de CEP com características semelhantes à HAI, a assim chamada síndrome de sobreposição CEP-HAI3. Neste contexto, o esquema combinado com prednisona e azatioprina é indicado, habitualmente em associação com o AUDC. Imunossupressão (corticosteroide em monoterapia ou em combinação com azatioprina) é também recomendada para o tratamento da colangite esclerosante associada a IgG43. Neste caso, o tratamento tem duração mínima de três meses, podendo ser necessária terapia de manutenção em caso de recidiva ou resposta incompleta. Os ensaios clínicos randomizados mais robustos26,27 e duas meta-análises concluíram não haver impacto significativo do uso de AUDC na incidência de colangiocarcinoma17,18. Não há evidências de que o uso de AUDC reduza o risco de desenvolvimento de câncer de vesícula biliar em portadores de CEP. Quanto ao câncer colorretal (CCR), o real impacto do uso de AUDC permanece indefinido, com dois estudos sugerindo algum efeito protetor28,29, quatro estudos observando ausência de impacto30-33 e um estudo indicando aumento do risco de CCR em usuários de AUDC34. Recente meta-análise concluiu não haver associação entre o uso de AUDC e o risco de CCR ou displasia em adultos com CEP e DII35. Refletindo a controvérsia, enquanto a diretriz americana não recomenda o uso de AUDC como agente de quimioprofilaxia contra o CCR10, a diretriz europeia o sugere para pacientes de alto-risco (presença de colite extensa, história familiar positiva ou CCR prévio), embora reconheça a existência de evidências limitadas3. Em geral, a fertilidade não é afetada e a gravidez é bem tolerada em portadoras de CEP bem controlada36-38. A presença de CEP parece estar associada à ocorrência de parto prematuro, com possível contribuição da presença de DII em atividade37,38. Não há risco aumentado de malformações congênitas ou outros desfechos adversos da gravidez37,38. O AUDC, qualificada como classe B pelo FDA (Food and Drug Administration, Estados Unidos da América), parece ser seguro ao ser usado no segundo ou terceiro trimestres de gestação37. Mesmo seu uso precoce, durante o primeiro trimestre, não foi associado a efeitos negativos na mãe ou no feto37. Exacerbação da CEP, piora do prurido ou prurido de novo podem ocorrer durante a gravidez ou no puerpério, requerendo início ou aumento de dose do AUDC e, eventualmente, ocasionando parto prematuro36-39. Em um estudo, gestantes em uso de AUDC mais frequentemente apresentaram testes hepáticos estáveis, quando comparadas àquelas que não usavam a droga37. O AUDC é excretado no leite materno em pequena quantidade e seu uso não foi associado a efeitos colaterais em recém-nascidos40,41. Recomendações: 1. Após discussão detalhada sobre riscos e benefícios da terapia e sobre as limitações dos dados disponíveis, o uso de AUDC em doses intermediárias (17 a 23 mg/kg/dia) deve ser considerado para pacientes adultos com CEP. (II b) 2. Portadores de CEP sob tratamento com AUDC devem ser periodicamente monitorados com exame clínico e testes hepáticos, a fim de determinar resposta ao tratamento e identificar eventual progressão da doença. (I) 3. Em pacientes em uso de AUDC, a normalização ou redução significativa dos níveis séricos da FA sugere melhor prognóstico. (II a) Não há evidências de que o AUDC deva ser interrompido na ausência de resposta, exceto quando há progressão da doença possivelmente relacionada ao próprio AUDC. (II a) 4. Não há evidências suficientes para recomendar o uso de fibratos ou outras alternativas farmacológicas como terapia específica para a CEP. (II b) 5. Imunossupressão com corticosteroide em monoterapia ou em combinação com azatioprina é recomendada nos casos de CEP com características de HAI e para o tratamento da colangite esclerosante associada a IgG4. (I) 6. Não há evidências de que o uso de AUDC reduza o risco de desenvolvimento de colangiocarcinoma ou câncer de vesícula biliar em portadores de CEP. (III) Os dados disponíveis na literatura não permitem concluir se o uso de AUDC se associa a menor risco de câncer colorretal. (II b) 7. A gravidez é geralmente bem tolerada em portadoras de CEP compensada, mas parece existir risco aumentado de parto prematuro.(II a) O uso de AUDC pode ser considerado durante a gestação, preferencialmente após o primeiro trimestre. (II a) Tópico III. Tratamento endoscópico da CEP Dalton Marques Chaves (SP) e Gustavo Oliveira Luz (SP) O tratamento endoscópico está indicado na presença de estenose dominantes sintomáticas, que ocorrem em 10%-30 % dos casos de CEP42,43, sendo as localizações habituais o hilo hepático, o hepático comum ou o colédoco. Os pacientes mais propensos a serem beneficiados são os que sofrem de icterícia, piora bioquímica progressiva ou com colangites de repetição e apresentam estenoses dominantes extra-hepáticas. Sugere-se evitar a CPRE em pacientes com insuficiência hepática avançada em lista de transplante, devido risco de desencadear deterioração clínica. O tratamento das estenoses resulta em melhora clínica e bioquímica em aproximadamente 80% dos pacientes não cirróticos44. O tratamento endoscópico não deve atrasar a indicação do transplante hepático, por ser o único tratamento que demonstrou alterar a história natural dos pacientes com CEP. Os estudos sobre o assunto são de observação de resultados terapêuticos tipo coortes, sem ensaios clínicos controlados e randomizados. As principais complicações da CPRE em pacientes com CEP são pancreatite, colangite, hemorragia, perfuração e piora da colestase com deterioração clínica progressiva. A CPRE causa mais complicações quando é realizada nos pacientes com colangite ou icterícia do que na investigação diagnóstica (14% vs. 2%). Pancreatite e colangite pós-CPRE tem sido reportado em 5%-7% e 1 % dos pacientes, respectivamente45. Pacientes com suspeita de CEP submetidos a CPRE devem sempre estar em uso de antibióticos para prevenir colangite ascendente3. Fatores preditivos para complicação pós CPRE em pacientes com CEP incluem: cirrose, doença de Crohn, HAI, nível de experiência do examinador, realização de papilotomia e dilatação biliar46. O surgimento de sintomas novos ou piora dos sintomas pré-existentes em pacientes com CEP levanta a hipótese de estenose dominante. Quando presentes, a hipótese de colangiocarcinoma deve ser investigada. A utilização de escova citológica ou biópsia facilita o diagnóstico de colangiocarcinoma. Como opção de tratamento endoscópico das estenoses, temos as próteses e os dilatadores (balões e sondas). Em estudo retrospectivo, o uso isolado da dilatação ou associado ao uso de próteses (stents) melhorou a drenagem e reduziu os sintomas dos pacientes com CEP47. Neste estudo, o uso combinado de dilatação e colocação de stent foi associado a maior incidência de complicações, quando comparado ao uso isolado da dilatação. Nos pacientes com próteses, estas devem ser trocadas a cada 2-3 meses para evitar obstrução e colangite. Alguns pacientes requerem até 12 meses para resolução das estenoses. A principal desvantagem das próteses se dá pelo alto risco (50%) de obstrução e subsequente colangite e sepse. O uso das próteses por um curto período de tempo (média de 11 dias) tem sido defendido em alguns estudos48, com bons resultados em relação a melhora clínica. Não há estudos randomizados e controlados comparando o uso isolado de dilatação vs. stent. Recomendações: 1. O tratamento endoscópico da CEP está indicado na presença de estenoses dominantes sintomáticas. (I) Há melhora clínica e bioquímica em aproximadamente 80% dos pacientes não cirróticos. (Classe IIa) 2. O tratamento endoscópico das estenoses pode ser feito com próteses (stents) e dilatadores (balões e sondas). (Classe IIb) Não há estudos randomizados e controlados comparando-se as duas formas de tratamento. Tópico IV. Peculiaridades no Diagnóstico e Tratamento da CEP na Infância Irene Kazue Miura (SP) A CEP é incomum em crianças, com incidência menor que 20% do relatado em adultos (0,23 casos/100.000 pessoas-ano). Existem cerca de 250 casos descritos nas diversas casuísticas. Os escassos dados publicados na faixa pediátrica limitam o desenvolvimento de recomendações baseadas em evidência sobre o diagnóstico e tratamento dos pacientes com CEP 10,49. As manifestações clínicas iniciais das crianças com CEP são similares às dos adultos e outras doenças colestáticas: fadiga, dor abdominal, febre, perda de peso, icterícia, prurido, hepatomegalia, ascite, hemorragia digestiva e esplenomegalia. Cerca de 20% dos pacientes são assintomáticos. Algumas características são peculiares à infância, tais como retardo de crescimento e atraso da puberdade50,51. A CEP em crianças não parece ser uma doença do adulto em estágio mais precoce. Algumas doenças hereditárias e defeitos imunológicos que geralmente começam na infância podem ter quadro clínico semelhante à CEP. Por exemplo, defeitos do gene ABCB4 podem ser causa provável de CEP de pequenos ductos. A síndrome de sobreposição HAI e CEP é significativamente mais frequente e o colangiocarcinoma muito mais raro em crianças10,49,52. A CEP associada ao IgG4 elevado ainda não foi relatada na infância50. A suspeita clínica baseia-se nos achados clínicos e laboratoriais e o diagnóstico é feito pelos achados histológicos e pela colangiografia. Causas secundárias devem ser excluídas. A atividade da GGT é o marcador mais sensível de doença biliar, estando alterada à época do diagnóstico em cerca de 97% das crianças com CEP. A FA elevada pode estar associada ao crescimento ósseo10,49,50,51. A relação GGT/AST pode ser útil na triagem de pacientes com síndrome de sobreposição HAI e CEP50. Em comparação com os adultos, os níveis de aminotransferases tendem a ser maiores nas crianças e os de bilirrubinas menores, porque as estenoses dominantes e colangiocarcinoma são menos frequentes10, 49,50,51,53. A biópsia hepática é importante em crianças, especialmente para o diagnóstico de CEP de pequenos ductos ou de doença imunomediada associada. As alterações mais características de CEP são edema e fibrose concêntrica periductal, com aspecto em casca de cebola. Outros achados incluem proliferação ductular, inflamação periductal e graus e tipos variáveis de inflamação portal e ductopenia10,49,50,51,53,54. Os achados colangiográficos são semelhantes aos de adultos: irregularidade da parede do ducto biliar, estenoses multifocais, dilatação focal, aspecto em colar de contas, diminuição da arborização periférica. O comprometimento pode ser intra e extrahepático (40-56%), intrahepático (14-50%) ou extrahepático (2-15%). Cerca de 36% dos pacientes com a árvore biliar normal apresentam CEP de pequenos ductos à biópsia hepática10,49,50,51. A colangiografia por ressonância magnética é o exame de imagem de primeira escolha, por ser não invasiva e ter menor risco de complicações. A CPRE pode ser indicada quando a colangiografia por ressonância magnética não for diagnóstica (fases precoces da CEP) ou quando houver necessidade de dilatação de estenoses dominantes ou de pesquisa de colangiocarcinoma por escovação do colédoco para citologia10, 49,50,51. O risco de colangiocarcinoma é muito baixo na faixa etária pediátrica 10,50,54 . O paciente mais jovem relatado tinha 14 anos de idade e apresentava colite ulcerativa de longa duração50. A associação de CEP com DII varia de 33% a 81%. Recomenda-se colonoscopia em todo caso novo de CEP, mesmo naqueles assintomáticos. Se a colonoscopia inicial for normal, repetir somente se surgirem sintomas gastrointestinais. A recomendação da colonoscopia de vigilância é dificultada pelo reduzido risco de adenocarcinoma, especialmente nos pacientes menores que 16 anos de idade 10,49,50. Atualmente não há tratamento farmacológico que altere a progressão da doença e melhore o prognóstico. O uso do UCDA, apesar do seu potencial em induzir melhora bioquímica e histológica, requer estudos adicionais para determinar o seu benefício a longo prazo 10,49,50,51,53,55 . Antibióticos, como por exemplo, vancomicina oral, estão em investigação com alguns resultados promissores50,51,53,56. Estenoses dominantes são menos comuns em crianças e podem ser tratadas com dilatação com balão e/ou colocação de stent. Apesar dos riscos associados (pancreatite, colangite aguda), a dilatação pode melhorar a sobrevida livre de transplante50,51. Recomendações: 1. A CEP na infância é incomum. Dados publicados são escassos e não permitem ainda o desenvolvimento de recomendações baseadas em evidências (Classe IIb). 2. Manifestações clínicas iniciais na criança são similares aos adultos. Entretanto, não parece ser doença do adulto em estágios mais precoces (Classe IIb). 3. Biópsia hepática é importante na infância principalmente para diagnóstico diferencial entre CEP de pequenos ductos e doença imunomediada (Classe IIa). 4. O risco de colangiocarcinoma na CEP da infância é baixo (Classe IIb). 5. Colonoscopia deve ser realizada em todo caso novo. Se for normal, repetir apenas se houver sintomas gastrointestinais. Não deve ser indicada como rastreamento para câncer colorretal (Classe IIa). 6. Não há tratamento farmacológico que altere a história natural da CEP na infância. Estenoses dominantes são incomuns na infância. O tratamento endoscópico (dilatação com sondas e/ou colocação de stent) pode melhorar a sobrevida livre de transplante (Classe IIb). Referências bibliográficas 1. Maggs JR, Chapman RW. An update on primary sclerosing cholangitis. Curr Opin Gastroenterol 2008; 24: 377-83. 2. Karlsen TH, Schrumpf E, Boberg KM. Genetic epidemiology of primary sclerosing cholangitis. World J Gastroenterol 2007; 13: 5421-31. 3. European Association for the Study of the Liver EASL Clinical Practice Guidelines: Management of cholestatic liver diseases. Journal of Hepatology 2009; 51: 237-67. 4. Broome U, Olsson R, Loof L, Bodemar G, Hultcrantz R, Danielsson A, et al. Natural history and prognostic factors in 305 Swedish patients with primary sclerosing cholangitis. Gut 1996; 38: 610-15. 5. 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MÓDULO III: CIRROSE BILIAR PRIMARIA Coordenadora: Cynthia Levy (EUA) Tópico I. Formas de apresentação, quadro clínico e critérios diagnósticos Michele Harriz (SP) Patrícia Oliveira (SP) Atualmente, mais da metade dos pacientes com CBP apresenta-se assintomática ao diagnóstico. Na vigência de sintomas, fadiga e prurido são os mais descritos, presentes em até 70% dos casos. A etiologia da fadiga é desconhecida, mas acredita-se que esteja relacionada à disfunção autonômica. Os pacientes apresentam sonolência diurna e não melhoram com o tratamento da doença. Na avaliação de pacientes com fadiga é preciso excluir hipotireoidismo, insuficiência adrenal, anemia, distúrbios do sono e transtorno do humor depressivo. O prurido é o sintoma mais específico da CBP. Ele pode ser localizado ou difuso, mais grave durante a noite, e muitas vezes incapacitante interferindo na qualidade de vida. Pode ocorrer meses ou anos antes da icterícia e geralmente apresenta melhora com a progressão da doença. Algumas vezes, o prurido inicia-se na gestação e persiste após o parto, diferente da colestase intra-hepática da gravidez, doença em o prurido desaparece caracteristicamente após o parto. A patogênese do prurido parece ser multifatorial, incluindo alterações na produção e excreção de sais biliares, alterações nos metabólitos da progesterona e histamina, e aumento na concentração de opióides endógenos. Recentemente, pesquisas indicam que os níveis de ácido lisofosfatídico e da autotaxina lisofosfolipase, enzima produtora daquele ácido, estão elevadas e parecem contribuir significativamente na patogênese do prurido. A presença de sintomas se correlaciona com sobrevida média sem transplante de 5 a 8 anos, além do maior risco de desenvolvimento da hipertensão portal. Aproximadamente 25% dos pacientes sintomáticos irão progredir para insuficiência hepática em 10 anos. 14 Ao diagnóstico, 42% a 66% dos pacientes assintomáticos apresentam doença em estádio histológico inicial (I e II) enquanto 82% dos sintomáticos apresentam-na em estádio avançado (III e IV). Os pacientes sintomáticos parecem progredir mais frequentemente para cirrose e suas complicações, além de demonstrarem menor resposta ao tratamento com AUDC. 15 Entre as manifestações extra-hepáticas mais comuns, observamos a osteoporose, hipercolesterolemia e a hiperpigmentação cutânea. Portadores de CBP em estádio avançado apresentam risco aumentado de 5 vezes para desenvolvimento de osteoporose quando comparados aos pacientes em estádio precoce. Pacientes com CBP AAM negativo não exibem qualquer diferença quanto à apresentação clínica ou progressão da doença quando comparados aos casos AAM positivo. Os AAN estão presentes em 30-50% dos casos, e podem apresentar padrões específicos para CBP. Anticorpos anti-gp210 e anti-p62, que exibem padrão à imunofluorescência de envelope nuclear, são considerados marcadores de pior prognóstico, pois associam-se à hepatite de interface e inflamação lobular mais graves e à presença de ductopenia, o que resultaria em progressão mais frequente para insuficiência hepática.16 Em contrapartida, o anticorpo anticentrômero, frequentemente encontrado na esclerodermia, quando presente na CBP (o que ocorre em até 30% dos casos) pode ser marcador de desenvolvimento de esclerodermia associada à CPB no futuro.17 Estudos recentes vêm discutindo a presença do anticorpo anticentromérico como marcador prognóstico, aparentemente relacionado com maior risco de desenvolvimento de hipertensão portal e suas complicações. 16 A frequente associação da CBP com outras doenças autoimunes hepáticas ou extra-hepáticas tem sido considerada uma das justificativas para classificar a CBP como doença autoimune. Ocorrência de sobreposição com hepatite autoimune (CPB/HAI) tem sido descrita na literatura em 2 a 20% dos casos de CBP. 18 A síndrome de sobreposição está discutida em detalhes no tópico correspondente. A síndrome sicca é a doença autoimune mais comum, presente em 60% a 80% dos casos, e deve ser pesquisada com os testes de Schirmmer e Rosa Bengala após queixa de xeroftalmia. A tireoidite de Hashimoto está presente em até 20% dos pacientes. A esclerodermia/fenômeno de Raynaud também é frequente em associação a CBP, com prevalência que pode variar de 3-50% em trabalhos mais antigos. Publicações de estudos epidemiológicos mais recentes mostraram que 8% dos pacientes portadores de CBP apresentavam esclerodermia concomitantemente. Em contrapartida, os portadores de esclerodermia apresentaram positividade para o AAM em 25% dos casos. Há risco aumentado de Fenômeno de Raynaud em até 4 vezes quando comparado à população geral, independentemente da associação com esclerodermia. A prevalência da artrite reumatóide (AR) é de 1,8% a 5,6%, enquanto a prevalência do AAM na AR é de 18%. A associação com polimialgia reumática tem sido descrita em alguns relatos de caso e lupus eritematoso sistêmico ocorre em 2,7% a 7,5 % dos casos de CBP. Quadros autoimunes endocrinológicos, com exceção a tireoidite de Hashimoto, como o diabetes melitus e a doença de Addison são pouco comuns. Entre as doenças gastroenterológicas, encontramos a doença celíaca, prevalente em 6% dos portadores de CBP, enquanto cerca de 3% dos pacientes celíacos tem CBP. O rastreio da doença celíaca apenas é recomendado em caso de suspeita clínica.19 A alta concordância em gêmeos monozigóticos (63%), a maior prevalência de AAM em familiares de primeiro grau de pacientes com CBP, bem como a frequente associação com outras doenças autoimunes no paciente e em familiares de primeiro grau são sugestivos da participação do componente genético na fisiopatologia da CBP.20-22 Apesar do beneficio do rastreamento ainda não ter sido demonstrado, recomenda-se checar a fosfatase alcalina sérica nos parentes de primeiro grau maiores que 18 anos, e se houver alteração, investigar a presença de AAM. A casuística do grupo de doenças autoimunes e colestáticas do HC-FMUSP é composta de 246 pacientes com CBP diagnosticadas no período de 1995 a 2013. Para ilustrar a apresentação da doença na população Brasileira, apresentamos um resumo dos dados clínicos e laboratoriais relevantes na Tabela 3. O número de diagnósticos de CBP tem aumentado progressivamente ao longo dos anos, provavelmente em consequência do maior acesso populacional a testes bioquímicos de rotina em que se evidenciam anormalidades das enzimas colestáticas, permitindo o diagnóstico da doença, muitas vezes, em fase ainda assintomática. Nessa avaliação inicial, propõe-se o seguinte algoritmo descrito na Figura 1. Os critérios diagnósticos propostos classicamente pela AASLD são de fácil aplicabilidade na prática clínica e devem ser adotados na avaliação inicial dos pacientes em que haja suspeita de CBP. A presença de dois dos três critérios abaixo são suficientes para o diagnóstico,1 incluindo evidências bioquímicas de colestase, com elevação predominante de fosfatase alcalina (FA); presença de anticorpos antimitocôndria (AAM) e análise histológica revelando a presença de colangite destrutiva não supurativa. A pesquisa de AAM deve ser feita inicialmente por IFI em tecidos de roedores e em células HEp-2, por ser método facilmente disponível e padronizado em nosso país.2 Este marcador está presente em cerca de 90-95% dos pacientes. A detecção do AAM em pacientes sem manifestação clínica ou alteração laboratorial é considerada forte marcador do desenvolvimento de CBP, o que ocorre em até 76% dos casos após até 10 anos da detecção do mesmo. Títulos de AAM inferiores a 1:80 podem estar presentes em indivíduos normais (<1% da população geral), e, portanto, devem ser interpretados com cautela.2,3 Os AAM podem estar presentes em outras condições (geralmente em baixos títulos) como lúpus eritematoso sistêmico, síndrome do anticorpo antifosfolípide, anemias hemolíticas autoimunes, doença hepática alcoólica e hepatite C.4 Sempre que necessária, a confirmação por ELISA ou por immunoblotting deve ser feita, para detectar a presença de anticorpos contra enzimas do complexo 2oxoácido desidrogenase, considerados específicos de CBP, embora sua presença tenha sido descrita em outras situações, como hepatite C e hepatite autoimune.5,6 A pesquisa desses anticorpos é particularmente útil em casos de CBP AAM negativo. A pesquisa por ELISA ou imunoblotting dos marcadores anti-gp210 e anti-sp100 (anti-PML ou anti-sp140) também é útil neste contexto, mas deve ser feita em laboratórios especializados em centros terciários, considerando seu custo e estrutura necessária para sua realização. Além do AAM, deve-se pesquisar anticorpos antinucleares (AAN), detectados em até metade dos pacientes. Os padrões nucleares tipo membrana nuclear (rim-like membranous pattern), direcionado aos antígenos gp210 e p62, e o nuclear pontilhado com pontos isolados (multiple nuclear dots), direcionado a várias proteínas, incluindo a sp-100 e proteína promielocítica, são exemplos de AAN considerados específicos para CBP. Outro padrão que, embora não específico, pode ser encontrado na CBP é o centromérico.7 Esse padrão com frequência, mas nem sempre, está presente em portadores das enfermidades esclerose sistêmica, síndrome de Sjögren ou com fenômeno de Raynaud isolado. Portanto, a pesquisa dos padrões do AAN pode ser útil não só para detecção de AAM, como também para diagnóstico de CBP AAM negativo. Além disso, a reatividade de anticorpos anti-gp210 e anti-centrômero pode estar associada com progressão mais rápida para falência hepática e hipertensão portal, portanto fornecendo informação prognóstica.3,8 A colangite destrutiva não supurativa envolvendo os ductos biliares interlobulares é típica, e um dos critérios diagnósticos de CBP. O infiltrado inflamatório é composto por linfócitos, plasmócitos, macrófagos, eosinófilos e algumas vezes por granuloma epitelióide. Quando essa lesão biliar é bastante exuberante, chamamos de lesão biliar florida (“florid duct lesion”). Embora seja útil para avaliar prognóstico e tratamento, a biópsia hepática não é necessária para o diagnóstico. A biópsia está indicada nos casos em que a pesquisa de AAM é negativa ou com achados atípicos de CBP, como por exemplo na suspeita de síndromes de sobreposição, ou ainda quando outras possibilidades diagnósticas precisam ser descartadas (por exemplo: lesão hepática por drogas, presença concomitante de esteatohepatite não-alcoólica, entre outros). A avaliação histológica classifica a CBP em 4 estádios: Estádio I é caraterizado por infiltrado inflamatório restrito ao espaço porta, com ou sem a colangite destrutiva não supurativa descrita acima. O estádio II caracteriza-se pela presença de hepatite de interface enquanto no estádio III há distorção da arquitetura hepática e presença de septos de fibrose. Finalmente, no estádio IV observa-se cirrose, com nódulos de regeneração. No entanto, o estadiamento da CBP não requer obrigatoriamente a análise histológica e pode ser feito de forma não invasiva, quando estiver indicado. Métodos não invasivos são promissores na avaliação e estadiamento de pacientes com CBP, embora os estudos ainda sejam preliminares. Estudo recente buscou identificar variáveis com valor prognóstico em 386 pacientes com CBP.9 Nesse estudo, o índice APRI (AST/platelet ratio index) maior que 0,54 no momento da avaliação inicial relacionou-se a maior risco de óbito ou transplante hepático (RR 2,4), independentemente da resposta ao tratamento com AUDC. A elastografia (FibroScan™) está entre os melhores métodos não invasivos para diagnóstico de estádios mais avançados de fibrose na CBP, especialmente cirrose, com cut-off de 16.9 kPa.10 Em estudo comparativo, sua performance foi melhor que a dos testes bioquímicos, e o aumento da rigidez hepática em exames seriados se relacionou a maior frequência de descompensação clinica, morte ou transplante hepático. Em outro estudo que incluiu 61 pacientes, a elastografia por ARFI (acoustic radiation force impulse), apresentou áreas sob a curva ROC (AUROC) de 0,83, 0,93 e 0,9 para os estádios ≥II, ≥III, e IV respectivamente.11 Os valores de cut-off ideais para as ondas de cisalhamento (shear wave velocity) foram 1,51 m/s, 1,79 m/s e 2,01 para estádios ≥ II, III, e IV respectivamente. Considerando a ocorrência por vezes precoce de varizes esofágicas na CBP, o índice de Newcastle é outro meio não invasivo utilizado para predizer o risco de varizes (AUROC 0.86), evitando endoscopias desnecessárias.12 O cálculo é simples, levando em consideração valores de albumina, da fosfatase alcalina e das plaquetas e pode ser feito pelo link http://www.uk-pbc.com/media/sites/researchwebsites/uk-pbc/pbc130328.html. Alternativamente, podemos utilizar o índice prognóstico da Clínica Mayo (Mayo risk score), em que com valores ≥ 4,5 indicam maior risco de varizes e a necessidade de proceder exame endoscópico.13 Recomendações: 1) Deve-se utilizar os critérios da AASLD para avaliação inicial do pacientes com CBP (Classe I) Pacientes com 2 dos 3 critérios abaixo preenchem critério para diagnostico de CBP • Elevação crônica da fosfatase alcalina • Presença de anticorpos antimitocôndria • Biópsia hepática mostrando colangite destrutiva não supurativa 2) Quanto à avaliação sorológica:, títulos de AAM ≥ 1:80 são considerados significativos (Classe I). Anticorpos contra enzimas do complexo 2 oxoácido desidrogenase devem ser solicitados se o AAM não for reagente, ou quando os títulos forem < 1:80 ou se o padrão não for típico (Classe I) 3) Pesquisa e caracterização dos padrões de AAN por IFI em células HEp-2 ou, alternativamente, por immunoblotting ou ELISA para AAN específicos para CBP, deve ser solicitada em pacientes soronegativos (Classe IIa) 4) Quanto à biópsia hepática, é recomendada em pacientes AAM negativos e/ou quando houver suspeita de doenças hepáticas associadas (Classe I). 5) Métodos não invasivos para estadiamento de CBP estão em estudo e ainda não podem ser recomendados de rotina (Classe IIb) Tópico II. Tratamento com o ácido ursodesoxicólico Cláudia Couto (MG) Ácido ursodesoxicólico (AUDC), o epímero 7-b do acido quenodesoxicólico, é um ácido biliar hidrofílico natural com menos propriedades hepatotóxicas, que tem sido utilizado há mais de duas décadas para tratamento de pacientes com CBP. Seu efeito na CBP estaria relacionado às suas propriedades citoprotetoras, coleréticas, imunomoduladoras e anti-inflamátorias. Atualmente, o AUDC é recomendado pelas sociedades de hepatologia internacionais americana (AASLD) e europeia (EASL) como tratamento inicial para pacientes com diagnóstico de CBP e elevação de enzimas canaliculares (principalmente a FA), independentemente do estágio histológico da doença. A recomendação baseia-se em vários estudos placebo controlados, análises combinadas e estudos caso-controle de longo prazo.1,23 Recomenda-se AUDC 13-15 mg/kg/dia, administrado em dose única ou em dose dividida em até quatro vezes, continuamente, para tratamento da CBP. Efeitos colaterais são mínimos e infrequentes, havendo relatos de pequeno ganho de peso no primeiro ano de tratamento e efeitos gastrointestinais menos importantes. Estudos anteriores ao tratamento com AUDC mostraram sobrevida média livre de transplante variando entre 10 a 15 anos em pacientes com CPB sem tratamento, sobrevida esta que era mais baixa em relação à população geral pareada por sexo e idade. O tratamento com AUDC reduz os níveis séricos de bilirrubinas, FA, GGT, colesterol total e IgM.24,25 Verificou-se ainda retardo na progressão histológica da doença e retardo na evolução para hipertensão portal com o uso de AUDC,26-28 embora não tenha sido observado efeito no tratamento do prurido e fadiga. Análise combinada de três estudos controlados que incluíram pacientes acompanhados por até 4 anos observou redução do número de óbitos e aumento na sobrevida livre de transplante no grupo em tratamento.26 Esse benefício foi observado apenas em pacientes com fase avançada da doença, caracterizada por BT maior que 1,4mg/dl. No entanto, devido a conhecida evolução lenta da doença em fase inicial (5-10 anos), maior tempo de acompanhamento seria necessário para se comprovar benefício do tratamento na sobrevida de pacientes em fase inicial. Vários estudos observacionais de longo prazo realizados por diferentes grupos demonstram que o uso de AUDC, especialmente em pacientes com doença em fases histológicas iniciais e em pacientes com resposta bioquímica, está associado com excelente sobrevida livre de transplante hepático. 24,29-32 Sugere-se também como evidência adicional do benefício do uso do AUDC na CBP os números de pacientes transplantados por CBP. Observa-se queda do números de indicações de transplante hepático por CBP nos EUA e Europa após a utilização de AUDC em grande escala para tratamento da CBP nas duas últimas décadas.33,34 Metanálises de estudos randomizados da biblioteca Cochrane têm questionado o efeito do AUDC na sobrevida de pacientes com CBP. Na revisão de 2012, os estudos avaliados permitem concluir que o AUDC parece melhorar os exames bioquímicos hepáticos, a concentração sérica de bilirrubina e a histologia hepática. Benefícios relacionados ao tratamento com AUDC na sobrevida geral ou na sobrevida livre de transplante hepático não foram encontrados.35 Reitera-se que a grande maioria dos estudos incluídos (15/16) apresenta alto risco de bias. Outras limitações da metanálise são o relativo pequeno número de pacientes nos estudos incluídos, a heterogeneidade dos estudos que incluíram diferentes doses de AUDC (incluindo doses sub-terapêuticas) e o tempo de estudo médio de 24 (3-90) meses insuficiente para a avaliação de sobrevida de uma doença com sobrevida média de 10 a 15 anos. A resposta terapêutica ao AUDC deve ser avaliada principalmente por meio da monitorização das enzimas canaliculares (FA).1,23,26 Cerca de 60% dos pacientes apresenta resposta completa. Entre os pacientes que respondem ao tratamento, a melhora bioquímica usualmente pode ser observada em 1 a 6 meses após inicio do tratamento, ocorrendo na maioria dos casos nos primeiros 3 meses. A resposta típica caracteriza-se por queda inicial rápida da FA, seguida por queda adicional mais lenta e progressiva. Vários critérios para avaliação de resposta ao AUDC têm sido propostos e validados em diferentes populações. Os principais critérios empregados na literatura estão descritos na Tabela 4.37 Ademais, metanálise recém publicada que incluiu 15 estudos de coorte de longo prazo, realizada pelo Global PBC Study Group incluindo 4845 pacientes, 1118 com desfecho final, verificou boa correlação entre FA e bilirrubina séricas e a sobrevida livre de transplante.36 Quanto maior a redução dos níveis de FA após 1 ano de tratamento, maior a sobrevida. Os autores consideram que a FA e bilirrubina total se comportam como bons marcadores de desfecho final e podem ser utilizados na prática clínica. Independentemente do critério de resposta empregado, cerca de 40% dos pacientes apresenta resposta insatisfatória ao AUDC. Pacientes que mantém as alterações bioquímicas persistentes a despeito do tratamento com AUDC e os que apresentam piora histológica caracterizam o grupo de não respondedores. Estudos mostram que a ausência de resposta caracteriza um grupo de pior prognóstico.28-30 Ductopenia, estágio histológico III-IV e hepatite de interface moderada a grave, bilirrubina >1mg/dl, níveis de albumina séricos baixos, gradiente de hipertensão portal e Mayo risk score são fatores pré- tratamento associados ao prognóstico durante o tratamento com o AUDC.27-30,32,36 Por ser caracteristicamente uma doença que acomete mulheres acima dos 40 anos, a gravidez não é comum em pacientes após o diagnóstico de CBP. As séries de casos de pacientes gestantes com CBP mostram que na maioria dos casos a doença se manteve estável durante a gravidez, sendo comum a exacerbação bioquímica após o parto.38 O prurido pode ser um sintoma de difícil manejo durante a gravidez. O tratamento com AUDC parece ser seguro na gravidez (categoria B, pela FDA norte-americana) e durante a amamentação. As séries de caso sugerem que uma gravidez bem sucedida pode ser uma expectativa em pacientes com CBP. Como durante o uso do AUDC há aumento dos níveis de ácido litocólico, sabidamente com embriotoxicidade, deve ser considerado a sua não utilização durante o primeiro trimestre de gravidez. Além do AUDC, outras drogas foram testadas para tratamento inicial da CBP e existem vários estudos em andamento. No momento, porém, não existe evidência suficiente na literatura para se recomendar o uso de outras drogas isoladamente ou associadas ao AUDC para o tratamento inicial da CBP. Aumentar a dose de AUDC não se mostrou uma alternativa e não deve ser tentado. Recomendações: 1) Todos os pacientes com cirrose biliar primária e exames bioquímicos alterados, incluindo os assintomáticos, devem receber tratamento inicial com ácido ursodesoxicólico na dose de 13-15 mg/dia, uso contínuo (Classe I). 2) A resposta ao tratamento deve ser avaliada após 1 ano, considerando-se FA e bilirrubina (Classe IIa). 3) Se necessário uso concomitante de quelantes de ácidos biliares, administrar o AUDC duas a quatro horas antes ou depois do seu uso (Classe I). Tópico III. Tratamento do paciente sem resposta ao AUDC Cynthia Levy (EUA) Ao avaliar o paciente sem resposta ao AUDC é importante certificar-se de que o mesmo esteja seguindo a prescrição corretamente, e excluir a possibilidade de associação com outras enfermidades, como doença celíaca, esteatohepatite ou síndrome sobreposição com hepatite autoimune. Para tanto, pode ser necessária uma avaliação serológica adicional e/ou biópsia hepática, a critério do hepatologista. O diagnóstico e tratamento de síndrome de sobreposição com hepatite autoimune serão discutidos no tópico correspondente. A resposta bioquímica ao AUDC e ainda alguns métodos não invasivos para estadiamento são utilizados para acompanhamento clínico dos pacientes com resposta insatisfatória ao AUDC. Vários critérios, descritos acima, já foram propostos para identificar pacientes com maior chance de progressão ao óbito ou transplante. Qual seria o melhor critério entre os vários existentes para selecionar os pacientes com pior prognóstico após início do tratamento com AUDC? Em estudo recente, o “Global PBC Study Group”, composto de 15 centros norte-americanos e europeus, avaliou 2924 pacientes com CBP tratados com AUDC e acompanhados por um tempo médio de 7 anos, e concluiu que os critérios de Rotterdam e Paris I são os mais robustos no que se refere à relação com sobrevida em 10 anos livre de transplante.39 No entanto, outros critérios, como Barcelona e Toronto, também mostraram valor prognóstico independentemente dos critérios de Rotterdam e Paris I. O mesmo grupo – Global PBC Study Group - mostrou ainda ao analisar um total de 4845 pacientes, que tanto a FA quanto a bilirrubina apresentam valor prognóstico.36 Por exemplo, FA > 2 X limite superior da normalidade após 1 ano de tratamento com AUDC se correlacionou com maior frequência de descompensação clínica, óbito ou transplante hepático, com RR 2,49. A bilirrubina sérica acima de 1 mg/dL também se correlacionou com pior sobrevida em 5, 10 ou 15 anos. De enorme importância, o estudo mostrou que a FA e bilirrubina podem ser usados como fatores prognósticos independentemente das características do paciente (sexo e idade maior ou menor do que 45 anos), estádio histológico da doença (inicial ou avançado) e tratamento com AUDC (tratados e não-tratados). Diferentemente da FA, a bilirrubina aumenta tardiamente, quando a doença já progrediu para um estádio onde a função hepática está comprometida. Esses critérios, portanto, são úteis para identificar pacientes com pior prognóstico e que possam se beneficiar de terapias adjuvantes. Apesar dos pacientes com resposta incompleta ao AUDC demonstrarem pior sobrevida em longo prazo quando comparados aos que responderam com normalização ou queda da FA maior do que 40%,29 os primeiros ainda apresentam sobrevida melhor do que a prevista por índices prognósticos, como Mayo Risk Score. Portanto, deve-se continuar com o uso de AUDC na dose recomendada de 13-15 mg/kg/dia. O uso de penicilamina, azatioprina, talidomida, silimarina, colchicina e metotrexato não encontra respaldo na literatura disponível. No entanto, o uso de corticosteroides, como a budesonida, é controverso e será discutido abaixo. A budesonida é um glicocorticoide não halogenado, absorvido no intestino delgado. Em indivíduos saudáveis, 90% da dose administrada oralmente é metabolizada em sua primeira passagem pelo fígado. Comparada à prednisolona, a budesonida é 15-20 vezes mais potente. Dois estudos randomizados, placebo-controlados, incluíram juntos um total de 116 pacientes, e compararam os efeitos da combinação AUDC/budesonida com AUDC/placebo.40,41 Os resultados sugerem que a adição de budesonida 6-9 mg/dia leva a melhora histológica, tanto da inflamação quanto da fibrose, além de melhora dos parâmetros bioquímicos, comparado a pacientes recebendo AUDC/placebo. No entanto, esse beneficio parece se restringir a pacientes em estádio inicial de CBP (estádios I-II); o uso de budesonida em pacientes com estádio IV CBP foi associado ao desenvolvimento de trombose de veia porta, e deve ser evitado. Além disso, o uso prolongado de budesonida também causa efeitos colaterais típicos dos corticosteroides, incluindo um decréscimo na massa óssea. Outros agentes em investigação incluem os fibratos e os agonistas do receptor nuclear farnesoide X (FXR). Os fibratos são agonistas do receptor nuclear PPAR-alpha, com propriedades antiinflamatórias e coleréticas. Vários estudos não controlados vêm mostrando melhora significativa na FA sérica e diminuição do nível de IgM em pacientes com CBP e resposta incompleta a AUDC ao se administrar fibratos.42-51 Nesses estudos, a dose de fenofibrato varia entre 100 e 200 mg/dia, e a dose de bezafibrato foi 400 mg/dia. Uma metanálise incluindo 6 estudos ditos randomizados, todos conduzidos no Japão, concluiu que não há evidências neste momento para confirmar ou refutar um efeito benéfico de bezafibrato em pacientes com CBP.52 Todos os estudos foram considerados com alto risco de viés. Portanto, ainda não há estudo randomizado, placebo-controlado, e de boa qualidade para corroborar o uso de fibratos na prática clinica.. É importante notar que estudo recente no Japão buscou identificar fatores associados com resposta bioquímica aos fibratos, e concluiu que a presença de atividade inflamatória acentuada, fibrose estádio IV e ductopenia importante estavam associados a falta de resposta.53 Portanto, fibratos também parecem ser mais eficazes em pacientes em estádio inicial de CBP (estádios I e II). Efeitos colaterais atribuídos aos fibratos incluem refluxo esofagiano, náusea, mialgia e até hepatite. O ácido obeticólico é derivado sintético, e 100 vezes mais potente, do quenodenoxicólico, agonista natural do receptor nuclear farnesoide X (FXR). Quando ativado, esse receptor é responsável direto pela modulação da síntese, metabolismo e excreção dos ácidos biliares. Em estudos de fase 2, pacientes com CBP e resposta incompleta ao AUDC foram randomizados para receber ácido obeticólico ou placebo em combinação com o AUDC.54,55 O grupo que recebeu ácido obeticólico demonstrou queda significativa da FA sérica comparado ao grupo recebendo placebo. O prurido foi efeito colateral importante, especialmente nos pacientes recebendo doses mais altas de ácido obeticólico. Recomendações 1) Deve-se avaliar a resposta bioquímica após um ano de tratamento com AUDC, a fim de melhor determinar o prognóstico do paciente (Classe IIa). 2) Não há consenso quanto ao melhor conjunto de critérios de resposta ao AUDC. Sugerimos usar uma combinação de bilirrubina ≤ 1 mg/dl e/ou FA ≤ 2X limite superior da normalidade (Classe IIa). 3) Não há consenso quanto ao tratamento dos pacientes com resposta incompleta ao AUDC. Recomenda-se reavaliar a aderência ao tratamento e considerar a possibilidade de diagnósticos alternativos. O uso de budesonida pode ser considerado em pacientes com CBP estádio I-II e resposta incompleta ao AUDC (Classe IIb). 4) Ainda não há evidência suficiente para recomendar o uso rotineiro de fibratos ou agonistas FXR em pacientes com resposta incompleta ao AUDC (Classe IIb). Referencias Bibliográficas: 1. Lindor KD, Gershwin ME, Poupon R, Kaplan M, Bergasa NV, Heathcote EJ, et al. Primary biliary cirrhosis. Hepatology. 2009;50(1):291-308. 2. Francescantonio PL, Cruvinel Wde M, Dellavance A, Andrade LE, Taliberti BH, von Muhlen CA, et al. IV Brazilian guidelines for autoantibodies on HEp-2 cells. Revista brasileira de reumatologia. 2014;54(1):44-50. 3. Nakamura M. 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Diagnóstico Paulo Lisboa Bittencourt (BA) As síndromes de sobreposição (SS) foram inicialmente descritas pelo achado em um mesmo paciente de características típicas de mais de uma doença hepática autoimune (DHAI). Estas SS podem se manifestar conjuntamente ao diagnóstico de DHAI ou surgirem sequencialmente durante sua evolução. A maioria dos casos de SS descritos em adultos ocorre entre CBP e HAI (HAI/CBP), enquanto que a SS de CEP e HAI (HAI/CEP) é mais comumente encontrada em crianças. A sobreposição de CBP e CEP é raramente relatada.1,2 As SS podem ser consideradas como: 1) apresentação sequencial de duas doenças distintas, 2) presença concomitante de duas DHAI bem definidas, 3) espectro contínuo e flutuante de alterações clínicas, laboratoriais e histológicas comuns a mais de uma DHAI, 4) entidade bem definida e bem caracterizada de sobreposição entre duas DHAI ou 5) presença de uma DHAI bem definida com características peculiares a outras DHAI.1,3 A dificuldade na caracterização das SS é decorrente da ausência de critérios diagnósticos uniformes que facilitem sua identificação; presença de várias designações arbitrárias e imprecisas, tais como formas mistas e variantes, síndromes de imbricamento, síndromes marginais e de sobreposição, incluindo ainda colangite autoimune e colangite esclerosante autoimune (CEA), proposições recentes para denominar, respectivamente, HAI/CBP e HAI/CEP.1,2 O termo colangite autoimune foi criado para caracterizar pacientes com critérios clínicos, laboratoriais e histológicos de CBP sem AAM que apresentassem AAN e resposta a imunossupressão (IS). Ele não é mais empregado por se reconhecer atualmente que estes pacientes são apenas portadores de uma variante sorológica da CBP. A adoção do termo CEA é controversa, sendo mais empregada para descrever HAI/CEP em crianças.4 Por outro lado, as manifestações clínicas, laboratoriais e histológicas das SS são muito variadas, sendo importante ressaltar que muitas das características típicas de uma DHAI podem ser observadas em outra DHAI sem caracterizar obrigatoriamente presença de SS (Tabela 5). Não existe agente etiológico ou mecanismo patogênico peculiar nas SS, muito embora a predisposição genética ligada ao HLA seja compartilhada na HAI e CEP.5,6 O impacto da presença destas manifestações de SS de mais de uma DHAI na história natural da doença também não é bem conhecida, mas tem sido descritas maior frequência de falência terapêutica com IS, maior risco de progressão para cirrose hepática (CH), descompensação da CH, óbito e indicação de transplante na HAI/CEP quando comparada a HAI.1-4,7 O prognóstico da HAI/CEP é melhor do que aquele relacionado a CEP e pior do que aquele relacionado a HAI.2 Por outro, alguns estudos demonstraram menor resposta ao AUDC, maior progressão da CH e maior risco de descompensação da CH na HAI/CBP, quando comparada a CBP clássica.8 Mais de 350 casos de SS foram relatados na literatura médica incluindo: 1-4,7 1) Pacientes com critérios de HAI que apresentavam a) perfil bioquímico colestático ou misto, b) elevação de IgM, c) lesão biliar ou granulomas, d) ausência de marcadores sorológicos e/ou presença de AAM ou anti-M2, e) ausência de resposta ao tratamento imunossupressor, f) associação com doença inflamatória intestinal (DII), g) achados colangiográficos compatíveis ou sugestivos de CEP. 2) Pacientes com critérios de CBP que exibiam a) elevação desproporcional de aminotransferases acima de 5 vezes o valor normal, b) elevação de IgG, c) ausência de AAM e/ou anti-M2, d) presença de AAN e/ou AAML, e) atividade histológica portal e lobular proeminentes ou achados típicos de HAI, f) ausência de resposta ao AUDC e g) resposta ao tratamento com IS. 3) Pacientes com critérios de CEP ou colangite esclerosante de pequenos ductos que tinham: a) elevação desproporcional de aminotransferases, b) presença de AAN e/ou AAML, c) atividade histológica portal e lobular proeminentes ou achados típicos de HAI, d) granulomas e e) resposta a IS. Vários estudos tentaram caracterizar a presença de HAI/CBP usando critérios descritivos, incluindo os critérios de Paris (Tabela 6)7 e os critérios originais, revisados e simplificados do International Autoimmune Hepatitis Study Group (IAIHG).2 Nestes relatos, HAI/CBP foi identificada em 1%-11%, 7%, 3%-25% e 6% dos pacientes com diagnóstico inicial de HAI ou CBP empregando, respectivamente, os critérios de Paris e os critérios originais, revisados e simplificados do IAIHG.7 Empregando os critérios revisados do IAIHG, foi reconhecida a presença de HAI/CEP em 7,4-14% dos pacientes com CEP.2 Por outro lado, achados colangiográficos de CEP foram encontrados em 49% das crianças com HAI e em apenas 1,7%-10% dos adultos com a doença.4,9,10 Devido a dificuldade em se estabelecer critérios diagnósticos padronizados na literatura, a maioria dos autores prefere não considerar a SS como uma entidade nosológica distinta. Recentemente, o IAIHG recomendou que o diagnóstico de SS, não seja baseado no emprego dos critérios propostos para diagnóstico de HAI e que sempre seja enfatizando a DHAI preponderante no paciente adicionando-se ao diagnóstico principal de HAI, CBP, CEP ou colangite esclerosante de pequenos ductos, a presença e características da doença secundária que esteja em sobreposição com a principal.2 Os aspectos histológicos e colangiográficos são importantes para a caracterização da HAI com características de CEP ou vice e versa. Por outro lado, elevação desproporcional de aminotransferases > 5 vezes o valor normal e presença de hepatite de interface são importantes para caracterizar CBP com características de HAI. Os critérios de Paris (Tabela 6) foram considerados pela European Association for the Study of the Liver (EASL) como de alta acurácia para diagnóstico de SS de HAI e CBP, sendo recomendado sempre considerar evidência histológica de hepatite de interface para caracterizar HAI com características de CBP ou vice e versa.3 Recomendações: 1) Doenças autoimunes do fígado devem ser categorizadas de acordo com suas características predominantes como HAI, CBP, CEP e colangite esclerosante de pequenos ductos. Síndromes de sobreposição não devem ser consideradas entidades diagnósticas distintas uma vez que as manifestações clínicas, laboratoriais e histológicas das SS são muito variadas e muitas das características típicas de uma DHAI podem ser observadas em outra DHAI sem caracterizar obrigatoriamente presença de SS (Classe IIb). 2) .Na presença, em um mesmo indivíduo, de características clínicas, laboratoriais, histológicas e colangiográficas relevantes de mais doença autoimune, deve-se acrescentar ao diagnóstico da doença autoimune preponderante a presença das características de outra doença (Classe IIb). 3) Critérios de pontuação do IAIHG não devem ser empregados para categorizar subgrupos de pacientes com HAI/CEP e HAI/CBP (Classe IIa). 4) O manejo dos pacientes com HAI com características de CEP, e vice e versa, e HAI com características de CBP e, vice e versa, deve ser conduzido preferencialmente em centros de referencia com expertise para diagnóstico e tratamento dessas síndromes (Classe IIb) 5) Os critérios de Paris podem ser úteis para caracterização de HAI/CBP, mas não estão suficientemente validados para aplicação diagnóstica rotineira (Classe IIb). Tópico II. Tratamento Alberto Queiroz Farias Imunossupressão com corticosteróides (prednisona ou budesonida) isoladamente ou preferencialmente associado à azatioprina é o tratamento-padrão para a HAI. O AUDC, por outro lado, é recomendado para a CBP, visando reduzir a progressão da doença, tendo impacto na sobrevida livre de transplante de fígado. O uso de AUDC para a CEP é controverso, mas foi associado a melhora bioquímica da doença em doses convencionais (13-15 mg/kg/dia) e elevadas (17-23 mg/kg/dia) e a efeitos adversos com maior risco de descompensação da doença e menor sobrevida no uso de doses ainda mais elevadas (28-30 mg/kg/dia).7,11 Não existem estudos randomizados bem conduzidos na literatura que tenham incluído um número significativo de pacientes bem caracterizados com HAI/CBP e HAI/CEP. É importante também ressaltar que os critérios diagnósticos para definição de SS e os parâmetros referentes a resposta terapêutica nestes estudos não foram padronizados. Alguns estudos retrospectivos e relatos de caso avaliaram tratamento da HAI/CBP e HAI/CEP com AUDC, IS ou AUDC associado a IS (AUDC+IS). A maioria relatou melhora bioquímica com uso de AUDC+IS.2,7 Estudos da Alemanha, Japão e Reino Unido7,12,13 incluindo 58 pacientes com HAI/CBP, que foram tratados com AUDC+IS, descreveram resposta bioquímica na maioria dos pacientes tratados. Estudo francês avaliando tratamento de 17 pacientes com HAI/CBP tratados com AUDC (n=11) ou AUDC+IS (n=6) seguidos por 7,3 anos, descreveu melhora bioquímica mais frequente e redução significante de progressão da fibrose no grupo que recebeu AUDC+IS. Resultados diferentes foram relatados em outro estudo15 que não observou diferença na resposta ao AUDC nos pacientes com HAI/CBP e CBP. Meta-análise recente envolvendo sete estudos relatou maior resposta bioquímica e histológica no grupo de pacientes tratados com AUDC+IS quando comparados aqueles tratados apenas com AUDC.16 O IAIHSG recomenda individualizar o tratamento dos pacientes com CBP com características de HAI ou vice e versa.2 O uso de AUDC pode ser associado ao emprego de corticoides com ou sem azatioprina para o tratamento destes pacientes. Alternativamente, pode-se iniciar tratamento com AUDC, considerando a adição da IS nos casos de resposta não satisfatória.2,8 Relatos de caso de resposta bioquímica com uso de ciclosporina ou micofenolato de mofetil, em substituição a azatioprina, já foram descritos para pacientes refratários a IS convencional.2,8 O tratamento da HAI/CEP com IS ou AUDC+IS foi associado a melhora bioquímica em vários casuísticas e relatos de casos,2,11 com maior frequência de resposta sendo observada em pacientes pediátricos.4 Pequenas casuísticas da Holanda (n=9) e Itália (n=7) relataram melhora bioquímica nos pacientes com HAI/CEP tratados com IS ou AUDC+IS.17,18 Estudos subsequentes do Reino Unido e Suécia descreveram reposta bioquímica, respectivamente, em 14/16 e 16/24 pacientes tratados com IS.7,19 Estudo alemão subsequente20 também demonstrou melhora bioquímica com IS associada ou não ao AUDC na maioria dos pacientes com HAI/CEP, mas progressão da doença para cirrose hepática, a despeito da resposta, foi documentada em 75% dos casos no intervalo médio de 12 anos. Em crianças, a resposta ao tratamento com AUDC+IS foi melhor do que aquela relatada para adultos com resposta bioquímica observada em 23/27 pacientes tratados.4 O IAIHG recomenda individualizar o tratamento dos pacientes com HAI com características de CEP ou vice e versa.2 O uso de corticoides com ou sem azatioprina deve ser considerado para o tratamento destes pacientes. O consenso da EASL recomenda associação de tratamento com AUDC,3 diferentemente do consenso americano que não indica uso do AUDC para CEP ou HAI/CEP. 2,11 Recomendações: 1) Pacientes com CEP e CBP com características de HAI devem ser considerados para tratamento imunossupressor (Classe IIb) 2) Pacientes com HAI com características de CBP podem se beneficiar do uso combinado de AUDC e de tratamento imunossupressor (Classe IIb). 3) A adição de AUDC, em doses convencionais, a IS em pacientes com HAI com características de CEP pode ser aventado, mas os dados são ainda mais escassos quando comparados com aqueles disponíveis para a HAI com características de CBP. Referências: 1. Couto CA ; Bittencourt PL. Controvérsias no diagnóstico e tratamento da Hepatite Autoimune. In: Paulo Roberto Savassi Rocha; Luiz Gonzaga Vaz Coelho; Marcelo Sanchez. (Org.). Tópicos em Gastrenterologia XIII. Rio de Janeiro: MEDSI, 2004 2. Boberg KM, Chapman RW, Hirschfield GM, Lohse AW, Manns MP, Schrumpf E. Overlap syndromes: the International Autoimmune Hepatitis Group (IAIHG) position statement on a controversial issue. J Hepatol. 2011;54(2):374-385. 3. EASL Clinical Practice Guidelines: management of cholestatic liver diseases. J Hepatol. Aug 2009;51(2):237-267. 4. Gregorio GV, Portmann B, Karani J, et al. Autoimmune hepatitis/sclerosing cholangitis overlap syndrome in childhood: a 16-year prospective study. Hepatology. Mar 2001;33(3):544-553. 5. Bittencourt PL, Goldberg AC, Cancado EL, Porta G, Carrilho FJ, Farias AQ, et al. Genetic heterogeneity in susceptibility to autoimmune hepatitis types 1 and 2. Am J Gastroenterol 1999; 94:1906-13. 6. Bittencourt PL, Palacios SA, Cancado EL, Porta G, Carrilho FJ, Goldberg AC. Susceptibility to primary sclerosing cholangitis in Brazil is associated with HLA- DRB1*13 but not with tumor necrosis fator alpha -308 polymorphism. Gut 2002; 51: 609-610. 7. Al-Chalabi T, Portmann BC, Bernal W, McFarlane IG, Heneghan MA. 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Zhang Y, Lu J, Dai W, Wang F, Shen M, Yang J, Zhu R, Zhang H, Chen K, Cheng P, He L, Wang C, Xu L, Zhou Y, Guo C. Combination therapy of ursodeoxycholic Acid and corticosteroids for primary biliary cirrhosis with features of autoimmune hepatitis: a meta-analysis. Gastroenterol Res Pract. 2013;2013:490731. 17. van Buuren HR, van Hoogstraten HJE, Terkivatan T, Schalm SW, Vleggaar FP. High prevalence of autoimmune hepatitis among patients with primary sclerosing cholangitis. J Hepatol 2000;33:543–548. 18. Floreani A, Rizzotto ER, Ferrara F, Carderi I, Caroli D, Blasone L, Baldo V. Clinical course and outcome of autoimmune hepatitis/primary sclerosing cholangitis overlap syndrome. Am J Gastroenterol 2005; 100: 1516–22. 19. Olsson R1, Glaumann H, Almer S, Broomé U, Lebrun B, Bergquist A, Björnsson E, Prytz H, Danielsson A, Lindgren S. High prevalence of small duct primary sclerosing cholangitis among patients with overlapping autoimmune hepatitis and primary sclerosing cholangitis. 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O prurido é o principal sintoma da colestase intra-hepática da gravidez (CIHG), ocorre em 70%-80% dos pacientes com CBP e CEP, diminuindo de frequência com a progressão da doença, e em 16%-45% das colestases obstrutivas por cálculo ou tumor.1 O prurido pode ser leve e tolerável, mas pode também reduzir de forma dramática a qualidade de vida do paciente, gerando privação do sono, fadiga, sintomas depressivos e até ideação suicida. O prurido na colestase exibe um ritmo circadiano, com maior intensidade no período vespertino e noturno. Ele habitualmente é generalizado, mas pode ter distribuição específica nos membros, palmas e plantas. A pele não apresenta lesões primárias, mas escoriações e prurigo nodularis podem ser vistos. A dor desencadeada pelo ato de coçar de forma vigorosa se associa ao alívio do prurido. Nas mulheres, o prurido se exacerba na fase pré-menstrual e no final da gravidez. O mecanismo fisiopatogênico do prurido colestático ainda não é bem definido. Estudos recentes mostraram que o prurido e a dor são transmitidos por vias aferentes distintas. Substâncias pruritogênicas se ligam a vários receptores nas terminações nervosas na pele. Receptores das famílias da histamina, PAR2, IL-31, TRP, Mrg, bem como o ácido lisofosfatídico (ALP) estão envolvidos na patogênese do prurido. Descobertas recentes indicam que o ALP, um potente ativador neuronal, bem como a autotaxina (ATX), enzima que forma o ALP, são elementos chave na patogênese do prurido na colestase. Sais biliares, histamina, μ-opióides e serotonina têm sido também implicados na patogênese do prurido colestático, sem nenhuma correlação definida entre seus níveis séricos e a intensidade do prurido. A atividade sérica da ATX, por outro lado, se correlaciona com a intensidade do prurido e com resposta ao tratamento em pacientes com prurido colestático, mas não com outras formas de prurido.1-3 Opções terapêuticas para o prurido na colestase são limitadas a poucos estudos baseados em evidências.3,4 Intervenções devem primariamente focar no tratamento da doença de base, o que muitas vezes leva a melhora do prurido. Então, o racional terapêutico baseia-se nos seguintes passos: 1) Remover o pruritogênio da circulação enterohepática com resinas de troca não absorvíveis como a colestiramina ou o colestipol, na dose de 4 g para a colestiramina 1-4 vezes ao dia. Resinas devem ser dadas com intervalos de até 4 horas de quaisquer outras medicações e, durante seu uso, níveis séricos de vitaminas lipossolúveis devem ser monitorizados. 2) Modificar o metabolismo dos possíveis pruritogênios no fígado ou intestino com indutores enzimáticos como rifampicina. Esta droga, considerada como tratamento de segunda linha, pode ser iniciada na dose de 150 mg/dia, com dose máxima de 600 mg/dia. Enzimas hepáticas devem ser monitoradas pelo risco de hepatotoxidade, que é observado em até 12% dos casos 3) Modificar a percepção da dor e/ou prurido com antagonistas opióides e inibidores seletivos de recaptação da serotonina como o naltrexone e a sertralina. O naltrexone deve ser considerado como terapia de terceira linha, iniciando-se com posologia de 12.5 mg/dia até dose máxima de 50 mg/dia, sendo habitualmente indicada após documentação da falta de eficácia ou intolerância às doses máximas de colestiramina e rifampicina. A sertralina pode ser usada em pacientes resistentes aos tratamentos mencionados acima, na dose máxima de 100 mg/dia; 4) Remover os possíveis pruritogênios da circulação através de métodos invasivos como drenagem nasobiliar ou biliar externa, plasmaférese ou diálise com albumina. As abordagens invasivas devem ser consideradas em pacientes nãoresponsivos ou com colestases familiares. Não há evidência que suporte o uso do AUDC para alívio do prurido nas doenças colestáticas, com exceção da CIHG, onde a droga se torna o agente de escolha para tratamento inicial. O uso de AUDC também pode ser considerado para tratamento da colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC) 1, 2 e 3. Derivação biliar externa, antes da indicação de transplante de fígado, deve ser aventada para o tratamento de casos refratários de PFIC 1 e 2. Transplante de fígado deve ser considerado na PFIC 3 na ausência de resposta ao AUDC. O prurido na colestase intrahepática recorrente benigna (BRIC) pode ser revertido com uso de rifampicina associada ou não a colestiramina.4 O uso dos antihistamínicos para prurido não é recomendado pela falta de eficácia estabelecida. A utilização de escala visual análoga (EVA) pode ser útil na quantificação do prurido e na avaliação da resposta terapêutica: 0 a 3 - prurido leve , 4 a 8 prurido moderado, 9 a 10 prurido intenso.5 A escala 5-D pruritus é também um instrumento confiável para quantificar o prurido crônico, tendo forte correlação com EVA, podendo ser empregada para avaliação do prurido na colestase. 6 Colestiramina, rifampicina, naltrexone e sertralina são drogas recomendadas pelos Guidelines europeus4 e norte-americanos,7 e devem ser prescritos de forma escalonada para o controle do prurido colestático. Pacientes não responsivos a estas medidas devem ser considerados como refratários ao tratamento. Eles podem ser submetidos a terapias experimentais, caso disponíveis, incluindo: ondansetrona (424 mg/dia), fenobarbital (2-5 mg/kg/dia), propofol (10-15 mg IV em bolus, 1 mg/kg/hora), lidocaína (100 mg/dia), fototerapia UVB, diálise com albumina extracorpórea, plasmaférese e drenagem nasobiliar. O transplante de fígado é considerado como ultima opção terapêutica, quando outras intervenções possíveis foram ineficazes ou indisponíveis.2,7,8,9 A opção do transplante de fígado suscita discussões em relação à escassez de órgãos e prioridades para alocação do fígado. Casos refratários de prurido devem ser submetidos de acordo com a legislação brasileira a Câmara Técnica Nacional para avaliação de situação especial, a exemplo do que ocorre para o carcinoma hepatocelular, ascite refratária e casos selecionados de colangite de repetição e encefalopatia. Recomendações 1) Prurido é frequentemente observado nas doenças colestáticas do fígado, tendendo a diminuir ou desaparecer com a progressão da doença para cirrose hepática. (Classe I) 2) O tratamento do prurido deve ser escalonado com medicamentos de 1a linha: colestiramina (4-16 g/dia), 2a linha: rifampicina (150-600 mg/dia), 3a linha naltrexone (12,5-50 mg/dia) e 4a linha: sertralina (50-100 mg/dia). (Classe IIIa) 3) Prurido refratário deve ser considerado na ausência de resposta objetiva com as doses máximas de colestiramina, rifampicina, naltrexone e sertralina. (Classe I) 4) Uso de antihistamínicos e AUDC não pode ser recomendado para tratamento de prurido de forma geral, mas o AUDC pode ser benéfico para a CIHG e casos selecionados de PFIC. (Classe I ) 5) Transplante de fígado deve ser considerado em casos de prurido refratário associado a redução importante de qualidade de vida, na indisponibilidade ou ausência de resposta ao tratamento com outros agentes farmacológicos ou intervenções experimentais. (Classe IIb) Tópico II. Fadiga e hipercolesterolemia Edmundo Lopes (PE) Fadiga é sintoma comum na prática clínica, sobretudo em pacientes com colestase, particularmente nos portadores de CBP. Estima-se que 40%-80% dos pacientes com CBP tenham fadiga, sendo que metade deles acredita que a fadiga seja o principal sintoma da doença. 9,11 Atualmente, alguns autores consideram a CBP uma doença sistêmica, uma vez que os mecanismos fisiopatológicos da fadiga incluem alterações degenerativas do sistema nervoso central que regulam o sono e as funções autonômicas, além da disfunção mitocondrial muscular, que aumenta o metabolismo anaeróbico. A intensidade da fadiga não guarda correlação com a gravidade da doença hepática. Sua avaliação e tratamento em pacientes com colestase são complexos. Inicialmente, faz-se necessário afastar outras causas de fadiga, tais como: depressão, anemia, hipotireoidismo, insuficiência adrenal, uso de medicamentos antidepressivos, antihistamínicos, antihipertensivos e betabloqueadores.4-6 Cerca de 40% dos pacientes com CBP ou CEP apresentam sintomas de depressão, embora não apresentem síndrome depressiva de acordo com os questionários psiquiátricos. Muitas vezes, a fadiga não melhora com o tratamento da depressão.12 Outras vezes, a fadiga está associada à sonolência, podendo ser manifestação do hipotireoidismo, encontrado em 20% dos pacientes com CBP. 13 O tratamento da fadiga associada à colestase é desafiador, pois não foi demonstrada melhora dos escores de fadiga com o uso do AUDC, antidepressivos e ondansetrona. Algumas séries de casos têm demonstrado melhora efetiva dos escores de fadiga com o uso de modafinil, droga usada no tratamento da narcolepsia. O uso do modafinil (100-200 mg/dia) em 42 pacientes com CBP e fadiga grave revelou a melhora dos sintomas em 74% deles nos primeiros 3 dias de tratamento.14 Estudos randomizados são necessários antes da recomendação rotineira do seu uso. Medidas de suporte incluindo intervalos frequentes de repouso, adequação dos períodos de sono com tratamento adequado do prurido e abstinência de cafeína no período vespertino, além de suporte psicológico ou psicoterápico podem melhorar a qualidade de vida do paciente. O transplante de fígado pode ser indicado para tratamento da fadiga incapacitante, apesar de não se associar de maneira inequívoca com a resolução pós-operatória da fadiga. Estudo recente incluindo 49 portadores de CBP com fadiga, submetidos a transplante hepático, demonstrou redução global dos escores de fadiga nos pacientes transplantados. No entanto, metade dos pacientes persistiram com grau moderado a grave de fadiga após 2 anos de evolução pós-operatória.15 Os níveis séricos de colesterol total (CT) estão elevados na maioria dos pacientes com doenças colestáticas, particularmente CBP, incluindo os níveis de LDL e HDL-colesterol, com redução subsequente do CT e do LDL-colesterol com a progressão da doença para cirrose.16 O mecanismo da hiperlipidemia nas doenças colestáticas é diferente daquele observado em outras dislipidemias, uma vez que na colestase ocorre acúmulo de lipoproteína X.17,18 As principais manifestações clínicas da hiperlipidemia na colestase são os xantelasmas e xantomas. Na ausência de outros fatores de risco cardiovasculares, não está confirmado maior risco de aterosclerose e doença cardiovascular cerebral ou coronariana nos pacientes com doenças colestáticas e hiperlipidemia.6,16,17 Embora as estatinas tenham potencial para hepatotoxidade, seu emprego é considerado seguro para tratamento da hipercolesterolemia em pacientes com doenças do fígado e colestase. Estudo prospectivo, controlado, randomizado e duplo-cego (RCT) avaliou uso de pravastatina em pacientes com NASH, hepatite C e indivíduos sem doenças hepáticas. Não foram observadas diferenças nos níveis das aminotransferases entre os grupos, revelando segurança no uso da droga mesmo nos pacientes com alterações prévias dos níveis enzimáticos.18 Mais recentemente, outro RCT (19), avaliou o uso de sinvastatina vs. placebo em pacientes com CBP. Os autores observaram redução dos níveis séricos de colesterol total e de LDL naqueles que receberam a sinvastatina e não identificaram evidências de hepatotoxicidade relacionada a droga. A questão que se levanta para o uso das estatinas em pacientes com colestase e hipercolesterolemia é que ainda não está estabelecido se os riscos de complicações cardiovasculares estão realmente aumentados nestes pacientes.6 Por outro lado, pacientes com colestase com outros fatores de risco para doenças cardiovasculares podem se beneficiar com o uso de agentes hipolipemiantes, incluindo estatinas. Recomendações 1) Fadiga é frequentemente encontrada em pacientes com doenças colestáticas crônicas, particularmente CBP (Classe I) 2) Diagnóstico diferencial com depressão, anemia, hipotireoidismo e uso de drogas indutoras de fadiga tais como antihistamínicos, antihipertensivos, antidepressivos e betabloqueadores deve ser excluído em todo paciente com suspeita de fadiga associada à colestase (Classe IIa) 3) Não existe tratamento aprovado para fadiga. Transplante de fígado pode ser considerado nos casos graves e incapacitantes, principalmente nos portadores de CBP (IIb) 4) Intervalos frequentes para repouso frequente, adequação dos períodos de sono evitando uso de cafeína no período vespertino e suporte psicológico são medidas importantes no manejo da fadiga (Classe IIa) 5) Hiperlipidemia com elevação do colesterol total (CT) e LDL-colesterol são frequentes em portadores de doenças colestáticas, principalmente CBP (Classe I) 6) Não existem dados que demonstrem maior risco de aterosclerose e eventos cardiovasculares em pacientes com colestase crônica e hiperlipidemia (Classe IIb) 7) Não existem dados para recomendar tratamento destes pacientes com drogas hipolipemiantes para redução de risco cardiovascular na ausência de outros fatores de risco para aterosclerose (Classe IIb) 8) Caso o tratamento seja necessário, o uso de drogas hipolipemiantes, incluindo estatinas, é seguro e eficaz para redução dos níveis de CT e LDL-colesterol (Classe I) Tópico III. Osteoporose e osteopenia Luciana Lofêgo Gonçalves A prevalência de osteoporose e fraturas na CBP é maior que a observada em outras doenças hepáticas, variando de 20%-37% e 13%-22% respectivamente. A prevalência de osteoporose e fraturas é menos estudada na CEP, sendo estimada em torno de 15% e 6% respectivamente.20 Por outro lado, o risco de osteopenia e fraturas aumenta ainda mais após o transplante de fígado. A maior parte dos pacientes apresenta uma rápida perda óssea nos primeiros 3 a 6 meses após o transplante, com recuperação dos valores pré-transplante após 2 anos. 21 Uma pequena redução na densidade mineral óssea (DMO) após o transplante é suficiente para aumentar o risco de fratura, que tem uma incidência de 25% a 35% no primeiro ano após o transplante. 22 A perda óssea observada nos primeiros meses após o transplante é decorrente principalmente das altas doses de corticosteróides e também de outros imunossupressores, tais como tacrolimo e ciclosporina. A densitometria óssea é o teste padrão-ouro para o diagnóstico de osteoporose e osteopenia. Deve ser realizada nos pacientes com história prévia de fraturas espontâneas, no período pré- e pós-operatório do transplante de fígado e nos pacientes com HAI que fazem uso crônico de corticosteróides em doses maiores que 5 mg/dia de prednisona. Além dessas indicações, a densitometria deve ser realizada em todos os pacientes com CBP e CEP, assim como nos pacientes com cirrose hepática e colestase crônica, independente da etiologia que apresentem um fator de risco adicional para osteoporose, tais como tabagismo, etilismo, hipogonadismo, amenorréia secundária ou baixo índice de massa corpórea.20-24 Uma nova densitometria óssea deve ser realizada a cada 2 ou 3 anos se o exame inicial for normal. Reavaliação anual é necessária nos pacientes com cirrose hepática avançada, no pós-transplante e naqueles que iniciaram recentemente o uso de corticosteróides em mais doses elevadas. 20,23 O paciente com osteopenia ou osteoporose deve ser orientado a suspender o consumo de álcool e tabaco e evitar uso excessivo de café. A prática de exercício físico regular deve ser incentivada e a dose de corticosteróides deve ser reduzida, sempre que possível. Uma dieta balanceada rica em cálcio e vitamina D é recomendada. Todos pacientes com doença hepática crônica e risco para doença óssea devem receber suplementação de cálcio (1000-1500 mg/dia) e vitamina D (400-800 IU/dia), independentemente dos resultados da DMO. Na presença de deficiência de vitamina D, os níveis devem ser corrigidos pela administração de doses maiores de vitamina D (50.000 UI por semana por 8 semanas) e mantidos acima de 25-30 ng/ml. Especial atenção deve ser dada a pacientes que utilizam colestiramina, pois sua administração reduz a absorção intestinal de vitamina D. 23 O tratamento específico da osteoporose com uso de bisfosfonatos está indicado nos pacientes com osteoporose, nos pacientes com evidência de fraturas espontâneas ou naqueles que fazem uso prolongado de corticosteróides. Pacientes com colestase crônica que apresentem osteopenia com um T escore <-1,5 também devem receber terapia específica. Os bisfosfonatos também estão indicados para prevenção da perda óssea pós transplante, devendo ser iniciados antes ou imediatamente após o procedimento.23 Os trabalhos que avaliaram o uso de bisfosfonatos em pacientes com CBP mostraram benefício desses agentes em aumentar a massa óssea, mas não demonstraram redução na incidência de faturas. Alendronato e ibandronato apresentam resultados semelhantes na melhora da DMO e no perfil de segurança, porém um estudo recente24 mostrou melhor adesão ao tratamento com o uso de ibandronato na dose de 150 mg/mês. O uso de pamidronato, administrado por via endovenosa, no pós-transplante hepático mostra resultados contraditórios em relação a prevenção da perda óssea e redução do risco de fraturas; já o alendronato mostrou benefício em prevenir a perda óssea pós-transplante, porém não houve impacto na redução das fraturas. 20 A administração do ácido zoledrônico25,26 na dose de 4 mg, por via endovenosa, a cada 3 meses foi eficaz em prevenir a perda óssea no primeiro ano após transplante e em reduzir a incidência de fraturas. Recentemente o uso do ibandronato, 27,28 por via oral ou endovenosa, foi avaliado no pós-transplante com resultados favoráveis na melhora da DMO e na redução do risco de fraturas. Recomendações 1) A densitometria óssea é o teste padrão ouro para o diagnóstico de osteoporose e osteopenia e deve ser realizada nos pacientes com história prévia de fraturas espontâneas; uso crônico de corticosteróides; com diagnóstico de CBP ou CEP; em avaliação para transplante de fígado e no pós-operatório do transplante; e com cirrose hepática ou colestase crônica, independente da etiologia, na presença de um fator de risco adicional para osteoporose, tais como tabagismo, etilismo, hipogonadismo, amenorréia secundária ou baixo IMC (Classe I). 2) A densitometria óssea deve ser repetida a cada 2 ou 3 anos se o exame inicial for normal. Reavaliações anuais são necessárias nos pacientes com cirrose hepática avançada, no pós-operatório do transplante de fígado e naqueles pacientes que iniciaram recentemente o uso de corticosteróides em doses elevadas (Classe I). 3) A abordagem da osteopenia ou osteoporose deve incluir modificação estilo de vida, com abstinência do consumo de álcool e tabaco e do uso excessivo de café, além de atividade física regular e dieta balanceada rica em cálcio e vitamina D. 4) Suplementação de cálcio (1000-1500 mg/dia) e vitamina D (400-800 IU/dia), deve ser considerada, independente da densidade mineral óssea (DMO) (Classe IIa) 5) O uso de bisfosfonatos deve ser considerado na presença de osteoporose ( T score<-2,5), fraturas espontâneas, uso prolongado de corticosteróides, colestase crônica com T escore < -1,5 e no pré- e pós-operatório do transplante hepático (Classe IIa). Referências Bibliográficas: 1. Kremer AE, Elferink RPJO, Beuers U. 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Monthly ibandronate for the prevention of bone loss in patients after liver transplantation. 2012;44:1362-1367. MÓDULO VI. SITUAÇÕES ESPECIAIS Coordenadora: Debora Raquel Benedita Terrabuio (SP) Tópico I. Colangite de repetição Janaina Luz Narciso Schiavon (SC) Transplant Proc Os pacientes com doença biliar estrutural devido à CEP, Síndrome de Caroli, doença biliar isquêmica, entre outras, causas têm um elevado risco de colangite bacteriana recorrente1. A presença de obstrução biliar, resulta em estase biliar com colonização bacteriana e possível evolução para colangite. Colangite de repetição é caracterizada clinicamente por episódios recorrentes de febre, calafrios, icterícia e dor abdominal2. No entanto, a clássica tríade de Charcot nem sempre ocorre; e os pacientes podem apresentar quadros inespecíficos ou assintomáticos com piora da bioquímica hepática3, ou ainda bacteremias sem sítio primário estabelecido, que devem ser comprovadas por hemocultura1. Os episódios de colangite podem ocorrer espontaneamente ou secundários a procedimentos invasivos diagnósticos e terapêuticos da árvore biliar, tal como a colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE) ou drenagem transparietohepática4. A despeito do uso de antibióticos as recidivas são frequentes, podendo evoluir para choque séptico. A vigência de infecção biliar nesses pacientes não contraindica a realização do transplante. Em 2006, uma conferência de especialistas promovida pela Rede de Aquisição e Transplante de órgãos nos Estados Unidos (OPTN)1 definiu a necessidade de pontuação adicional para pacientes com maior risco de mortalidade e de remoção durante a espera em fila de transplante. As recomendações para pontuação adicional na colangite de repetição foram: dois ou mais episódios de bacteremia comprovada por hemocultura num período de seis meses ou complicações sépticas de colangite bacteriana (abscesso hepático ou biliar, meningite bacteriana, endocardite bacteriana, osteomielite bacteriana, fungemia). A bacteremia não pode ser iatrogênica (relacionada a procedimento recente de CPRE ou colangiografia transparietohepática),deve ocorrer em paciente sem stent/ prótese biliar, com documentação da necessidade de antibioticoterapia, que não conseguiu suprimir o episódio séptico. Para a pontuação especial é necessário o diagnóstico estrutural preciso da doença biliar, hemocultura do episódio de bacteremia, evidência do uso de antibióticos durante o período da colangite e evidências da impossibilidade de correção de possível lesão estrutural que justifique a sua ocorrência (estenose dominante tratável). Em 2008, a Associação Francesa para estudo das doenças do Fígado e a Associação de Transplante e cirurgia hepatobiliar definiram algumas regras para definir as condições que seriam exceções ao MELD e definir qual seria a priorização nesses casos5. A proposta foi de priorizar automaticamente para transplante de acordo com os critérios abaixo: a) Acesso ao transplante dentro de seis meses nos casos de doença biliar refratária a tratamento com ≥ 2 episódios de colangite bacteriana nos últimos seis meses e/ou ao menos um episódio grave de infecção, incluindo abscesso hepático ou sepse a distância; b) Acesso ao transplante dentro de três meses em pacientes que apresentaram choque séptico, infecção por organismos multirresistentes ou sejam candidatos a retransplante por complicações biliares intratáveis. A colangite bacteriana pode ser sintoma inicial da CEP em até 6,1% dos casos e <10% o paciente desenvolve episódios de repetição6. Apesar de não haver evidências científicas de maior mortalidade em fila de transplante ou de maior risco de exclusão de fila decorrentes das colangites de repetição em CEP, esses episódios favorecem a progressão da doença e acarretam morbidade importante aos pacientes 7. Além disso, embora a morte por colangite bacteriana seja rara1, as complicações sépticas a distância podem afetar significativamente a morbidade e a mortalidade global1,8. Um estudo7 que avaliou 171 indivíduos com CEP na lista de transplante hepático, concluiu que aqueles com colangite bacteriana não apresentam um risco aumentado de mortalidade na lista de espera, entretanto, dados de 2012 da OPTN revelam que 36,4% dos pacientes tem tempo de espera em lista de transplante menor que 1 ano e o MELD médio para transplante foi 22 (dados disponíveis online), o que é diferente da realidade nacional. Nesse estudo, 17,5% foram excluídos de fila de transplante por óbito (10,7%) ou deterioração clínica (9,3%); 46,7% desenvolveram colangiocarcinoma. Complicações tais como resistência antimicrobiana também poderiam orientar a seleção dos casos especiais8. Colangite e sepse podem ocorrer após CPRE em 3-23% dos casos2,9. A obstrução do ducto biliar e drenagem inadequada das vias biliares são os principais fatores de risco9. O uso de antibióticos profiláticos na CPRE é controverso. Vários estudos demonstraram redução nas complicações infecciosas da CPRE quando é feita antibioticoprofilaxia10, especialmente quando há obstrução do ducto biliar2,11. As complicações são menores quando a drenagem da via biliar é eficaz, e isso independe do uso de antibiótico11,12. As Sociedades Americana de Endoscopia Gastrointestinal e a Britânica de Gastroenterologia recomendam antibioticoprofilaxia nos pacientes submetidos à CPRE, sobretudo quando há obstrução biliar 13,14 , habitualmente ciprofloxacino15. Quando há estenose dominante, o uso de antibióticos por curto período não se mostrou eficaz em erradicar bactérias dos ductos biliares15. Há vários estudos que avaliaram antibióticos em longo prazo no tratamento da CEP, como o metronidazol e a vancomicina10,16-18 Na colangite de repetição foi sugerido o uso de antimicrobianos em longo prazo19 ou em rotatividade (amoxicilina-clavulanato, ciprofloxacino, cefalexina), mas há pouca evidência para recomendar essa prática e o risco de induzir resistência aos antimicrobianos3. O consenso da Sociedade Americana para estudo das doenças do fígado recomenda seu uso com baixo grau de evidência científica; já outros serviços não utilizam esse recurso5. Cerca de 10-20% dos pacientes com CEP têm estenose dominante20, ou seja, estenose do ducto biliar comum 1.5 mm de diâmetro ou 1 mm no ducto hepático19, até 40% dos pacientes apresentam colangite bacteriana recorrente. Pacientes com estenoses dominantes têm sobrevida significativamente pior quando comparados àqueles sem estenoses dominantes21, e, embora a maioria seja benigna, a estenose pode ser maligna em 25%3. A sobrevida pode aumentar se for realizada dilatação das estenoses dominantes antes da piora da função hepática, no pré-transplante22-24. Dilatação por balão com ou sem stent é eficaz, mas a melhor conduta ainda é incerta19,25,26. Os procedimentos eletivos têm menor risco de complicação que os procedimentos realizados na emergência27. A seleção dos pacientes é importante porque, se houver doença intrahepática generalizada, a dilatação da estenose extra-hepática pode precipitar colangite intratável3. A abordagem percutânea está associada com aumento da morbidade, mas apresenta eficácia semelhante à CPRE, sendo reservada para pacientes com estenoses proximais dominantes (inacessíveis por CPRE) ou quando houver falha na abordagem endoscópica25,28. Entre as abordagem cirúrgicas, que não o transplante hepático, o bypass biliar por colangioenterostomia não é indicado19,29 e a ressecção da estenose biliar extra-hepática com hepaticojejunostomia em Y de Roux é controversa28,30. Em pacientes com CEP, selecionados, não cirróticos, é descrita sobrevida de 83% em 5 anos e uma taxa de 57% de ausência de colangite em três anos31. Recomendações: 1) Para concessão de pontuação especial por colangite de repetição são necessários dois ou mais episódios de colangite comprovada por hemocultura num período de seis meses ou complicações sépticas de colangite bacteriana (abscesso hepático ou biliar, meningite bacteriana, endocardite bacteriana, osteomielite bacteriana, fungemia). A bacteremia não pode ser iatrogênica (relacionada a procedimento recente de CPRE ou colangiografia transparietohepática) (Classe I). A documentação de infecção de foco biliar (não colonização) por bactérias multirresistentes também deve ser considerada na pontuação especial por colangites de repetição. (Classe IIA). É necessário o diagnóstico estrutural preciso da doença biliar, hemocultura do episódio de bacteremia, evidência do uso de antibióticos durante o período da colangite e evidências da impossibilidade de correção de possível lesão estrutural que justifique a sua ocorrência (estenose dominante tratável). A hemocultura pode ser dispensável se estiver presente a tríade clássica de Charcot ou se for comprovada que a sepse é de foco biliar (Classe IIA). 2) Para prevenção de colangite, deve ser realizada antibioticoprofilaxia naqueles pacientes com obstrução biliar submetidos à CPRE antes e após do procedimento, especialmente quando a drenagem da via biliar for incompleta (Classe IIA) Referências Bibliográficas: 1. Gores GJ, Gish RG, Shrestha R, Wiesner RH. 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Rastreamento e Abordagem do Colangiocarcinoma Tiago Seva-Pereira (SP) Pacientes com diagnóstico de Colangite Esclerosante Primária (CEP) tem risco aumentado, até 100 vezes maior que a população normal, de desenvolvimento de neoplasias de vias biliares, chegando a frequências de 5% a 15%. 1-6 A neoplasia mais comum é o colangiocarcinoma (CC), sendo que até metade dos casos são detectados no primeiro ano do diagnóstico da CEP2,4 e paciente com doenças inflamatórias intestinais (DII) associadas parecem ter taxas de prevalência ainda mais aumentadas.1,2 Alguns fatores foram associados a maior risco, como idade avançada, consumo de álcool, tabagismo, doença inflamatória de maior duração (diagnóstico anterior ao da CEP), histórico de neoplasia colorretal; até o momento não foram identificadas variáveis de prognóstico clinicamente úteis. Os sintomas do colangiocarcinoma podem ser difíceis de serem diferenciados daqueles próprios da CEP, entretanto deve-se suspeitar de sua ocorrência em casos de rápida deterioração clínica1-5. Colangiocarcinoma pode ocorrer também nas doenças císticas das vias biliares, como doença de Caroli, porém outras doenças colestáticas intrahepáticas aparentemente não estão associadas a maior risco de neoplasias de vias biliares5. A neoplasia de vesícula biliar também é mais frequente em portadores de CEP, com prevalência de até 2% ao longo da vida1,4, bem como a neoplasia de pâncreas (risco 14 vezes maior que a população geral). Não existem diretrizes bem estabelecidas ou de consenso para o rastreamento de neoplasias de vias biliares em pacientes com CEP, pois, apesar de esta ser uma população de risco bem definida, não há estudos prospectivos e bem conduzidos que definam um método de rastreamento com boa sensibilidade e acurácia diagnóstica, com benefícios claros na indicação de tratamento ou na melhora da sobrevida para estes pacientes. Mesmo na ausência de diretrizes baseadas em evidências, vários autores sugerem que uma estratégia racional e prática seria a realização periódica de um método de imagem para avaliação do parênquima hepático e das vias biliares, associado a marcadores tumorais para CC.4,7 Entre os exames de imagem, Ressonância Nuclear Magnética (RNM) com Colangio-Ressonância é a modalidade com melhor sensibilidade e especificidade, porém Ultrassom abdominal e Tomografia Computadorizada também podem ser usados. Infelizmente, a acurácia diagnóstica de cada um destes testes é relativamente baixa, com valor preditivo positivo de variando de 23% a 48% para o diagnóstico de colangiocarcinoma na CEP 7,8 O biomarcador mais estudado para o CC é o CA19-9, que tem valores habitualmente maiores em pacientes com CEP e colangiocarcinoma em comparação com pacientes sem a neoplasia. Não há, no entanto, valores de corte bem estabelecidos deste marcador para definição diagnóstica, já que pacientes com CEP sem neoplasia também podem apresentar CA19-9 elevados e há interposição importante dos valores entre pacientes com e sem CC. Valores de CA19-9 ≥ 20 U/ml podem aumentar a sensibilidade da Colangio-Ressonância para até 100%, porém com baixa especificidade (<40%), enquanto valores ≥ 129 U/ml aumentam a especificidade às custas de diminuição da sensibilidade. 7,8 Além disso, valores maiores do marcador estão frequentemente associados a lesões mais avançadas, com prognóstico reservado.4,8,9 A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) com citologia por escova é um método bastante usado para confirmação diagnóstica de Colangiocarcinoma. Entretanto, por ser um método invasivo e com complicações potencialmente graves, não é considerada uma boa opção para o rastreamento. Mais frequentemente é indicada em casos de suspeita clínica, seja por piora da colestase, seja por exame de imagem com achado de estreitamento dominante de vias biliares ou elevação do CA19-9, na tentativa de confirmação diagnóstica.4,7,10 As diretrizes internacionais mais recentes, elaborados pela associação americana (AASLD)11 e Europeia (EASL)10 de hepatologia, não propõem estratégia definida para rastreamento de CC, indicando apenas CPRE com citologia em pacientes com indicação clínica. Para rastreamento de lesões de vesícula biliar, sugere-se ultrassonografia anual, com indicação de colecistectomia em achado de qualquer lesão sólida de vesícula biliar, já que estas podem corresponder a adenocarcinomas em até 50% dos casos, independentemente do tamanho 12. Recomendações: 1) Pacientes com diagnóstico de Colangite Esclerosante Primária têm risco aumentado de desenvolvimento de neoplasias de vias biliares (Classe I). A neoplasia mais comum é o colangiocarcinoma sendo que até metade dos casos são detectados no primeiro ano do diagnóstico da CEP; a taxa de prevalência é aumentada nos pacientes com doenças inflamatórias intestinais associadas (Classe I) 2) A neoplasia de vesícula biliar também é mais frequente em portadores de CEP, bem como a neoplasia de pâncreas (Classe I) 3) Na ausência de evidências científicas precisas, uma abordagem racional seria realizar Ultrassonografia abdominal anualmente (para rastreamento tanto de lesões de vesícula biliar como de colangiocarcinoma) e dosagem de CA19-9 (Classe IIB). A ressonância magnética com colangioressonância seria uma alternativa a ultrassonografia, porém, considerando-se o maior custo e menor disponibilidade no cenário nacional, seria como primeira opção apenas em casos de suspeita clínica ou alteração em achados laboratoriais e/ou de imagem (Classe IIB). 4) Para rastreamento da neoplasia de vesícula biliar é recomendado Ultrassonografia abdominal anual (Classe IIB), devendo-se indicar colecistectomia quando houver pólipos, mesmo aqueles menores que 10mm (Classe IIA) 5) Pacientes com CEP e cirrose hepática devem realizar rastreamento para carcinoma hepatocelular semestralmente, conforme diretrizes para cirrose em geral (Classe I). Referências bibliográficas: 1. Claessen MMH, Vleggaar FP, Tytgat KMAJ, Siersema PD, van Buuren HR. High lifetime risk of cancer in primary sclerosing cholangitis. J Hepatol. 2009 Jan;50(1):158–64. 2. Boberg KM, Bergquist A, Mitchell S, Pares A, Rosina F, Broomé U, et al. 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Transplante em Hepatite autoimune (HAI), cirrose biliar primária (CBP) e colangite esclerosante primária (CEP) Debora Raquel Benedita Terrabuio (SP) Mario Kondo (SP) A HAI, CBP e CEP são as três principais formas de doenças autoimunes hepáticas, que apesar de diferirem em relação ao foco de lesão autoimune, padrão de inflamação e fenótipo clínico, apresentam curso progressivo com risco de evolução para falência hepática e transplante de fígado. As proporções de transplante hepático por HAI e CEP no mundo permanecem estáveis no mundo, cerca de 4-6% em adultos e 4% respectivamente; em locais de baixa prevalência de doença hepática alcoólica e hepatite C crônica, como nos países escandinavos, a CEP pode corresponder a cerca de 16% das indicações de transplante hepático. Em relação a CBP, embora tenha sido descrito aumento da prevalência da doença, a taxa de transplante hepático na Europa apresentou queda de 8% nos anos de 1988 a 2001 para 4% entre os anos de 2000 e 2009; as razões para esse declínio podem estar relacionadas ao melhor conhecimento dessa patologia com diagnóstico realizado em fase mais precoce, com administração de ácido ursodesoxicólico em estágios da doença que permitem aumento da sobrevida1. O transplante hepático nas doenças autoimunes está indicado quando houver evolução para falência hepática, com ocorrência de complicações semelhantes àquelas ocorridas na insuficiência hepática por outras etiologias (ascite, encefalopatia hepática, hemorragia digestiva alta, peritonite bacteriana espontânea) carcinoma hepatocelular, MELD maior ou igual a 15 ou classificação de Child-Turcotte-Pugh modificada B ou C. A incidência de carcinoma hepatocelular é de cerca de 1,9%/ano na HAI, 4-12,3% em 10 anos na CBP e 2%/ano na CEP e sua priorização em fila de transplante deve ser feita conforme indicado para as outras doenças hepáticas crônicas1-4. O prurido incapacitante e resistente ao tratamento que pode ocorrer nas doenças colestáticas, com mais frequência na CBP, não guarda correlação com MELD ou qualquer outro escore prognóstico doença-específico e deve ser também indicação de transplante, conforme comentado em outro item dessa diretriz1-4. Em relação a fadiga, sintoma debilitante comum na CBP e não relacionado ao MELD, não há respaldo em literatura para justificar sua inclusão entre as indicações para transplante hepático na ausência de disfunção hepática significativa, já que embora ocorra diminuição da porcentagem de fadiga no pós transplante, quase metade dos pacientes ainda apresentam fadiga moderada a grave 2 anos após o procedimento, taxas acima do esperado para a população geral1-4,5. Na CEP, a ocorrência de colangites de repetição relacionadas a estenoses dominantes da via biliar intra ou extra-hepática requer avaliação para transplante hepático, conforme já discutido em outra seção dessa diretriz1-4. O consenso da sociedade europeia para estudo das doenças hepáticas orienta que pacientes portadores de CBP sejam avaliados para transplante quando apresentarem BT ≥ 6, Escore de risco da Mayo Clinic (escore que considera a probabilidade de sobrevida a curto prazo na CBP, considerando as variáveis idade, Bilirrubina total, albumina, tempo de protrombina, edema periférico/ascite) ≥ 7,8, MELD > 12.2 Em relação a CEP, a recomendação é de se considerar o transplante na doença hepática avançada, bem como na evidência de displasia do epitélio biliar e ocorrência de episódios graves de colangites de repetição.2 Já o consenso americano sugere indicação de transplante para os casos de doença hepática avançada com as complicações decorrentes da hipertensão portal, bem como, prurido intratável, colangites de repetição e colangiocarcinoma (dentro de critérios de seleção bem estabelecidos e com uso de tratamento neoadjuvante).4 Na maioria dos centros de transplante o critério para alocação dos pacientes em fila de transplante é o MELD. O MELD apresenta várias “falhas”, entre elas, a variabilidade de resultados de exames entre diferentes laboratórios em relação a creatinina e RNI, má correlação entre a creatinina e disfunção renal, a não contemplação de situações de risco com maior mortalidade (encefalopatia hepática, hemorragia digestiva alta, ascite refratária e peritonite bacteriana espontânea), a necessidade de pontuação adicional para os casos de carcinoma hepatocelular, baixo poder preditivo de mortalidade a curto prazo em algumas doenças (entre elas as doenças biliares) e fraca predição da mortalidade pós transplante por excluir os fatores relacionados ao doador 6-9. Os estudos que avaliaram o uso de escores prognósticos em CBP evidenciaram que a estratificação pelo MELD foi adequada para estimar a mortalidade em fila de transplante e a sobrevida em curto prazo. Os escores de risco doença-específicos, como o escore de risco da Mayo Clinic, apresentam maior poder preditivo de complicações que o MELD e Child, boa aplicabilidade clínica, tendendo a superestimar o risco de óbito no período pré tratamento. Estudo recente com avaliação desses escores no período pós tratamento, revelou que o escore de risco da Mayo Clinic apresenta alta sensibilidade (100%) e especificidade (89%), com valor preditivo negativo de 100% e baixo valor preditivo positivo, de 38%.10 Esse escore, quando comparado ao Modelo Europeu (variáveis analisadas – bilirrubina, ascite, albumina, idade e hemorragia digestiva alta) e o modelo de Yale (variáveis analisadas – hepatomegalia, bilirrubina ≥ 5 ou < 1,5, fibrose portal, idade) apresentou o melhor poder preditivo de complicações/mortalidade relacionadas a doença hepática, mas com risco de classificar como de alto risco um paciente com bom prognóstico. 10 Nesse estudo, o MELD ≥ 8 se correlacionou com maior risco de transplante ou óbito relacionado a doença hepática. Até o momento, não há estudos em literatura recomendando o uso desses escores como critério para alocação dos pacientes com CBP em fila de transplante.10 Em relação a CEP, o uso de escores prognósticos doença-específicos não é recomendado.2-4 O Serviço Nacional de Transplantes do Brasil (SNT) admite a inclusão de prurido intratável como situação especial desde que adequadamente tratado (uso de medicamentos tópicos e sistêmicos até sua exaustão) e sem resposta clínica razoável (comprovação fotográfica das lesões cutâneas de xerose e escoriação). Na CEP, o SNT prevê a possibilidade de pontuação especial para os casos de colangites de repetição ou um abcesso hepático ou que, como consequência de tratamentos de complicações infecciosas anteriores, haja colonização por germes multirresistentes. Episódios de descompensação relacionados a fatores desencadeantes como infecções, embora traduzam a baixa reserva funcional do fígado, podem, quando tratados adequadamente, trazer o paciente de volta a uma situação de estabilidade clínica duradoura e não necessariamente devem desencadear o processo do transplante. Particularidade da HAI são os episódios de reativação da doença, seja por alterações nas doses dos imunossupressores em uso, má adesão ao tratamento ou agudização espontânea. Nessas condições, o fígado crônico pode sofrer uma injuria aguda com consequente perda de função que, num cenário de reserva limítrofe, resulta no desenvolvimento de complicações da cirrose hepática e necessidade de transplante hepático. Nesses casos deve-se ajustar a imunossupressão (avaliando o risco de complicações infecciosas), tratar os fatores desencadeantes e caso o déficit funcional seja permanente o transplante hepático está indicado. A ausência de resposta terapêutica, na ausência de disfunção hepática não deve ser critério para indicação de transplante. Nos pacientes com CBP e CEP, a manutenção do ácido ursodesoxicólico após a inclusão em fila de transplante hepático é discutível, pelo alto custo da medicação e pela ausência de benefícios em sobrevida, entretanto tal fato não é abordado nos estudos em literatura. Na HAI, quando o transplante for iminente (na dependência do tamanho da lista de espera regional e da gravidade do paciente) é licito pensar em diminuir ou interromper a imunossupressão uma vez que esta atitude minimiza o risco de infecção em fila de transplante e no transoperatório. Outra particularidade da HAI se refere a apresentação fulminante, que pode ocorrer em 8,7 a 19,8% dos casos11,12. O manejo de pacientes com esse tipo de apresentação ainda é desafiador, uma vez que os dados disponíveis são escassos e baseados em pequenos estudos retrospectivos e séries de casos. O grande desafio é fazer o diagnóstico correto o mais precocemente e diferenciar essa condição de outras causas de doença hepática aguda. Os critérios do Grupo Internacional de HAI e os critérios simplificados estão mais bem estabelecidos em casos de doença mais branda e parecem apresentar limitações nos casos de doença aguda grave. Os marcadores clássicos de HAI como a hipergamaglobulinemia e positividade de autoanticorpos podem estar ausentes numa fase inicial da apresentação aguda e sua ausência não necessariamente exclui o diagnóstico. Nos Estados Unidos, até 20% dos casos de insuficiência hepática aguda grave são de causa indeterminada e até 50% dos casos criptogênicos podem apresentar diagnóstico provável de HAI11,12. Quanto mais precoce o diagnóstico, mais rapidamente é introduzido o tratamento e maior a chance de diminuir a evolução para transplante hepático, tratamento necessário para a maioria dos casos. A biópsia hepática pode ser útil, mas nem sempre apresenta os achados mais característicos da HAI de apresentação crônica, particularmente nos casos hiperagudos. Ainda não está bem estabelecido em literatura qual o tipo mais adequado de corticoide, a dosagem, a forma de administração (via oral ou endovenosa) e a duração do tratamento. A maioria dos estudos utiliza prednisolona, preferencialmente endovenoso, na dose de 20 a 100mg/d (maioria 40mg/d) e na infância de 1mg/kg/d11-13. Cerca de um terço dos pacientes respondem ao tratamento com corticoide, alguns fatores se correlacionam com maior chance de resposta ao tratamento: MELD ≤ 28 na admissão, ausência de necrose maciça na histologia, melhora ou estabilização dos níveis de bilirrubina e RNI nos primeiros 4 dias de tratamento. A falha de resposta com 7 dias de tratamento deve ser critério para suspensão de corticoide e indicação de transplante. A manutenção do corticoide nos pacientes que não melhoram não altera a evolução da doença e pode resultar em sérios efeitos colaterais com aumento do risco de infecção/ sepse. Deve-se indicar transplante precocemente a despeito do uso do corticoide, suspendendo sua indicação na eventual melhora do paciente. Mesmo em centros de experiência, a mortalidade pode chegar até 30%11-13. O transplante nas doenças autoimunes apresenta bons resultados, com taxas de sobrevida de acima de 90% em 1 ano e 80-85% em 5 anos na CBP, 90% em 1 ano e 80% em 10 anos na CEP2 e 80-90% em 5 anos na HAI1. Pode haver recidiva da doença após transplante, em cerca de 30-35% dos casos de CBP, 30% dos casos de CEP e 12-46% na HAI (variabilidade da frequência de recidiva por ausência de uniformização nos critérios diagnósticos e realização ou não de biópsia protocolar no pós transplante)1,14,15. Os fatores de risco para recidiva no pós transplante ainda não estão bem estabelecidos para CEP e a ciclosporina parece ser protetora nos transplantados por CBP1,15. Na HAI a atividade necro-inflamatória do explante e níveis aumentados de imunoglobulina G parecem acarretar maior risco de recidiva da doença no pós transplante e pacientes transplantados por HAI tipo 2 parecem recidivar menos que na HAI tipo 11,14. A manutenção do corticoide por toda vida no transplante hepático por HAI ainda é controversa, alguns estudos não encontraram sua suspensão como fator de risco para recidiva da doença mas, definitivamente, esses pacientes necessitam de maior imunossupressão no pós transplante, habitualmente com duas ou três drogas, para diminuir o risco de recidiva da doença e evolução para disfunção do enxerto. Recomendações 1) A indicação de transplante em HAI, CEP e CBP segue as mesmas indicações que os transplantes por outras etiologias (Classe I) 2) Algumas indicações são específicas de cada doença devem ser consideradas como situação especial para pontuação adicional ao MELD, incluindo a colangite de repetição na CEP e prurido cutâneo intratável na CBP e na CEP (Classe I) 3) Na HAI a refratariedade ao tratamento, na ausência de disfunção hepática, não deve ser critério para indicação de transplante (Classe IIA). 4) Na reativação da doença por alterações nas doses dos imunossupressores em uso, má-adesão ao tratamento ou agudização espontânea, pode haver injuria aguda em fígado crônico com perda de função, descompensação clínica e necessidade de transplante hepático. Nesses casos deve-se ajustar a imunossupressão (avaliando o risco de complicações infecciosas), tratar os fatores desencadeantes e caso o déficit funcional seja permanente o transplante hepático pode estar indicado (Classe IIA) 5) O uso de escores prognósticos doença-específicos para alocação dos pacientes em fila de transplante ainda precisa ser melhor estabelecido, até o momento o MELD parece ser o melhor critério (IIA) 6) Com relação ao manejo pré-transplante, deve-se considerar na HAI a interrupção dos imunossupressores quando o transplante for iminente (Classe IIB) 7) A manutenção do ácido ursodesoxicólico no momento da inclusão em fila de transplante na CBP e CEP é discutível, frente ao custo da medicação e o seu impacto na sobrevida nesse momento da doença (Classe IIB) 8) Na hepatite aguda grave, uma vez afastadas outras causas, ainda que não sejam encontrados os marcadores mais patognomônicos de HAI, considerar o tratamento com corticoide especialmente se o diagnóstico for provável para HAI de acordo com os critérios do Grupo Internacional de HAI (I). A preferência é pelo uso de prednisolona via oral ou endovenosa, mas a dosagem ainda precisa ser melhor estabelecida (Classe IIA). O tratamento deve ser reavaliado em 5 a 7 dias e o corticoide deve ser suspenso na ausência de melhora clínica e laboratorial. O transplante deve ser indicado precocemente (Classe IIB) 9) Pacientes transplantados por HAI devem receber imunossupressão mais alta no pós transplante, dupla ou tríplice. Não há consenso sobre a necessidade de manutenção dos corticoides por tempo indefinido (Classe IIA). 10) A realização de biópsia protocolar pode aumentar o diagnóstico da recidiva no pós transplante, numa fase assintomática da doença, quando os benefícios do tratamento ainda não estão bem estabelecidos (Classe IIB). Não há consenso sobre o papel da biópsia protocolar na CBP e CEP (Classe IIB). Referências bibliográficas 1. Neuberger JM, Carbone M. Autoimmune liver disease, autoimmunity and liver transplantation. J Hepatol. 2014 Jan;60(1):210-23. 2. 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Sistema de escore para o diagnóstico de HAI, 1993,1999 Parâmetros Sexo feminino +2 Fosfatase Alcalina: AST/ALT (número de x acima do normal) < 1,5 +2 1,5-3,0 0 > 3,0 -2 Globulinas, Gamaglobulinas ou IgG (número de x acima o normal) >2,0 +3 1,5-2,0 +2 1,0-1,5 +1 <1,0 0 Auto-anticorpos (títulos pela IFI, em cortes de ratos) Adultos: AAN,AAML, anti-LKM1 >1/80 +3 1/80 +2 1/40 +1 <1/40 0 Crianças: AAN, AAML, anti-LKM1 >1/20 +3 Crianças: AAN, anti-LKM1:1/10-1/20 +2 Crianças: AAML 1/20 +2 Crianças: AAML 1/10 +1 Marcadores virais AntiVHA IgM, AgHBs ou antiHBc IgM positivo -3 AntiVHC e RNA do VHC positivos -3 AntiVHA IgM, AgHBs, antiHBc IgM ou antiVHC negativos +3 História de uso recente de drogas hepatotóxicas positiva/negativa Consumo alcoólico: < 25g/dia >60g/dia -4/ +1 +2 -2 Outra doença auto-imune no paciente ou em familiar de primeiro grau +2 Histologia: Hepatite de Interface +3 Rosetas +1 Infiltrado inflamatório acentuado e predominantemente de plasmócitos +1 Nenhuma das alterações acima -5 Alterações biliares sugestivas de CBP e CEP -3 Outra alteração sugestiva de outra etiologia -3 Auto-anticorpos auxiliares em pacientes com ANA, SMA ou anti-LKM1 negativos: Anti-SLA/anti-LP, anti-LC1, antiproteína específica hepática, antireceptor de asialoglicoprotéina, antiantígeno de membrana plasmática de hepatócito humano ou antifração glicoesfingolipídea da membrana +2/0 plasmática de hepatócito: positivo/negativo HLA DR13 ou DR3 para HAI-1 e HLA DR7 e DR3 para HAI-2 (adaptados para o Brasil) +1 Resposta Terapêutica Completa +2 Recidiva durante ou depois da retirada do tratamento após resposta completa Inicial Diagnóstico definitivo: antes do tratamento Após o tratamento +3 >15 >17 Diagnóstico provável: antes do tratamento 10-15 Após o tratamento 12-17 Tabela 2. Escore simplificado para diagnóstico de HAI, 2008 Parâmetros ANA ou SMA ou ANA ou SMA ou anti-LKM1 ou anti-SLA IgG Histologia Vírus Resultados Escore 1/40 +1 1/80 +2 ≥ 1/40 +2 positivo +2 Acima de 1x VN +1 >1,1 xVN +2 compatível +1 típica +2 Negativos +2 Diagnóstico definitivo ≥7 Diagnóstico provável 6 Tabela 3 - Dados da apresentacão clínica e laboratorial de 246 pacientes com CBP acompanhados no Hospital das Clinicas – FMUSP (dados não publicados) Características Frequência (%) Apresentação clínica inicial Assintomático 101 (41) Prurido 83 (34) Fadiga 52 (21) Hipertensão portal 29 (12) Exames sorológicos AAM 233 (95) AAN isolado 13 (5) Anticorpo anti-gp210* 46 (29) Anticorpo-sp100* 44 (28) Anticorpo anticentromérico* 39 (25) IgM (≥ 2x o valor normal) 122 (50) Doenças autoimunes associadas Síndrome sicca 40 (16) Hipotireoidismo 29 (12) Esclerodermia 21 (9) Fenômeno de Raynaud 20 (8) Psoríase 7(3) Hepatite auoimune 6 (2) Doença celíaca 5 (2) Púrpura trombocitopênica idiopática 4 (1,6) Vitiligo 3 (1,2) Polimiosite 3 (1,2) Doença mista do tecido conjuntivo 2 (0,8) * 159 pacientes testados, AAM: anticorpo antimitocondria, AAN: anticorpo antinúcleo Tabela 4. Diversos critérios de resposta ao tratamento com AUDC em pacientes com CBP (37) Critérios Definição Paris I (24) FA<3X VN, AST <2X VN e BT<1mg/dl após 1 ano de AUDC Barcelona (29) FA queda >40% ou normalização da FA após um ano de tratamento Rotterdam (31) Normalização da bilirrubina e albumina após 1 ano de tratamento quando os dois parâmetros estavam alterados antes do tratamento ou normalização da bilirrubina ou albumina quando os dois parâmetros estavam alterados antes do tratamento. Paris II (30) FA e AST ≤1.5 X VN e BT normal após 1 ano de tratamento Toronto (32) FA <1.67 X VR após 2 anos de tratamento com AUDC Tabela 5: Caracterização clinica, histopatológica e imunológica na hepatite autoimune (HAI), cirrose biliar primaria (CBP) e colangite esclerosante primaria (CEP) HAI CBP CEP Sexo feminino 60%-75% >90% 30-35% Idade Variável 30-65 anos 30-50 anos ALT/AST 3-10x VN, pode ser Normal ou Normal ou pouco normal pouco elevada elevada Pode estar elevada Elevada >3x VN 0-2x VN > 3xVN pode ser normal importante para o não necessária não necessária Fosfatase Alcalina Biópsia hepática diagnóstico Hepatite de interface Típica Alguns casos Alguns casos Inflamação portal Infiltrado Infiltrado Infiltrado linfoplasmocitário linfocitário linfocitário portal portal moderado a portal intenso Alteração biliar Granulomas Em até 24% dos Típica: lesão Típica: colangite casos ductal florida fibro-obliterativa Raros Típico raros, pode ser encontrado Imunoglobulinas (Ig) Hipergamaglobulina, IgM IgG, IgM IgG 1.2-3x VN AAN 70-80% >30% 8%-77% (anti-gp210 anti-Sp100) AAML 70-80% Ocasional 0-83% AAA 70% Raro Raro Anti-SLA 10-30% Ocasional Pode ser positivo pANCA 50-96% atípico Frequente 26-94% 90-95%, Ocasional frequente AAM raro Anti-PDC E2 raro Anti- PDC E2 específico Alterações biliares à CPRM discretas em até ¼ ou RE dos casos ? Típicas em 90%100% dos casos Anti-PDC E2 raro Adaptado de (2,7,9,10) VN: valor normal, AAN: anticorpo antinúcleo, AAML: anticorpo antimúsculo liso, AAA: anticorpo antiactina, Anti-SLA: anticorpo antiantígeno hepático solúvel, p-ANCA: Anticorpo anticitoplasma de neutrófilos de padrão perinuclear, AAM: anticorpo antimitocôndria; CRE: colangiografia endoscópica retrógrada; CPRM: colangiografia por ressonância magnética Tabela 6: Critérios de Paris para diagnostico de Síndrome de Sobreposição CBP-HAI HAI (dois ou mais critérios) ALT > 5 x VN AAML ou IgG > 2 x VN Histologia hepática com hepatite de interface (moderada/acentuada) CBP (dois ou mais critérios) FA > 2 x VN ou GGT > 5 x VN AAM Histologia hepática com colangite crônica granulomatosa Adaptado de (7), VN: valor normal, AAM: anticorpo antimitocôndria, AAML: anticorpo antimúsculo liso, FA: fosfatase alcalina, GGT: gamaglutamiltransferase, ALT: alanino aminotransferase Aumento de fosfatase alcalina (atentar para valores de referência em grupos especiais – crianças, idosos, gestantes) Avaliação da árvore biliar por método de imagem com cortes Colestase extra-hepática Tratamento específico Colestase intra-hepática AAM positivo Fortemente sugestivo do diagnóstico. Considerar biópsia hepática se transaminases > 5X LSN AAM e AAN AAM negativo Biópsia hepática* Figura 1 – Algoritmo sugerido para avaliação paciente com evidência bioquímica de colestase . ** Biopsia não é necessária nos casos AAM negativos mas com anticorpos antinucleares positivos para padrão “nuclear dots” ou “rim-like”