E ENTREVISTA Frederico Mazzucchelli O passado glorioso A necessidade de reconstrução das nações atingidas pela Segunda Guerra Mundial permitiu que os anos 1950 e 1960 fossem ímpar na história mundial: com crescimento econômico e a geração de empregos. Ao pesquisar sobre esse período da história, o economista Frederico Mazzucchelli os chama de dias ensolarados e os aponta como o ápice de um capitalismo com forte presença do Estado. Confira, nesta entrevista à Rumos, quais foram os consensos acertados entre os países que levaram a tempos tão únicos Por Thais Sena Schettino R umos – A obra faz um contraponto interessante ao pensamento muito disseminado hoje de que o Estado de bem-estar social seria incompatível com uma sociedade em recuperação econômica... No entanto, no pós-guerra, foi possível crescer com melhor qualidade de vida nas sociedades europeias. Como isso foi possível naquela época? Por que essa questão permite uma reflexão interessante no contexto atual? Frederico Mazzucchelli – Para começar essa discussão do pós-guerra, não podemos desconsiderar o que veio antes, que foi a depressão econômica dos anos 1930 (Crise da Bolsa de Valores), e depois, vem o desastre da Segunda Guerra. A guerra teve um aspecto que é muito importante que ninguém vê toda a sociedade, e ninguém vê mulheres, crianças, todos sentiram os efeitos da guerra. E uma vez que foi eliminado, o nazismo, a tarefa que se colocava era de como se reconciliam as sociedades. E com base em que valores? Com base em que supostos? É importante reter que a construção do pósguerra se fez a partir de um consenso político que, depois, veio a ter vários matizes, mas que havia um consenso em relação a certos pontos elementares. Em primeiro lugar, a participação do Estado. Ele é visto como central, essencial para se conseguir reconstruir os países e recolocá-los no caminho do crescimento. Em segundo lugar, em decorrência da guerra fria, havia um apoio automático aos Estados Unidos. Do ponto de vista da geopolítica norte-americana, era fundamental apoiar o capitalismo na Europa e no Japão. Depois de passados dois, três anos do final da guerra, a Alemanha e o Japão, que eram os outrora inimigos, se converteram nos principais aliados. Foi muito importante o apoio dos Estados Unidos tanto na reconstrução como na condução da própria política econômica norte-americana. Quer dizer, os Estados Unidos passaram a conviver com déficits do balanço de pagamento e esses déficits foram muito importantes para que os demais países tivessem os dólares suficientes para poder emprestar para o Estados Unidos. A superioridade norte-americana com relação ao conflito era absurda, cerca de 60% da produção manufatureira mundial. Logo, no âmbito interno dessas sociedades se forjou aquela convicção de que do berço à sepultura cabe ao Estado zelar pelos cidadãos, e isso era muito forte, sobretudo na Inglaterra. Todos estavam convictos de que era fundamental abraçar o pleno emprego. Então, a defesa do pleno emprego, a defesa do bem-estar social, se construiu um consenso: conservadores ou trabalhistas na Inglaterra; democratas e republicanos nos Estados Unidos; comunistas, socialistas, democratas cristãos na Itália; democratas cristãos e social-democratas na Alemanha etc., todos abraçavam essa ideia de que era fundamental estruturar o funcionamento da economia a partir do suposto do pleno emprego e da vantagem do Estado de bem-estar. Se observarmos a trajetória dos países no pós-guerra, veremos que o Estado esteve presente, o pleno emprego foi alcançado, a produtividade cresceu, os investimentos cresceram, os salários cresceram. Foi um período ímpar na história do capitalismo. Tivemos uma conjunção de fatores que permitiram esses resultados absolutamente auspiciosos. E, claro, que o pano de fundo político disso é o da guerra fria. Mas tudo isso só foi RUMOS – 20 – Março/Abril 2015 Os Dias de Sol: A trajetória do capitalismo no pós-guerra Frederico Mazzucchelli Facamp, 238 p., 2014. possível porque se teve o consenso forjado nas agruras, forjado no desespero da depressão e da guerra. Rumos – Mesmo a questão da empregabilidade? Pois houve uma desarticulação dos parques industriais, na Alemanha, principalmente, teve uma queda nos níveis de empre- Divulgação Rumos – É possível supor que se não houvesse intervenção estatal, essa recuperação econômica demoraria a acontecer, ou mesmo, ela seria inviável considerando a guerra e essa recuperação da depressão? Mazzucchelli – Não há a menor dúvida: o Estado foi fundamental, seja na França, na Alemanha. O Estado tinha uma presença fundamental de direcionar os investimentos, estimulando as exportações e o crédito. No Japão, que foi o caso mais espetacular, o Estado, por meio do Banco do Japão e do Ministério de Indústria e Comércio, direcionou tudo; quer dizer, elegeu os campeões e fez as escolhas, adentrou com as importações. Os Estados Unidos tinham que tolerar isso por que na verdade era uma forma que os países tinham de avançar. Agora, o Estado foi central no Japão, na Europa, e mesmo nos Estados Unidos. Sem o Estado, para responder diretamente a sua pergunta, não haveria milagre econômico algum no pós-guerra, nada. RUMOS – 21 – Março/Abril 2015 E ENTREVISTA Frederico Mazzucchelli go, mas essa recuperação de que falamos, que o senhor também mencionou anteriormente de chegar ao pleno emprego, só foi possível com esse direcionamento dos investimentos, não foi? Mazzucchelli – Sim. Teve a presença do Estado no direcionamento do sistema de crédito para comercialização primitiva. Não tinha festa financeira. A atividade bancária, muitos diziam, era uma atividade aborrecida, que não tinha participação, não tinha inovações, não tinha nada disso, o que tinha era o direcionamento do crédito para comercialização primitiva e consumo. A febre especulativa estava contida, porque se proibia isso. Rumos – A Alemanha Ocidental e o Japão foram países que tiveram uma recuperação importante, mas diferenciada a partir do auxílio dos Estados Unidos. Em ambos os casos, essa recuperação foi bem-sucedida apesar da história, do ponto de partida desses países ter sido diferente. Mazzucchelli – É claro. A base industrial da Alemanha era incomparavelmente superior à do Japão, a Alemanha mesmo com a guerra não sofreu, digamos, um desmanche absoluto do seu parque industrial. Havia propostas para pasteurizar as ideias. Na verdade, se abandonou isso, o se que propôs foi arbitrário do ponto de vista do departamento de Estado. Agora no caso do Japão foi preciso montar a base industrial pesada deles. Tinha alguma indústria, mas o caminho a ser percorrido era muito maior. No caso da Alemanha não, foi só preciso fazer alguns ajustes e vários incentivos. E ainda, ela se transformou em um grande exportador. Tanto que as exportações, isso até hoje, são muito mais importantes na Alemanha do que no Japão. O Japão construiu um capitalismo exuberante depois do MacArthur, que de início tinha a proposta de, digamos, pasteurizar o Japão. Depois da Guerra da Coreia, mudou tudo isso lá, e eles passaram a ser exímios, a guerra é que na verdade teve um papel importantíssimo para as exportações japonesas e para a construção da aliança política com os Estados Unidos. Rumos – O que poderia explicar a recuperação desses dois países, tendo em vista culturas tão diferenciadas e os dois tendo esse apoio dos Estados Unidos? Então, uma mesma fonte apoiadora, mas culturas tão diferenciadas conseguiram se superar nesse quadro adverso. Mazzucchelli – No caso da Alemanha, é possível entender, pois já tinha uma base industrial pesada e mesmo durante a guerra foi usada. A Alemanha na virada do século já era a principal economia europeia. Com o nazismo, a base pesada da indústria alemã se fortaleceu mais ainda. O Japão, como eu disse, teve que partir de uma base muito menor. Só que acontece o seguinte: quando se parte de uma base menor, as taxas que se alcança são maiores. Então, não é segredo algum que o país pobre, ou miserável, ou vitimado, uma vez marchando iria obter as taxas de crescimento maiores, porque a base da qual se parte é melhor, não é? Agora, no entanto, volto a afirmar, no caso do Japão, sem a presença, digamos explícita, descarada do Estado, nada seria possível. Outro ponto, as forças de ocupação do MacArthur fizeram algo muito importante no Japão que foi a reforma agrária que quebrou o poder dos proprietários de terra. E quebraram também, obviamente, a importância da oligarquia militar que existia. Quer dizer, a reforma agrária conduzida pelos Estados Unidos e a queda da oligarquia militar foram muito relevantes no caso do Japão. Rumos – A questão da polarização do mundo, com uma possibilidade de risco de guerra novamente, possibilitou que se tivesse uma definição muito clara de influências. O senhor pontua no livro que esse desenho favoreceu a recuperação dessas nações envolvidas na guerra? Mazzucchelli – Nunca houve tanta estabilidade política na Europa como no pós-guerra. Se analisarmos a história da Europa no final do século até o pós-guerra era uma grande confusão. Tivemos a Primeira Guerra, como um conflito europeu, que teve uma convulsão social que percorreu todos os países. Desde 1871, no final da guerra franco-prussiana, existia um certo equilíbrio entre as potências, mas depois da Primeira Guerra a Europa foi um continente de incertezas. Depois da Segunda Guerra, não. Com os Estados Unidos, há uma estabilidade política, mesmo com os mais variados partidos no poder, há uma estabilidade política nunca antes alcançada. Rumos – Esse modelo de financiamento norteamericano com uma forte entrada de produtos de consumo começa a dar sinais de esgotamento em meados da década de 1970? Mazzucchelli – Quando tiveram início os anos 1970, havia esperança: “vamos acabar com esse negócio de guerra”, “vamos procurar uma sociedade mais fraternal” no rescaldo daquilo que se viveu nos anos 1960, 1968, “vamos viver com novos valores morais”, “vamos incorporar as mulheres”, “vamos ter novos hábitos sexuais”, “vamos...”, que eram exemplos, digamos, de liberdade dos anos 1970. Mas esses anos foram uma intenção de uma derrota. Por quê? Visto em outro aspecto. Porque, por fim, a década de 1970 foi terrível no plano econômico, com o esgotamento da onda de inovações do modelo centralizado. As taxas de investimento começaram a declinar. Em cima disso, houve a perda de credibilidade no dólar, que era a moeda internacional, que outrora dentro da escala de moeda era tão boa quanto o ouro, passou a entrar em desconfiança e a conversibilidade do dólar no ouro passou a ser questionada já em fins dos anos 1960. Em 1971, há um fato muito importante, que é o que chamam de “As Armas de Agosto”. Foi quando o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, decretou o final da convertibilidade do dólar no ouro. E ao mesmo tempo, sobretaxou as importações norte-americanas para evidentemente atacar o Japão. O clima já era outro. Em 1973, são instauradas as taxas flexíveis de câmbio e, assim, há o rompimento das qualidades fixas que haviam sido consagradas em Bretton Woods, quer dizer, as moedas começam a dançar. Ao mesmo tempo, para fugir da regulamentação, vários bancos norte-americanos passaram a se sediar, mantêm filiais, em outros países, como a Inglaterra, livres de regulamentação. E é claro que aqueles valores de pleno emprego, do Estado, ainda eram vivos, mas quando come- RUMOS – 22 – Março/Abril 2015 Rumos – E é a geração que não viveu a guerra, que nasceu nesse pós-guerra. Mazzucchelli – Sim, eles queriam uma sociedade mais justa, eram contra aqueles valores morais familiares, eram contra a guerra do Vietnã, eles eram contra, digamos...sociedade de consumo. Então, as sociedades vão se mexendo. Acontece que a economia começou a entrar em parafuso, veio o primeiro choque do petróleo em 1973. Nos anos seguintes, há uma recessão fortíssima, foi a primeira grande recessão de um pós-guerra. Por isso que eu digo que a década de 1970 foi a reinstauração do liberalismo nu e cru que começou a viger a partir dos anos 1980. Rumos – E que chegou inclusive ao Brasil. Mazzucchelli – O que aconteceu na economia mundial nesses anos foi muito ruim do ponto de vista da qualidade das sociedades. As sociedades passaram a conviver com taxas de desemprego muito mais elevadas, o governo comunista não vou dizer que foi desmontado, mas ele ficou permanentemente na berlinda, e nesse mesmo ano há a liberalização de todos os controles, e se reinstaura a liberdade financeira. Só que, a partir daí, as finanças passaram a mudar o jogo. Se você pega uma organização econômica e social liderada pelas finanças, não vai dar boa coisa, entendeu? Quer dizer, com o tempo... Rumos – Olhando para o futuro, estaremos mais perto do capitalismo dos anos 1920 ou 1930, ou dos dias ensolarados que foram as décadas de 1950 e 1960? Mazzucchelli – Dos anos 1920. Quer dizer, o panorama é sombrio. Não há o que discutir. Eu não vejo atores políticos relevantes capazes de se contraporem a isso. Eu lamento informar que a minha opinião é pessimista nesse contexto, certamente nós nos aproximamos mais dos anos 1920 do que dos anos 1950 e 1960. Douglas MacArthur, o general O general Douglas MacArthur lutou na Primeira Guerra Mundial e, na Segunda foi comandante das Forças Aliadas no Pacífico. Ao final da Guerra, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, designou MacArthur para acompanhar a rendição dos japoneses e, nos seis anos seguintes, ele comandou as forças de ocupação que auxiliaram na reconstrução do Japão. Com o início da Guerra da Coreia (1950), ele foi deslocado para responder militarmente a agressão norte-coreana, obtendo sucesso no comando das forças dos Estados Unidos na região. Após fazer críticas às posturas adotadas pelo presidente Truman frente as ofensivas chinesas na Ásia, o general, em 1951, é afastado de seu posto no Japão. Ao retornar ao seu país, é tratado como herói, sendo cogitado para a presidência dos Estados Unidos, cargo que não chegou a concorrer. Ele morreu em 1964, com 84 anos, após escrever suas memórias. RUMOS – 23 –Março/Abril 2015 “ Os anos 1970 foram terríveis no plano econômico, com o esgotamento da onda de inovações do modelo centralizado. As taxas de investimento começaram a declinar. Em cima disso, houve a perda de credibilidade no dólar e a conversibilidade do dólar no ouro passou a ser questionada já em fins dos anos 1960. “ ça a haver uma certa desvalorização de uma das partes, ocorre uma subversão dos valores que vigeram durante o pós-guerra. As verbas de colaboração, de cooperação vão caindo em desuso, as sociedades internamente vão estar mais unidas, a juventude questionava as formas de sustentabilidade.