Capítulo XIV: Sistema imune e o estresse (Fornece noções básicas sobre a estrutura e o funcionamento do sistema imune e salienta as suas íntimas conexões com o sistema neuroendócrino. Descreve os mecanismos mediante os quais a ativação crônica do sistema imune pode levar à depressão e à fibromialgia secundária. Descreve como o estresse, nas suas diferentes apresentações, influencia o sistema imune, e compara tal fato às alterações imunes descritas na fibromialgia e na depressão. Importância relativa para pacientes. Dificuldade grande. Pular para o resumo não compromete a compreensão das principais ideias do livro) O sistema nervoso e o sistema imune são tão fortemente conectados que é difícil dizer onde fica a fronteira entre eles. Nos diversos tecidos do corpo, os mesmos estímulos que causam dor (via transmissão de impulsos nervosos) também ativam o sistema imune. Ao mesmo tempo, receptores para muitas das citoquinas (“hormônios” que comandam as atividades imunes) são encontrados nas células nervosas, e receptores para muitos dos neurotransmissores também são encontrados nas células imunes. No cérebro humano existem 3,72 vezes mais células da glia do que neurônios [137]. Glia, do grego γλία, ou "cola”, são células que envolvem os neurônios. As clássicas funções dessas células compreendem sustentar física e nutricionalmente os neurônios, providenciar o “isolamento elétrico” para cada axônio e, também, influenciar a neurotransmissão. Dez a quinze por cento da glia é formada pela micróglia. Esse grupo de células se diferencia das demais por se originar de células do sangue. Elas são muito semelhantes a macrófagos do sistema imune e, como eles, procuram, engolem e destróem possíveis agressores ou células mortas, além de apresentarem pedaços digeridos delas para outras células do sistema imune. Elas ficam em íntimo contato com os neurônios e interagem com eles, além disso, são capazes de secretar diversas citoquinas e outras moléculas de ativação imune. A influência do sistema imune no funcionamento do sistema nervoso central começou a se tornar evidente quando citoquinas começaram a ser usadas na tentativa de tratar condições como infecções crônicas e câncer. Muitas delas, como a interleucina-1 (IL-1), a interleucina-6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral (do inglês, TNF), induzem a “comportamentos de doença” como fadiga, indisposição, anedonia, indiferença, aumento da sensibilidade à dor e dificuldade de concentração. Vale observar que muitos desses sintomas também são encontrados na fibromialgia e na depressão, e a persistência do uso das interleucinas, por alterarem o metabolismo de diversos neurotransmissores reguladores do humor, acaba produzindo depressão maior em até 50% dos pacientes [138]. Por conservar recursos e induzir o indivíduo a se recolher e evitar mais estresse, foi atribuída a esses “comportamentos de doença” a hipótese de uma estratégia comportamental organizada com a intenção de ajudar no combate a uma infecção [138]. Essas citoquinas são potentes estimulantes da secreção de CRH, o que leva à ativação do eixo HPA e à produção de cortisona. A cortisona também prepara metabolicamente o corpo para o combate a infecção, ao mesmo tempo em que serve como um mecanismo de feedback negativo ajudando a evitar possíveis excessos da inflamação. Sistema imune influenciando o sistema nervoso central - fibromialgia secundária. Em doenças inflamatórias crônicas, sejam as autoimunes como a artrite reumatoide e o lúpus ou infecciosas como a hepatite B e C, a ativação constante do sistema imune leva a taxas constantemente elevadas dessas citoquinas ocasionando os citados comportamentos de doença. Nas doenças inflamatórias e infecciosas crônicas, a depressão é muito mais prevalente do que as limitações impostas por essas doenças poderiam explicar, e fibromialgia muito mais prevalente do que na população em geral (de mesmo sexo e idade). Essa associação (doença inflamatória/ infecciosa crônica e fibromialgia) é tão clássica que leva um nome e uma classificação à parte: fibromialgia secundária. Outros mecanismos podem estar influenciando tal associação. Na artrite reumatoide (AR), por exemplo, a dor localizada nas articulações pode levar à fibromialgia por meio de uma piora no sono, do aumento da atenção à dor, do estímulo ao sistema de estresse, pela indução das plasticidades discutidas no capítulo prévio, e pelos outros mecanismos pelos quais dor local leva à dor sistêmica (discutidos no capítulo III). No entanto, mesmo em doenças que não cursam com dor, como a hepatite crônica, a associação com fibromialgia permanece verdadeira, e os efeitos das citoquinas, sobre o sistema nervoso central, parecem ser os únicos mediadores desse processo. Introdução à imunologia Se a ativação do sistema imune influencia diretamente o sistema de estresse, o contrário é igualmente verdadeiro. Como mencionado, as células imunes respondem diretamente à cortisona, mas também possuem receptores para outros neurotransmissores, incluindo a adrenalina, noradrenalina, GH, prolactina, melatonina, β-endorfinas, encefalinas e endocanabinóides. Esses neurotransmissores ajudam a regular a ação e a distribuição dos glóbulos brancos (leucócitos) [139]. Os órgãos linfoides são, ainda, inervados pelo sistema nervoso simpático adrenérgico. Se o sistema de resposta ao estresse influencia o sistema imune, qual seria o efeito desse estímulo? Tal questão tem rendido várias centenas de publicações nos últimos 50 anos e, mais uma vez, a resposta depende de quando, quanto, o que, por quanto tempo e em quem. Antes de detalhar as situações acima, é necessário introduzir alguns conceitos básicos sobre o sistema imune. Para começar, ele é dividido em duas grandes frentes de resposta: o sistema inato e o sistema adaptativo. Sistema inato/ imunidade natural O sistema inato, também conhecido como “imunidade natural”, é encontrado não só em mamíferos, mas também em seres tão simples quanto esponjas do mar. As células envolvidas na imunidade inata não oferecem defesas contra nenhum patógeno específico, pelo contrário são células “multiuso” que podem atacar uma grande diversidade de patógenos e, quando provocadas, fazem isso em um espaço relativamente curto de tempo (minutos a horas). O maior grupo de células dentro do sistema inato, os granulócitos, inclui neutrófilos e macrófagos. Eles são células fagocíticas (do grego antigo fagos, φαγεῖν, devorar), que envolvem, engolem e digerem seus alvos, cujas pequenas partes serão apresentadas para o resto do sistema imune. A resposta generalizada armada por essas células é a inflamação. Os granulócitos reúnem-se no lugar da lesão ou infecção e secretam uma série de substâncias. Algumas delas são tóxicas e visam a destruir o agente invasor, muitas promovem a regeneração do tecido lesado, e outras são substâncias de comunicação com outras células e sistemas, entre elas as citoquinas. Como já mencionado, as citoquinas agem principalmente sobre o sistema imune, mas também em praticamente todos os tecidos do corpo, preparando-o para o combate. Outros granulócitos são os eosinófilos e mastócitos, envolvidos principalmente nas alergias e defesas contra parasitas. Além dos granulócitos, o sistema imune inato inclui os leucócitos “Natural Killers” (a tradução desse nome, ao pé da letra, é “assassinos naturais”. O termo em português é raramente utilizado e soa um tanto dramático, de forma que preferi usar o termo original, em inglês). Os natural killers reconhecem a falta de determinados marcadores na superfície de células doentes (infectadas por vírus ou tumorais) e despejam substâncias toxicas sobre elas levando-as à morte. O terceiro componente da imunidade inata é chamado “complemento”. O complemento não é um grupo de células, mas um grupo de proteínas dispersas no sangue. Uma série de moléculas, frequentemente presentes na parede celular das bactérias, ativa algumas dessas proteínas, o que inicia uma grande cascata de reações. Em última análise, essa cascata perfura a parede da bactéria, além de atrair e ativar outras células imunes. Anticorpos grudados nos patógenos também são capazes de ativar o complemento. As principais características do sistema imune inato são: resposta rápida, resposta universal, ausência de necessidade de aprendizado (contato prévio com o agente agressor) e a capacidade de ativar outros sistemas. Essas características tornam o sistema inato especialmente importante em conduzir as fases iniciais de combate a infecções e tumores, antes que o corpo “aprenda” modos mais específicos de lidar com eles. Sistema adaptativo Essa “aprendizagem” é a principal característica do sistema adaptativo (também conhecido como imunidade específica). Ela demanda mais tempo, mas garante uma resposta mais poderosa. As principais células efetoras desse sistema são os linfócitos. Cada um deles possui, na superfície de sua célula, receptores que se ligam em uma molécula muito específica de um invasor (antígeno). Portanto, cada linfócito responde apenas a invasores que possuem esse antígeno. Quando ativados pela presença de um micróbio, os linfócitos se multiplicam por divisão celular criando ao longo de dias/semanas um verdadeiro exército de clones com a mesma especificidade antigênica. Tal demora significa que, no momento inicial de uma primoinfecção, o corpo conta apenas com a imunidade natural. Os linfócitos também são divididos em grupos, de acordo com a função que assumem na resposta imune. Novos grupos vêm sendo propostos, mas com a intenção de simplificar, vamos aqui, brevemente, descrever os 3 grupos mais clássicos: linfócitos-T auxiliadores, linfócitos-T citotóxicos e linfócitos-B. A principal função do linfócito-T auxiliador é produzir citoquinas que direcionam e amplificam a resposta imune. Os linfócitos-T citotóxicos reconhecem antígenos expressos em células tumorais, ou infectadas por vírus, e as destrói. Linfócitos-B produzem anticorpos com muitas funções diferentes como iniciar a cascata do complemento, marcar os alvos para que outras células ataquem, inativar toxinas e outros “armamentos” bacterianos, cobrir vírus impedindo que entrem em novas células, entre outras funções. O conjunto da resposta imune adaptativa que se baseia nos anticorpos é chamado de resposta humoral. O conjunto da resposta adaptativa que se baseia nos linfócitos-T citotóxicos é chamado de resposta celular. Cada tipo de agressão é mais eficientemente combatido por uma ou outra. Por exemplo, com frequência, anticorpos não conseguem atingir agentes infecciosos que se escondem dentro de nossas células. Nesse caso, e também no caso de tumores, a resposta celular tende a ser mais eficiente. Em um grau maior ou menor, a ativação do sistema imune sempre envolve as duas vias. O lado para o qual a balança pesa mais é, em grande parte, determinado pelos linfócitos-T auxiliadores e citoquinas produzidas por eles. As grandes vantagens que o sistema adaptativo confere são: resposta mais específica, elaborada e eficaz; memória. Após o controle da situação a resposta é desmontada, mas sobram células que memorizaram os antígenos daquele invasor, é a melhor maneira de destrui-lo, caso haja nova invasão. Nesse caso, anticorpos e linfócitos-T citotóxicos específicos serão produzidos mais rapidamente. É a resposta adaptativa que permite a eficácia das vacinas. As desvantagens desse sistema são a demora na sua inicialização (mesmo contra um patógeno já conhecido pelo sistema imune, a resposta demora dias) e a energia que demanda. Estresse influenciando o sistema imune Voltando à pergunta, se o sistema de resposta ao estresse influencia o sistema imune, qual é o efeito desse estímulo? As respostas iniciais têm apontado, historicamente, para uma simples depressão geral da imunidade (imunossupressão). Tais conclusões simplistas e precipitadas mostraram-se erradas ao longo do tempo, e a confusão gerada começou, apenas recentemente, a ser desfeita. Em 2004, uma ampla revisão, envolvendo 30 anos de publicações, separou os agentes estressantes em 5 diferentes classes: estresse agudo e autolimitado, estresse breve e natural, sequência de eventos estressantes, estresse crônico e estresse distante [139]. Estresse agudo e autolimitado Essa categoria inclui experiências que duram entre 5 e 100 minutos, como falar em público, pular de paraquedas e passar por desafios aritméticos. A maioria dos estudos que testaram esse tipo de evento encontrou efeitos contrários nas respostas inata e adquirida: enquanto a presença e ação de natural killers e granulócitos no sangue aumentaram, a capacidade de se multiplicar dos linfócitos diminuiu. O aumento da produção de citoquinas, que potentemente estimulam macrófagos e natural killers, reforçou essa impressão. Portanto, frente a um estresse agudo e autolimitado, como as clássicas situações de luta-ou-fuga, existem evidências de que há uma redistribuição das células de defesa, preparando o sistema imune para possíveis injúrias ou infecções, como as secundárias a mordidas, feridas e arranhões. Em situações autolimitantes como essas, o desvio da energia necessária à resposta ao agressor para o estímulo do sistema adaptativo, cuja resposta dispende dias, seria mais do que inútil, seria deletéria. Em vez disso, enquanto esse sistema é inibido, existe um aumento da imunidade natural que, com mínimos investimentos energéticos, pode, prontamente, responder ao que vier. Estresse breve e natural A vasta maioria dos estressores nessa categoria compreendia as sequências de provas finais em ambientes acadêmicos. Em contraste com os estresses agudos e autolimitantes, o estresse vivido pelos estudantes não afetou as proporções das células no sangue. Em vez disso, houve um deslocamento das citoquinas no sentido de inibir a imunidade celular e natural e estimular a imunidade humoral. Em resposta a isso, tanto linfócitos-T quanto os natural killers perderam capacidade de se multiplicar, e a imunidade mediada por anticorpos aumentou. Como entender evolutivamente tais mudanças? À medida que o estresse começa a perdurar, deixa de ser interessante continuar estimulando o sistema natural. Esse último é desenhado para iniciar a resposta e não para conduzi-la até o final. Passado um período grande o suficiente para que o sistema adaptativo reconheça o agressor e monte uma resposta direcionada, continuar estimulando a imunidade inata seria um desperdício de energia. Curioso é o desvio da balança no sentido da imunidade humoral. Ainda dentro da teoria da economia de recursos, é possível que, frente à necessidade de continuar a defesa, mas também à possibilidade de que a agressão perdure, a estratégia mais efetiva seja apostar nos anticorpos. A produção de anticorpos é “barata” se comparada à reprodução celular, liberação de toxinas e destruição de tecidos vistas nas imunidades inata e adquirida celular. Como os anticorpos “marcam os alvos” que serão atacados por essas células, tal medida condiciona essas ações dispendiosas e destrutivas para os sítios mais importantes. Sequência de eventos estressantes Essa categoria representa situações em que um evento pontual leva à necessidade de uma série de mudanças e desafios. A maioria dos estudos que investigaram tais situações se focou na morte de um cônjuge (perda) ou sobreviventes de desastres naturais (trauma). Trauma é definido pela psiquiatria como “a experiência, o testemunho ou o confronto com um evento (ou eventos) que envolve morte, injuria grave ou ameaça à integridade física de sí próprio ou de outros. A resposta a tal evento deve envolver intenso medo, impotência ou horror” [140]. Em ambos os casos, os indivíduos afetados não sabem exatamente quando tais desafios vão diminuir, mas têm uma clara noção de que em algum ponto do futuro isso vai acontecer. Analisadas em conjunto, essas situações não mostraram nenhum padrão claro de alterações imunes. Separando as situações de “perdas” das de “traumas”, no entanto, algumas conclusões puderam ser tiradas. Em consequência à perda de um cônjuge, segue-se uma consistente perda de função dos natural killers. Após situações de trauma, houve aumento das funções dos natural killers e da capacidade de reprodução dos linfócitos, junto à diminuição do número de linfócitos-T auxiliadores e T citotóxicos. A inibição do sistema adaptativo celular traduz, frequentemente, o desvio da balança para o lado da imunidade humoral. Apesar de a metanálise não apontar especificamente tal aspecto, o artigo cita um aumento no número de anticorpos contra um vírus (Epstein-Barr) na categoria como um todo. No entanto, as alterações observadas no trauma devem ser consideradas sugestivas, mas não conclusivas, em função do pequeno número de estudos sobre o assunto. Em resumo, parece haver uma queda na imunidade natural após a perda de um cônjuge e um aumento das imunidades natural e adaptativa humoral frente a um desastre natural. Tais diferenças podem estar relacionadas não só à natureza do estresse, mas também a características individuais de quem está sofrendo o estresse. Grande parte dos indivíduos que perdem um cônjuge são mulheres mais velhas, e daqueles estudados nos traumas são homens e mulheres de meia idade. Estresse crônico Condições classificadas como estresse crônico incluíram cuidar de uma pessoa com demência, viver com um deficiente físico ou passar por situações de desemprego prolongado. Em tais situações foram observadas uma diminuição, em quase todos os parâmetros estudados, tanto da imunidade inata quanto adaptativa, e tanto da celular como da humoral. Essa última foi a que apresentou deficiências menos significantivas, uma vez que anticorpos contra alguns vírus não estavam consistentemente diminuídos. Importantemente, as alterações imunológicas frente ao estresse crônico mantiveram-se igualmente presentes entre os dois sexos e as diferentes idades. Estresse distante Estresse distante são experiências traumáticas que ocorreram em um passado distante (mais de 1 ano). A maioria dos estudos avaliaram eventos ocorridos de 5 a 10 anos antes do estudo. A essa distância, fica difícil explicar uma influência direta dos eventos no funcionamento do sistema imune. Isso, teoricamente, aconteceria por meio de sequelas cognitivas e emocionais no sistema nervoso central. Exemplos de estresse distante incluem: ter sofrido violência sexual durante a infância, ter testemunhado a morte de um colega soldado durante combate ou ter sido prisioneiro de guerra. Infelizmente, existem poucos dados sobre esse tipo de estresse, e a diversidade dos dados demográficos dos pacientes tornam os resultados menos confiáveis. O único parâmetro regularmente examinado na literatura foi a habilidade de destruição dos natural killers, e tal literatura não foi consistentemente alterada. Em resumo, à medida que o estresse se torna mais crônico, a exacerbação de resposta imune natural observada no estresse agudo se torna menos interessante. Inicialmente, a resposta é desviada da imunidade natural para a adaptativa, depois da adaptativa celular para a humoral e, finalmente, institui-se uma imunossupressão global. Nenhuma teoria, até o momento, conseguiu explicar, convincentemente, por que tal imunossupressão global seria vantajosa para o indivíduo. Afirmar, no entanto, que ela é prejudicial exige evidências. Estaria o estresse crônico associado a um aumento de doenças infecciosas e câncer (consequências diretas de um sistema imune deprimido)? Doenças associadas a alterações imunológicas do estresse. A noção de que fatores psicológicos podem influenciar o início e a progressão de doenças é fortemente enraizada no senso comum, mas até recentemente carecia de respaldo científico. Todos nós temos histórias para contar sobre uma doença que se seguiu a eventos especialmente estressantes, ou pessoa que adoeceu e morreu de “desgosto” após a morte de seu cônjuge. Provar, e entender, os mecanismos pelos quais isso poderia acontecer é muito mais difícil do que parece. Estudos em animais proveem as variáveis estáveis que permitem conclusões mais sólidas, e, efetivamente, diversos deles foram capazes de associar estresse crônico a maior susceptibilidade a doenças virais, doenças autoimunes e câncer [141]. Em humanos, um número de paradigmas foi utilizado para examinar os efeitos de experiências estressantes da vida na susceptibilidade a doenças infecciosas. Deles, os mais importantes envolvem provas com vírus atenuados, respostas à vacinação e observação de episódios de reativação de vírus latentes, como Epstein-Barr, herpes simples-1 e citomegalovírus. A descrição detalhada desses experimentos foge ao foco deste livro, mas o conjunto dos achados sugere, fortemente, que maior tempo e maiores níveis de estresse (definidos por situações clássicas, percepção individual e conteúdo afetivo negativo) predisseram maior susceptibilidade a infecções virais, menores concentrações de anticorpos, mais sintomas durante as infecções, menor proteção imunológica após vacinações e maior taxa de reativações de vírus latentes [141]. Se a relação entre estresse e infecções é cientificamente clara, a relação com câncer não o é. Diferentemente do que acontece com as infecções, os sintomas do câncer podem começar apenas muitos anos após o “tropeço” do sistema imunológico que teria permitido seu desenvolvimento. Câncer é muito menos frequente quando comparado a infecções e vacinas. Não há, também, modos de inocular, em voluntários, “tumores atenuados”. Portanto, um estudo que avaliaria adequadamente tal relação, teria de seguir um enorme número de indivíduos por muitos anos para chegar a alguma conclusão. Desse modo, as evidências ligando estresse ao desenvolvimento ou progressão de câncer são fracas e dependentes de outros fatores como idade avançada, forte tendência genética e a exposição a cancerígenos (como tabagismo) [141]. A avaliação da relação do estresse com doenças inflamatórias autoimunes é limitada pelas mesmas dificuldades enfrentadas na avaliação da relação com o câncer. Talvez, por isso, haja uma grande discrepância entre o que pensam os especialistas e as evidências científicas. Em muitas dessas doenças, notoriamente a psoríases e a doença inflamatória intestinal, o estresse é um fator de exacerbação reconhecido até mesmo em livros didáticos. Evidências também existem sobre o impacto do estresse na evolução de outras doenças autoimunes, incluindo esclerose múltipla, dermatite atópica, artrite idiopática juvenil, artrite reumatoide e possivelmente lúpus. Evidências de que o estresse esteja implicado em sua gênese, no entanto, estão faltando [141]. Susceptibilidades individuais aos efeitos do estresse sobre a imunidade. Como discutido no capítulo sobre a plasticidade neural no estresse, homens e mulheres reagem de forma completamente diferente ao estresse agudo e crônico. É muito provável que as consequências do estresse sobre o sistema imune de cada gênero sejam, da mesma forma, díspares. Disparidades também são reconhecidas entre as diferentes fases da vida. Infelizmente, a grande maioria dos estudos sobre o assunto não separaram tais características demográficas. A metanálise revisando 30 anos de pesquisa sobre o sistema imune e o estresse, citada acima, tentou, quando possível, contornar tais falhas. Muitos estudos, por exemplo, examinaram se a resposta imune sofreu variações em função do número de eventos classicamente estressantes que o indivíduo teria sofrido. Isso foi avaliado por meio de questionários que continham uma lista de tais eventos, os quais deveriam ser ticados mostrando quando o evento efetivamente aconteceu. O formulário incluía um espaço para que a pessoa atribuísse uma nota ao impacto que cada evento teria tido em sua vida. Essa lista envolvia tanto eventos maiores (divórcio, falência) como aborrecimentos normais do dia-a-dia (multa de trânsito, arrumação de um quarto de entulhos). Essa metodologia rendeu pouquíssimas conclusões na amostra geral de entrevistados. No entanto, quando a metanálise dividiu os participantes em indivíduos acima e abaixo dos 55 anos, os dados mostraram que os adultos mais velhos são especialmente mais vulneráveis a tais eventos. Neles ficou claro um declínio da capacidade de reprodução dos linfócitos e da toxidade dos natural killers, segundo o número e a intensidade dos principais eventos estressantes. Os adultos jovens apresentaram apenas uma modesta diminuição da toxicidade dos natural killers [100]. Existe uma grande variação, entre indivíduos, sobre quanto um evento é ou não estressante. O mesmo evento pode ser visto como tranquilo e rotineiro para uns e especialmente estressante para outros. Muitos desses estudos avaliaram essa lacuna, e a interessante conclusão a que chegaram é que a percepção do estresse é mais importante do que o evento em si. Um evento é mais estressante quando não estamos seguros sobre nossa capacidade de lidar com ele. Portanto, o tamanho do estrago que um evento causa em nosso sistema imune depende de nossa autoimagem. Isto é, um grande insight sobre como o sistema nervoso central, nosso humor, nossa história e nosso repertório cognitivo-psico-social podem influenciar o impacto do estresse. Alterações imunológicas na depressão. A diferença entre estresse e depressão é, sob muitos pontos de vista, tênue e escorregadia. Muitas das alterações plásticas no sistema neuroendócrino, observadas no estresse crônico, correspondem às observadas na depressão maior. Depressão se segue, frequentemente, a um evento especialmente estressante, uma sequência de eventos estressantes ou um estresse contínuo. Ela é uma das principais respostas comportamentais ao estresse, por mais que possa acontecer sem ele. Frente a essa proximidade, é esperado que as alterações imunológicas, em grande escala, encontradas na depressão se sobreponham às encontradas no estresse. Fatores como idade, sexo, vínculos sociais, hábitos e autoimagem influenciam igualmente as respostas neuroendócrina e imunológica da depressão tornando, mais difícil, o consenso entre os pesquisadores. Nessas situações, de novo, as revisões sistemáticas e metanálises fornecem algum remendo, mas poucas avaliaram a imunidade celular na depressão. Uma delas, realizada em 2001, encontrou associação entre depressão maior e diminuição da ação de natural killers, diminuição da capacidade de proliferação dos linfócitos e aumento da interleucina-6 (IL-6). Tais achados podem ser traduzidos como diminuição das respostas inata e adaptativa celular e a promoção da resposta humoral, exatamente como na “série de eventos estressantes”. Outras revisões, em 2009 e 2010, focadas nas citoquinas, confirmaram o aumento de IL-6 (principalmente resposta humoral) e descreveram o aumento de outras (IL-1, IL1-RA, TNFα) e da proteína-C reativa (PCR), um marcador inespecífico de inflamação [142]. Testar as citoquinas dá apenas uma ideia das “mensagens” circulando, o que é bem diferente de dizer o que está realmente acontecendo. Ou seja, apesar dos estudos e metanálises, ainda restam muitas dúvidas do que, imunologicamente, acontece na depressão. As poucas impressões que gozam de considerável consenso são: uma diminuição da resposta inata e uma “inflamação” morna e constante. Seguindo o raciocínio iniciado na discussão sobre o estresse, é possível que a depressão do sistema inato siga uma “intenção” de poupar energia, desligando um sistema que é comparativamente menos eficiente em longo prazo. Essa “inflamação crônica” é mais difícil de interpretar. Vimos que na depressão aguda, quase sempre secundária a um (ou alguns) evento estressante, o cortisol inicialmente está alto, mas ao longo do tempo vai voltando ao normal. Retornar o cortisol ao normal é imperativo para evitar os estragos de sua presença persistente. Mas o GH alterado, os distúrbios de sono e os sintomas de depressão mostram que o sistema nervoso não está operando normalmente. O movimento do cortisol acontece por meio da dessensibilização em diversos pontos do sistema nervoso central, como vimos no capítulo anterior. Essa dessensibilização é seletiva, e o sistema nervoso central permanece em estado de alerta/hiper-reativo para outros eventos. Muitas das vias neuroendócrinas que mediam tal situação são comuns ao sistema nervoso e sistema imune. Lembrar que ambos os sistemas dividem inúmeros sinalizadores, dentre eles os endocanabinóides que são, atualmente, o centro das atenções dos pesquisadores da dessensibilização. É logico pensar que essa hiper-reatividade inflamatória persistente seja a tradução imunológica da hiper-reatividade do sistema de estresse abordado no capítulo anterior. Nesse caso, ela teria algum papel adaptativo: manter algum sinal de alerta ligado. É possível que, ao manter o eixo HPA e as demais estruturas do sistema nervoso central persistentemente no “modo depressão”, o resultado seja um cortisol basal persistentemente elevado, o que levaria a uma dessensibilização ao cortisol e a um sistema imune “hiperexcitado”, pelo menos em alguns de seus aspectos. É possível, no entanto, que isso tenha um papel adaptativo não óbvio, e que o termo “indesejado” não seja apropriado. De qualquer forma, essa inflamação constante é, nessa e em outras condições, associada a um maior risco de infartos, derrames, aneurismas e outros problemas cardiovasculares. A associação com câncer e doenças autoimunes também é possível, mas encontra maior dificuldade em ser evidenciada por estudos científicos. Alterações imunológicas na fibromialgia Como já mencionado, as citoquinas (“hormônios da inflamação”) podem desencadear sintomas semelhantes aos da fibromialgia, o estresse modifica tanto o sistema imune quanto a fibromialgia, e uma série de alterações neuroendócrinas da fibromialgia (principalmente no eixo HPA) podem influenciar a imunidade. Frente a essa complexa relação, uma série de pesquisadores procuraram alterações imunológicas que poderiam estar associadas à fibromialgia primária. Os achados ainda são preliminares e inconsistentes. Muitos encontraram aumentos na produção de certas citoquinas, mas os resultados, entre os trabalhos, variaram. Mais recentemente, um trabalho evidenciou uma diminuição da resposta adaptativa celular, representada pela capacidade de reprodução dos linfócitos [143]. A exata natureza da resposta imune na fibromialgia primária ainda está para ser determinada, mas a impressão que se tem, até o momento, é condizente com os achados observados na sequência de eventos estressantes: possível desvio da resposta adaptativa celular para a humoral. Poucos advogam um papel causal para tais alterações. Fibromialgia primária, diferentemente da secundária, não é uma doença autoimune. Como tudo que envolve estresse crônico, no entanto, tais pacientes estão sujeitos a alterações no sistema imune, que poderiam explicar uma parte dos sintomas. Resumo do Capítulo XIV: Fornece noções básicas sobre a estrutura e o funcionamento do sistema imune e salienta as suas íntimas conexões com o sistema neuroendócrino. Descreve os mecanismos por meio dos quais a ativação crônica do sistema imune pode levar à depressão e à fibromialgia secundária. Descreve como o estresse, nas suas diferentes apresentações, influencia o sistema imune, e compara isso às alterações imunes descritas na fibromialgia e na depressão. O sistema nervoso e o sistema imune são fortemente conectados e se influenciam mutua e intensamente Doenças inflamatórias ou infecciosas crônicas levam à depressão e à fibromialgia secundária. Isso se dá, indiretamente, por meio das limitações intrínsecas da doença e, diretamente, por meio da ação das citoquinas (“hormônios da inflamação) no sistema nervoso central. Estresse físico e psicológico influencia o funcionamento do sistema imune. Tal influência é dependente de sua intensidade e duração, mas também de diversos aspectos do indivíduo que sofre o estresse, como o sexo, idade, história pessoal, suporte social, autoimagem e crenças sobre a própria capacidade de resolver o problema. A maioria dos estudos sugere que o efeito do estresse agudo e da sequência de eventos estressantes sobre o sistema imune segue uma lógica adaptativa, que visa manter uma imunidade adequada sem um gasto exacerbado de recursos. O estresse crônico, no entanto, parece levar a uma imunossupressão global que pode se traduzir em maior chance de infecções. O estado do sistema imune na fibromialgia primária não está bem definido e, provavelmente, não é uniforme entre os indivíduos. A impressão é que existem alterações semelhantes às observadas em indivíduos que experimentam uma sequência de eventos estressantes. Depressão acomete parte dos fibromiálgicos. Nessa condição, parece haver uma ativação “morna”, mas constante, do sistema imune capaz de levar, em longo prazo, a um aumento da incidência de eventos cardiovasculares, como infartos e derrames.