PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP DAIANE FERNANDES BARATELA A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP DAIANE FERNANDES BARATELA A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Figueiredo. SÃO PAULO 2015 Banca examinadora AGRADECIMENTOS À Deus por me amparar nos momentos difíceis, me dar força interior para superar as dificuldades, mostrar os caminho nas horas incertas e principalmente por ter me dado saúde para que lutasse por todos os meus sonhos. Ao meu querido marido, Renato Stucki Junior, por ter me apoiado e acreditado no meu potencial, pela paciência nas noites em que estive ausente estudando e pelo companheirismo inabalável em todas as fases importantes da minha carreira. Sempre tive um ombro amigo e um amor sincero, por tudo isso, obrigado. Aos amados Elren e Layra, os quais me acompanham por mais de um década, sempre trazendo muitas alegrias, muitas brincadeiras, e paz de espírito. Nos olhos desses animais sempre encontrei um motivo para sorrir. Ao Dr. Marcelo Figueiredo, por acreditar e confiar em mim, pelos ensinamentos, os quais contribuíram para meu crescimento científico e intelectual e pela disposição e presença constante no decorrer do meu mestrado, que foram fundamentais para o meu êxito. BARATELA, Daiane Fernandes. A proteção jurídica da fauna à luz da Constituição brasileira. 206 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. RESUMO Esta dissertação pretende oferecer um novo significado jurídico para a fauna através do estudo profundo da Teoria Constitucional Ambiental. Assim, investigou-se a tendência contemporânea de atribuição de personalidade e direitos aos animais, abordando o conceito jurídico de pessoa, a posição da doutrina tradicional sobre o tema e os principais argumentos elaborados por filósofos como Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione. Ficou estabelecido que a dificuldade sobre a questão dos direitos dos animais deriva de três fatores: o especismo, a abordagem antropocêntrica do direito e a cultura dominante de que os animais são coisas, destituídos de quaisquer direitos. Tal estudo teve como alicerce a mudança trazida pela atual Constituição brasileira que assegurou vários direitos a fauna, entre eles o de não serem submetidos a qualquer forma de crueldade, disposto no artigo 225, §3º, inciso VII, o que possibilitou o reconhecimento do despertar do constitucionalismo ecológico, uma concepção que traz consigo a valoração de novos seres e o pensamento holístico como fundamento moral, deixando para trás a crença absoluta da superioridade da espécie humana frente aos demais seres vivos. Demonstrou-se a necessidade de transcender o pensamento antropocêntrico. Frise-se aqui, que como o direito é pensado em função dos sujeitos de direito, é hora de incluirmos outros sujeitos, a fim de construir uma nova dimensão destes direitos fundamentais, ampliando a proteção deste princípio para alcançar os animais. Para enriquecer a discussão e ilustrá-la, foi realizada uma análise jurisprudencial sobre o tema no direito nacional e internacional, pois onde há uma sólida teoria constitucional respaldando a interpretação e a aplicação das normas constitucionais, geralmente tem como resultado o surgimento de uma jurisdição constitucional atuante. Palavras-Chave: Fauna. Proteção. Constituição Federal. ABSTRACT This paper intends to offer a new legal significance for fauna though the study of Environmental constitutional Theory. Thus, it was investigating the contemporary tendency of personality attribution and rights for the animals, addressing the legal concept of person, the position of the traditional doctrine on the theme and the main arguments developed by philosophers like Peter Singer, Tom Regan and Gray Francione. It was established that the difficulty on the issue of animal rights derives from three factors: speciesism, the anthropocentric approach to the right and the dominant culture that animals are things, devoid of any rights. This study had the foundation the change implemented by current Brazilian Constitution that ensured the basic right of the animals are not subjected to any form of cruelty, Article 225, Paragraph 3, Item VII, allowing the recognition of the awakening of constitutionalism environmentally-friendly design that brings a new valuation beings and holistic thinking as moral foundation, leaving behind the absolute belief in the superiority of the human species forward to other living beings. We must go beyond the anthropocentric model. The sustentation of a minimum right the subsistence of all animals make to emergence new fundamental rights such as the inherent rights in all animals, which must be incorporated into the dimension of the concept of dignity. It should be stressed here that as the right is thought in terms of the persons, it's time it was including other subjects in order to build a new dimension of these fundamental rights, expanding the protection of this principle to reach the animals. To enrich the discussion and illustrate it, a judicial review of the issue at the national and international law was carried out, because where there is a solid constitutional theory endorsing the interpretation and application of constitutional norms, usually results in the emergence of a constitutional jurisdiction active. Keywords: Fauna. Protection. Federal Constitution. SUMÁRIO Introdução 10 CAPÍTULO I: CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS 1.1. O domínio sobre os animais 13 1.2. Aristóteles x Pitágoras 17 1.3. De Roma ao Período Medieval: A força da Igreja Católica 20 1.4. Do animal máquina ao pior dos vícios: a crueldade 29 1.5. O pensamento filosófico em defesa dos animais 36 1.5.1. Humphry Primatt e Jeremy Bentham 36 1.5.2. Peter Singer: Libertação Animal 43 1.5.3. Tom Regan: Animais como sujeitos de uma vida 54 1.5.4. Gray Francione: A abolição dos animais como propriedade 61 1.6. Direito moral para os animais 67 CAPÍTULO 2: POR UMA NOVA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA 2.1. A crise ambiental 82 2.2. Teorias éticas: qual o seu significado? 87 2.2.1. Era uma vez um mito antropocêntrico... 93 2.2.2. Antropocentrismo mitigado 96 2.2.3. Biocentrismo 99 2.3. Estado Constitucional Ecológico 104 CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS ANIMAIS 3.1. A inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 109 3.2. A superação do paradigma antropocêntrico do Direito Constitucional Ecológico e o princípio responsabilidade de Hans Jonas 117 3. 3. A fauna na Constituição 122 3.4. A função ecológica da fauna 123 3.5. A extinção das espécies 125 3.6. A crueldade contra animais 132 3.7. A proteção dos animais nos tribunais 140 CAPÍTULO 4: ANIMAIS COMO SUJEITO DE DIREITOS 4.1. A teoria do direito animal 153 4.2. Dignidade para além da vida humana 174 4.3. A proteção da fauna no direito comparado 182 4.4. O modelo econômico atual: uma barreira a ser rompida em defesa dos animais 187 5. CONCLUSÃO 195 REFERÊNCIAS 196 INTRODUÇÃO A crescente preocupação com a proteção ambiental levou ao reconhecimento mundial do meio ambiente ecologicamente equilibrado como Direito Fundamental do homem e o Brasil, seguindo essa corrente internacional, trouxe de forma inovadora o tratamento da questão ambiental na Constituição Federal de 1988. Além de um capítulo específico sobre o tema, consubstanciado no artigo 225, ao longo do texto constitucional são feitas diversas referências ao meio ambiente, como por exemplo, a instituição da proteção do meio ambiente como princípio da ordem econômica, no art. 170, o que evidencia a intenção do legislador constituinte de conferir ao mencionado bem jurídico efetiva proteção através mais diversas formas. A Constituição também reconheceu expressamente que os animais têm o direito de não serem submetidos à crueldade e passou a garantir os processos ecológicos essenciais, a vedar as práticas que possam pôr em risco a função ecológica da fauna, ou levar a sua extinção, o que torna possível reconhecer que o Estado Constitucional de Direito também é um Estado Socioambiental. Apesar da consolidação do meio ambiente equilibrado como um direito fundamental, ainda não há um consenso sobre a existência ou não de bases legais para o reconhecimento dos animais como sujeitos de direito. No entanto, existem vários filósofos que se dedicam à defesa dos animais, entre eles: Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione. Foi por esse motivo que o primeiro capítulo desse trabalho tratou das bases históricas e filosóficas 10 da proteção da fauna, buscando demonstrar quais são os alicerces para que os animais possam ser incluídos na comunidade moral1. Este debate, como se verá, ganhou destaque no âmbito mundial a partir da década de 70, com a publicação do livro de Peter Singer, e até hoje é objeto de grande controvérsia. A resposta a essa discussão não é uníssona entre os autores, no entanto, todos tem em comum o anseio pela proteção dos animais. Este trabalho dialoga com essas vertentes filosóficas, sublinhando a complexa relação histórica entre homens e animais, com o objetivo de afastar o paradigma antropocêntrico. No segundo capítulo, outros modelos éticos foram abordados em relação ao meio ambiente, já que o antropocentrismo do Código Civil brasileiro deixou de ser a doutrina dominante, dando lugar à bioética2 e ao antiespecismo de Singer3. Um exemplo é a resolução N° 37/7 de 1982, da Organização das Nações Unidades (ONU), que diz: “Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja sua utilidade para o homem, e com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação”. Tal fato ocorreu devido ao amadurecimento do Estado Constitucional Ecológico, entre eles o brasileiro. Regan define comunidade moral como sendo “composta por todos aqueles indivíduos que são diretamente importantes moralmente ou, alternativamente, como consistindo em todos aqueles indivíduos perante os quais os agentes morais têm deveres diretos.” REGAN, Tom. The case for animal rights. 2 ed. Berkeley and Los Angeles: University California Press, 2004, p. 152. [tradução livre] 2 Uma das perguntas que a bioética visa responder é: “Somos diferentes dos animais?” (LAW, Stephen. Guia ilustrado Zahar de filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 110). 3 A doutrina antiespecista de Peter Singer tem como pressuposto que todos os animais, humanos e não-humanos, têm o mesmo direito de não serem tratados como seres inferiores na escala evolutiva. É a luta contra a exploração dos animais pelo ser humano, com fundamento no fato de que todos os seres animais não-humanos têm interesses próprios e capacidade de sofrer, além de certa consciência de si mesmos. Essa discussão filosófica é tema do livro: Libertação animal. 1 11 Devido à preocupação constitucional com o meio ambiente, muitos doutrinadores visualizam um esverdear do direito constitucional. Medeiros4 entende que estamos diante de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito, pois é um Estado Ambiental, calcado em princípios ambientais. Ingo Sarlet5 afirma que a Constituição trouxe um Estado Socioambiental de Direito, não um Estado Mínimo, mas um Estado regulador da atividade econômica, capaz de ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, de forma ambientalmente sustentável. Por tudo isso, o terceiro capítulo dessa obra tratou do coroamento constitucional da proteção da fauna e como isso refletiu nos tribunais brasileiros. Assim, o tema fundamental que ecoa da leitura desse trabalho é a discussão da proteção da fauna. Pesquisadores do mundo inteiro têm elaborado uma teoria jurídica que reconhece o valor intrínseco de cada não-humano, demonstrando a necessidade de mudança do status jurídico dos animais. Nessa ótica, no quarto capítulo foi tratada a teoria do direito animal e como ela é aplicada no direito brasileiro e internacional. Não se buscou defender, cegamente, direitos para os não-humanos, mas sim revelar todas as razões que buscam reconhecer determinados direitos básicos e essenciais a maioria dos seres vivos, ou no mínimo, aos seres sencientes, ou seja, sensíveis a dor e ao sofrimento, capazes de ter consciência sobre si e sobre a realidade que o cerca. Para por fim, discutir a possibilidade de incluir, em alguma medida, na categoria de sujeitos de direito, e não de objeto, os animais. A questão que se procurou responder foi: por que só o homem têm direitos, se outros tão semelhantes, tão iguais, e até mais indefesos, precisam também de proteção? 4 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27. 5 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 342. 12 CAPÍTULO I CONSIDERAÇÃO MORAL DA FAUNA6: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS Mas, ainda que tudo seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede. Michel de Montaigne7 1.1. O DOMÍNIO SOBRE OS ANIMAIS8 Segundo o professor Cláudio de Cicco9 a história pode ser definida como a ciência da reconstrução do passado para a melhor compreensão do presente. Lembrar o passado torna possível entender e modificar a sociedade atual, pois os fatos de hoje são a resultante final do complexo de fatos anteriores. Conhecer os erros que ocorreram no decorrer da história possibilita uma transformação no pensamento hodierno: para que a sociedade possa se inovar e não retroceder 6 Entende-se por fauna o conjunto de animais que vive em uma determinada região ou ambiente. MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1972, p. 208. 8 Os humanos também são animais, mas sigo a prática comum e uso muitas vezes a palavra animal ou fauna para me referir aos animais não-humanos. 9 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.15. 7 13 por caminhos já desbravados é interessante analisar as respostas já encontradas para se procurar novas perguntas. Neste contexto, o estudo filosófico sobre o direito dos animais também se torna essencial, pois foram os filósofos que primeiramente começaram a questionar se os animais teriam direitos. Keith Thomas10, professor de história da Universidade de Oxford, esclarece que o predomínio do homem sobre o mundo animal foi e é uma pré-condição básica da história humana, sendo impossível separar o que as pessoas pensavam sobre os animais daquilo que elas pensavam sobre si mesmas. O status jurídico dos animais evoluiu conforme as crenças religiosas, culturais e econômicas da sociedade, “cultivamos a ideia de que os seres humanos têm um status diferenciado, mais elevado, e prerrogativas morais, econômicas e políticas inquestionáveis frente aos demais seres vivos.11” As pessoas estão convencidas de que podem fazer uso indiscriminadamente de todas as formas de vida, sem necessidade de apresentar uma justificativa ética para tais ações. Quando uma atitude se encontra tão profundamente enraizada na sociedade, esta se transforma em uma verdade inquestionável. E a contestação séria e coerente dessa atitude corre o risco de ser tomada como ridícula. Uma estratégia alternativa consiste em tentar minar a plausibilidade da atitude dominante através da revelação das suas origens históricas12. A tradição se mostrou um obstáculo a ser superado para a libertação dos animais e sua consideração moral. Sem refletir sobre o direito dos animais não é possível tomar uma decisão sobre o assunto. E a decisão é difícil, pois trará mudanças drásticas na sociedade atual. Porém a apatia em que se encontra a sociedade atual precisa ser combatida constantemente para que seja possível viver em um ambiente sadio, onde todas as formas de vida sejam valorizadas. A vida ganha importância nesse novo cenário onde os seres humanos não são onipotentes e hierarquicamente superiores ao restante da vida existente em nosso Planeta Terra. 10 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 20. 11 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 19. 12 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 270. 14 Mas como surgiu esta tradição de dominação absoluta do homem sobre a natureza? A partir de agora faremos um breve retrospecto sobre os principais pontos históricos que culminaram na atual crise ambiental. Formado há cerca de 4,5 bilhões de anos, o lar da humanidade é indivisível e composto principalmente por rocha e metal, o chamamos de Planeta Terra. Somente aos 3,5 bilhões de anos surgiu a vida com os primeiros organismos vivos13. Segundo Fritjof Capra “o registro fóssil nos mostra claramente que a história da evolução caracteriza-se por longos períodos de estabilidade, sem muita variação genética, marcados e pontuados por transições rápidas e drásticas”14. O autor explica que: Outro padrão recorrente é a ocorrência de catástrofes seguidas por períodos de intenso crescimento e renovação. Assim, há 245 milhões de anos, aos mais devastadores processos de extinção em massa já ocorridos neste planeta seguiu-se rapidamente a evolução dos mamíferos; e, há 66 milhões de anos, a catástrofe que eliminou os dinossauros da face da Terra abriu caminho para a evolução dos primeiros primatas e, ao fim e ao cabo, da espécie humana15. Restou cientificamente comprovado que o homem moderno, Homo sapiens, surgiu há 100 ou 120 mil anos. Por sua vez, o Homo sapiens sapiens que caracteriza o homem atual surgiu há 35 mil anos. Sob uma compreensão radical, isso significa que, no prazo de 100 a 120 mil anos, o homem vem destruindo o que a natureza levou 4,5 bilhões de anos para construir16. Na antiguidade, a fauna possuía uma força simbólica grandiosa e era considerada divina, como ainda acontece em alguns países, a exemplo da Índia, onde a vaca é considerada um animal sagrado. Por aproximadamente 2 milhões de anos os seres humanos viveram da caça e da coleta, sendo que esse estilo de vida era mantido com a constante mobilidade do grupo para 13 RODRIGUES, Danielle Tetu. O Direito & os Animais: Uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2 ed. atual. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p. 29. 14 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, p. 47. 15 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 47. 16 RODRIGUES, Danielle Tetu. O Direito & os Animais: Uma abordagem ética, filosófica e normativa, p. 29. 15 buscar novas fontes de recursos, mas há, aproximadamente, 10.000 anos iniciou-se o processo de domesticação das plantas e animais17. O registro de domesticação mais antigo que se tem é o do cão, através dos lobos. O primeiro animal a ser domesticado e explorado economicamente foi a ovelha, provavelmente pelo fato de não competir com o homem pela comida18. De fato, a domesticação e a posse dos animais estão intimamente relacionadas com as ideias de propriedade e dinheiro, tanto é que a palavra catle (gado), tem a mesma raiz que a palavra capital, sendo sinônimas em muitas línguas europeias19. Dinheiro, por exemplo, deriva do latim pecúnia, que deriva de pecus (gado).20 E assim, os animais se tornaram símbolo de poder, e o reino do homem sobre a Terra se firmou. No entanto, ao longo da história, um coro de vozes ergueu-se para reivindicar um respeito mais pleno e ativo pelos animais. Não se trata de um punhado de sentimentalistas excêntricos, desligados da realidade humana. A lista de personalidades é longa e a sua influência provou-se determinante para a construção de um Estado de Direito Ambiental. Isaías, o primeiro dos profetas maiores do Velho Testamento; Pitágoras, o matemático e filósofo da Grécia Antiga; Buda, o fundador de uma das grandes religiões do Oriente; da Pérsia, o pensador religioso Mani; da Roma Clássica, os filósofos Plotino, Porfírio e Plutarco, e o estadista Séneca; mais tarde, o profeta Maomé; depois, no mundo medieval cristão, o patriarca S. João Crisóstomo e S. Francisco de Assis; no período renascentista, o pintor e inventor Leonardo da Vinci, o Papa Pio V, o político S. Thomas More, o poeta e dramaturgo William Shakespeare, e o teólogo Michel de Montaigne; os filósofos do século XVII Henry More e John Locke, e o físico e matemático Isaac Newton; no Século das Luzes, os filósofos Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham, o poeta Alexander Pope e o filósofo escritor Voltaire; no século XIX, os filósofos Arthur Schopenhauer e John Stuart Mill, e o influente naturalista Charles Darwin; no século passado, o nobel da ciência Albert 17 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Segio Antônio Fabris Ed, 2008, p. 43. 18 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 43. 19 Palavra espanhola para propriedade é ganadería; a palavra para gado é ganado. 20 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?. Trad. Regina Rheda. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 115. 16 Einstein, o nobel da paz Albert Schweitzer e o activista político Mahatma Gandhi21. Nota-se que existiam, no mínimo, duas correntes de pensamento: de um lado pensadores que declaravam a valor fundamental da bondade para com os animais; de outro, os que pregavam a supremacia humana sobre as demais criaturas. Neste momento traremos os principais argumentos de cada um. 1.2. ARISTÓTELES X PITÁGORAS Existiam, na Grécia antiga, tendências contraditórias em relação ao tratamento dado aos animais. Duas escolas rivais se sobressaíram, sendo que cada uma apresentou doutrinas básicas de um grande fundador. Uma destas era a escola de Pitágoras, o qual era vegetariano e incentivava que seus discípulos tratassem com respeito os animais. Mas a escola que se difundiu no pensamento ocidental foi a de Platão e de seu discípulo Aristóteles. Pitágoras de Samos22 (570 a.C) fundou sua escola em Crotona, colônia grega, onde difundiu seus ensinamentos matemáticos e filosóficos. Defendia a imortalidade da alma e a possibilidade de sua transmigração, também denominada de metempsicose23. Assim uma alma humana poderia voltar como alma de um animal ou planta24. Pitágoras foi o mais antigo filósofo defensor dos animais25. Conta Schopenhauer que certa vez Pitágoras comprou a rede de alguns 21 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan. 344 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009, p. 1. 22 Não deixou obra escrita de que se tenha notícia, mas provocou grande expansão do pitagorismo pelo mundo. “A contribuição pitagórica foi aproveitada por Aristóteles, na classificação da justiça, em distributiva, corretiva, e comutativa, por Dante Alighieri, ao formular a clássica e famosa definição do direito, baseada na noção de proportio e, certamente, inspirou Beccaria, no remate de sua obra Dos delitos e das penas, quando se refere a proporcionalidade que existe, necessariamente, entre delito e pena”. CRETELA JÚNIOR, José. Curso de filosofia do direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 94. 23 Dogma que criou sob grande influência dos egípcios. 24 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 52. 25 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 42. 17 pescadores enquanto ela ainda estava na água, só para dar aos peixes ali aprisionados sua liberdade26. Como se baseava na ideia de que a alma de todos os seres vivos poderia encarnar em novas vidas, humanas ou não, causar mal a um animal era o mesmo que causar mal a um ser humano. Inova ao tratar igualmente todos os seres vivos, e pregar a justiça entre eles, “o homem e todo o ser vivo estão enraizados num mundo que, longe de ser o apanágio de alguns é dado a todos”27. Tal passagem elucida sua visão, ao entender que o mundo foi dado a todos nós igualmente, e deve ser compartilhado. O autor também pregava aos jovens o amor à família, comparava a mãe à natureza generosa e saudável. Via a Terra como uma grande mãe. E para ele essa natureza viva, eterna, não é somente a natureza terrestre, mas também a natureza invisível aos nossos olhos da carne — a Alma do Mundo, a Luz primordial28. No entanto, seu pensamento encontrou opositores. Alcmeon, natural de Crotona, contemporâneo de Pitágoras, fazia uma distinção entre pensamento e percepção, acreditava que somente o homem possui a verdadeira compreensão, enquanto as outras criaturas somente são capazes de perceber, elas não são capazes de pensar29. A capacidade de pensar é considerada até hoje um argumento para justificar a superioridade do ser humano. Outro antagonista de Pitágoras na defesa dos animais foi Aristóteles. O filósofo grego nasceu em Estagira, 384 a.C. e faleceu em Atenas, foi aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. O autor era favorável à escravatura30, afirmava que alguns homens eram escravos por natureza e a escravatura, por conseguinte, era correta e lhes convinha. Este fato não foi mencionado com a finalidade de desacreditar Aristóteles, mas porque é essencial para compreender sua atitude em relação aos animais. Aristóteles defende que os animais existem 26 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 179. 27 MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os Pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 46. 28 DIAS, Edna Cardozo. Tutela jurídica dos animais. 150 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000, p. 8. 29 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 55. 30 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 274. 18 para servir os interesses dos seres humanos. Escravos e animais estariam em uma categoria semelhante, ambos servindo a um senhor como propriedade: Há também, por natureza, visando à conservação das espécies, um ser que comanda e outro que obedece: aquele que é capaz de previdência, por sua inteligência, é por natureza o senhor; e aquele que é capaz, pelo vigor de seu corpo, de pôr em ação aquilo que o senhor prevê, é um súdito e, por natureza, um escravo; por conseguinte, senhor e escravo tem o mesmo interesse31. Mesmo abordando a escravidão com naturalidade, não tratava seus servos com brutalidade, tendo requerido em seu testamento que seus escravos não fossem vendidos a outros senhores. Também reconheceu32 que a amizade não é um sentimento exclusivamente humano, podendo ser encontrada nos pássaros e na maioria dos animais, mas ele traçou uma linha hierárquica entre o homem e as demais criaturas, organizada segundo a capacidade de raciocínio dos seres viventes. Os seres viventes encontravam-se, assim, em uma cadeia hierárquica, na qual basicamente três níveis principais se sucedem: o vegetal, o animal e o ser inteligível ou humano33. O filósofo define o homem como sendo um animal racional. No entanto, compartilhar uma natureza animal comum não é suficiente para justificar uma igual consideração de interesses. Para ele, por exemplo, o homem que nasceu escravo é indiscutivelmente um ser humano, sendo capaz de sentir prazer e dor como qualquer outro homem; todavia, é julgado inferior ao homem livre no que diz respeito ao poder de raciocínio. Aristóteles o considera como um “instrumento vivo”, entende que o escravo é alguém que “apesar de ser homem, se converte numa propriedade”34. A vida parece ser comum até as próprias plantas, mas estamos, agora, buscando saber o que é peculiar ao homem. Excluamos, pois, as atividade de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de percepção, mas dessa também parecem participar o cavalo, o boi, e todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do homem; desta uma parte tem 31 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens, 5.ed. São Paulo: Martins Claret, 2009, p.54. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Torrieri Guimarães, 4.ed. São Paulo: Martins Claret, 2010, p. 172. 33 GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. Filosofia da natureza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. (Passo-a-Passo; 67), p.19. 34 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 274. 32 19 esse princípio racional no sentido de ser obediente a ele, e a outra, no sentido de possuí-lo e de se pensar35. Aristóteles pregava a hierarquia das almas, sendo que o homem grego que era racional era um dos que estavam no topo da pirâmide social. As mulheres gregas e as crianças estavam logo abaixo. Depois vinham os escravos, classificados como sem capacidade plena de raciocínio36. Se a diferença de poder de raciocínio existente entre os seres humanos foi suficiente para tornar alguns deles senhores e outros sua propriedade, Aristóteles deve ter considerado que o direito dos seres humanos dominarem os animais era demasiado óbvio para lhe dispensar grande argumentação. A natureza, defendia ele, é essencialmente uma hierarquia na qual os que têm menor capacidade de raciocínio existem para servir aqueles que a possuem em maior grau: as plantas estão feitas para os animais e estes para o homem37. Ele via no fato do homem ter o dom da palavra uma forma de elevação, ao ser comparado com os outros animais, que só tem a voz para expressar prazer e dor. Os animais se comunicam, mas só os humanos podem discutir o que é justo ou injusto38. Foi o primeiro filósofo antigo a diferenciar a ciência empírica da natureza e o saber propriamente filosófico. Desenvolveu a prática da dissecação de animais com a finalidade de compreender o funcionamento de seus organismos39. Foram as convicções de Aristóteles, e não as de Pitágoras, que passaram para a tradição ocidental posterior. Sua visão antropocêntrica, baseada na negação da razão aos animais influenciou fortemente todo o mundo ocidental. 1.3. DE ROMA AO PERÍODO MEDIEVAL: A FORÇA DA IGREJA CATÓLICA O Império Romano foi formado através de guerras e conquistas, tendo sido necessário dedicar muita de sua energia e do seu rendimento às forças militares que defendiam e 35 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2007, p. 27. Aristóteles. Política. Tradução Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martins Claret Ltda., 2012, p. 61. 37 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 275. 38 ARISTÓTELES. Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. 6. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 56. 39 GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. Filosofia da natureza, p. 17. 36 20 ampliavam o seu vasto território. Essas condições não permitiam a existência de grande simpatia com os mais fracos. As virtudes marciais deram o tom à sociedade40. Em uma cultura voltada para o expansionismo bélico, sustentada com o lucro obtido através da conquista e saque de outros povos, incluindo-se a reprodução de mulheres escravas para garantir mais mão-de-obra, não houve movimento de libertação capaz de fazer frente ao poder devastador do abate de seres humanos e animais41. O sentimento de superioridade dos cidadãos romanos era alimentado nos jogos que ocorriam nas arenas romanas, onde seres humanos conquistados e animais capturados eram forçados a lutar até a morte, momento em que a plateia aplaudia o massacre e a crueldade ocorrida diante de seus olhos. W. E. Lecky, historiador, descreve o que acontecia nos jogos romanos: O combate simples acabou por se tomar insípido, tendo sido o interesse decrescente. Numa ocasião, um urso e um touro, acorrentados um ao outro, rolaram sobre a areia, num combate feroz; noutra vez, lançaram-se criminosos envoltos em peles de animais selvagens a touros enlouquecidos pela aplicação de ferros em brasa ou pelo arremesso de dardos com pontas embebidas em resina ardente. No tempo de Calígula, chegou-se a matar quatrocentos ursos num único dia [...]. No tempo de Nero, quatrocentos tigres lutaram com touros e elefantes. Num único dia, o da dedicação do Coliseu a Tito, foram abatidos cinco mil animais. Sob o domínio de Trajano, os jogos chegaram a durar cento e vinte e três dias consecutivos. Por forma a incutir um caráter de novidade ao espetáculo, foram utilizados leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, touros, veados, e até crocodilos e serpentes. E também não faltou nenhuma forma de sofrimento humano [...] Durante os jogos de Trajano lutaram dez mil homens. Nero iluminava os seus jardins, à noite, com cristãos a arder, envoltos nas suas túnicas embebidas em resina. No tempo de Domiciano, obrigou-se um exército de anões fracos a defrontar-se [...] O desejo de sangue era tão intenso que um príncipe tornar-se-ia menos impopular se negligenciasse a distribuição de milho do que se negligenciasse a organização dos jogos42. Apesar da grande importância dada aos jogos pela sociedade da época, “os romanos não eram desprovidos de sentimentos morais. Demonstraram grande respeito pela justiça, pelo 40 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276. FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 38. 42 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276. 41 21 dever público e mesmo alguma simpatia pelos outros”43. O que os jogos revelam claramente é que existia um limite preciso para esses sentimentos morais. Se um ser se situasse dentro desse limite, as atividades como aquelas que ocorriam nos jogos seriam consideradas intoleráveis, no entanto, quando um ser se encontrava no exterior da esfera das preocupações morais, a inflição de sofrimento passava a ser mera diversão. Não eram abrangidos por este limite alguns seres humanos – escravos, criminosos, prisioneiros de guerra, cristãos e todos os animais44. Para o Direito Romano os animais eram tidos como meros objetos dotados de valor econômico. Rotulavam os animais de acordo com os seus interesses econômicos, sendo classificados como res mancipi e res nec mancipi, ou seja, coisas que exigiam ou não o emprego da mancipatio, espécie de processo mais solene. Os animais domésticos e de tração e carga, que eram passíveis de apropriação para fins econômicos se enquadravam na primeira classificação, na segunda entravam os animais de pequeno porte que eram transferidos sem maiores formalidades45. Somente muito depois, na fase do dominato (285-565 d.C), época em que coube ao Império Bizantino preservar a tradição jurídica romana, percebe-se uma mudança na classificação dos animais, passando eles a serem considerados como bens móveis (res mobiles) e semoventes, conforme previa uma Constitutio de Justiniano do ano 531 d.C46. Salientando-se que o animal poderia ainda ser considerado uma res nullius como é o caso dos animais silvestres, que seriam aqueles animais sem um proprietário determinado ou,ainda, res derelictae, que seriam os animais abandonados por seus proprietários que, renunciando a seu direito de propriedade, possibilitariam que outros viessem a adquirir a propriedade originária47. E essas foram as definições jurídicas aplicadas aos animais no transcorrer dos séculos. Vemos nas Institutas de Gaio, Livro Segundo, 66 a 68: ‘E adquirimos por direito natural não apenas as coisas tornadas nossas por tradição, mas, também, as adquiridas por ocupação, porque a ninguém pertenciam antes, com 43 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276. SINGER, Peter. Libertação animal, p. 276. 45 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 90. 46 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 90. 47 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 11° edição. Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 140. 44 22 todas as coisas apanhadas na terra, no mar e no céu. Por conseguinte, se apresarmos um animal bravio, uma ave ou um peixe, o assim apanhado tornase logo nosso e entende-se nosso enquanto sujeito à nossa guarda; fugindolhe, porém, e voltando à liberdade natural, torna-se novamente do ocupante, pois deixou de ser nosso; e entende-se retornado à natural liberdade, quer escapando à nossa vista, quer, embora à vista, sendo de difícil encalço. Quanto aos animais habituados a ir e voltar como as pombas, as abelhas e os veados, que costumam ir aos bosques e voltar, temos a regra tradicional: perdendo o hábito de voltar, deixam de ser nossos, tornando-se do ocupante, e consideram-se como tendo perdido o hábito de voltar perdendo o dito costume’.”48 Durante o período romano o cristianismo se intensificou. O humanismo cristão e sua influência sobre os romanos levaram pelo menos três séculos para se fazer sentir, mas foram eficazes. “No século IV, já não eram mais permitidos nas arenas os jogos para abate de humanos, porém o mesmo não aconteceu em relação aos animais” 49. A influência do conceito cristão da sacralidade da vida humana, minou o dogma romano de superioridade da vida dos vencedores. No entanto, a percepção humana sobre o status dos animais nessa mesma época e cultura de superioridade não foi alterada. Os ensinamentos cristãos opunham-se implacavelmente à realização de combates entre gladiadores. O gladiador que sobrevivia por ter morto o adversário era visto como um assassino. A simples presença nestes combates tornava o cristão passível de excomunhão. Por outro lado, o estatuto moral de matar ou torturar qualquer ser não humano permaneceu inalterado. Os combates com animais selvagens prosseguiram durante a era cristã e, aparentemente, diminuíram gradualmente de número apenas porque a riqueza e a extensão decrescentes do Império tomaram cada vez mais difíceis a obtenção de animais selvagens. Na verdade, é ainda possível assistir a combates deste gênero, sob a forma moderna de tourada na Espanha e na América Latina50. Aí também se encontram as raízes históricas da utilização de animais em circo. 48 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 940. 49 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 40. 50 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 277. 23 É neste contexto que o impacto do cristianismo deve ser avaliado. O cristianismo51 trouxe ao mundo romano a ideia da singularidade da espécie humana, que tinha herdado da tradição judaica, mas na qual insistia com grande ênfase devido à importância que atribuía à alma imortal dos homens. Aos seres humanos - e só a eles, de entre todos os seres vivos existentes na terra - estava destinada uma vida após a morte. O cristianismo humanizou os jogos romanos da época, ao pregar entre outras coisas a caridade e o amor ao próximo. No entanto, o culto aos animais não era bem visto, pois tais cultos, na maioria das vezes, tinham outros Deuses e seguiam doutrinas diferentes da cristã, ideia combatida fortemente pela Igreja católica. Mas então, sobreveio a queda do Império Romano, um dos fatos históricos mais relevantes na caracterização do início da Idade Média. O Império centralizado em Roma foi se esfacelando aos poucos para, finalmente, se transformar em reinos bárbaros, cristãos latinizados. Seu sistema de governo passou a ser a vassalagem, território dos feudos. Nele, os nobres recebiam feudos do rei e os administravam a partir de interesses comuns52. O governo desses novos reinos cristãos estabeleceu uma aliança entre o clero e a nobreza. A Igreja, portanto, governava estes povos e a filosofia cristã passou a expressar o olhar desses governantes acerca do mundo. Concomitantemente, o Império Bizantino sobrevivia. Mas logo os árabes diminuíram seu território, ocupando grande parte do Oriente Médio, norte da África e Península Ibérica, tornando-se o maior e mais importante Império da época53. Tanto os “cristãos romanos e bizantinos quanto os muçulmanos árabes elaboraram uma filosofia baseada na ideia de que a razão, oriunda do mundo Greco-romano, era Deus e a 51 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 277. NASCIMENTO JÚNIOR, Antônio Fernandes; SOUZA, Daniele Cristina de. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza. Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia, volume 03, número 06, 2011. Disponível em: http://www.theoria.com.br/edicao0611/um_olhar_%20sobre_idade%20media.pdf. Data de acesso: 13 agosto 2014, p. 21. 53 NASCIMENTO JÚNIOR; SOUZA. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza, p. 22. 52 24 natureza sua expressão” 54. A hierarquização religiosa passou a justificar a organização feudal. Esta situação perdurou na Europa por mil anos. A comunidade europeia utilizava os animais de maneira intensa. O emprego de animais para a tração forneceu ao europeu do século XV uma força motriz cinco vezes maior à de seus contemporâneos chineses, que contavam com menos animais. Foram os espanhóis que introduziram os cavalos, porcos e ovelhas no América. Além disso, os europeus eram essencialmente carnívoros em comparação com os povos vegetarianos do Oriente55. Durante a Era Medieval, com as “invasões bárbaras” e o desmoronamento do Império Romano, entrou em declínio a própria conceituação romana de animal para o direito. Naquele período os animais passaram a ser “sujeitos de direito na relação processual”, conforme se infere dos diversos processos em que aos animais foi atribuída a condição de parte, detentores, portanto, de capacidade processual. Luc Ferry56 relata alguns casos em que os animais eram levados a juízo, como em 1587 em que os cidadãos de Saint-Juliem propuseram uma ação ao juiz episcopal de Saint-Jeande-Maurienne contra uma colônia de gorgulhos. Segundo relatos, os “carunchos” invadiram vinhedos causando diversos estragos aos camponeses do local. Estes solicitaram ao senhor vigário-geral e ao oficial do bispado de Maurienne, que fossem tomadas as medidas adequadas para diminuir a ira divina, com a excomunhão ou outra censura apropriada e se necessário à expulsão dos insetos. Marco Antônio Azkoul também acentua a nova visão estabelecida sobre os animais nessa época: Durante a época dos bárbaros os animais foram incluídos na relação de direitos comuns, a qual sempre regulou as relações de pessoas na atualidade. Sendo certo que o animal na atualidade é irresponsável pelos próprios atos, respondendo por eles aqueles titulares que têm sob sua guarda o referido animal. A contra senso, antigamente, caso o animal cometesse uma falta devia 54 NASCIMENTO JÚNIOR; SOUZA. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza, p. 22. 55 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 33. 56 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2009, p10. 25 ser punido; no entanto, eram-lhes reconhecidos direitos legais de serem assistidos por advogados e todos os meios de provas admitidas57. Porém, a atribuição de capacidade jurídica processual aos animais que foi narrada no livro de Azkoul deriva de uma série de fatores típicos da Idade Média, como a forte carga de superstição que orientava o dia-a-dia do homem medieval, ou, ainda, como forma de justificativa para as “pragas”, cujas tragédias socioeconômicas exigiam uma resposta perante a população, desesperada pela fome e miséria. A ação judicial envolvendo os animais como partes no processo obedecia às seguintes etapas: petição dos queixosos junto ao juiz episcopal, exame atento da realidade dos fatos, citação dos animais para seu comparecimento e nomeação de um procurador (assistido por um advogado) para defender os animais. O processo respeitava o contraditório, uma vez que a sentença podia variar. Os animais poderiam ser considerados criaturas de Deus que se limitavam a obedecer a lei natural ou um flagelo enviado aos homens como punição por seus pecados, ou ainda um instrumento do demônio. Apenas no último caso os animais eram excomungados ou amaldiçoados58. Houve o caso, por exemplo, de golfinhos que foram excomungados em Marselha, pois atrapalhavam e impediam o trânsito de embarcações no porto59. Inclusive era costume enviar um oficial para ler em voz alta e inteligível a intimação para que os animais comparecessem à audiência. E como só Deus saberá por que eles não compareciam, cabia ao procurador encontrar uma desculpa plausível. Durante a primeira fase da Idade Média (do século V ao XII) a Igreja construiu uma visão contemplativa da natureza, oriunda principalmente de Agostinho, bispo de Hipona. Neste período, coube a Santo Agostinho (354-430 d.C), renomado teólogo do século IV, consolidar as ideias de Platão e de Aristóteles no cristianismo. Em seu livro “Cidade de Deus” o autor deixa claro sua posição antropocêntrica60. 57 AZKOUL, Marco Antônio. Crueldade contra animais. São Paulo: Plêiade, 1995, p. 27. FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem, p11. 59 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem, p12. 60 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 132. 58 26 Agostinho baseava na racionalidade a superioridade humana. Entendia que os animais não possuíam inteligência, logo não tinham conexão conosco. Também afirmava que o mandamento religioso “não matarás” não deveria ser aplicado aos animais, nem as plantas por serem desprovidas de sensibilidade61. Dentro da concepção medieval, os animais e as plantas, estão no mundo para servirem os homens, é a ideia bíblica que prevalece nesse período. Bem mais que os vegetais, os animais estavam sujeitos às lendas, mitos e fábulas de conteúdo moral cristão. Na segunda fase da Idade Média (do século XIII ao XV), o que se produzia eram os conhecimentos filosóficos inscritos numa visão de mundo teológica, principalmente aristotélica. Na Inglaterra, a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades62. Acreditava-se que Deus criou o boi e o cavalo para labutar a nosso serviço, o cão para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir perfeita satisfação quando parcialmente confinadas63. Nesta época o homem era visto como imagem de Deus, assim não havia dúvidas que era mais valioso que o resto da criação divina. Dentre os trabalhos escritos durante este período acerca dos animais e plantas, aqueles produzidos por Alberto Magno se destacam pela meticulosidade e rigor das informações obtidas. Santo Alberto desenvolveu uma obra sobre os seres vivos intitulada “De Vegetabilis et Plantis e De animalibus” (por volta de 1260), cujos trabalhos de botânica são respeitáveis. Neles, o autor reforça a importância da experimentação no conhecimento. Sendo um pensador aristotélico, Alberto Magno tinha como objetivo entender o mundo natural construído por Deus para compreender o plano divino.64 Santo Alberto foi beatificado em 1622 pela Igreja Católica. Influenciado por Aristóteles, São Tomas de Aquino reafirmou a exclusão de qualquer consideração moral aos animais por estes não terem a faculdade da razão que os tornaria 61 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, p. 132. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 21. 63 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 33. 64 GILSON, 1952 apud NASCIMENTO JÚNIOR; SOUZA. Um olhar sobre o estudo dos seres vivos na idade média: temas fundamentais da biologia na filosofia da natureza, p. 23. 62 27 próximos do homem. Os animais eram considerados, então, apenas como coisas vivas que não tinham nenhum bem próprio que devesse ser respeitado por qualquer agente moral65. Não há, na visão tomista, uma categoria de pecados cometidos contra seres nãohumanos tanto que ele legitima moralmente a utilização e morte de animais para quaisquer propósitos humanos, alegando que se há alguma proibição de crueldade com animais na bíblia esta só se deve pelo fato de que isso poderia levar os humanos a realizar atos cruéis contra outros humanos. Assim o que Aquino passa para a filosofia moderna é a superioridade da racionalidade e da inteligência, habilidades que concedem a um ser plenos direitos sobre todos os demais que não as possuem. Tanto é que os maus tratos aos animais não foram incluídos na lista de pecados, eram vistos apenas como um prejuízo à moralidade66. A influência de São Tomás levou o papa Pio IX, em meados do século XIX, a recusar o estabelecimento de uma organização contra a crueldade com os animais em Roma, argumentando que a sua existência sugeriria que os seres humanos têm deveres para com os animais67. É importante frisar que nem todas as grandes personalidades que faziam parte da Igreja Católica compartilhavam essa visão. São Francisco de Assis foi uma destas pessoas. São Basílio, no séc. IV d.C é citado juntamente com São Boa Ventura e São Cristóvão como dissidentes da doutrina cristã de origem tomista, pois pregavam o amor em relação aos animais68. Francisco é a grande exceção à regra do catolicismo ao se preocupar com o bem-estar dos seres não humanos. “Se eu pudesse ser levado à presença do imperador,” disse São Francisco, “suplicar-lhe-ia, pelo amor de Deus, e por mim, que emitisse um edito proibindo a 65 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 46. 66 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 49. 67 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 284. 68 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 51. 28 captura e prisão das minhas irmãs cotovias e ordenando que todos os donos de bois e burros os alimentassem particularmente bem no Natal”69. Não eram apenas aos seres conscientes que Francisco tratava como irmãos: o sol, a lua, o vento, o fogo, todos eram seus irmãos e irmãs. Extraia “prazer interior e exterior de quase todas as criaturas e, quando lhes pegava ou as olhava, o seu espírito parecia mais estar no céu do que na terra.” Este prazer estendia-se à água, às rochas, às flores e às árvores. Esta é uma descrição de uma pessoa em estado de êxtase religioso, profundamente tocada por um sentimento de unidade com toda a natureza, tendo expressado sentimentos de amor universal70. No entanto, não foi o amor de Francisco de Assis que prevaleceu na filosofia cristã. A Igreja colocou-se contra o culto das nascentes e dos rios, as divindades pagãs dos bosques e da montanha foram expulsas, deixando assim desencantado o mundo, pronto para ser dominado. Em 1897 o historiador americano Lynn White Jr, considerou o cristianismo a religião mais antropocêntrica do mundo71. Mas o cristianismo não foi responsável pelos problemas ecológicos, tanto é que a erosão do solo, a extinção das espécies e o desmatamento ocorrem em todas as partes do mundo. Não é necessário determinar aqui se o cristianismo é ou não intrinsicamente antropocentrista. A questão é que no início do período medieval seus principais pregadores sem dúvida foram72. 1.4. DO ANIMAL MÁQUINA AO PIOR DOS VÍCIOS: A CRUELDADE Mas foi, sem dúvidas, com René Descartes (1596-1650), filósofo racionalista francês, que a crueldade com os animais chegou ao seu ponto mais alto. O autor defendeu a tese mecanicista da natureza animal, influenciando, até hoje, o mundo da ciência experimental. Para ele, os animais são destituídos de qualquer dimensão 69 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 286. SINGER, Peter. Libertação animal, p. 287. 71 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 29. 72 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 32. 70 29 espiritual, e embora dotados de visão, audição e tato são insensíveis à dor, incapazes de pensamento e consciência de si73. Em sua obra clássica Discurso sobre o Método, afirma que o método é o caminho para garantir o sucesso do conhecimento. O conhecimento que o autor buscava era baseado na razão, fazia parte da corrente filosófica dos racionalistas. A razão para ele era uma característica que apenas os seres humanos possuíam, formulando o argumento “penso, logo existo”. Pensava que os animais não possuíam nenhuma razão, pois não eram capazes de pensar, de raciocinar. E uma prova de que não possuem nenhuma razão era a sua incapacidade de falar74. Segundo Naconecy75, Descartes entendia que os animais não eram sujeitos morais porque eram desprovidos de consciência: Associou a moralidade à consciência, e esta às capacidades intelectuais superiores, como a racionalidade e a linguagem. Para Descartes, já que os animais não possuem uma mente (ou alma racional), eles não podem pensar, ter consciência e linguagem; portanto, eles não podem ter a experiência do sofrimento. Em outras palavras, os animais não podem sofrer porque eles não têm condições mentais para tanto. Eles são organismos não-pensantes, que operam apenas por instinto. A perspectiva cartesiana sustenta que, dado que os animais são irracionais ou desprovidos de consciência, e a dignidade depende inteiramente da razão, os animais não têm qualquer importância moral76. Sob influência da mecânica, Descartes sustentou que tudo que consiste em matéria é governado por princípios mecanicistas. Desta forma, para Descartes os animais são meras máquinas, autômatos77. Não sentem prazer, nem dor, nem nada. Com esta teoria, os estudos científicos em animais se tornaram amplamente difundidos. Era um pensador claramente moderno. Mas era também cristão, o que influenciou suas convicções em relação aos animais. Afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio. Um problema óbvio que esta perspectiva colocava prendia-se com a nossa própria natureza. O corpo humano é composto por matéria e faz parte do universo físico. Portanto, podia pensar-se 73 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo, Martin Claret, 2006, p. 57. 74 DESCARTES, René. Discurso sobre o método. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 63-4. 75 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 68. 76 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 68. 77 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 57. 30 que os seres humanos também deveriam ser máquinas cujo comportamento era determinado pelas leis da ciência78. Mas conseguiu evitar a conclusão herética e desagradável de que os humanos são máquinas introduzindo a ideia de alma. Descartes afirmou haver não um, mas dois tipos de coisas no universo: as coisas do espírito ou alma e as coisas de natureza física ou material. Os seres humanos têm consciência, e a consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência com a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, disse Descartes, apenas os seres humanos possuem alma79. Assim, na filosofia de Descartes, a teoria cristã de que os animais não têm almas imortais conhece a consequência extraordinária de eles também não terem consciência. Eles são, afirma Descartes, meras máquinas, autômatos. Embora possam guinchar quando são cortados por uma faca ou contorcer-se na tentativa de escapar ao contato com um ferro quente, isto não significa que eles sintam dor nestas situações, afirmou Descartes. São regidos pelos mesmos princípios que regem o funcionamento de um relógio e, se as suas ações são mais complexas do que as de um relógio, é porque o relógio é uma máquina feita pelos humanos, ao passo que os animais são máquinas infinitamente mais complexas, tendo sido criadas por Deus80. Foi nesta época que a prática de experimentação em animais vivos se disseminou na Europa, uma vez que não existiam anestesias, estas experiências provocaram comportamentos nos animais que indicariam, à maior parte das pessoas, um sofrimento de dor atroz. A teoria de Descartes permitia que os experimentadores ignorassem quaisquer escrúpulos que pudessem sentir nestas circunstâncias. O próprio Descartes81 dissecou animais vivos como forma de aumentar o seu conhecimento sobre anatomia, e muitos dos fisiólogos mais destacados do seu tempo declararam-se cartesianos e mecanicistas. O mais forte argumento a favor da posição cartesiana era que ela constituía a melhor racionalização possível para o modo como o homem realmente tratava os animais. A visão alternativa deixava espaço para a culpa do homem, ao reconhecer que os animais podiam sofrer e suscitava dúvidas sobre os motivos de um Deus permitir que os bichos sofressem tais misérias. 78 DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. DESCARTES, René. Discurso do Método: Regras para a direção do espírito, p. 58. 80 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 291. 81 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 292. 79 31 Mesmo porque admitir que os animais tivessem sensações era fazer do comportamento humano algo intoleravelmente cruel82. Mas Descarte encontrou opositores de peso. É de Montaigne (1533- 1592) que partem as primeiras críticas dentre os filósofos modernos contra a prática de atos cruéis contra animais. Em seu livro Ensaios, disse que a virtude é coisa diferente e mais nobre que as inclinações para a bondade que nascem em nós e que entre os vícios havia um que detestava particularmente: a crueldade. Montaigne dizia que aos homens devemos justiça, mas aos animais devemos solicitude e benevolência: Mas, ainda que tudo seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito não somente pelos animais, mas também por tudo que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede83. Para ele a falha que temos em nos comunicar com os animais tanto pode ser atribuída a nós, humanos, como aos animais. Reconhecia que os animais podem nos achar tão irracionais como nós os achamos. Os animais entendem-se perfeitamente, e não só os da mesma espécie, mas também os de espécie diferente. Quanto aos animais que não têm voz, valem-se de movimentos com significações específicas. Em seu entendimento a maior parte do trabalho realizado pelos animais é superior à dos humanos, que não conseguem imitá-los com êxito84. O autor afirmou que entre os vícios, o que mais detestava era a crueldade 85. Esclarece o filósofo que os sanguinários com os animais revelem uma natureza propensa à crueldade, “quando se acostumaram em Roma com os espetáculos de matanças de animais, passaram aos homens e aos gladiadores”86. Também se declarou abertamente contra a caça de animais, achando tal atitude muito desagradável e os caçadores sanguinários: 82 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800), p. 45. 83 MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1972, p. 208. 84 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 215. 85 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 205. 86 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 32 Quanto a mim, nunca pude sequer ver perseguirem e matarem um inocente animal, sem defesa, e do qual nada temos a recear, como é o caso da caça ao veado, o qual, quando sem fôlego e sem forças, e sem mais possibilidade de fuga, se rende e como que implora nosso perdão com lágrimas nos olhos: ‘gemendo ensanguentado pede mercê’. Um tal espetáculo sempre me pareceu muito desagradável. Se pego algum animal vivo dou-lhe a liberdade87. O filósofo deixou claro que se nossa suposta superioridade poderia permitir que aprisionássemos os animais, também permitiu que escravizássemos outros seres humanos, o que demonstra a generosidade superior dos animais, que nunca escravizaram outros de sua espécie88. Salientou que os franceses se julgavam superior aos estrangeiros por não compreenderem sua língua, seus trajes e seu comportamento, e concluiu que “condenamos tudo o que nos parece estranho e também o que não compreendemos. E por esse prisma julgamos os animais”89. Por fim, ponderou o autor que a guerra, a mais pomposa das ações humanas, que tantos se vangloriavam, ao invés de provar sua superioridade só demonstrou sua imperfeição. “Em verdade, a ciência de nos entrematarmos, concorrendo para a destruição da espécie, não me parece uma prerrogativa que os bichos nos possam invejar”90. E deixou evidente que “não é por virtude de um raciocínio judicioso, mas unicamente por orgulho e obstinação que nos sobrepomos aos animais e nos afastamos de sua companhia”91. Outro autor que criticou duramente Descartes foi Voltaire (1694-1778), em seu Dicionário Filosófico. Argumenta que a alma é aquilo que anima. Não sabemos mais que isso, pois nossa inteligência é limitada92. Critica o fato de alguns filósofos atribuírem alma vegetativa às plantas e alma instintiva aos animais, pois se neles existe um ser, deve haver uma forma, que é a vida. “Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. 87 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. MONTAIGNE, Michel. Ensaiosp. 219. 89 89 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 89 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 221. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 90 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 224. 91 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 229. 92 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015. 88 Disponível em: < 33 Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens ideias combinadas, e dizes espírito”93. Ninguém sabe o que é o ser chamado espírito. Para ele, Deus nos deu a inteligência não para penetrar na essência das coisas, mas para nos conduzirmos pela senda do bem. “Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.94” A discussão sobre a existência ou não da alma do animal não faz sentido, uma vez que o homem não tem base para definir o que é alma. Para Voltaire, Deus é a alma que anima toda vida. Assim, contesta o pensamento de Descartes sobre os animais com os argumentos que passo a transcrever pela sua importância: IRRACIONAIS Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige? [...] Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarte suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum? 93 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015. 94 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015. Disponível em: < Disponível em: < 34 Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição. Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-meeis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol. As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois da Sorbonne ninguém. As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos, nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes o que é alma material: precisam convir em que é a matéria que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material... Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à matéria. E não saem desse círculo. [...] Não podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal: a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é uma substância nem corporal nem incorporal. A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole. Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar. [...] Tinha razão o filósofo que disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe95. Estes e outros pensadores, líderes e figuras religiosas defenderam a bondade para com os animais. Mas a sistematização e o aprofundamento dos argumentos produzidos em torno do estatuto moral dos animais só ocorreu nas últimas décadas do século XX. Formou-se uma nova área da filosofia, a chamada Ética Animal, cuja literatura partilha uma ideia orientadora: os animais possuem direitos. Pugna-se, desse modo, pela implementação de um respeito igualitário dirigido a eles. 95 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico, 1764. Versão para eBook. http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/filosofico.html>. Data de acesso: 6 fev 2015. Disponível em: < 35 Algumas das figuras de proa da Ética Animal contemporânea são os filósofos: Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione amplamente reconhecidos como grandes defensores atuais dos direitos dos animais. Mas antes de analisar os três filósofos mencionados é importante mencionar rapidamente Humphry Primatt e Jeremy Bentham, os quais construíram a base para a argumentação filosófica em pró dos animais que temos hoje. 1.5. O PENSAMENTO FILOSÓFICO EM DEFESA DOS ANIMAIS 1.5.1. HUMPHRY PRIMATT E JEREMY BENTHAM Em 1776 Humphry Primatt escreveu o livro, A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty against Brute Animals. Por ser um livro muito raro a professora Sônia Felipe em seu doutorado em Lisboa demorou 5 anos para conseguir um exemplar. Com o livro em mãos escreveu um artigo com as principais teses defendidas por Primatt, que destaco a seguir: Teses de Humphry Primatt, apresentadas em The Duty of Mercy: 1.ª tese: A concepção da dignidade humana está fundada erroneamente numa presunção de superioridade discriminadora contra quem não têm a configuração da espécie humana. Devido a seu hábito de discriminar tudo o que é singular, o ser humano convence-se a si mesmo, e aos demais, de que “... o homem, entre todos os animais da terra, é o único sujeito digno de compaixão e piedade, por ser o mais bem dotado e distinto.”96 Primatt inicia seu texto com a mais brilhante constatação sobre a tradição moral especista, na qual temos sido educados há mais de dois mil anos, passagem tão lucidamente escrita que vale para diagnosticar o viés discriminador especista da cultura contemporânea. Assim o constata: “...Desviados por esse preconceito, construído a nosso favor, ignoramos alguns animais, como se fossem meras excrescências da natureza, aquém de nossa atenção, e infinitamente não dignos de cuidado e reconhecimento divinos; outros, consideramos como se feitos apenas para nos prestar serviços; e, por poder usá-los, somos indiferentes e descuidados com relação à sua felicidade ou miséria, e com muita dificuldade nos permitimos supor que exista qualquer dever que nos obrigue em relação a eles.” 96 PRIMATT, Humphry. The Duty of Mercy. Ed. by Richard D. Ryder. Fontwell; Sussex: Centaur Press, 1992, p. 15. 36 2.ª tese: A tradição nem sempre preserva um valor moral universal, ou é sinônimo de ética. Conforme a tradição, não havia uma lei sequer de proteção aos animais, na Inglaterra, quando Primatt escreve seu texto97. A tradição pode ser a mais viva expressão de brutalidade, indiferença e conivência com práticas de violência, se for do interesse da classe detentora do poder, manter tais costumes. Primatt escreve: “... quando refletimos sobre as mais chocantes barbaridades, e vemos a fúria brutal exercida pelo homem mais vil, sem controle da lei, e sem atenção ou reprovação do púlpito, quase somos tentados a concluir que a crueldade não seja um pecado”98 Primatt enfatiza o papel de autoridade moral, daqueles que têm uma função institucional relevante na comunidade. As palavras e ações desses sujeitos são recursos indispensáveis à construção de uma cultura não violenta. A indulgência dos pais, frente às brincadeiras e jogos infantis que envolvem crueldade contra os animais, as práticas desportivas e de outras naturezas, diariamente repetidas por homens dos mais altos escalões da sociedade de forma naturalizada, envolvendo uso, abuso, exploração e maus-tratos contra os animais, são exemplos perniciosos que devem ser abolidos, de cima para baixo99. Outra tese defendida por Primatt fala sobre a moralidade, quando esta é apenas sinônimo de preservação de privilégios morais, mascarada de argumentos pseudo-éticos. Primatt, ao criticar a moralidade tradicional, alerta-nos contra a discriminação praticada por homens mal-acostumados ao exercício do poder tirânico e às práticas hostis contra quem é singular em sua aparência. A caracterização da tirania, disfarçada na “defesa da tradição” e dos “bons costumes” herdados de nobres, religiosos e poderosos, indiferentes à crueldade100. [...] Além disso, o que defendemos como “moral”, bem pode ser apenas a grande teia de maus costumes na qual estamos enredados. Nesse caso, um juízo ético coerente põe por terra as convicções mais arraigadas de nossa moralidade e tradição. O sujeito moral tem de escolher entre ser coerente, ou ser perverso. Ou segue o que sua razão lhe indica ser correto fazer, ao agir, ou a contraria, tendo ciência de seu desvio. Em qualquer dos dois casos, não há inocência moral[...]. 97 De acordo com Ryder, 22 de julho de 1822, na Inglaterra, fez-se a primeira lei do mundo, votada por um parlamento (nacional), em defesa dos animais, conhecida como a Martin’s Act 1822. Outros estados a sucederam: Nova Yorque, 1828; Saxônia, 1830; Massachusetts, 1835; Prussia, Connecticut e Visconsin, 1838; Württembrug, 1839; Suíça e Noruega, 1842; Suécia, 1857. Cf. RYDER, Richard D. RYDER, Richard D. Animal Revolution. Changing Attitudes Towards Speciesism. Oxford: Basil Blackwell, 1989. 98 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 213. 99 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 213. 100 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 214. 37 Ao tratar de forma cruel qualquer ser capaz de sentir dor, os humanos revelamse exatamente tão destituídos de razão quanto julgam ser aqueles a quem infligem dor e sofrimento. Primatt escreve: “Você afirma que o animal nãohumano é um animal destituído de razão; e a razão nos diz que submeter qualquer criatura à dor não merecida e desnecessária é injusto e irracional: portanto, o homem que é cruel é uma besta irracional na forma de homem”101. Primatt102 acredita que o estudo e o conhecimento da natureza devem levar o ser humano a se considerar responsável pela preservação da vida e do bem-estar de todos os seres que o rodeiam. O filósofo redefine o que pode ser o domínio do homem sobre as demais espécies vivas. Em vez de significar a tirania, a exploração e a destruição da vida, a excelência humana pode dominar as formas de vida, no sentido de responder, com seu conhecimento, por sua preservação103. Primatt também distingue a crueldade contra animais, da crueldade contra humanos: “... a crueldade do homem contra os animais é mais hedionda, no que tange à justiça, do que a crueldade dos homens contra os homens104. Todo ato bruto praticado contra os animais é crueldade brutal, “hedionda, do ponto de vista da justiça”. Haja vista a maior vulnerabilidade dos sujeitados à crueldade, tanto no momento em que ocorre o ato, quanto no que o antecede e sucede. Também defende o mesmo tratamento ético para humanos e animais, e considera intolerável o tratamento cruel contra ambos. Para Primatt, o conceito da dor é um só, e a ética deve levar em consideração esse fato, ao regular as ações humanas relativamente a ele. “.... Dor é dor, seja infligida ao homem ou ao animal; e a criatura que a sofre, seja homem ou animal, sendo sensível à desolação que ela produz, sofre um mal; e o sofrer um mal, imerecidamente, sem o ter provocado, quando não causou dano algum, e quando não pode pôr um fim a isso, mas simplesmente para que o poder e a malevolência sejam exibidos, é crueldade e injustiça naquele que o produz”105. 101 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 215. FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 214. 103 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 216. 104 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 216. 105 PRIMATT, p. 21 apud FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 217. 102 38 De acordo com a tese de Primatt, acima apresentada, se a razão nos leva a concluir que a dor é intrinsecamente má, não importa a configuração ou a aparência de quem a sofre, ela será, para si, uma experiência má. Segundo Primatt a imparcialidade é constitutiva de todo princípio ético, político e legal. Não se pode abrir exceção para benefício pessoal, e, ao mesmo tempo, esperar que os outros considerem tal privilégio sinônimo de justiça. Defende o princípio da isonomia e coerência moral. A justiça ordena tratar casos semelhantes de forma semelhante106. Foi Henry Salt quem divulgou as ideias de Primatt. Num apêndice de Animal Rights o autor edita passagens do texto original de Humphry Primatt, cuja última edição havia sido feita em 1834. Assim, transmite aos filósofos de Oxford, iniciadores do movimento ético de defesa da libertação dos animais, na década de 70, partes da argumentação ética em defesa dos animais, elaborada por Primatt107. A obra de Humphry Primatt, The Duty of Mercy, ficou esgotada até 1992, cem anos depois de Henry Salt ter editado pequenos trechos dela, em seu próprio livro. Richard Ryder conheceu o texto de Primatt, em 1976, pela primeira vez, ao fazer uma pesquisa sobre a defesa dos animais na história inglesa, na Biblioteca Bodlein, de Oxford. O reeditou, com pequenas revisões ortográficas, facilitando a leitura aos não afeiçoados ao modo setecentista da escrita inglesa. A edição de 1992, se esgotou108. Primatt finaliza seu livro afirmando que os animais têm direito à paz. Primatt reconhece essa necessidade, em relação aos animais silvestres e aos selvagens, quando escreve: “O dever dos homens relativamente aos animais selvagens (wild) por natureza, limita-se a uma questão bem restrita: ao dever de deixá-los em paz. Sendo propriedade de Deus, e sob suas vistas, este proverá por eles. E basta para nós que não invadamos seu território, que não os molestemos, que os deixemos livres para que possam realizar as tarefas e corresponder aos fins para os quais Deus teve o prazer de os criar”109. 106 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 221. FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 209. 108 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 210. 109 PRIMATT, p. 37 apud FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 227. 107 39 Sem os argumentos de Primatt, as teses defendidas por Jeremy Bentham, Henry Salt, Richard D. Ryder e Tom Regan, bem como a ética de Peter Singer e a filosofia do direito animal de Gary L. Francione e de Steven M. Wise não teriam nascido e se expandido ao redor do planeta, com tamanho vigor. Em 1789, na Inglaterra, o filósofo moral e do direito, Jeremy Bentham (1748-1832) escreve An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. O autor é conhecido por ter desenvolvido a doutrina utilitarista, que prega a felicidade para o maior número de pessoas possível. Ele escreveu “o primeiro texto de ética no qual aparece explicitamente o apelo ao aperfeiçoamento moral do homem, através da inclusão do interesse de todos os animais”110. Bentham cria então o princípio da utilidade: Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo [...].111 A partir da definição do Princípio de Utilidade, pode-se notar a importância dada por Bentham ao prazer e à dor. Segundo ele, o homem é governado, em todos os momentos da vida, por estes dois sentimentos; são eles que orientam o homem quanto ao que é certo e ao que é errado, bem como direcionam os efeitos consequentes de cada escolha. Com base em sua teoria rejeitou a escravidão humana já que, se essa instituição existisse, os escravos seriam tratados como meras coisas, tendo sempre seus interesses valendo como menos do que um, contrariando assim uma exigência fundamental do utilitarismo, a saber, a igualdade. O ponto de interesse em seu pensamento reside no fato de que o autor desenvolveu 110 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 74. 111 BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 19. 40 mais um critério a ser levado em conta na avaliação das consequências: o princípio da igualdade. O princípio ético da igualdade no sentido dado por Bentham destina-se a servir a todos que se encontrem em situações semelhantes, se acarretar dor e sofrimento, não importa se for homem ou animal, tal atitude deve ser evitada. O filósofo não se refere aos direitos dos animais, mas ao dever humano de compaixão para com todos os seres em condições vulneráveis à dor e ao sofrimento. Devemos respeitar em relação aos outros, os mesmos padrões que exigimos sejam aplicados em relação a nós. Se argumentarmos que ninguém tem o direito de nos expropriar de nosso bem-estar ou da nossa vida, não devemos, em nome de vantagens pessoais, tirar a vida nem maltratar nenhum outro animal dotado de sensibilidade112. Mesmo não tendo, nem Primatt, nem Bentham, no final do século XVIII, defendido explicitamente que animais têm ou devam ter direitos, seus argumentos fundamentaram a tese de que os seres humanos têm deveres morais relevantes para com os animais113. As regras implícitas no texto de Bentham podem ser resumidas em três: a) Que os filósofos deixem de exigir que os seres a serem respeitados sejam dotados de razão e capazes de linguagem; b) que se pergunte o filósofo se o ser a ser considerado é ou não sensível, isto é, capaz de sentir dor e de sofrer, ou de sentir prazer e ser feliz, razão pela qual alguém torna-se carente de bons tratos; c) que os filósofos sejam coerentes com a exigência da universalidade, generalidade e aplicabilidade do princípio ético da igualdade, o qual ordena tratamento igual para todos os casos semelhantes, em quaisquer circunstâncias114. Segundo Peter Singer115 muitos filósofos estabeleceram o princípio da igual consideração de interesses como princípio moral básico; mas não foram muitos os que reconheceram que este princípio se aplica aos membros das outras espécies tal como à nossa 112 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 209. FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 209. 114 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 76. 115 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 11-2. 113 41 própria. Jeremy Bentham foi um dos poucos que tiveram consciência deste fato. Numa passagem escrita quando os franceses já tinham libertado os escravos, enquanto nas colônias britânicas eles continuavam sendo tratados como agora se tratam os animais, Bentham escreveu em seu livro que: Poderá existir um dia em que o resto da criação animal adquirirá aqueles direitos que nunca lhe poderiam ter sido retirados senão pela mão da tirania. Os franceses descobriram já que a negrura da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem mercê ao capricho de um algoz. Poderá ser que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a forma da extremidade do os sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa poderá determinar a fronteira do insuperável? Será a faculdade da razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que uma criança com um dia ou uma semana ou mesmo um mês de idade. Suponhamos que eram de outra forma que diferença faria? A questão não é: Podem eles raciocinar? nem: Podem eles falar? mas: Podem eles sofrer?116. Assim forneceu uma resposta definitiva sobre os animais ao afirma que “A questão não é: Podem eles raciocinar? nem: Podem eles falar? mas: Podem eles sofrer?” Bentham denunciou o domínio do homem como tirania, e tirou o foco da racionalidade que sempre serviu de argumento para embasar a superioridade humana sobre os animais, e trouxe como referência a dor e o sofrimento, que é sentida por muitos seres vivos. Nesta passagem, Bentham aponta a capacidade de sofrimento como característica vital que concede a um ser o direito a uma consideração igual. Ao dizer que devemos considerar os interesses de todos os seres com capacidade de sofrimento ou alegria, Bentham as considera como um pré-requisito para se ter interesses. Não faria sentido dizer que não é do interesse de uma pedra ser chutada ao longo de uma rua por um rapaz de escola. Uma pedra não tem interesses porque não é capaz de sofrimento. A capacidade de sofrimento e alegria é, no entanto, não apenas necessária, mas também suficiente para que possamos afirmar que um ser tem interesses - a um nível mínimo absoluto, o interesse de não sofrer117. 116 117 BENTHAM apud SINGER, Peter. Libertação animal, p. 12. SINGER, Peter. Libertação animal, p. 12-3. 42 A justiça é buscada para todos os seres capazes de sentir: muitos dos quais não podem participar na delimitação dos princípios118. Assim, extrapola o pensamento racionalista de sua época ao não vincular a moralidade ao simples fato de ser ou não racional, qualidade esta que era atribuída somente a espécie humana e servia de base para distinguir os animais humanos dos não-humanos. Como se um simples critério fosse capaz de resolver uma questão tão complexa quanto esta. 1.5.2. PETER SINGER: LIBERTAÇÃO ANIMAL O filósofo Peter Albert David Singer nasceu na Austrália, em 1946 e desde 1999 é catedrático de Bioética no Centro de Valores Humanos da Universidade de Princeton. É autor e organizador de inúmeros livros, entre eles Vida Ética, Ética prática e Libertação Animal, os quais serão tratados neste estudo. Singer se tornou mundialmente conhecido não só pelos temas polêmicos que aborda, mas também pela intensidade do seu livro Libertação Animal, em que narra de forma chocante às várias atrocidades cometidas contra os animais nas mais diversas ocasiões, como a caça, pesquisa, entretenimento e alimentação em massa. No livro Vida Ética, Singer afirma defender o direito dos animais, não porque goste de bichos, mas, sim, por julgar irracional e preconceituoso o tratamento cruel que os seres humanos dispensam as outras espécies de animais. Ele escreve: “Em momento algum do livro, entretanto, eu apelo para as emoções do leitor, quando estas não possam se apoiar na razão.”119. E acrescenta que a justificativa para opor-se a esse tipo de experiência não tem fundo emocional. “É um apelo aos princípios básicos morais que todos nós aceitamos; e a aplicação 118 NUSSBAUM, Martha C. para além da compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos. In: MOLINARO, CARLOS ALBERTO; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 93. 119 SINGER, Peter. Vida Ética: Os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Tradução Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002b, p. 40. 43 desse princípio às vítimas dos dois tipos de experiências é exigida pela razão, não pela emoção.”120. Singer foi influenciado por Bentham, por isso é considerado por muitos um utilitarista ao acreditar que uma ação é moral quando se maximizam as preferências individuais dos sujeitos considerados, o objetivo desta teoria é evitar a dor e buscar a felicidade. O princípio da igual consideração de interesses semelhantes, desenvolvido por Singer, obriga o agente moral a considerar interesses semelhantes, da mesma forma, independente de se tratar de um animal, ou de um humano121. Portanto, afirma que “a defesa da igualdade não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física ou de outros fatos similares. A igualdade é uma ideia moral, não é a afirmação de um fato.”122. O que se depreende dessa afirmação é que animais e humanos não são de fato iguais, mas ambos possuem capacidade moral. O filósofo não defende que os animais possuem direitos, mas que os princípios éticos válidos para os humanos, também sejam válidos para alguns animais, luta pelos deveres morais diretos para com os animais. No livro Ética Prática faz um resumo das principais ideias que defende em seus estudo: 1. A dor é ruim, e, não importa quem está sentindo a dor, quantidades semelhantes de dor são igualmente ruins. A título de ‘dor’ eu incluiria aqui todos os tipos de sofrimento e de aflição. Isso não quer dizer que a dor seja a única coisa que é ruim, nem que infligir sofrimento seja sempre errado. (...) Por outro lado, prazer e felicidade são bons, não importa de quem sejam, embora possa estar errado fazer algo para obter prazer e felicidade se, por exemplo, ao fazê-lo, prejudicarmos os outros123. 2. Os seres humanos não são os únicos seres capazes de sentir dor ou aflição. 3. Quando avaliamos a gravidade do ato de tirar uma vida, não devemos levar em conta a raça, o sexo, ou a espécie a que pertence o indivíduo, mas sim as 120 SINGER, Peter. Vida Ética, p. 41. CARDOSO, Waleska Mendes; TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Experimentação animal: a discussão apresentada em nível ético e científico a partir dos posicionamentos filosóficos de Cora Diamond, Peter Singer e Tom Regan. Revista Literarius –Faculdade Palotina, vol. 11, n. 03, 2012, p.7. 122 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 6. 123 SINGER, Peter. Ética prática. Tradução Jeferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002a, p. 11. 121 44 características do ser individual que está sendo morto, como por exemplo, seu próprio desejo de continuar a viver ou o tipo de vida que é capaz de viver. 4. Somos responsáveis não só pelo que fazemos, mas também pelo que poderíamos ter impedido. [...] Deveríamos pensar nas consequências daquilo que fazemos e igualmente daquilo que decidimos não fazer124. Singer acredita que a igualdade é um princípio ético básico, sendo que a igualdade entre seres humanos é aceita pela maior parte da sociedade. No entanto, ele busca alcançar uma igual consideração entre todos os seres sencientes. O autor considera que os animais dotados de sensibilidade e consciência, são sencientes125, e por isso devem ser tratados com o mesmo padrão de respeito dispensado à dor e ao sofrimento de seres da nossa espécie, propondo a expansão do círculo da moralidade para incluir interesses até então considerados exclusivos dos membros da espécie humana. O princípio da igual consideração de interesses semelhantes funda-se sobre o argumento de que as diferenças na aparência são irrelevantes à experiência da dor, como algo intrinsecamente mau para quem a sofre, essa também é a tese central de Primatt126. Segundo Naconecy127 dizer que um animal é senciente significa que: (a) tem a capacidade de sentir, e (b) que ele se importa com o que sente. “Importar-se com” implica a capacidade de experimentar satisfação ou frustração (subjetiva). Para a Ética Animal em especial, dizer que um animal é senciente equivale a dizer que o animal é (a) capaz de sentir dor e (b) desejar que ela acabe. Isso significa, mais especificamente, que o animal percebe ou está consciente de como se sente, onde está, com quem está, e como é tratado. Ou seja, a) tem sensações como dor, fome e frio; b) tem emoções relacionadas com aquilo que 124 SINGER, Peter. Ética prática, p. 12. Senciência: combina sensibilidade e consciência nos seres não-humanos; trata de estados mentais que acompanham as sensações físicas; o sinal exterior reconhecido da senciência é a dor; essa característica está presente apenas em alguns animais. 126 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 211. 127 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 117. 125 45 sente, como medo, estresse e frustração; c) percebe o que está acontecendo com ele. Francione128 esclarece que ser sencientes “significa ser do tipo que é consciente da dor e do prazer; existe um ‘eu’ que tem experiências subjetivas”. O livro Libertação Animal129 fala da tirania dos seres humanos sobre os animais, que provoca ainda hoje dor e sofrimento só comparáveis àqueles resultantes de séculos de tirania da escravidão humana. Afirma a importância de se evitar infligir sofrimento desnecessário a outro ser, mesmo não sendo esse ser membro da espécie humana, trazendo muitos exemplos de experimentos cruéis realizados em animais pelos seres humanos. Sua tese central é que os animais são capazes de sentir dor e que “não pode existir qualquer justificação moral para considerar a dor (ou o prazer) que os animais sentem como menos importante do que a mesma dor (ou prazer) sentida pelos humanos”130. A aplicação do princípio de igual consideração de interesses considera131 que a dor e o sofrimento são maus em si mesmos, devendo ser evitados ou minimizados, independentemente da raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre. A dor é tanto mais má quanto maior for a sua intensidade e mais tempo durar, quer sejam sentidas por humanos quer o sejam por animais. A extensão do princípio básico da igualdade de um grupo a outro não implica que se devem tratar ambos os grupos exatamente da mesma forma, ou conceder os mesmos direitos aos dois grupos, uma vez que isso depende da natureza dos membros dos grupos. O princípio básico da igualdade não requer um tratamento igual ou idêntico, requer consideração igual. A consideração igual para com os diferentes seres pode conduzir a tratamento diferente e a direitos diferentes132. 128 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?. Trad. Regina Rheda. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p.55. 129 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 433. 130 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 24. 131 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 27. 132 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 5. 46 Segundo Roberto Perez de Melo Camargo133 “dentre todas as reivindicações de igualdade, a mais comum é a da personalidade moral como aspecto comum capaz de sustentar direitos iguais”. Portar esse aspecto significa ter a capacidade cognitiva de apreender a reivindicar de outro ser humano à respeitabilidade de seus direitos. Todavia, existem objeções claras a esse argumento, pois alguns humanos, como, por exemplo, doentes mentais, bebês e crianças, não têm, muitas vezes, capacidade para compreender uma exortação à moralidade. Assim resta a questão: como determinar os requisitos mínimos para que alguém seja considerado uma pessoa moral? A posse da personalidade moral não é, portanto, um aspecto satisfatório para embasar o princípio da igualdade. A única característica consistente encontrada por Singer como capaz de abranger todos os seres humanos é a capacidade deles de portarem interesses. Com isso, é possível validar a personalidade moral do agente e/ou paciente, independentemente de quais sejam suas habilidades, sexo, cor etc., considerando-o apenas como um sujeito portador de interesses. Mesmo que tenha capacidades individuais diferenciadas, o que conta é o interesse da pessoa, o que culmina em uma imparcialidade ao se tratar de questões práticas134. Peter Singer considera que a essência do princípio da igual consideração consiste na atribuição do mesmo peso aos interesses semelhantes de todos os que são atingidos por nossos atos. “Um interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse. Um interesse é um interesse, independente de quem o profere”135. Sendo que a capacidade de sentir dor é o requisito analisado para determinar se um ser tem ou não interesse, se é ou não um sujeito moral. Sendo a igual consideração de interesses um princípio mínimo de igualdade, o conceito “interesse” deve ser compreendido como aquilo que se mostra importante para a maioria das pessoas (por exemplo, não sentir dor, permanecer vivo e livre tanto para satisfazer necessidades básicas de sobrevivência como para desenvolver aptidões, relações amorosas etc.). Tal princípio equivale a uma garantia mínima de bem-estar para que uma pessoa 133 CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos. 2010. 95 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, p.44. 134 CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos, p. 43. 135 SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 30. 47 possa procurar livremente suas opções, pois, se ela sente dor, torna-se-lhe quase impossível buscar e executar qualquer de seus interesses136. Além disso, sabe-se que os animais sencientes têm sistemas nervosos muito semelhantes ao nosso, que reagem fisiologicamente como o nosso quando o animal se encontra em circunstâncias nas quais nós sentiríamos dor: um aumento inicial da pressão sanguínea, as pupilas dilatadas, pulso rápido, e, se o estímulo prossegue, quebra da tensão arterial. Impulsos como emoções e sensações situam-se no diencéfalo, que se encontra bem desenvolvido em muitas outras espécies, em particular nos mamíferos e nas aves137. Cientistas que se debruçaram sobre essa questão concordam com este ponto de vista. Lorde Brain, um dos mais importantes neurologistas do nosso tempo, afirmou: Pessoalmente, não vejo razão para conceder uma mente aos meus congêneres humanos e negá-la aos animais (...) Pelo menos, não posso negar que os interesses e atividades dos animais estão relacionados com uma consciência e uma capacidade de sentir da mesma forma que os meus, e que estes podem ser, tanto quanto sei, tão vívidos quanto os meus. Cada partícula de evidência factual apoia o argumento de que os mamíferos vertebrados superiores experimentam as sensações dolorosas de forma pelo menos tão intensa como nós. Dizer que eles sentem menos porque são animais inferiores é absurdo: pode-se facilmente demonstrar que muitos dos seus sentidos são muito mais desenvolvidos do que os nossos - a acuidade visual em certas aves, a audição na maior parte dos animais selvagens, e o tato noutros; hoje em dia, estes animais dependem mais do que nós de uma consciência o mais alerta possível em relação a um ambiente hostil. Com exceção da complexidade do córtex cerebral (que não se relaciona diretamente com a dor), os seus sistemas nervosos são quase idênticos aos nossos e a sua reação à dor é extraordinariamente semelhante à nossa, embora se encontrem ausentes (tanto quanto sabemos) os matizes filosóficos e morais. O elemento emocional é por demais evidente, expressando-se, sobretudo sob a forma de medo e ira138. Foi assim que reafirmou em seu livro a necessidade de se acabar com o especismo. A expressão especismo (speciesism) foi originalmente cunhada pelo psicólogo e cientista inglês 136 CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos, p. 44. 137 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 18. 138 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 18. 48 Richard Ryder em 1970. O autor utilizou esse termo em diferentes edições de um panfleto distribuído nos corredores da universidade de Oxford nos primeiros anos da década de setenta. O panfleto tinha o intuito de denunciar o comportamento discriminatório e os hábitos cruéis advindos dos seres humanos para com os membros de espécies distintas. A primeira versão do manuscrito continha diversos questionamentos139 visando à reflexão e objeção dos leitores acerca do sofrimento animal, bem como a busca de uma nova concepção e reposicionamento moral e científico frente aos não-humanos140. Efetivamente, o panfleto foi tão bem recebido que Ryder foi convidado a escrever um ensaio sobre a questão da experimentação animal na coletânea Animals, men and morals, publicado em 1971. Em tal obra, o psicólogo vale-se da noção de especismo para criticar e contestar os experimentos dolorosos e abusivos realizados em não-humanos. Desde então, Ryder aprimorou a referida expressão, especialmente em seu livro Victims of science, de 1975, o qual serviu de ponto de partida para outros filósofos e pesquisadores sobre a relação moral entre humanos e não-humanos141. Para Peter Singer142 os racistas violam o princípio da igualdade, atribuindo maior peso aos interesses dos membros da sua própria raça, quando existe um conflito entre os seus interesses e os interesses daqueles pertencentes à outra raça. Os sexistas violam o princípio da igualdade ao favorecerem os interesses do seu próprio sexo. Da mesma forma, os especistas permitem que os interesses da sua própria espécie dominem os interesses dos membros das outras espécies. O padrão é, em cada caso, muito semelhante. Por muito tempo também se considerava evidente que pessoas eram superiores a outras pela mera diferença da cor da pele. A mentalidade média vigente aceitava que alguém tivesse direito total sobre a vida de outro a partir dessa diferença. Entre meados do século XV ao final do XIX, 12 milhões de Algumas das observações apresentadas por Ryder em seu texto foram as seguintes: “A partir de Darwin os cientistas passaram a concordar que não há uma diferença “mágica” entre humanos e outros animais, biologicamente falando. Por que, então, fazemos essa distinção moral quase absoluta? Se todos os organismos estão em um contínuo físico, então nós também devemos estar no mesmo contínuo moral. A palavra espécie, assim como a palavra raça não é exatamente definível” (RYDER, 2011, p. 50). 140 TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Animais como pessoas: a abordagem abolicionista De Gary L. Francione. 221f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Universidade Federal De Santa Maria, Santa Maria, 2013, p. 28. 141 TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Animais como pessoas: a abordagem abolicionista De Gary L. Francione, p. 28. 142 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 15. 139 49 africanos e seus descendentes viviam sob a escravidão. Essa prática de comprar e vender pessoas era moralmente defendida (ou pelo menos tolerada) pelos cidadãos e instituições sociais, incluindo a Igreja, universidades e organizações privadas. Hoje condenamos o tráfico de pessoas e o racismo, o que significa que acreditamos que nossos antepassados estavam eticamente errados. Note que eles não se consideravam imorais ou perversos, e diziam saber que estavam eticamente certos. O ponto aqui é que nossa sociedade atualmente aprova a livre utilização de animais para o benefício humano, mas a história nos diz que ela também já aprovou uma diversidade de práticas que hoje são consideradas fortemente imorais. Todos, escravagistas, inquisidores e nazistas, acreditavam sinceramente que estavam fazendo um bem para a humanidade e tornando o mundo um lugar melhor. Mas eles erraram grosseiramente em termos éticos143. Do simples fato de uma pessoa ser negra ou do sexo feminino, não se pode inferir nada relativamente às suas capacidades morais ou intelectuais. Singer144 traz como implicação do princípio da igualdade, a igual consideração de interesses, sem se preocupar com os aspectos ou as capacidades que os indivíduos possuam. Afirma que o dever de se levar em consideração os interesses do ser, sejam estes quais forem. E é com base na igual consideração de interesses que se coloca contra o especismo, pois é contra a desconsideração moral dos animais, pelo simples fato de serem animais. Eles deveriam ter seus direitos levados em consideração. Naconecy esclarece que a razão pela qual “exploramos abusivamente os animais domesticados é a mesma pela qual os escravos humanos também foram inescrupulosamente explorados: os interesses do dominador vieram simplesmente em primeiro lugar”145. Segundo Singer o especismo pode ser então definido “como um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies”146. Se possuir um grau superior de inteligência não 143 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais : um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 82. 144 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 10. 145 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais : um guia de argumentação filosófica., p. 105. 146 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 11. 50 dá a um humano o direito de utilizar outro para os seus próprios fins, como é que pode permitir que os humanos explorem os não humanos com esse mesmo argumento? Com a evolução da consciência moral o circulo de expansão moral também evoluiu de forma a incorporar, negros, mulheres e indígenas. E o que se busca neste estudo é a evolução desse circulo moral para agora integrar os animais como sujeitos de direitos. Dessa forma, pode-se entender que o especismo é o preconceito que leva humanos a não considerarem os interesses de seres de outras espécies devido a diferenças aparentes fundamentadas em um padrão biológico. Os animais não-humanos não têm seu status moral considerado por não pertencerem a espécie humana. É uma discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras espécies. Logo, para se evitar o especismo, deve-se admitir que os seres que são semelhantes em todos os aspectos relevantes têm um direito semelhante à vida - e a mera pertença à nossa própria espécie biológica não pode constituir um critério moral válido para a concessão deste direito147. O mesmo ato que é condenado quando praticado contra seres humanos não pode ser aceito quando praticado contra animais. Se a tortura não pode ser praticada contra seres humanos porque pode ser praticada contra animais? Demonstrado o aspecto que, sendo comum aos humanos, é capaz de engendrar deveres e, assim, justificar a proteção ética que lhes cabe, Singer propõe promover a extensão desse princípio aos animais não humanos. Isso implica, primeiro, investigar se os animais não humanos apresentam o requisito mínimo para possuírem interesses e, segundo, caso tal requisito se confirme, descobrir quais tipos de interesses eles possuem. O fio condutor da proposta de Singer é, então, desenvolver uma explanação que demonstre a capacidade de alguns animais não humanos de sentir sofrimento físico, para que, assim, eles possam ter seus interesses básicos respeitados, já que o requisito mínimo para fazer parte da comunidade moral é a capacidade de sentir dor148. No entendimento de Singer, se conclui, portanto, que uma rejeição ao especismo não implica que todas as vidas têm igual valor. Igualdade não significa identidade. O princípio básico da igualdade não requer tratamento idêntico, mas sim, igual consideração de interesses. E deixa claro que: “Não conheço um único filósofo escritor profissional, que concorde hoje que 147 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 27. CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos, p. 45. 148 51 não ‘faz sentido’ ou é ‘impossível’ incluir os animais em nosso sistema ético ou que os experimentos em animais não levantem questões de ordem moral.”149. O filósofo também procura esclarecer porque se deve agir eticamente. Singer afirma que, se o indivíduo não conseguir se colocar no lugar do outro, não deve esperar que o raciocínio ético o auxilie a escolher viver uma vida mais significativa, pois “(...) se a emoção sem a razão é cega, então, a razão sem emoção é impotente.”150 Singer também expõe vários experimentos científicos realizados em animais de forma cruel que considerou imoral, muitos irracionais, já que não contribuíram de forma significativa para a melhoria da vida dos humanos. A questão ética quanto à justificabilidade da experimentação em animais não pode ser estabelecida apontando-se para seus benefícios para nós, por mais persuasivas que possam ser as provas em favor desses benefícios. O princípio ético da igual consideração de interesses excluiria alguns meios de se obter conhecimento. Nada há de sagrado acerca do direito de se buscar conhecimento. Já aceitamos muitas restrições à iniciativa científica. Não acreditamos que os cientistas tenham direito geral e irrestrito de realizar experimentos dolorosos ou letais em seres humanos sem seu consentimento, embora haja muitos casos em que tais experimentos serviriam para que o conhecimento avançasse muito mais rapidamente do que qualquer outro método. Agora necessitamos ampliar o âmbito das restrições no tocante à pesquisa científica151. Para o filósofo, “o experimento animal somente poderia ser justificado, quando o cientista estivesse disposto a realizar esse mesmo experimento em bebês humanos órfãos ou em um ser humano com deficiência mental”152. Se o experimento é importante o suficiente para causar sofrimento em animais, o deve ser também a ponto de justificar a inflição de dor em um humano de mesmo nível mental153. Singer defende que apenas por uma discriminação injustificável com base na espécie é que aceitamos usar animais em experimentos científicos: “Qual a diferença entre os dois? Apenas que um é membro de nossa espécie e o outro não é? 149 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 84. SINGER, Peter. Ética prática, p. 16. 151 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 102. 152 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 92. 153 CARDOSO; TRINDADE. Experimentação animal: a discussão apresentada em nível ético e científico a partir dos posicionamentos filosóficos de Cora Diamond, Peter Singer e Tom Regan, p. 9. 150 52 Mas apelar para essa diferença é revelar um preconceito não mais defensável que o racismo ou qualquer forma de discriminação arbitrária.154” Ao lado do interesse em evitar o sofrimento, Singer atribui às criaturas conscientes de si uma preferência particular por continuarem existindo. De fato, os indivíduos capazes de fazer planos para o futuro, se mortos, terão esses planos frustrados. Sua morte implica, então, em uma perda maior do que seria para criaturas sem essa capacidade. Ora, uma pessoa adulta normal tem uma noção de si mesma e de futuro que a maioria dos animais não têm. A morte dessas pessoas, portanto, tem um significado maior do que a morte desses animais, porque com elas morrem expectativas e projetos155. Singer propõe uma resposta curta ao problema que os animais enfrentam: que os humanos abram mão do domínio sobre as outras espécies e parem de interferir em suas vidas. “Deveríamos deixa-las em paz tanto quanto possível. Tendo renunciado ao papel de tiranos, tampouco deveríamos tentar desempenhar o papel de Deus.”156 Conclui-se que o autor defende que devemos ter o mesmo respeito pelas vidas dos animais e pelas vidas dos humanos, desta forma não serão cometidos erros graves157. A capacidade de sofrer consegue atuar não somente como qualidade necessária e suficiente, mas também como referencial para a consideração dos interesses morais básicos, ou seja, o primeiro interesse a ser considerado é o interesse em não sentir dor ou sofrer. Quando um ser é submetido à dor ou sofrimento, o seu interesse é automaticamente desconsiderado, e, nesse caso, infringese a proteção ética, independentemente de ser ele humano ou pertencente à outra espécie. O que se defende não é que os animais sejam capazes de agir moralmente, mas que o princípio da igual consideração de interesses também se aplica eles. E é normal que se incluam na esfera moral seres incapazes de escolhas morais, como se faz com as crianças e os seres humanos com a capacidade mental diminuída por qualquer motivo. E a ideia de que os seres humanos vêm em primeiro lugar é especista já que implica assumir que é impossível comparar o sofrimento animal com qualquer questão moral ou política 154 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 92. NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 180. 156 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 328. 157 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 33. 155 53 séria. No entanto, dor é dor. Como pode alguém saber que os problemas dos animais são menos sérios que os problemas humanos?158 1.5.3. TOM REGAN: ANIMAIS COMO SUJEITOS DE UMA VIDA Tom Regan é Professor Emérito de Filosofia da Universidade da Carolina do Norte. Reconhecido por suas contribuições à bioética, é autor, entre outras obras, de The case for animal rights e organizador, juntamente com Peter Singer, de Animal rights and human obligations. Jaulas vazias é o seu primeiro livro publicado no Brasil. Numa primeira fase do seu pensamento, Regan dedicou-se ao estudo da Ética Ambiental159. Entende que essa deve observar duas condições necessárias: (1) certos seres não-humanos têm pertinência moral; e (2) alguns desses seres não-humanos são seres nãoconscientes (como as plantas e os animais menos complexos, ou entidades naturais não-vivas como as montanhas, os rios, desertos, vales, pântanos, grutas, etc.). Se não acatarmos essas “duas asserções morais como prescrições reguladoras do nosso relacionamento com o ambiente, então não teremos uma genuína ética do ambiente; ficamos, quanto muito, com uma ética do uso do ambiente, a que Regan dá o nome de ética de gestão”160. Ética de gestão, porque “se preocupa exclusivamente com a salvaguarda dos interesses humanos, reduz os seres nãohumanos a simples recursos de utilidade instrumental, e não lhes atribui significado moral direto”161. Regan defende a eliminação total e categórica do uso de animais por parte da humanidade. Ele se afasta da posição utilitarista ao considerar que o que está 158 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 319. A argumentação do autor sobre essa temática surge principalmente no ensaio de 1981, The Nature and Possibility of an Environmental Ethic, o qual se encontra reeditado na obra All That Dwell Therein. 160 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan. 2009. 344 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Universidade de Lisboa, Lisboa, p. 221. 161 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan, p. 221. 159 54 essencialmente errado não é o sofrimento que infligimos aos animais. O sofrimento é apenas um componente do erro moral (se bem que o torna muito maior). O que está fundamentalmente errado, em vez, é o sistema inteiro, e não seus detalhes. Pela mesma razão que mulheres não existem para servir aos homens, os pobres para os ricos, e os fracos para os fortes, os animais também não existem para nos servir162. Regan é o primeiro a desenvolver uma base teórica, plenamente estruturada e argumentada, em defesa da tese de que os animais são titulares de direitos. Antes dele, a noção dos direitos dos animais tinha sido utilizada com objetivo de apenas eliminar o sofrimento animal, mas não havia uma teoria de direitos envolvendo essa abolição. Tal é o caso, por exemplo, do utilitarista Peter Singer que afirma que os animais são sujeitos de interesses, mas não os vê como sujeitos de direitos. O filósofo considera que os animais devem ser considerados moralmente. Mas o que isso que dizer? Se um determinado indivíduo, coletividade ou estado de coisas é moralmente considerável, então o seu valor não se reduz a sua utilidade os humanos. Mas se algo ou alguém não merece consideração moral, então podemos fazer o que quisermos com ele, por qualquer razão de uso ou consumo humano. “Dito de modo mais claro: se um animal merece consideração moral, então perguntar ‘Para que ele serve?’ é tão absurdo quanto perguntar ‘Para que um ser humano serve?’”163. Elucida-se que o indivíduo pode ter um estatuto moral direito ou indireto. Ocorre o segundo caso quando todas as razões para a relevância moral desse indivíduo surgem devido a propriedades relacionais, ou referem-se a alguma outra entidade beneficiária de estatuto moral direto. Por exemplo, podemos ter uma obrigação moral – indireta - de preservar uma espécie rara para que gerações futuras de humanos tenham vidas não empobrecidas, de valor não diminuído164. Para Tom Regan, o ser humano interage eticamente com os não-humanos por meio de três concepções basilares, quais sejam: a) dos conservadores, que entendem não haver quaisquer necessidades de mudança em relação às atitudes para com os não-humanos; b) dos 162 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 185. NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 59. 164 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 60. 163 55 reformistas, que propugnam por uma reforma no bem-estar dos animais e c) dos abolicionistas, que almejam a cessação de todas as práticas que usam os não humanos como meros objetos ou instrumentos para os propósitos humanos. Regam se insere no último grupo. A primeira distinção proposta por Regan é entre os conceitos de agente e paciente moral. Pode-se assumir, em um momento, o estatuto de agente moral (quando se tem a liberdade de tomar a decisão e assumir a responsabilidade), e no momento seguinte, o papel de paciente moral (quando o agente encontra-se em uma situação de vulnerabilidade). Os papéis de paciente e agente morais não são estanques, nem permanentes. Nas palavras de Regan, “considerar agentes morais como portadores de valor inerente é vê-los como diferentes de, e algo mais do que, meros receptáculos que tem valor intrínseco.165”. Conforme o filósofo, todos os agentes morais possuem igual valor inerente. Não havendo diversos graus de valor inerente, não há necessidade de se estabelecer um critério para afirmar qual indivíduo tem mais valor inerente, já que todos o possuem. Essa concepção implica que quando não se trata com justiça um agente moral este é visto meramente como instrumento. Assim, não há justificativa moral para matar, aprisionar ou ferir qualquer agente moral, mesmo que para produzir qualquer bem. Regan afirma que além dos agentes morais, os pacientes morais também possuem valor inerente166. O filósofo traz como parâmetro da consideração moral o fato de ser “sujeito-deuma-vida”, em outras palavras, de apresentar uma consciência existencial, possuindo desejos e consciência da própria vida. A tais indivíduos, Regan atribui valor inerente e a condição de ser sujeito de direitos. Dito isso, Tom Regan167, no livro The Case for Animal Rights propõe que todos os animais “sujeitos-de-uma-vida” sejam reconhecidos como sujeitos de valor inerente, e, por essa razão, incluídos no âmbito da consideração moral, e afirma que há interesses comuns a todas 165 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 236. REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 240. 167 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt, p. 211. 166 56 as espécies animais, que a ética não pode discriminar. Defende que “os animais têm direitos morais básicos, incluindo o direito a liberdade, à integridade física e à vida”168. O conceito de sujeito-de-uma-vida é original e característico da teoria desenvolvida por Regan, assim definido: os seres com significância moral são todos aqueles capazes de diferenciar, por sua própria experiência, aquilo que lhes causa bem ou mal segundo sua própria espécie de vida. Regan também sustenta o princípio da igualdade entre todos os humanos ao argumentar que possuem direitos porque são “sujeitos de uma vida”, significando isso três coisas: que eles existem no mundo; que sabem que existem no mundo; e que cada ser humano se importa com o que fazem com ele, independentemente de outras pessoas se importarem ou não com isso169. Sujeito de uma vida é aquele ser que possui um ponto de vista sobre a sua própria vida, independente dos significados ou utilidade para os outros. Sujeitos de vida exigem respeito por razão de justiça, e não por motivos de compaixão. Portanto, o que é o fato das pessoas serem “sujeitos de uma vida”? Existir no mundo é possuir uma vida; estar consciente de existir no mundo é ter o direito de permanecer livremente em um contexto que melhor atenda necessidades básicas próprias; e ter direito à integridade física é ressaltar que a segurança do próprio corpo é importante para cada ser humano e que, independentemente de os outros se importarem ou não, cada um se importa quando sua integridade física é infringida170. Regan171 chega a esse argumento ao indagar: “Há animais conscientes do mundo e do que lhes acontece? Se sim, o que lhes acontece é importante para eles, quer alguém se preocupe com isso, quer não?”. A estratégia da qual o próprio Regan se valerá para responder a esta questão é sustentar que os animais não humanos possuem vida mental. Para ele, possuir vida mental significa ser capaz de expressar sentimentos como ansiedade, raiva, ternura, 168 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais, p. I. CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos. 95 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010, p. 50. 170 CAMARGO, Roberto Perez de Melo. Crítica à tradição moral: sobre a fundamentação ética na defesa dos animais não humanos, p. 50. 171 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 65. 169 57 surpresa, paciência, medo, timidez etc. “Se olharmos a questão com olhos imparciais, veremos um mundo transbordante de animais que são não apenas nossos parentes biológicos, como também nossos semelhantes psicológicos”172. Para Regan173 a ideia de ser sujeito de uma vida é importante porque funciona quando outras possibilidades de igualar todos nós falham. Alguns são geniais outros deficientes mentais. Moralmente um gênio não tem um “status moral superior” ao de uma criança. Einsteins não faz parte de uma categoria superior aos outros seres humanos. “Do ponto de vista moral, cada um de nós é igual porque cada um de nós é igualmente um alguém, não uma coisa; o sujeito de uma vida, não uma vida sem sujeito”174. Como sujeitos de uma vida, somos todos iguais porque estamos todos no mundo. [...] Como sujeitos de uma vida não há superior nem inferior, não há melhores nem piores. Como sujeitos de uma vida, somos todos moralmente idênticos. Como sujeitos de uma vida, somos todos moralmente iguais175. Assim, Regan trabalha com a noção de direito ao respeito, como um direito moral básico, anterior a qualquer outro direito moral que o sujeito venha a ter. E ter direito ao respeito significa que se pode exigir, e não apenas pedir, respeito. Por conseguinte, seres que possuem direito ao respeito são aqueles cujos interesses não podem ser desprezados em qualquer sentido significativo, ou seja, não podem ser utilizados meramente como um meio para o fim de outrem. Regan considera que todo o sujeito-de-uma-vida tem valor inerente, diverso e independente do valor instrumental que outros estabelecem, interesses a serem respeitados e, portanto, direitos morais176. Nota-se que existe uma diferença, para o autor, entre direitos legais e direitos morais: 172 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 72. REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 61. 174 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 62. 175 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 62. 176 CARDOSO; TRINDADE. Experimentação animal: a discussão apresentada em nível ético e científico a partir dos posicionamentos filosóficos de Cora Diamond, Peter Singer e Tom Regan, p. 12. 173 58 Os primeiros encontram-se exarados por escrito nas diversas legislações criadas a nível nacional e internacional; os segundos são independentes e mais básicos do que os primeiros. A história do advento constitucional dos direitos no último quartel do século XVIII sustenta esta interpretação de que existem direitos morais independentes e mais básicos do que os direitos legais. Como é sabido, foi o reconhecimento de que os governos devem proteger os direitos dos cidadãos que esteve na forja, quer da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, quer da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos emitida pela Assembleia Nacional Francesa. Ou seja, foi o reconhecimento moral dos direitos dos indivíduos que ulteriormente conduziu à sua formalização legal177. Regan acolhe a ideia, defendida por Mill, segundo a qual os direitos morais são reivindicações válidas (valid claims). De forma que os indivíduos só têm o direito moral a serem tratados de certa forma, quando tem uma reivindicação válida contra outros indivíduos para que eles os tratem dessa forma. E os indivíduos só têm uma reivindicação válida para que os outros os tratem de certa forma quando os outros têm o dever moral de os tratar dessa forma178. Portanto, para Regan, todos os que forem capazes de compreender e acatar esses princípios morais – todos os agentes morais – têm o dever de tratar todos os sujeitos de uma vida, humanos ou não, com indeclinável respeito pelo seu valor inerente, e têm também o dever prima facie de não os prejudicar179. O filósofo pensa no direito dos animais como uma ideia simples, porque no nível mais básico significa que os animais têm direito de serem tratados com respeito. E também é uma ideia profunda, porque sua aceitação tem amplas consequências, como por exemplo: parar de matá-los por causa de sua pele, parar de treiná-los para que nos divirtam e parar de utilizálos em pesquisas científicas. O autor defende jaulas vazias para os animais, e não, jaulas mais amplas180. 177 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan. 344 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009, p. 263. 178 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan, p. 264. 179 SILVA, Manuel Barradas Teles da. Deontologia e Egoísmo Uma Perspectiva Sobre a Ética Animal de Tom Regan, p. 264. 180 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 12. 59 Como nós, os animais estão conscientes do que acontece no mundo e com eles, e como nós são sujeitos de uma vida. Regan defende que devemos intervir em nome dos animais, nos manifestar em sua defesa, devemos assistência as vítimas animais, pois ajuda é algo que lhes é devido e a falta de habilidade em defender seus direitos torna nosso dever ainda maior181. É claro que animais não são humanos. Mas verdades biológicas não tem importância moral, tudo o que elas nos dizem é que alguns seres pertencem a uma espécie, enquanto outros seres pertencem à outra. Direitos morais não podem ser negados por razões arbitrárias, preconceituosas ou moralmente irrelevantes. Raça é uma dessas razões. Sexo é outra. E razões biológicas são razões desse tipo182. Negar direito moral aos animais seria um preconceito, conhecido como especismo. Devemos portanto, conclui Regan, por uma questão de justiça igualitária, atribuirlhes os mesmos direitos básicos. Negarmo-nos a isso com recurso à simples evidência de que esses animais não pertencem à espécie certa seria cair no preconceito discriminatório do especismo. Existem distinções entre a teoria de Singer e entre a teoria de Regan. Para Singer, “a partir de sua ética utilitarista preferencial, que defende a igual consideração de interesses semelhantes, há alguns casos em que a experimentação animal pode ser moralmente justificada”. Para Regan, através de sua teoria moral deontológica baseada em direitos, alguns animais são sujeitos-de-uma-vida, o que torna os experimentos em animais injustificáveis moralmente, tendo em vista que desrespeitam direitos morais básicos desses animais183. Para Regan, então, os casos de utilização de animais para experimentos, são casos de violação de direitos morais, devendo ser coibidos, da mesma forma como é proibido utilizar um humano para experimentos, sem o seu consentimento. Regan é contra o tratamento dos animais como um meio para se atingir benefícios para os humanos, defende que os animais, assim como nós devem ser respeitados, pois possuem direitos morais básicos, e agredi-los é imoral, é um preconceito por não pertencerem à mesma espécie animal que os humanos 181 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 75. REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. p. 78. 183 CARDOSO; TRINDADE. Experimentação animal: a discussão apresentada em nível ético e científico a partir dos posicionamentos filosóficos de Cora Diamond, Peter Singer e Tom Regan, p. 2. 182 60 pertencem. Regan argumenta que existe um dever direto prima facie para com agentes morais de não lhes causar dano, incluindo não matá-los, que toda teoria moral adequada deveria levar em conta. 1.5.4. GRAY FRANCIONE: A ABOLIÇÃO DOS ANIMAIS COMO PROPRIEDADE Gray Francione184 escreveu muitos livros, sendo suas principais obras voltadas para a defesa dos animais: Animals, property, and the law (1995), Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement (1996), Introduction to animal rights: your child or the dog? (2000), Animals as persons: essays on the abolition of animal exploitation (2008) e, mais recentemente, publicou em conjunto com o cientista político Robert Garner o livro intitulado The animal rights debate: abolition or regulation? (2010). O filósofo americano185 desenvolveu uma proposta ético-filosófica nomeada Abordagem Abolicionista dos Direitos Animais, cujo intuito é a inserção de todos os animais não-humanos sencientes à comunidade moral. Para o autor, qualquer teoria que rejeite a condição dos animais como coisas deve estar comprometida com a abolição de sua exploração, e não com a regulamentação de seu uso humanitário. Defende186 em seu livro que sofremos de uma “esquizofrenia moral” em relação a nossa convivência com os animais. O autor analisou várias pesquisas e considerou que dois terços187 dos americanos afirmam que o os animais têm direito de viver livre de sofrimento, e que tal direito deveria ser tão importante quanto o direito das pessoas de viverem livres da dor. E mais, na Europa a porcentagem aumenta, para 94% dos britânicos e 88% dos espanhóis, os animais deveriam ser protegidos contra atos de crueldade, e apenas 14% dos europeus apoiam 184 Doutor em direito e desde 1989 é professor de direito na Rutgers School oh Law, em Newark (EUA), onde dá aula sobre os aspectos legais dos direitos dos animais. Também deu aula na University of Pennsylvânia Law School sobre direito dos animais ao tratar os aspectos jurisprudenciais. 185 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 18. 186 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 23. 187 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 21. 61 o uso da engenharia genética que resulta em sofrimento animal, mesmo quando o objetivo é criar drogas que possam salvar vidas humanas. No entanto, apesar dessas opiniões, observa-se que 200 milhões de animais (entre eles, ursos, patos, veados, faisões) são mortos todos os anos nos EUA por caçadores e mais 10 milhões de animais são mortos todos os anos para a produção de peles188. Diante desse contexto estarrecedor, Francione acredita que a sociedade sofre de uma “esquizofrenia moral”. Por exemplo, “os usos de animais no entretenimento, como filmes, circos, rodeios e caça esportiva, não podem, por definição ser considerados necessários”189, e mesmo assim, algumas dessas atividades são protegidas por leis que supostamente proíbem a inflição de sofrimento desnecessário aos animais. Como cura para a esquizofrenia que acomete a sociedade o autor propõe que seja repensado o staus moral dos animais. “tudo o que se requer é que aceitemos que os animais têm um interesse moralmente significativo de não sofrer e que devemos justificar a necessidade de lhes infligir qualquer sofrimento”190. Uma solução possível para este empasse é a aplicação do princípio da igual consideração, ou a norma de que devemos tratar semelhantes semelhantemente. Tal princípio não quer dizer que os animais são iguais aos humanos em todos os aspectos. “Quer dizer apenas que se os humanos e os animais de fato tiverem um interesse semelhante, devemos tratar esse interesse da mesma maneira, a menos que haja alguma boa razão para não fazer isso”191. O princípio da igual consideração de interesses desenvolvido pelo autor, “reflete a visão de que os julgamentos morais sólidos devem ser universais, e não podem ser baseados em interesse próprio ou interesse de um grupo especial ou da elite”192. Assim o princípio se baseia em três pontos: a) é um princípio formal, nos diz sobre a forma do raciocínio moral (tratar semelhantes semelhantemente), não sobre o conteúdo. Logo, não se sabe quais os benefícios específicos devem ser proporcionados; b) tal princípio não orienta necessariamente 188 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 23. FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 26. 190 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 159. 191 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 28. 192 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 160. 189 62 a tratar todos como iguais, as desigualdades são respeitadas; c) por fim, a igual consideração é um componente necessário de qualquer teoria moral, se houver uma teoria que rejeite este princípio ela é inaceitável193. O tratamento humanitário é uma teoria moral, e logo abarca a teoria da igual consideração de interesses, pois tenta equilibrar os interesses dos animais e dos humanos. Mas ao se pesar esses interesses nunca um interesse animal é considerado semelhante ou superior a algum interesse humano, mesmo quando os animais tem interesse significativo em não sofrer, e os humanos têm somente interesse em se divertir. E o motivo pelo qual os animais sempre saem perdendo é simples: são apenas uma coisa, uma propriedade. “Os interesses da propriedade quase nunca serão julgados semelhantes aos interesses dos proprietários”194. Para Francione a teoria do tratamento humanitário teve sua origem com o advogado inglês Jeremy Bentham, o qual teria revolucionado o pensamento moral da época ao rechaçar as ideias de Descartes, que negavam a senciência aos animais e seus interesses básicos. Bentham defendia que tínhamos a obrigação de não infligir sofrimento desnecessário aos animais195. Realmente, tratar os animais visando o seu bem estar é um início, mas a crítica de Francione se baseia no fato de que este tratamento sempre terá seu foco voltado para o proveito humano e nunca para o real bem estar animal. Essa teoria falha em não assumir que os animais não são coisas. Francione faz um longa comparação da escravidão humana e da escravidão animal em seu livro para demonstrar qual o verdadeiro significado de ser tratado como uma coisa: o escravo humano era uma propriedade, não tinha seus interesses considerados, era tido como irracional e inferior aos humanos proprietários, eram castigados com crueldade, eram abusados e assassinados, enfim, eram vendidos como mercadorias e tratados como tal, assim como os animais são tratados hoje. Logo, fica patente a impossibilidade de tratar os animais como coisas, como propriedade e ao mesmo tempo lhes reconhecer prerrogativas, “esse sistema híbrido não deu 193 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 161 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 165. 195 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 54. 194 63 funcionou para os escravos e não funciona para os animais”196. Assim o autor é um dos maiores críticos das leis de bem estar animal, pois a julga insuficientes para os protegerem já que eu tata todos os animais como coisas. Se for para reconhecer e proteger o direito dos animais de não serem tratados como coisa, então se deve usar um direito básico para isso, que nada mais é que um pré-requisito para o desfrute e o exercício dos direitos não básicos. Francione197 pensa que um direito “é um determinado modo de proteger interesses”. Logo, um interesse protegido pelo direito não pode ser ignorado ou violado pelo benefício de outra pessoa. O autor coloca o direito de não ser tratado como propriedade como básico porque é a fundação para se possuir outros direitos, “é uma precondição para a posse de interesses moralmente significativos”198. Pois se tratados como coisas, os animais não poderão ser sujeitos de direitos, serão sempre um objeto da relação jurídica. O direito básico de não ser tratado como propriedade é a pré-condição mínima para ser membro da comunidade moral. O reconhecimento de valor inerente, ou intrínseco, é, assim como direito básico, o ponto de partida para se tratar os animais como moralmente significativos. Diferentemente das coisas, que quando tem algum valor, esse valor é extrínseco ou condicionado a importância dada pelos seres humanos.199. Quando algo não tem valor intrínseco ou inerente é considerado apenas uma coisa e seu valor é calculado apenas em termos monetário. Um exemplo possível é a comparação da comunidade moral com um teatro: uma vez que você é aceito no teatro, tem um espaço garantido para assistir o espetáculo, mesmo que em pé, ou bem no fundo, mas o direito de estar ali dentro está garantido, não importa que o acesso seja imperfeito comparado com as pessoas sentadas na primeira fila200. 196 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 178. FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 29. 198 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 31. 199 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 176. 200 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 177. 197 64 Francione201 ensina que a ideia de propriedade como vemos hoje se firmou com Locke. Segundo Locke se todos possuíssemos as árvores de uma floresta, em um determinado momento alguém iria objetar se outra pessoa as derrubasse para seu bem pessoal, assim surgiu o direito natural à propriedade privada baseado no trabalho. Os humanos poderiam adquirir propriedade através de seu trabalho sobre um objeto na natureza que estava sobre a propriedade comum. “Para Locke como Deus deu aos humanos o domínio sobre os animais, estes não diferem de nenhum outro recurso ou objeto que podemos possuir”202. O que deve ficar evidente é que Francione espera que sejam estendidos aos animais apenas um direito, “o direito de não serem tratados como propriedade dos humanos”203. Por exemplo, uma proposta para aumentar o tamanho das gaiolas das galinhas poedeiras legitima o tratamento dos animais como propriedade, seu objetivo é regular a posse dos animais. Logo, não é isso que o autor propõe, ele busca a libertação dos animais, que eles não sejam mais utilizados pela sociedade como alimento, para pesquisa ou para diversão. O que o autor propõe é que os animais sejam tratados como pessoas morais, ressaltasse que humanos e pessoas não são palavras sinônimas, “dizer que um ser é uma pessoa, é meramente dizer que esse ser tem interesses moralmente significativos, e que o princípio da igual consideração se aplica a esse ser, que esse ser não é uma coisa”204. Dito isso, nota-se que o universo moral se limita a apenas dois tipos de seres: pessoas e coisas. As “quase-pessoas”, ou “ algo mais que coisas” não existem, pois possivelmente acabarão descendo ao degrau de coisas, já que o princípio da igual consideração de interesses não tem aplicação intermediária. Logo, ou os animais são coisas, ou são pessoas. Considerar os animais como pessoas não significa que nunca vão sofrer, contudo importa que os animais não estarão sujeitos ao sofrimento por causa do uso humano da fauna como recurso financeiro, estético ou recreativo. 201 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 118. FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 119. 203 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 35. 204 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 181. 202 65 A ideia central é que o modelo atual é falho e ineficaz, já que baseia suas leis de proteção animal na dominação do homem, em suas necessidades, e deixa de lado o interesse dos animais em serem deixados em paz, em ter liberdade. Por isso se faz necessária uma mudança de paradigmas em que os animais passam a ter valor moral e assim deixam de ser considerados coisas. A partir do momento em que se declara que os animais têm interesses, surge a necessidade de um direito para defender esses interesses. Por isso se fala em direito dos animais. Assim, no que diz respeito, por exemplo, aos sistemas jurídico e econômico vigentes, os não-humanos não se diferem em nenhum sentido significativo de brinquedos, eletrodomésticos, motocicletas, ferramentas, etc. Nesse contexto os animais são tomados como simples recursos econômicos. Portanto, o estatuto de propriedade no qual os animais se encontram deve ser encarado como o principal fator que possibilita a esquizofrenia moral humana acerca dos não-humanos e que garante a exclusão dos últimos da comunidade moral. A abordagem de Francione é diferente da de Singer porque o último não acredita ser necessária a abolição da condição de propriedade dos animais. Já a teoria de Tom Regan não se estende a todos os animais, apenas aos que ele considera como sujeitos de uma vida. Francione não limita sua teoria a uma classe de animais, o que a torna a mais abrangente entre todas as já estudadas. Das correntes filosóficas até agora estudadas podemos concluir que duas são as grandes vertentes compartilhadas entre os defensores dos Direitos dos Animais: bem-estar animal e abolicionismo animal, com as respectivas complexidades. Peter Singer, na trilha de Jeremy Benthan, pertence à primeira, por pregar o bem-estar dos animais não-humanos em razão do princípio da igual consideração de interesses. Preconiza que os Direitos dos Animais está fundamentado no respeito, bem-estar, no valor intrínseco, na compaixão, na sensibilidade ao sofrimento e outros conceitos de ordem moral. Ou seja, a questão está atrelada aos deveres do ponto de vista ético e não do Direito. Para a segunda vertente, no seu grau mais exigente, os objetivos práticos da Ética Animal não se limitam ao problema da crueldade enquanto intenção maldosa de causar sofrimento desnecessário, mas instigam antes à completa abolição de todas as formas de abuso instrumental dos animais. Os abolicionistas, visivelmente mais radicais, propõe uma libertação 66 dos Animais não-humanos por meio da consideração de seus direitos subjetivos. Sustentada por Tom Regan, os não-humanos possuem os mesmos direitos de experimentar a experiência do viver, já que são ‘sujeitos-de-uma-vida’, e propõe uma ruptura total com o antropocentrismo de modo a propugnar pelos direitos dos não-humanos como uma extensão dos direitos fundamentais. Regan integra as fileiras desta ala abolicionista O tom desta contestação, como se pode depreender, exige o fim imediato de todas as atividades humanas que possam implicar o cárcere, maus tratos ou a morte de mamíferos e aves, como a experimentação animal, a exploração pecuária, o circo e a tourada, o comércio de peles, a caça, ou a destruição de habitats naturais. Ora, este rol de reivindicações, seguramente polémico, obtém a desaprovação da esmagadora maioria das pessoas que, de alguma maneira, participam no fomento da exploração animal: dos trabalhadores envolvidos aos consumidores em geral, dos empresários e proprietários aos cientistas e investigadores, dos juristas e magistrados aos governantes políticos. Efetivamente, o pleito abolicionista de Regan enfrenta a dificuldade acrescida de provocar a confrontação direta por parte de quem receia pelos seus próprios interesses. E ainda temos Gray Francione que luta pela aceitação do status moral dos animais como pessoa. Defende a completa abolição da visão dos animais como propriedade e sua transformação em pessoas morais, o que não quer dizer que serão pessoas humanas, já que pessoa é um conceito jurídico e pode passar a abranger um maior número de indivíduos dependendo da teoria que se adote. Através dessa teoria a sociedade não só abriria mão de seu domínio sobre a natureza, como também abdicaria que qualquer uso que possa fazer dos animais que despeitasse seu valor inerente. Assim o autor, luta por uma sociedade vegetariana em que os animais não seriam produzidos em massa para proporcionar alimento a população. 1.6. DIREITO MORAL PARA OS ANIMAIS A tentativa de atribuir consideração moral a outros seres vivos acontece há décadas. No ano de 1972, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA julgou o famoso caso Sierra Club vs Morton, em que a Associação Sierra Club, que era muito ativa na região na defesa da natureza, 67 aciona o US Forest Service pedindo a anulação da licença administrativa que autorizava a construção de uma estação para esportes de inverno no Mineral King Valley, vale localizado na Califórnia bastante conhecido por abrigar várias espécies de sequóias205. O Tribunal de Apelação da Califórnia indeferiu o pedido, por considerar que nenhum membro da associação havia sofrido prejuízo. Quando o caso estava para ser julgado pelo Tribunal Supremo dos Estado Unidos, Christopher Stone foi solicitado para escrever um ensaio seminal denominado Should trees have standing? Toward legal rights for natural objects, o qual foi anexado ao processo. Nesse artigo, Stone apresenta o argumento da continuidade histórica, afirmando que o direito vem ampliando cada vez mais sua esfera de proteção, das crianças às mulheres, dos escravos aos negros, até as sociedades comerciais, associações e coletividades públicas, de modo que não havia nenhuma razão para recusar a titularidade de direitos para os animais e as plantas, que estariam ali representados pela Associação Sierra Club. A tese requeria o reconhecimento do direito de pleitear às árvores do Mineral King Valley: a vítima realmente não era o Sierra Club, mas as próprias árvores. Mas como saber o que quer a natureza? Simples, quando as folhas se tornam amarelas adivinhamos facilmente que elas querem água, é mais fácil então saber o que quer a árvore, do que quer o Estado. Quanto a sua representação, ela não é um problema maior do que a representação das crianças, dos loucos ou das pessoas morais. A associação seria então uma tutora, uma guardiã que valerá pelos interesses do meio. Assim, será reconhecido o direito de agirem em nome e por conta as árvores, dos lagos, e dos animais que representam206. Contrariando todas as expectativas, três dos sete juízes da Suprema Corte americana se declararam favoráveis aos argumentos apresentados por Stone, e embora a sua tese tenha 205 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p.199. No direito processual civil norte-americano o direito de ação exige que o autor demonstre (1) a existência de um dano efetivo; líquido e certo, atual ou iminente; (2) o nexo de causalidade entre esse dano e a conduta em questão; e (3) que dano alegado pode ser reparado ou compensado por remédio judicial adotado em, KELCH, Thomas G. Toward a non-property status for animals. New York University Environmental Law Journal, New York, p. 535, 1998. 206 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 200. 68 sido derrotada, o voto do juiz Marshall se tornou antológico, ao afirmar que se naquele país os navios e as corporações podiam ser titulares de direitos, então, não existia nenhuma razão para se negar a extensão desses direitos aos animais e às plantas. Em 1972, por um voto, a história do direito dos animais quase foi mudada radicalmente, e hoje, possivelmente, não haveria um grande alvoroço ao se questionar o motivo de os animais não serem titulares de direitos. Antes de adentrar no estudo do direito moral convém distinguir direito e moral. Segundo Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida “a moral, geralmente, se constitui por um processo acumulativo de experiências individuais, que vão ganhando assentimento geral, até se tornarem regras e normas abstratas (não matarás)”207. Frequentemente, não notamos a origem cultural dos valores morais, do senso moral e da consciência moral porque somos educados neles e para eles, como se fossem naturais, existentes por si mesmo. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo, a sociedade tende a naturalizar esses direitos. Basta entendermos a própria palavra moral, ela vem do latim mos, moris, que quer dizer o costume, portanto hábitos instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas208. As normas morais distinguem-se das normas jurídicas, fundamentalmente em função da cogência e da imperatividade que as caracterizam. As normas morais possuem autonomia em relação ao Direito, o que não significa que não o influenciam, já que possuem imbricações recíprocas. A relação entre Direito, ética e moral é estreita. “A pesquisa jurídica deve ser uma pesquisa conjugada com a ética; deve-se perceber que os entrelaçamentos entre Direito e a temática ética são inegáveis”209. Consequentemente, se uma pessoa reconhece em sua própria consciência que um determinado preceito moral está em contradição com uma lei vigente, surge à chamada “objeção de consciência”, por exemplo: embora o governo da Alemanha nazista condenasse legalmente à morte milhões de pessoas por pertencerem a determinadas etnias e crenças, a ação foi 207 BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p. 556. CHAUI, Marilena de Souza. Iniciação à filosofia: ensino médio, volume único, p. 265. 209 BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p.558. 208 69 claramente imoral, pois a consciência moral alcançada pela humanidade em seu conjunto não pode, no mínimo, deixar de considerar desumano esse modo de agir210. Portanto, legalidade não é garantia de moralidade. Uma lei escrita num código pode ser injusta. Dessa maneira, a obediência a leis não esgota a responsabilidade ética. Tanto é que o trabalho infantil e a escravidão já foram legalmente permitidos em certa época no nosso país, hoje são considerados antiéticos e também crimes. No mesmo sentido, se os animais merecem respeito ético, e se o nosso sistema jurídico não reconhece isso, então é esse sistema que deve mudar211. Não é fácil notar quando uma norma é injusta porque o hábito de segui-la faz com que poucos parem para refletir se aquelas ações realmente estão corretas. Conforme ensina Noberto Bobbio: Nossa vida desenvolve-se em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na verdade estamos envoltos numa densa rede de regras de conduta, que desde o nascimento até a morte dirigem nossas ações nesta ou naquela direção. A maior parte dessas regras já se tornou tão habitual que não percebemos mais a sua presença212. Estabelecido o contraste entre direito e moral surge uma dúvida. Qual a diferença entre direitos legais e direitos morais? Um direito moral existe supostamente antes de uma lei o criar. Um direito legal é um direito reconhecido pelos governantes de uma sociedade e escrito na sua legislação. Entretanto, supõe-se que direitos legais tenham uma autoridade moral, o que significa que direitos morais constituem a base pelo qual os direitos legais podem ser criticados juridicamente. Aplicando-se essa distinção ao tema aqui tratado, um animal pode não ter um direito legal à vida (posto que, como propriedade humana, não pode ter tais direitos) e ainda ter um direito moral a ela. Isso significaria que acreditamos que esse animal deveria viver, e que deveria haver uma lei civil que garantisse isso. Outro exemplo: não temos leis civis contra o 210 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 37. NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 37. 212 BOBBIO, Noberto. Teoria Geral do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 15. 211 70 uso de casacos de pele, mas os animais podem ter direitos morais de não serem forçados à morte dolorosa e sofrimento a bem de uma causa fútil213. O professor de Harvard, Steven Wise, ensina que: Há cerca de quatro mil anos, uma densa e impenetrável muralha legal foi edificada para separar humanos dos animais não-humanos. De um lado, até mesmo os interesses mais triviais de uma espécie – a nossa – são cuidadosamente assegurados. Nos autoproclamamos, dentre as milhões de espécies animais, “sujeitos de direito”. Do outro lado dessa muralha encontrase a indiferença legal para um reino inteiro, não somente chimpanzés e bonobos, mas gorilas, orangotangos, macacos, cães, elefantes, golfinhos entre outros seres vivos. Eles são meros “objetos de direito”. Os seus interesses mais básicos e fundamentais – a sua integridade, a sua vida, a sua liberdade – são intencionalmente ignorados, frequentemente maliciosamente esmagados, e rotineiramente abusados. Antigos filósofos afirmaram que estes animais nãohumanos foram criados e colocados na terra para o único propósito de servir aos homens. Juristas de outrora, por sua vez, declararam que as leis foram criadas unicamente para os seres humanos. Muito embora a filosofia e a ciência há muito tenham abandonado essa concepção, o mesmo não se pode dizer do Direito214. Como visto anteriormente, na interpretação de Francione215 do atual cenário, animais são propriedade humana. Eles são coisas possuídas pelos seres humanos que somente apresentam valor instrumental ou condicional, enquanto meros meios para certos fins. Mas quais foram os critérios utilizados para os não-humanos serem condicionados ao estatuto de simples recursos econômicos humanos e, consequentemente, excluídos do grupo de seres que possuem interesses eticamente relevantes? De acordo com Francione216 existem três grandes grupos de argumentos que intentam justificar a não inserção dos membros de outras espécies à esfera da moralidade. O primeiro deles tem origem no pensamento de Descartes e sustenta que animais não podem ser alvo de quaisquer obrigações ou deveres morais, pois os não-humanos são como 213 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 38. WISE, Steven. Rattling the Cage. Cambridge: Perseus Books, 2000, p. 4. 215 FRANCIONE, Gray. Animals as persons: essays on the abolition of animal exploitation. New York: Columbia University Press, 2008, p. 67. 216 FRANCIONE, G. L. Introduction to animal rights: your child or the dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 104. 214 71 coisas, objetos inanimados que não possuem uma fisiologia que comporte a possibilidade de experienciar de sensações. O segundo grupo de argumentos está baseado na ideia de que animais são espiritualmente inferiores aos seres humanos devido à vontade divina, pois que não foram criados à semelhança do Criador. Essa perspectiva encontra respaldo especialmente nos escritos de Aquino. Todavia, da mesma maneira que um indivíduo pode encontrar versículos que enfatizam uma superioridade humana frente aos animais, ele também pode encontrar outras passagens que denotam obrigações morais humanas para os não-humanos217. O terceiro grupo de argumentos usados para justificar um tratamento diferenciado aos interesses de humanos e não-humanos baseia-se na ideia de que, supostamente, os animais não possuem certas características naturais exibidas pelos seres humanos, as quais são fundamentais à moralidade. Em outras palavras, os humanos exibem certas capacidades mentais de natureza psicológica ou cognitiva que os não-humanos não apresentam (ou, se as apresentam, o fazem apenas em nível muito inferior ao humano). Este argumento se refere à inferioridade dos não-humanos, logo não poderiam ser agente morais: animais não são membros da comunidade moral porque não são agentes morais. Um agente moral, refere-se a um indivíduo capaz de exercer e/ou responder a reivindicações morais (ou de direito). Esse argumento está diretamente relacionado à adoção de algum de reciprocidade moral. Animais não podem responder reivindicações morais, portanto os seres humanos não possuem obrigações ou deveres morais diretos para com eles. Diante de todos esses obstáculos a serem ultrapassados para considerar os animais como sujeitos de direitos, alguns autores buscaram similaridades entre os humanos e os animais para que assim, pelo menos algum grupo de animais pudesse ser protegido. De maneira que diversos pesquisadores iniciaram um esforço para abarcar os primatas à comunidade moral. Ou Alguns exemplos de passagens bíblicas: Gênesis (1:26) “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. Isaías (66:3) “Quem mata um boi é como o que tira a vida a um homem; quem sacrifica um cordeiro é como o que degola um cão; quem oferece uma oblação é como o que oferece sangue de porco; quem queima incenso em memorial é como o que bendiz a um ídolo; também estes escolhem os seus próprios caminhos, e sua alma se deleita nas suas abominações ”. Disponível em : <http://www.bibliaonline.com.br/>. 217 72 seja, ao menos um grupo de seres apresenta semelhanças tão gritantes com os seres humanos que a sua inclusão à esfera da moralidade deveria ser imediata. Além disso, a partir dessa inserção moral primeira, mais e mais não-humanos seriam, gradualmente, contemplados com o reconhecimento ético de seus interesses mais fundamentais. No entanto, tal abordagem se mostrou infrutífera. Em outros termos, uma abordagem ética cujos parâmetros básicos para a inclusão ou exclusão de seres da esfera da moralidade, são completamente arbitrários, gera e estabelece, sem surpresa alguma, hierarquias morais nas quais certos grupos de seres ganham primazia sobre outros. E, mesmo assim, não há nada que suporte a ideia de que os animais que alegadamente estiverem nos degraus mais altos dessa nova escala moral realmente deixarão de ser tratados como propriedade. O fato dos grandes primatas serem utilizados diariamente em experimentos biomédicos expõe uma das muitas dificuldades da teoria das mentes similares. Note que, no que tange à questão animal, não se propõe que humanos e animais tenham os mesmos direitos. Afinal, humanos – mas não cachorros – têm direito ao voto e à educação. De fato, nem mesmo todos os humanos têm os mesmos direitos: uma criança e uma pessoa com retardo mental grave também não têm direito ao voto. O que a Ética Animal sustenta é que humanos e animais compartilham um mesmo direito moral, a saber, o direito de serem tratados com respeito. Esse direito pode ser negativo (de não serem submetidos ao sofrimento ou serem usados apenas como recursos para outros indivíduos) ou positivo (de poderem exercer aspectos próprios de sua natureza animal)218. Tom Regan também se propõe a trabalhar com a noção de direitos morais. Regan ensina que direitos morais se diferenciam de três formas dos direitos legais: 1) direitos morais são universais, isto é, qualquer indivíduo tem tais direitos e deve merecer o mesmo respeito perante aqueles que o têm; 2) direitos morais propõe uma igualdade entre os indivíduos, ou seja, possuir direitos morais não acontece em degraus, tal como é feito com os direitos legais. Todos que os possuem, os possuem igualmente; 3) direitos morais não surgem através de atos 218 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 54. 73 de indivíduos, eles são pertencentes ao indivíduo em si, pelo fato do mesmo possuir valor intrínseco219. Possuir direitos morais é ter um tipo de proteção que poderíamos imaginar como um sinal visível dizendo: “entrada proibida”. O que esse sinal proíbe? Duas coisas. Primeira: os outros não são moralmente livres para nos causar mal; dizer isto é dizer que os outros não são livres para tirar nossas vidas ou ferir nossos corpos como bem quiserem. Segunda: os outros não são moralmente livres para interferir na nossa livre escolha, dizer isto é dizer que os outros não são livres para limitar nossa livre escolha como bem quiserem. Em ambos os casos, o sinal de “Entrada proibida” visa proteger nossos bens mais importantes (nossas vidas, nossos corpos, nossa liberdade), limitando moralmente a liberdade dos outros.220 Assim, o possuidor de direitos morais deve receber tratamento igual a outros que também os possuem, pois todos possuem valor inerente, e não é possível que uma espécie possua mais valor que outra. Regan denominará esse valor inerente de respeito, o qual deve ser entendido como tema principal, já que sintetiza a regra de ouro da ética que impõe que todos sejam tratados igualmente, independentemente das muitas diferenças221. Assim, em decorrência dos animais serem portadores de valor intrínseco lhes devem ser atribuídos direitos, os quais devem ser respeitados. O filósofo criou a categoria de sujeitos de uma vida para determinar todos os indivíduos que possuem direitos, e nessa categoria incluiu os animais. Ele criou essa categoria por acreditar que o conceito de pessoa não eliminaria um tratamento discriminatório em relação aos animais. Quem delimita os princípios? E para quem os princípios são delimitados? É assim que a racionalidade acabada por ser um critério para a condição de membro da comunidade moral: porque o procedimento imagina que pessoas estejam escolhendo princípios para si próprias. Mas pode-se imaginar as coisas de forma diferente, incluindo-se no grupo para o qual o princípio da justiça são incluídos muitas criaturas que não podem e não puderam tomar parte na sua delimitação222. 219 REGAN, Tom. The case of animal rights. 2. Ed. Califórnia: University of California Press, 2004, p. 267-268. REGAN, Tom. Jaulas Vazias, p. 47. 221 REGAN, Tom. Jaulas Vazias, p. 52-53. 222 NUSSBAUM, Martha C. para além da compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos. In: MOLINARO, CARLOS ALBERTO; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; 220 74 Do exposto pode-se entender que a moralidade não se revela nas escolhas racionais, mas sim nas relativas à perpetuação do prazer e na aversão à dor, como idealiza Bentham. Daí porque, plenamente aptos a essas sensações: Os animais, entre si, são suscetíveis das mesmas relações que a espécie humana e, portanto, também seriam capazes da mesma moralidade, se a essência da moralidade consistisse nessas relações. O fato de não possuírem um grau suficiente de razão pode impedi-los de perceber os deveres e obrigações da moral, mas nunca poderia impedir esses deveres de existir, uma vez que, para serem percebidos, eles têm de existir previamente223. Se todo animal é dotado de sentido e vontade, exatamente como nós, seres humanos, e se, em razão disso, eles governam seus corpos com autonomia, perseguindo os próprios interesses vitais, ou, como lembra Bentham, a própria felicidade, não há mesmo sentido em diferençar os tratamentos só porque pertencemos a espécies distintas. E o que a luta abolicionista e o princípio da igualdade têm com o direito dos animais? A discussão, segundo Peter Singer, é substancialmente a mesma, quando se fala da extensão de direitos aos negros, às mulheres e aos animais, ou quando se discute o princípio da igualdade entre os seres humanos e a igualdade entre todos os animais. Pergunta o filósofo: “Quando dizemos que todos os seres humanos, sem distinção de raça, credo ou sexo, são iguais, o que é que estamos afirmando?”224. A resposta é intuitiva: que as diferenças não justificam os direitos; que tais distinções não desqualificam o ser humano como ente digno e moral, e que elas vão além das raças, sexos, nível de inteligência (QI), grau de educação, ou habilidades e aptidões físicas. FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 90. 223 HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental do raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 507-508. 224 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 4. 75 A igualdade – como direito a igual consideração pela lei225 existe porque todos nós sentimos dor, frio e fome; porque somos substancialmente similares em relação aos nossos interesses primordiais e vitais. Não poderá ser por outra razão. Essa ideologia da libertação animal defendeo fim da escravidão animal; pela repugnância do especismo; o reconhecimento de direitos fundamentais a todos os animais nãohumanos, em razão da condição de ser vivo dotado de dignidade e moralidade que todos ostentamos. A democracia e a justiça não foram pensadas como ideias de igual respeito que devêssemos incluir a todos os seres capazes de sofrer danos, dor e morte, por atos contrários a sua vontade, estranhos aos seus interesses e violadores das condições de sua existência. No modelo atual, apenas aos seres humanos foi resguardado o direito de não sofrer exploração física, abuso emocional e morte intempestiva226. O Direito, no entender da maioria da doutrina, só pode ser estabelecido para sujeitos que, na busca da realização dos seus interesses pessoais ou da coletividade que representam, se responsabilizam pelas consequências de seus próprios atos. O sujeito de direito deve arcar com os danos que eventualmente cause a terceiros, logo, tudo que é vivo e não pertence a natureza humana é visto apenas como instrumento em benefício da espécie227. Para Sônia Felipe a condição de sujeitos morais é o único estatuto capaz de nos distinguir dos demais seres vivos dotados de liberdade, mas destituídos de capacidade de abstrair suas ações, incapazes de as projetar como fundadas na própria vontade. E há uma razão óbvia pela qual a defesa pela abolição do especismo aparece na argumentação dos filósofos e juristas: enquanto seres humanos destituídos de autonomia moral, mas minimamente aptos para o exercício da autonomia prática são tratados com consideração, animais não-humanos, dotados ao seu próprio modo de plena autonomia prática são escravizados, torturados e eliminados da 225 SINGER, Peter. Libertação animal, p. 9. 226 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação ética da proteção constitucional dos animais. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 59-60. 227 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação ética da proteção constitucional dos animais, p. 61. 76 vida de modo intempestivo, sem consideração por quaisquer de seus interesses. O que leva a uma resultado: interesses semelhantes devem ser tratados com o mesmo princípio, sem discriminação dos seres em questão228. Quais seriam as consequências geradas pelo respeito à liberdade animal? Significaria a preservação: 1- da integridade física do sujeito; 2- da mobilidade para buscar os meios de subsistência biológica, para si e seus dependentes; e 3- das condições necessárias à interação social daquele indivíduo em sua comunidade natural.229 Pode-se concluir que “sujeitos não humanos podem ter direitos constitucionais, bastando reconhecer-se que são sujeitos dos mesmos interesses já contemplados na Constituição para garantir respeito e bem estar próprios a humanos”230. Enquanto não se alcançar o devido respeito a todos os seres capazes de sentir dor e de sofrer, não se poderá afirmar que uma constituição respeita a condição de vida dos seres vulneráveis231. A Declaração Universal de Direito dos Animais, surgiu em 1978, durante a assembleia da Unesco, quando foi lida no dia 27 de janeiro de 1978 em Bruxelas e em 15 de outubro do mesmo ano em Paris232. Tal Declaração é composta por 14 artigos e foi criada como uma tentativa de se estabelecer um proteção internacional de defesa dos animais: Preâmbulo: Considerando que todo o animal possui direitos; 228 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação animais, p. 79. 229 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação animais, p. 75. 230 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação animais, p. 82. 231 FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação animais, p. 83. 232 LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais, p. 44. ética da proteção constitucional dos ética da proteção constitucional dos ética da proteção constitucional dos ética da proteção constitucional dos 77 Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza; Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo; Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros; Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante; Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais, Proclama-se o seguinte Artigo 1º Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência. Artigo 2º 1.Todo o animal tem o direito a ser respeitado. 2.O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais 3.Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem. Artigo 3º 1.Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2.Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia. Artigo 4º 1.Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir. 78 2.toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito. Artigo 5º 1.Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie. 2.Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito. Artigo 6º 1.Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural. 2.O abandono de um animal é um ato cruel e degradante. Artigo 7º Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso. Artigo 8º 1.A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação. 2.As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas. Artigo 9º Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor. Artigo 10º 1.Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem. 2.As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal. Artigo 11º 79 Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um crime contra a vida. Artigo 12º 1.Todo o ato que implique a morte de grande um número de animais selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra a espécie. 2.A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio. Artigo 13º 1.O animal morto deve de ser tratado com respeito. 2.As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser interditas no cinema e na televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um atentado aos direitos do animal. Artigo 14º 1.Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar representados a nível governamental. 2.Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem233. No entanto, referido texto não possui força de lei, nem chegou a ser votado na referida assembleia, mas pode ser visto como fonte indireta para a aplicação da lei, como uma carta de princípios de natureza moral234. Inclusive como já aconteceu no Brasil, quando tal Declaração serviu de subsídio como fundamento de algumas decisões judiciais.235 233 SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 7 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 460-462. 234 LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais, p. 47. 235 234 A título de exemplo: “PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 1.426 - MAPA. CÃES INFECTADOS PELA LEISHMANIOSE VISCERAL. PROIBIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE PRODUTOS DE USO HUMANO OU NÃO REGISTRADOS NO MAPA. QUESTÃO DE DIREITO. ILEGALIDADE. LIVRE EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE VETERINÁRIO. LEI N.º 5.517/68. ARTIGOS 1º, 5º, ALÍNEAS A, C E D, E 6º, ALÍNEAS B E H. ARTIGO 16 LEI N.º 5.517/68. CÓDIGO DE ÉTICA DO MÉDICO VETERINÁRIO. ARTIGO 10 DA RESOLUÇÃO N.º 722/2002. DECISÃO ACERCA DA PRESCRIÇÃO DO TRATAMENTO AOS ANIMAIS E RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS A SEREM EMPREGADOS. PRERROGATIVA DO VETERINÁRIO. AFRONTA À LEGISLAÇÃO PROTETIVA DO MEIO AMBIENTE. LEI N.º 9.605/98. CRIMES CONTRA A FAUNA. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS. INCONSTITUCIONALIDADE. REFLEXA. HONORÁRIOS. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Cinge-se a discussão à possibilidade ou não de a Portaria Interministerial n.º 1.426, de 11 de julho de 2008-MAPA proibir a utilização de produtos de uso humano 80 De qualquer maneira, a mencionada declaração não é reconhecida pela ONU. Até porque, para sua instituição, faz-se indispensável um acordo básico entre vários países, o que não sucede até o momento. Daí reconhecer-se a enorme dificuldade para a ONU (países que a integram) aprovar um documento que declare direitos dos animais. No entanto, “todos esses direitos podem ser utilizados na fundamentação de peças processuais no sentido de proteger as animais em toda a sua plenitude”236. Como já acontece. ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para o tratamento de cães infectados pela leishmaniose visceral. [...] 6. A Portaria n.º 1.426 revela-se ilegal, ainda, por afrontar a legislação protetiva do meio ambiente, especialmente a Lei n.º 9.605/98, que tipifica, dentre os crimes ambientais, aqueles que são cometidos contra a fauna, e também a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembléia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que regulamenta a matéria no âmbito internacional, e que foi recepcionada pelo nosso sistema jurídico. 7. A proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VII do §1º do artigo 225 do texto constitucional. 8. A Constituição Federal, a Declaração de Bruxelas e as leis de proteção à fauna conduzem-se no sentido da proteção tanto da vida como contra os maus tratos. 11. Apelação provida.” (TRF3, QUARTA TURMA, AC 00120319420084036000, Relator JUIZ CONVOCADO DAVID DINIZ, e-DJF3 Judicial 1 DATA 16/01/2013). 236 SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 7, p. 462. 81 CAPÍTULO 2 POR UMA NOVA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA “O maior erro da ética é a crença de que ela só pode ser aplicada em relação aos homens” (ALBERT SCHWETZER - Prêmio Nobel da Paz) 2.1. A CRISE AMBIENTAL A crise ecológica237 que enfrentamos hoje tem sua origem na intervenção do ser humano na Natureza. Vários são os fatores que a desencadearam. Édis Milaré acredita que a razão da crise é “a verdadeira guerra que se trava em torno da apropriação dos recursos naturais limitados para a satisfação de necessidades e caprichos ilimitados”238. De um lado se tem bens finitos e de outro, necessidades infinitas. Fritjof Capra argumenta que: A meta central da teoria e da prática econômicas atuais - a busca de um crescimento econômico contínuo e indiferenciado - é claramente insustentável, pois a expansão ilimitada num planeta finito só pode levar à catástrofe239. Eis a nossa crise: destruição sistemática das espécies animais causada pela relação da sociedade com a natureza240. Junques afirma o paradigma ecológico surgiu para fazer frente a ela, “não bastam soluções cosméticas; impõe-se uma mutação da percepção da realidade, especialmente na relação com a natureza e na construção do entorno de si” 241. Para isso, será 237 Segundo o Relatório Planeta Vivo 2010, produzido pela WWF, a humanidade consome 30% além da capacidade de suporte e reposição dos recursos naturais da Terra. 238 MILARÉ. Édis. Direito do Ambiente. 9 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 230. 239 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, p. 157. 240 OST, François. A natureza à margem da lei, p. 8. 241 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 74. 82 necessário uma nova compreensão do próprio ser humano e um modo diferente de construir o discurso ético. François Ost242 acredita que a crise da nossa relação com a natureza é simultaneamente uma crise de vínculo, porque não conseguimos compreender o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; e de limite, porque não conseguimos discernir o que deles nos distingue. Para ele243 a modernidade ocidental transformou a natureza em “ambiente”, simples cenário no centro do qual reina o homem, que se auto proclamou dono e senhor. A preocupação com o meio ambiente e com os animais surgiu como reação a uma mentalidade predatória da natureza. A partir do momento em que o homem se depara com desastres naturais ameaçadores de sua sobrevivência na terra, e com a degradação dos recursos naturais é que surgem questionamentos acerca da relação envolvendo o ser humano e a natureza, o que fez emergir os valores ecológicos. “A ideologia do progresso parte do mito da superabundância da natureza; da crença do caráter ilimitado dos recursos naturais” e o fato do ser humano concebe-se como dono absoluto da natureza só agrava a situação244. A igreja Católica também passou a se preocupar com o meio ambiente. O Papa Bento XVI, na celebração do Dia Mundial da Paz, escreveu uma mensagem com o seguinte tema: “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação”. Na mensagem o Papa afirmou que: O respeito pela criação reveste-se de grande importância, designadamente porque a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus e a sua salvaguarda torna-se hoje essencial para a convivência pacífica da humanidade. [...] Por isso, é indispensável que a humanidade renove e reforce aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho. [...] Há vinte anos, ao dedicar a Mensagem do Dia Mundial da Paz ao tema Paz com Deus criador, paz com toda a criação, o Papa João Paulo II chamava a atenção para a relação que nós, enquanto criaturas de Deus, temos com o universo que nos circunda. Observa-se nos nossos dias – escrevia ele – uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada (…) também pela falta do respeito devido à natureza. E acrescentava que esta consciência ecológica não deve ser reprimida mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em 242 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 9. 243 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 10. 244 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 18. 83 programas e iniciativas concretas. [...] Pode-se porventura ficar indiferente perante as problemáticas que derivam de fenómenos como as alterações climáticas, a desertificação, o deterioramento e a perda de produtividade de vastas áreas agrícolas, a poluição dos rios e dos lençóis de água, a perda da biodiversidade, o aumento de calamidades naturais, o desflorestamento das áreas equatoriais e tropicais?245 Verifica-se por meio desta passagem que há décadas a igreja busca conscientizar a população da necessidade de um desenvolvimento sustentável. Também se ressaltam as constantes agressões sofridas pela Natureza, gerando o desequilíbrio ambiental que temos hoje, e diante de tais calamidades procura-se renovar a aliança entre o ser humano e o ambiente, através de uma convivência pacifica, como ressalta o ex-Ministro da Marinha Mario Cesar Flores: Criamos nos dois últimos séculos, principalmente nos últimos cem anos, costumes e necessidades (por vezes menos necessário ao homem e mais ao modelo econômico) que, hierarquizados acima da saúde do sistema da Terra, põem em risco o equilíbrio entre o potencial sustentável desse sistema e a pressão sobre ele exercida autistamente pela humanidade, hipnotizada no sonho de consumo. Emerge aí o papel da política, que precisará administrar a compatibilização entre população imensa, seus costumes e necessidades (reais ou criadas pelo modelo) e a limitação do sistema Terra – uma equação que provavelmente vai exigir a imposição de constrições convenientes ao equilíbrio.246 O aumento do poder aquisitivo da população, principalmente nos países emergentes, permite a ampliação da aquisição de bens de consumo, no entanto esse consumismo desenfreado tem um custo ambiental enorme. O que se quer provar é que o Planeta já atingiu o seu limite e a humanidade irá sofrer as consequências por não conseguir conviver de forma harmônica com a Natureza. “O homem é parte integrante e insuprimível da natureza e a continuidade da vida humana depende cada vez mais da preservação da qualidade do solo, ar e águas”247. A nova cultura ambientalista, baseada em um humanismo ecológico, “representa 245 Papa Bento XVI, 8 Dez. 2009. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/peace/documents/hf_ben-xvi_mes_20091208_xliiiworld-day-peace_po.html>. Data de acesso: 12 de jan. 2015. 246 FLORES, Mario Cesar. Estado-nação versus mundo-humanidade. O Estado de São Paulo, 15.01.2011. p. A2. 247 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 699. 84 a insurgência da crítica radical ao produtivismo e ao consumismo desenfreado gerado nas engrenagens da revolução industrial”248. Carlo Roberto Siqueira Castro249 ensina que devemos buscar o desenvolvimento sustentável, como uma postura realista e responsável. Pois se levarmos em conta que em três séculos de industrialização, que representam cem vezes menos tempo que a era da civilização agrícola, chegamos ao atual estágio de flagelo do meio ambiente, o que dizer dos anos que se seguirão, caso mantido um ritmo crescente de degradação da natureza. A carta do Cacique americano, Seathl, grande chefe da nação Duwamish, escrita há mais de 150 anos para o presidente dos Estados Unidos Franklin Pierce, em resposta às propostas do governo americano para compra das terras de sua tribo, ilustra de forma clara a diferença cultural existente entre a sociedade ocidental capitalista e os povos nativos da época: “Como podes comprar ou vender o céu – o calor da Terra? Tal ideia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar e do brilho da água. Como podes então compra-los de nós? Decidimos apenas sobre coisas de nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Sabemos que o homem branco não compreende nosso modo de viver. Para ele, um pedaço de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã; é sua inimiga, e depois de se esgotar, ele vai embora. Deixa para trás a cova do seu pai, sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás só desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho. Talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende... se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição. O homem branco deve tratar os animais como se fossem irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro passar pode ser mais valioso do que um bisão que nós, os índios, matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, os homens morreria de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também 248 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário, p. 718. 249 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário, p. 716. 85 afetar os homens. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto fere a terra fere também os filhos da terra250...251 Esse texto escrito há quase dois séculos, não se tornou desatualizado, ao contrário, é de tamanha atualidade que traz reflexões éticas estudadas até hoje. Esse momento de nostalgia com a Natureza não passou, ao contrário, a importância de se respeitar a terra, o ar, as árvores e os animais continua, por que eles não são apenas nossas propriedades, ao contrário, vivem neste planeta, assim como nós. Logo, todos compartilharam do mesmo destino. O que o ser humano precisa fazer é abdicar de seu domínio sobre os animais, já que os animais humanos não são donos do Planeta, mas vivem nele juntamente com os outros animais e plantas. O direito do ambiente veio mostrar que o novo agir humano significa que devemos levar em consideração mais do que somente o interesse do homem. A vulnerabilidade em que se encontra a natureza tornou necessária a ampliação da responsabilidade humana para não somente com os humanos, mas também com todos os seres vivos da Terra252. Uma solução seria a reformulação do comportamento da sociedade humana, “através de uma mudança cultural que refreie a civilização do consumo e do desperdício e injete na sociedade uma preocupação maior com a equidade intergeracional”253. Para Ost, a única maneira de fazer justiça aos seres humanos e a natureza é afirmar sua semelhança e sua diferença. O homem é um ser vivo exclusivo “é gerador de sentidos, sujeito de uma história, autor e destinatário de regras”. E a natureza, no decorrer de sua evolução, produzia a espécie humana, e até hoje assegura diariamente as condições de sua sobrevivência. Não se pode negar o vínculo existente entre ambos.254 A preocupação com o meio ambiente e com os animais surgiu como reação a uma mentalidade predatória da natureza. A partir do momento em que o homem se depara com desastres naturais ameaçadores de sua sobrevivência na terra, e com a degradação dos recursos 250 Este texto está publicado no volume Nosso Futuro Comum, da Comissão das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, organizado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e desenvolvimento, Rio de Janeiro: Editora Getúlio Vargas, 1998. 251 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário, p. 719. 252 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio para uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de janeiro: Contraponto: ED PUC-RIO, 2006, p. 41. 253 MILARÉ. Édis. Direito do Ambiente, p. 230. 254 OST, Fronçois. A natureza à margem da lei, p. 16. 86 naturais é que surgem questionamentos acerca da relação envolvendo o ser humano e a natureza, o que fez emergir os valores ecológicos. “A ideologia do progresso parte do mito da superabundância da natureza; da crença do caráter ilimitado dos recursos naturais” 255 e quando o ser humano concebe-se como dono absoluto da natureza essa crise apenas se agrava256. Várias correntes éticas surgiram no decorrer do desenvolvimento da sociedade dando base ao relacionamento que os seres humanos têm com os demais seres vivos do planeta, de um modo que, hoje, estamos diante de um esverdear do direito, notadamente marcado pelo respeito em relação à natureza. Logo se faz necessário observar quais as correntes éticas que tratam da relação homem-natureza até chegar ao direito ambiental que temos hoje. 2.2. TEORIAS ÉTICAS: QUAL O SEU SIGNIFICADO? A filosofia deve questionar os pressupostos básicos de cada época. A completa consideração, crítica e cuidadosa, daquilo que a maioria toma como adquirido constitui a principal tarefa da filosofia. Infelizmente, a filosofia nem sempre cumpre o papel que lhe foi destinado pela história. A defesa aristotélica da escravatura permanecerá sempre como uma advertência relativamente ao fato de que os filósofos são seres humanos sujeitos a todos os preconceitos da sociedade a que pertencem. Por vezes conseguem libertar-se da ideologia dominante; mas, mais frequentemente, tomam-se os seus defensores mais sofisticados257. Dentro desse contexto, a filosofia pode ser entendida como a atividade que consiste em pensar sobre o próprio pensar e também se ocupa do pensamento crítico sobre determinados temas. Dentro da filosofia encontramos a ética, a qual estuda a conduta correta no agir, a pergunta que a ética faz é “como devo agir?” 258. 255 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 17. JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 18. 257 SINGER, Peter. Libertação Animal, p. 359. 258 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 32. 256 87 Eis a importância do estudo da ética, analisada como parte dos estudos filosóficos, especialmente da filosofia prática, a qual “estuda a ação ou conduta do ser humano, através da ética”259. O saber ético significa resistência, é ser capaz de exercitar sua autonomia, “a sua personalidade, ante mesmo a conjuntura que força a pasteurização e à homogeneização dos comportamentos em unidades servis a ideologias reinantes”260. Assim, uma teoria ética é confrontada com diversas situações que envolvam e exortem algum juízo ético. Nas palavras de Peter Singer, “a ética prática é a aplicação da ética ou moralidade à abordagem de questões práticas, como o tratamento dispensado às minorias étnicas, a igualdade para as mulheres, o aborto, a eutanásia [...] e o uso dos animais não humanos”261. A palavra ética, deriva do grego éthos, “está ligado a ideia de hábito”262, é fruto do hábito humano, sua ação reiterada, de forma que somente o indivíduo pode praticar a ética. O indivíduo produz conceitos éticos e a sociedade a moral coletiva. É próprio da dimensão humana tomar decisões e a explicá-las. A Ética busca oferecer uma orientação para as decisões humanas, nas difíceis areias movediças de cada situação concreta. “Adotar uma ética significa estar disposto a julgar certas ações como preferíveis a outras. Trata-se de como conduzir nossa vida de maneira justa, do que seria bom que acontecesse, de como agir bem”263. Portanto, o estudo das correntes éticas envolvendo o direito dos animais possibilitará ao leitor se posicionar criticamente diante de um tema tão controverso quanto esse e construir sua própria consciência sobre o assunto, sem se deixar levar pelas correntes 259 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, p. 24. BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p.557. 261 SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 9. 262 BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p.555. 263 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 14-5. 260 88 ideológicas dominantes. Como esclarece Olinto Pegoraro, a ética vai servir como uma bússola que aponta o rumo de nossa navegação no mar da história264. Naconecy afirma que “surgirá assim uma forte tensão: se, por um lado, a ética existe para fixar limites à nossa liberdade e desejo, por outro, é evidente que o uso dos animais nos dá um padrão de vida bem mais alto daquele que teríamos sem esse uso”265. Dessa forma, surgi um conflito enorme, pois romper com o modelo ético atual irá gerar uma preocupação com o que esta por vir, e é normal que a sociedade leve tempo para evoluir, assim como demorou milênios para abolir a escravidão. A questão dos animais se apresenta como um problema aberto para a Filosofia. “E quem escreve sobre animais numa área tão conservadora quanto a Filosofia corre o risco de parecer ridículo”266. Muitos autores que escrevem sobre o direito dos animais têm que enfrentar não só críticas filosóficas, mas também desmistificar a crença que apenas “amantes” dos animais possam defende-los, como se fossem pessoas muito sensíveis ou mesmo irracionais. A liberdade de escolha por ser parte dos seres humanos é tanto possível quanto necessária. Isso, consequentemente, implica em nossa responsabilidade e imputabilidade. Dito de outro modo, o livre-arbítrio e a responsabilidade moral humana não resultam anulados por um determinismo biológico267. Tem-se a liberdade de escolher entre as diversas possibilidades possíveis e nós somos responsáveis por estas decisões. De fato, a ética faz uma diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pela opinião alheia, não exercendo sua própria consciência e responsabilidade. Já o ativo ou virtuoso é aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, avalia sua capacidade para dar a si mesmo regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem 264 LEVAI. Laerte Fernando. Os animais sob a visão da ética. Disponível em: < http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/9/docs/os__animais__sob__a__visao__da__etica.pdf>. Data de acesso: 12 de set. de 2014, p. 11. 265 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 16. 266 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 18. 267 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 33. 89 subordinar-se cegamente a eles. Recusa violência contra si e contra os outros, resumindo é autônomo em suas decisões268. Espera-se que com o conhecimento dos argumentos relativos aos direitos dos animais, as pessoas se tornam sujeitos éticos ativos. Se uma pessoa não está preparada para se preocupar com algo ou alguém além de si mesmo, será impossível a ela a adoção de princípios éticos. “Esse sujeito estaria escolhendo o egoísmo, ao afirmar que não quer se entender como um membro do universo moral, ao lado de outros sujeitos morais”269. De fato, não haverá muito a dizer para uma pessoa que se preocupa só consigo mesmo. Esse “preocupar-se” envolve empatia, isto é, tentar adotar uma concepção imaginária do estado, situação ou condição alheia. Um caçador não imagina como é ser sua presa, e nem presta atenção às semelhanças entre ele e sua vítima. “Se ele o fizesse, pensaria e agiria diferentemente. Note que esse não é um problema apenas para uma ética voltada aos animais, mas também para uma moralidade humanista”270. José Roque Junques271 acredita que a pedra angular da questão da preservação da biodiversidade é a relação do ser humano com a natureza, afirma que “a crise ecológica não significa apenas o surgimento de problemas ambientais, mas a necessidade de novas formas de enxergar o mundo e, especialmente, a natureza”272. E esclarece os motivos que tornam importante a preservação da biodiversidade: Antes de mais nada, por motivos ecológicos. Ela é indispensável para manter os processo evolutivos da vida; para regular os equilíbrios físico-químicos da biosfera; para a fertilidade do solo e a regulação dos ciclos hidrológicos; para a absorção e decomposição dos poluentes e a purificação da água. Em segundo lugar, por questões éticas e patrimoniais. Os seres humanos têm o dever de não eliminar outras formas de vida, transmitindo as gerações futuras a herança recebida, pois os ecossistemas naturais são laboratórios para entender a evolução e a sobrevivência da humanidade273. 268 CHAUI, Marilena de Souza. Iniciação à filosofia: ensino médio, volume único. São Paulo: Ática, 2010, p. 267. 269 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 34. 270 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 34. 271 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 53. 272 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 69. 273 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 55. 90 Fritjof Capra entende que “quando pertencemos a uma comunidade, comportamonos de acordo com ela”274. O autor ainda esclarece que há duas grandes comunidades às quais todos nós pertencemos: a raça humana e a biosfera global. Somos moradores do oikos, da “casa Terra”, que é a raiz grega da palavra “ecologia”, e devemos nos comportar como se comportam os outros moradores dessa casa - as plantas, os animais e os micro-organismos que constituem a vasta rede de relações que chamamos de teia da vida. Ocorre um desvio ético quando os animais são tratados como se fossem instrumentos para de atingir o bem estar do ser humano, conforme o entendimento de Vandana Shiva: Quando os organismos são tratados como se fossem maquinas, ocorre um deslocamento ético – a vida passa a ser considerada como tendo valor instrumental e não um valor intrínseco. A manipulação de animais para fins industriais já teve importantes implicações éticas, ecológicas e de saúde. A visão reducionista dos animais como maquinas remove todos os limites que resultam de preocupação ética em relação à maneira como eles são tratados visando a maximização da produtividade. No setor de produção industrial de animais de corte, a visão mecanicista predomina. Por exemplo, o administrador da indústria de carnes declara que a porca reprodutora deve ser considerada e tratada como uma valiosa peça de maquinaria, cuja função é ejetar leitões feito uma maquina de produzir salsichas275. Segundo Sônia Felipe “a ética não é um código de comportamento para regular a relação de seres capazes de fazer uso da razão e da linguagem” 276. Ela é o estabelecimento de um princípio universalizável, portanto, racional, para regular as ações desses quando afetem interesses e preferências daqueles que não podem usar. Singer também argumenta que “o dever de moralidade reconhecido pelo sujeito moral não pode variar de acordo com a conformação ou aparência dos seres ou objetos sobre os quais as ações incidem”277. 274 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 223. SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 56. 276 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 86. 277 FELIPE, Sônia Tetu. Por uma questão de Princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, p. 86. 275 91 O que se quer dizer é que as regras orientavas e disciplinadoras do que seja socialmente aceitável decorrem da vivência e experiência histórica do que seja socialmente aceitável. O indivíduo produz seus conceitos éticos e envia para a sociedade, assim como a sociedade produz padrões morais que envia ao indivíduo, através da tradição e dos costumes278. A ética não fornecerá garantias ou certezas, apenas boas razões ou razoabilidade. Especificamente quando se trata da Ética Animal, essa atribui valor moral à vida dos animais. Esse valor nos obriga a tratar os animais com o devido respeito, já que esse valor independe que o animal seja útil ou apreciado pelos humanos. Uma pessoa ética pode entender também que esse valor confere dignidade a um animal, dignidade esta que merece ser por nós respeitada279. Alguns que argumentam contra a ética animal afirmam que “se tivermos que respeitar animais, então teremos que respeitar igualmente qualquer coisa na natureza - fungos e alfaces, gramados e montanhas, e tudo o mais. Isso tornaria a vida humana impossível.280” No entanto, vegetais, micro-organismos e ecossistemas não têm as estruturas biologicamente necessária para o surgimento de estados mentais. Por esta razão, eles não são sujeitos dotados de um ponto de vista, nem têm a sua própria perspectiva individual. Alfaces e repolhos não sentem dor ou angustia. “Evidentemente, plantas não são meras coisas, nem estão na mesma categoria das pedras. Assim, se você puder evitar matar um ser vivo, você deve fazê-lo”281. A adoção de um princípio de respeito pela vida parece aqui plausível: não devemos destruir uma vida desnecessariamente282. Assim, a função das teorias éticas é guiar nossas ações e orientar nossas atitudes por meio de juízos morais. Noberto Bobbio igualmente chegou a afirmar que chegaria o dia em que os animais seriam reconhecidos como sujeitos de direito: Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos 278 BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p.557. NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 62. 280 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 130. 281 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 131. 282 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 136. 279 92 sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos. Decerto, todas essas novas perspectivas fazem parte do que eu chamei, inicialmente, de história profética da humanidade, que a história dos historiadores – os quais se permitem apenas uma ou outra previsão puramente conjuntural, mas recusam, como algo estranho à sua tarefa, fazer profecias – não aceita tomar em consideração283. Alguns doutrinadores brasileiros, inovadores, dentre os quais se destacam juristas como Edna Cardozo Dias, Fernando Laerte Levai, Danielle Tetü Rodrigues e Heron Santana Gordilho, também defendem a existência do Direito Animal, ou seja, de direitos garantidos aos animais não humanos enquanto sujeitos, e não simplesmente como objetos de direito. Em razão de a ética estar diretamente relacionada à ação humana, quando uma se altera a outra também evolui284. A ética ambiental tem como uma das principais premissas a extensão da compreensão de dignidade de forma a abranger o respeito por todas as espécies de vida, isto é, a busca por uma dignidade da natureza, uma dignidade da vida ou até mesmo por uma dimensão ecológica da dignidade humana, como preferem Fensterseifer e Sarlet285. As principais posições sobre o tema se subdividem em duas: o antropocentrismo e o biocentrismo, as quais iremos analisar os principais fundamentos. 2.2.1 ERA UMA VEZ UM MITO ANTROPOCÊNTRICO... A palavra antropocentrismo é um “vocábulo híbrido de composição greco-latina, aparecido na língua francesa em 1907: do grego: anthropos, o homem (como ser humano, como espécie); do latim: centrum, centricum, o centro, o centrado”286. 283 BOBBIO, Noberto. A era dos Direitos. 10 reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 59. SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 285 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 49. 286 MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 113. 284 93 Segundo Édis Milaré, um dos principais colaboradores para a redação do Capítulo VI, da Constituição Federal de 1988, em matéria de Ordem Social, precisamente no que tange ao tratamento do meio ambiente e política ambiental: Antropocentrismo é uma concepção genérica que, em síntese, faz do Homem o centro do Universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores (verdade, bem, destino último, norma última e definitiva etc.), de modo que ao redor desse “centro” gravitem todos os demais seres por força de um determinismo fatal. Tanto a concepção quanto o termo provêm da Filosofia287. A visão antropocêntrica da relação do homem com a natureza nega o valor intrínseco do meio ambiente e dos recursos naturais, o que resulta na criação de uma hierarquia na qual a humanidade detém posição de superioridade, acima e separada dos demais membros da comunidade natural. Essa visão priva o meio ambiente de uma proteção direta e independente. Para esta corrente de pensamento, o ponto de referência é sempre o ser humano autônomo e isolado em relação ao conjunto de interdependências do meio em que vive... “O ponto de referencia são os interesses humanos, sejam eles materiais ou espirituais, não se importando com os possíveis interesses do ambiente e da comunidade biota que o rodeia”288. No antropocentrismo defende-se que a ética deve ser um assunto exclusivamente humano, e que não é possível, nem desejável, incluir criaturas não-humanas na comunidade moral. Um antropocentrista típico atribui às pessoas uma dignidade única e insuperável, enquanto que considera todos os animais nada mais que coisas289. O argumento antropocêntrico, grosso modo, tem a seguinte estrutura: (I) Animais não têm status moral, pois eles não têm consciência, racionalidade, linguagem, etc. (II) Logo, em termos morais, não importa como os tratamos. Nenhum tratamento é imoral - exceto pelos eventuais efeitos nocivos indiretos 287 MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 113. JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 77. 289 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 65. 288 94 sobre os humanos. (III) Na prática, todo uso de animais por parte dos humanos está eticamente permitido. A partir disso, os argumentos humanistas vêm sendo usados para justificar a escravização e a coisificação dos animais. Muitas pessoas ainda, seguindo essa mesma tradição, consideram que defender o status moral dos animais é tão absurdo quanto sair em defesa de estátuas de pedras ou bonecas de plástico. Portanto, falar de uma ética que equipare moralmente humanos e animais pode parecer tolo ou ofensivo para muitos de nós290. Luc Ferry291 argumenta que esta é a corrente “sem dúvida a mais banal, mas também a menos dogmática, porque a menos doutrinária”, já que parte da ideia que é o homem quem sempre se deve proteger, até de si mesmo. Neste caso, o meio ambiente não tem valor intrínseco. Para Ferry essa posição é “humanista”, pois a natureza aqui é vista como algo que apenas rodeia o ser humano, a periferia, portanto. A partir de relatos históricos, conclui-se que o ápice do antropocentrismo deu-se com os seguintes filósofos: René Descartes, ao considerar a superioridade humana a partir da análise da alma; Francis Bacon, centrado na ideia de progresso a partir da dominação da natureza; Thomas Hobbes, desvinculando homem e natureza292. O declínio do modelo antropocêntrico inicia-se, mesmo que de forma lenta, a partir de 1543 com a defesa da tese heliocêntrica, na qual Copérnico conclui que a terra gira em torno do sol e vice-versa293. Ao passo que a terra deixa de ser considerada o centro do sistema, a pretensão humana de se considerar o único fundamento de todas as coisas passa a ser questionada. Junques afirma que “o desafio é superar essa concepção antropocêntrica e não simplesmente negar a posição privilegiada do ser humano na escala da natureza. Por ter 290 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 66. FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 24. 292 SASS, Liz Beatriz. Direito e natureza: (re)construindo vínculos a partir de uma ecocidadania. Curitiba: Juruá, 2008, p. 19. 293 EBERLE, Simone. A capacidade entre o fato e o direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2006, p. 17. 291 95 consciência e intencionalidades éticas ele assume um papel fundamental no contexto da biosfera”294. Dito isso, nota-se que a natureza não pode ser reduzida a servir apenas aos interesses humanos, porque a vida é um bem maior no qual o ser humano está inserido. Tal percepção ganha força no atual cenário mundial em que informações sobre animais em extinção, maus tratos aos animais, caça ilegal, desmatamento e outras ações violentas contra a vida são disseminadas pelos meios de comunicação de massa, o que possibilita a reação da sociedade frente a tais atos. Outro fator que evidencia o declínio do antropocentrismo e, a consequente reedição do estatuto moral dos animais como os crescentes danos ambientais, foi o surgimento do Movimento pela Libertação dos Animais e a ampliação do conhecimento acerca do comportamento animal. 2.2.2. ANTROPOCENTRISMO MITIGADO295 O antropocentrismo mitigado ou reduzido, pode ser definido como uma vertente menos radical na relação do homem com a natureza, de forma a diminuir a preocupação humana em ser o centro do universo. Deverá buscar-se um modo de equilibrar os anseios da sociedade atual à preservação das outras espécies de vida do planeta, especialmente os animais, de modo a se efetivar a dignidade a partir do conceito de vida. Surge a partir dessa nova concepção de se relacionar com a natureza a possibilidade de implementação da dimensão ecológica da dignidade como instituto constitucionalmente previsto, mesmo que implicitamente, no artigo 225 da Constituição Federal. Assim, o meio ambiente só é protegido como uma consequência e até o limite necessário para proteção do bem-estar humano. “Admite a existência de deveres humanos, ao 294 295 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 79. Conforme o livro de José Roque Jungues, (BIO)Ética Ambiental. 96 menos indiretos, em relação à natureza ou de uma responsabilidade dos humanos pelos recursos naturais diante das gerações futuras”296. As vítimas da degradação, em última instância, serão sempre os seres humanos, e não o meio ambiente. Naconecy esclarece que poderiam sustentar que não temos obrigações morais diretas para com os animais, apenas para com outros humanos. Aos animais, teríamos somente deveres indiretos, por exemplo, “se meu vizinho chutasse meu cão, isso me ofenderia profundamente. E é errado ofender as pessoas. Assim, a falha ética do meu vizinho diria respeito apenas a mim, e não ao meu cão” 297. Logo, causar dano à propriedade alheia, é errado, assim como ocorreria caso alguém arranhasse meu automóvel. Note que, nessa perspectiva, cães e automóveis não merecem respeito moral direto, não têm qualquer status moral direto – apenas indireto. Essa é uma visão antropocêntrica corriqueira e habitual. Outro argumento utilizado pelos antropocentristas é que devemos evitar a crueldade em relação aos animais, plantas e paisagens em virtude do risco de que hábitos cruéis acabem também se estendendo ao tratamento para com os seres humanos. Isso iria comprometer nossa saúde moral. “A pessoa que causa dor a um animal revela um caráter moralmente defeituoso e mesmo perigoso, nesse sentido. Portanto, tem-se o dever de modificar essa disposição, evitar atos que a reforcem, e adotar regras que proíbam que ela seja cultivada” 298. Essa justificativa, entretanto, não é satisfatória. Em primeiro lugar, se pudermos mostrar, por exemplo, que descarregar o mau humor em um cão irá prevenir que se faça isso à com a família, essa ação poderá ser realizada sem remorso e o espancamento de cães poderia se tornar então uma forma legítima de terapia. A principal vítima de uma ação humana cruel é o próprio paciente, e não o agente cruel. Seria algo estranho afirmar que a razão pela qual é eticamente condenável torturar um animal por mera diversão, é, exclusivamente, o possível efeito psicologicamente nocivo sobre o torturador. “Os animais devem ser protegidos de tratamento cruel e de inflição de sofrimento 296 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 19. NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 170. 298 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 167. 297 97 evitável independentemente das consequências atuais ou potenciais sobre os humanos”299. Ou seja, mesmo que isso não cause efeitos perniciosos nas pessoas ou na moralidade humana. Segundo Sarlet e Fensterseifer “o objetivo da abordagem jurídica antropocêntrica ecológica é ampliar o quadro do bem estar humano para além dos espectros liberal e social, inserindo necessariamente a variável ecológica”300. Os autores defendem uma “abordagem conciliatória e integradora dos valores humanos e ecológicos”301. A Organização das Nações Unidas (ONU) já sinalizou302 que considera o antropocentrismo clássico um ideal ultrapassado e que não condiz com o novo cenário mundial. Para ilustrar a questão, tem-se a Resolução n. 37/7, de 28 de outubro de 1982, proclamada pela Assembleia Geral da ONU: Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja seu benefício para o homem e, com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação.303 Exposto esses argumentos, nota-se que o antropocentrismo mitigado é o que predomina culturalmente hoje. Passado um primeiro momento em que preocupações com a natureza eram irrelevantes, o cenário atual mostra que muitos países se preocupam com o meio ambiente, mesmo que apenas para salvaguardar o bem estar do ser humano. 299 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 171. SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 43. 301 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 43. 302 Declaração Universal dos Direitos dos Animais proclamada em 1978 pela UNESCO. 303 Tradução nossa. Original: “Every form of life is unique, warranting respect regardless of its worth to man, and, to accord other organisms such recognition, man must be guided by a moral code of action (...).” ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Resolution 37/7: world charter for nature. 1982. Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/res/37/a37r007.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014. 300 98 2.2.3. BIOCENTRISMO Para esta visão, a natureza é titular de direitos304, postulando um valor intrínseco para a natureza e rejeitando uma diferença de tratamento entre seres humanos e não humanos. A passagem de uma cosmovisão antropocêntrica para a ecocêntrica não se fez sem que decorresse muito tempo nos processos de mudança. Isto é patente na história das ciências que se ocupam do meio ambiente. Cabe registrar ainda que na Ética, que é um saber normativo de cunho filosófico – como também o direito em parte o é -, verificou-se uma evolução conceitual e prática bastante rápida305. O biocentrismo pode ser definido como uma corrente filosófica, com reflexos diretos na esfera jurídica, pela qual o homem deixa de ser o centro do Universo e se depara com limites na utilização dos outros seres vivos que compõem a vida terrestre. O respeito a outras formas de vida, derivado muitas vezes da aceitação de uma Ética Ambiental, passa a figurar como premissa básica na relação do homem com o seu entorno. Com o foco voltado para a “vida e todos os aspectos a ela inerentes, surgiu o biocentrismo. O valor vida passou a ser um referencial inovador para as intervenções do Homem no mundo natural”306. O biocentrismo defende uma ética da vida, pois para esta corrente todo ser vivo, animado ou inanimado, tem valor moral em função das atividades biológicas que são normais à espécie a que ele pertence, nas condições normais para aquela espécie (incluindo crescimento, sobrevivência e reprodução). Todo ser vivo persegue seu próprio bem conforme a sua própria natureza, o que torna antiético impedir o desenvolvimento de qualquer ser vivo. Plantas e microorganismos merecem respeito moral e temos obrigações éticas para com eles307. Existe na doutrina muitas formas de biocentrismo, que se modificam conforme sua amplitude em defender as mais variadas formas de vida. O biocentrismo global, por exemplo, desenvolveu-se “a partir da ética da vida, na qual todo ser vivo, animal ou vegetal, está 304 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 23. MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 113. 306 MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 116. 307 NACONECY, Carlos Michelon . Ética & animais : um guia de argumentação filosófica, p. 64. 305 99 incluído”308. Logo, privilegia as totalidades e processos naturais irredutíveis aos seus componentes. Enquanto o biocentrismo mitigado privilegia determinadas formas de vida na qualidade de entidades individuais, decorrendo o valor do sistema ambiental do valor intrínseco de cada indivíduo vivo, o biocentrismo global confere a consideração moral à coletividade ecológica, e não a cada indivíduo individualmente, reconhecendo a importância dos conjuntos sistêmicos como um todo309. Trata-se de um biocentrismo mais radical, “que parte do reconhecimento da natureza como um conjunto interdependente e do lugar do ser humano nesse conjunto, para chegar a normas em relação ao meio ambiente”310. Valoriza a vida enquanto tal, mas não individualmente, e sim como totalidades complexas e estruturais de processos bióticos, tem como ponto de referência não os indivíduos, mas a comunidade biota. Compreende o ser humano como um elo a mais no encadeamento vital dos ecossistemas. Ele não detém um papel fundamental na comunidade biótica. Depende os mesmo processos vitais como qualquer ser vivo. A fragilidade dessa tendência é a redução biológica do ser humano e o esquecimento de que o ser humano diferente dos outros seres vivos tem um confronto cultural com o seu meio ambiente. Ele constrói um entorno humano ao lado e em relação com o meio natural. Esse entorno cultural é uma necessidade do ser humano e não necessariamente está em dissonância com o ecossistema natural311. Essa corrente é diferente do Ecocentrismo ou Holismo, para qual as espécies, processos e ecossistemas naturais têm valor moral já que também têm uma tendência natural para perseguir seu próprio bem. Em função disso, é razoável falar de seu “bem-estar” e “saúde”, 308 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos, p. 55. 309 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos, p. 55. 310 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 26. 311 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 79. 100 ou mesmo reconhecê-los como “vivos”. Uma espécie como um todo, uma montanha e o nosso planeta merecem respeito moral e temos obrigações para com eles312. Apesar das inúmeras nomenclaturas para a teoria biocêntrica, o que todas têm em comum é o alargamento da dignidade que passar a abranger os animais. Mas, pode-se dizer que o pensamento do direito dos animais, insere-se na visão do biocentrismo mitigado (ou ecologia superficial), pois se considera a ética de cada animal de forma separada e individual, não envolvendo o todo. Nesse sentido, Daniel Braga Lourenço assevera que o foco da doutrina dos direitos dos animais está na “ética animal” e não na “ética da vida” (que privilegia o todo em detrimento da individualidade)313. A concepção biocêntrica se dividiu com o passar dos anos. Surgiu uma visão biocêntrica radical, também denominada ecologia profunda, advinda do termo inglês deep ecology, criada por Arne Naess. Após a segunda guerra mundial o impacto ambiental provocado pela sociedade industrial começou a chamar a atenção. Frente a isso, Naess denominou de ecologia superficial as ciências ambientais que se preocupavam principalmente em remediar os sintomas causados pelo desgaste ambiental, controlar a contaminação e procurar formas sustentáveis de extração das reservas naturais. Em contraste com essa ecologia superficial ele desenvolveu a filosofia da ecologia profunda que busca não só tratar os sintomas, mas mudar as causas culturais que causam degradação ambiental, criticando os sistemas políticos, estilos de vida e valores éticos da sociedade industrial. A ecologia profunda defende que toda vida, por si só, deve ser preservada, ou seja, cada vida tem um valor intrínseco que lhe é inerente, não podendo ser retirada por outro ser, prega a mudança da perspectiva antropocêntrica, a redução do consumo, da produção de bens e serviços, que devem estar em desconformidade com a necessidade da sociedade e não com a 312 313 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica, p. 64. LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. 101 rentabilidade. Socialmente não deve haver uma hierarquia na qual o homem se coloque em escala superior ou destacada, mas, sim, uma nova concepção de solidariedade314. O movimento da Ecologia Profunda foi bem recebido e ganhou considerável adesão no meio acadêmico estadunidense, que se destacou com nomes como Bill Devall, Alan Drengson, George Sessions, Michael Zimmerman e Fritjof Capra. Para Naess, a Deep Ecology consiste em formular questões mais profundas, num despertar de uma consciência ecológica, interrogando: Porque julgamos tão importantes o crescimento económico e níveis elevados de consumo? A resposta convencional seria apontar para as consequências económicas da ausência de crescimento. Mas [na Deep Ecology] perguntamos se a sociedade actual satisfaz necessidades humanas básicas como o amor e a segurança, e o acesso à Natureza e, ao fazê-lo, pomos em causa os pressupostos subjacentes à nossa sociedade. Perguntamos que sociedade, que educação, que forma de religião, são benéficas para toda a vida no planeta como um todo, e perguntamos mais ainda que precisamos nós de fazer de modo a efectuar as mudanças necessárias315. Portanto, para a deep ecology há soluções para a crise ambiental, mas estas exigem uma mudança radical das percepções, pensamento e valores sociais. O desafio lançado por esta nova perspectiva é o estabelecimento de um equilíbrio dinâmico entre a auto-afirmação e a integração. Ela propõe, então, uma expansão do “eu” até a identificação com a natureza, sob a alegação de que o cuidado fluirá naturalmente se o “eu” for ampliado e aprofundado de modo que a proteção na natureza seja sentida e concebida como proteção dos próprios seres humanos. Sobre este aspecto, Capra destaca que a implicação desta proposta é de que “o vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e o comportamento correspondente não é uma conexão lógica, mas psicológica”316. 314 CHALFUN, Mery. Paradigmas filosóficos-ambientais e o direito dos animais. Revista brasileira de direito animal, Salvador, v. 6, ano 5, jan./jun. 2010, p. 209-246. 315 Naess apud Devall, B. et Sessions, G. Ecologia Profunda – Dar Prioridade à Natureza na Nossa Vida. Águas Santas: Edições Sempre-em-pé, 2004, p. 95. 316 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 29. 102 Defende uma inversão completa de perspectiva, não é a terra que pertence ao homem, é o homem que pertence à terra, como acreditavam os antigos317. O homem deixa de ser a medida de todas as coisas, é descentrado e recolocado na linha de uma evolução, sem qualquer privilégios. Adota-se o ponto de vista da natureza, e se reconhece o direito subjetivo dos animais318. A ecologia profunda afirma que não se pode reduzir a crise ambiental exclusivamente a um conflito ético, pois ela requer uma mudança de paradigmas conceituais e na percepção da configuração do mundo. É preciso superar a concepção do ser humano como espécie dominante e separa do mundo319. Por mais que no discurso ambientalista – jurídico e não jurídico – seja sempre defendida com entusiasmo, segundo Sarlet e Fensterseifer “tal entendimento não reflete as construções jurídicas e respectivos mecanismos normativos dos quais dispomos hoje para promover a tutela e promoção do meio ambiente”320. Os autores buscam uma “abordagem conciliatória e integradora dos valores humanos e ecológicos, como duas facetas de uma mesma identidade jurídico-constitucional”321. A principal crítica à ecologia radical diz respeito a sua operacionalização, uma vez que, é incontroverso o fato de que o Direito foi feito pelo e para o homem, dessa forma, tendose a natureza como sujeito de direito, isto é, a “natureza sujeito”, toda e qualquer forma de reivindicação de direitos para a natureza será feita com a intervenção humana, o que por si só descaracteriza o naturalismo defendido pela perspectiva ecocentrista.322 Ademais, há quem defenda que o “abuso” da referência aos direitos fundamentais e a proliferação de sujeitos de direito realizadas pela deep ecology poderão implicar numa perda 317 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 13. 318 OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 14. 319 JUNGUES, José Roque. (Bio)Ética ambiental, p. 33. 320 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 42. 321 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 43. 322 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos, p. 29. 103 de crédito de ambos, como numa inflação monetária, onde a abundância de um signo implica, inevitavelmente, a sua desvalorização323. Por fim, Ost destaca que se no antropocentrismo clássico tínhamos a dualidade sem qualquer ideia das relações e das identidades, com a hierarquia e exploração em primazia, na deep ecology nós herdamos a unidade sem qualquer ideia das diferenças, com o confusionismo e o reducionismo em primazia324, o que significa dizer que, para o autor, ambas as correntes perdem-se no erro do radicalismo. 2.3. ESTADO CONSTITUCIONAL ECOLÓGICO Canotilho se baseou na obra de Steinberg para desenvolver a ideia de um Estado Constitucional Ecológico, segundo o qual o Estado constitucional além de ser um Estado de Direito democrático e social, deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos, o qual se apoia em novas formas de participação política, condensadas na ideia de democracia sustentada325. Para o autor, um Estado Constitucional ecológico aponta para a necessidade de uma proteção global e sistemática que não se reduza à defesa isolada dos componentes ambientais naturais (ar, água, flora, fauna), assim busca uma avaliação integrada de impacto ambiental. O Estado constitucional ecológico não pode prescindir de um sistema de responsabilidade por danos ao ambiente que seja efetivo. Não é este o lugar para desenvolver o tema de responsabilidade por danos ambientais. Limitar-nos-emos a relevar dois pontos que consideramos essenciais à efetivação do Estado Constitucional Ecológico. Um deles, é o da indispensabilidade de uma responsabilidade objetiva pelos danos causados ao ambiente por atividades intrinsecamente perigosas. O segundo é o da necessidade de definir como sujeitos 323 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 217. 324 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 180. 325 CANOTILHO, José Gomes. Estado Constitucional Ecológico e democracia sustentada. In: Heline Sivini Ferreira; José Rubens Morato Leite; Larissr Verri Boratti (orgs.). Estudos de direito ambiental: tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010, p. 31-44. 104 responsáveis os operadores que exercitam um controle efetivo sobre uma atividade reentrante no regime de responsabilidade por danos ambientais326. Ao se observar os novos valores impulsionados pelas relações sociais contemporâneas, ficou notória a presença marcante da defesa ecológica. Hoje a proteção e promoção do ambiente despontam como novo valor constitucional, de tal sorte que se pode falar em um esverdear da Teoria Constitucional, bem como da ordem jurídica como um todo, o que torna possível a defesa de um Direito Constitucional Ambiental327. Em julgado do Tribunal Regional da 4ª Região, o Desembargador Federal Lugon assume o papel fundamental do meio ambiente e esclarece que hoje vivemos em um Estado Constitucional Ecológico: No Estado constitucional ecológico a qualidade da vida humana é o principal objetivo a ser atingido. Esse desiderato é buscado a partir dos princípios fundamentais estabelecidos no artigo 3º da CRFB/88, cuja pauta axiológica central tem como base a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O conceito de meio ambiente tutelado pelo Estado constitucional ecológico não é um conceito apenas naturalista, envolve o ambiente em sentido amplo como todas as circunstâncias exteriores (econômicas, sociais e culturais) que influenciam direta ou indiretamente na qualidade da vida humana. O meio ambiente é um dos bens jurídicos mais caros e preciosos para o ser humano, especialmente nos tempos em que vivemos, tendo em vista que a vida nunca esteve tão ameaçada (inundações, extinção da camada de ozônio, falta de água potável e energia, chuva ácida) pelo risco da falta de bens indispensáveis. Trata-se de um dos direitos humanos mais relevantes e merece proteção em escala mundial. Possui, também, status de direito fundamental à medida que constitui a principal forma de concretização da dignidade da pessoa humana, sua existência e qualidade de vida. O Estado constitucional ecológico impõe uma redefinição do conteúdo dos direitos de feição individualista, os quais devem estar também a serviço de toda a coletividade. O direito de propriedade, por exemplo, deve ser exercido em consonância com suas finalidades socioambientais, sob pena de não estar legitimado e protegido constitucionalmente. A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 impõe ao Estado e à sociedade o dever de preservar e proteger o meio ambiente em todos os lugares e tempos para todas as gerações vindouras 326 CANOTILHO, José Gomes. Estado Constitucional Ecológico e democracia sustentada. In: Heline Sivini Ferreira; José Rubens Morato Leite; Larissr Verri Boratti (orgs.). Estudos de direito ambiental: tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010, p. 31-44. 327 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 29. 105 (CRFB/88 Art. 225). O Poder Judiciário, como um dos Poderes do Estado, tem a função proeminente de fazer valer esse comando constitucional e também de tutelar o meio ambiente com a utilização da função promocional do direito328. No capítulo seguinte ao se analisar a Constituição brasileira e as leis infraconstitucionais que protegem os animais no decorrer da histórica, verificou-se que a concepção antropocêntrica sempre se mostrou preponderante. No entanto, o antropocentrismo clássico, que tem a Natureza como um mero instrumento em favor do desenvolvimento humano já está ultrapassado. Hoje se encontra dominante o antropocentrismo alargado ou mitigado, o qual buscou reconhecer o valor inerente existente não apenas ao ser humano, como também a outras formas de vida. A criminalização de condutas lesivas ao meio ambiente não foi suficiente para romper com a concepção antropocêntrica do Direito em prol de uma visão biocêntrica, como ditada por exemplo, na Ecologia Profunda de Arne Naess329. Dessa forma, o desafio da humanidade, neste século, é conciliar o desenvolvimento econômico e social com a proteção e preservação ambiental. Na busca desse novo enfoque, o meio ambiente passou a ter elevada importância nas constituições recentes. José Afonso da Silva330 afirma que o ambientalismo constitucional atingiu o status de direito fundamental da pessoa humana. 328 Agravo de instrumento AG/SC nº 2008.04.00.034672-9, julgado em 16/03/2009, pela terceira turma do TRF4. 329 SARLET; FENTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 41. 330 SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 9. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 45. 106 Outros autores como Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros331, Andress Joachim Krell332, Ingo Wolfgang Sarle333, Tiago Fenterseifer e José Joaquim Gomes Canotilho334 também declaram que o artigo 225 da Constituição Federal estabelece um autêntico direito fundamental. Com a afirmação presente na Constituição sobre a preocupação com o meio ambiente e sua essencialidade, muitos doutrinadores visualizam um esverdear do direito constitucional. Medeiros335 entende que estamos diante de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito, pois é um Estado Ambiental, calcado em princípios ambientais. Ingo Sarlet336 afirma que a Constituição trouxe um Estado Socioambiental de Direito, não um Estado Mínimo, mas um Estado regulador da atividade econômica, capaz de ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, de forma ambientalmente sustentável. Para Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer o Estado Socioambietal de direito cumpre o seu papel ao promover os direito fundamentais e a tutela do meio ambiente, de modo a compatibilizar o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável. Os autores acreditam que o princípio do Estado Socioambiental assume a condição de princípio constitucional que busca a proteção e promoção do ambiente como tarefa essencial do Estado337. Canotilho338 menciona a ecologização da ordem jurídica portuguesa, pois o direito ao ambiente, além de ser um direito fundamental é um bem constitucional, o que torna necessário levar em conta essa reserva constitucional na solução dos conflitos. O autor afirma 331 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27. 332 KRELL, Andress Joachim. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. (Coord.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2078. 333 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 31. 334 CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, J. Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 27. 335 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais, p. 27. 336 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 342. 337 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34. 338 CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, J. Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, p. 27. 107 que a força normativa da Constituição ambiental só se concretizará se os agentes públicos e privados colocarem o meio ambiente como fim e medida de suas decisões, pois o Estado de direito, hoje, só é Estado de direito de for um Estado protetor e garantidor do meio ambiente. Como explica o Ministro Herman Benjamin339, no Resp 302906, do STJ, os juízes podem e devem garantir e estimular um futuro sustentável, de forma a evitar os erros cometidos no passado: O judiciário não desenha, constrói ou administra cidades, o que não quer dizer que nada possa fazer em seu favor. Nenhum juiz, por maior que seja seu interesse, conhecimento ou habilidade nas artes do planejamento urbano, da arquitetura e do paisagismo, reservará para si algo além do que o simples papel de engenheiro do discurso jurídico. E, sabemos, cidades não se erguem, nem evoluem, à custa de palavras. Mas palavras ditas por juízes podem, sim, estimular a destruição ou legitimar a conservação, referendar a especulação ou garantir a qualidade urbanístico-ambiental, consolidar erros do passado, repeti-los no presente, ou viabilizar um futuro sustentável. Assim, o direito ambiental hoje é uma matéria transdisciplinar, na medida em que o intérprete constitucional precisa ter além uma visão holística do direito, um conhecimento ético ambiental. Como ensina o professor Luís Paulo Sirvinskas340, muitas pessoas possuem nível superior, até doutorado, mas não tem a mínima noção do que se passa a sua volta, é o que chama de analfabetismo ambiental, quando o cidadão não conhece o ciclo da vida e a importância dos recursos ambientais e suas conexões com os seres humanos. 339 340 p. 7. São Paulo. STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 302.906. Ação civil pública, 2010. SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 7 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, 108 CAPÍTULO 3: A PROTEÇÃO DA FAUNA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Nas festas das cortes europeias, na era das grandes navegações, o que causava boa impressão não era portar joias de muitos quilates, mas sim ostentar aves coloridas que, para surpresa de todos, ainda tinham o dom de falar. Nossos papagaios eram admirados, o que aumentava a sua procura. O preço era elevado, visto que se naquela época era difícil atravessar os oceanos até para os homens, que dirá para os animais. Dos milhões embarcados, poucos resistiam à viagem, e assim, mais cobiçados se tornavam341. 3.1. A INOVAÇÃO TRAZIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Ao analisar a legislação ambiental brasileira de 1934 a 1988, Drummond avalia que a maior parte desse período nada teve de ambientalista, mas, ao contrário, foi desenvolvimentista, no sentido de buscar o crescimento econômico a qualquer custo. Para o autor, a maior parte dos regulamentos de caráter ambiental daquele período refletia a “capacidade do Estado brasileiro de se antecipar às demandas sociais, pois o movimento ambientalista só nasceria em meados da década de 1970 e só alcançaria alguma influência em fins da década de 1980”342. Muitas leis ambientais se proliferaram na década de 70, pois visavam conciliar o progresso econômico e industrial com a necessidade de desenvolvimento sustentável. E pela primeira vez a expressão “meio ambiente” aparece em uma Constituição brasileira, sendo que a Constituição de 1988 foi a primeira carta brasileira a tratar sobre o meio ambiente. Em capítulo 341 GIOVANINI, Dener (Org.). Animais selvagens: vida a venda. Brasília: Dupligráfica, 2003, p. 3. 342 DRUMMOND, José Augusto Leitão. A legislação ambiental brasileira de 1934 a 1988: comentários de um cientista ambiental simpático ao conservacionismo. Ambiente & Sociedade, Campinas, SP, v.2, n.3-4, p.127-149, 1998, p. 129. 109 específico, o VI, diversos são os conceitos e princípios inovadores trazidos pela Carta Magna que norteiam o direito ambiental brasileiro. O texto constitucional inova também quando divide a responsabilidade pela defesa do meio ambiente entre o Poder Público e à coletividade, ampliando a importância da sociedade civil. As Constituições brasileiras anteriores a de 1988 não demonstraram uma clara preocupação com a tutela da fauna, reflexo disso é que essa expressão não apareceu nos textos constitucionais de 1824 e 1891. Nas Constituições seguintes, a matéria só é referia pra determinar a competência legislativa sobre as florestas, caça e pesca, que era privativa da União. Dessa forma, a proteção da fauna e da flora e a eliminação de práticas atentatórias a sua função ecológica ou que impliquem em crueldade contra animais só aparece, com valor jurídico de relevância constitucional, a partir da Carta magna de 1988343. Segundo Milaré “cabe à Constituição, como lei fundamental, traçar o conteúdo e os limites da ordem jurídica. É por isso que, direta ou indiretamente, vamos localizar na norma constitucional os fundamentos da proteção do meio ambiente”344. Dessa maneira, com a Constituição de 1988 o ambientalismo surgiu como direito fundamental da pessoa humana. Nessa nova perspectiva, o meio ambiente deixa de ser considerado um bem jurídico per accidens e é elevado à categoria de bem jurídico per se, isto é, com autonomia em relação a outros bens protegidos pela ordem jurídica, como é o caso da saúde humana345. 343 LEITE, José Rubens Morato.. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. (Coord.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2095. 344 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 180. 345 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, p. 180. 110 A Constituinte teve uma preocupação especial com a biodiversidade346 brasileira, e não era para menos, já que o Brasil abriga a maior biodiversidade347 do planeta348. Esta abundante variedade de vida, se traduz em mais de 20% do número total de espécies da Terra. Um exemplo da importância do Brasil na preservação ambiental é a existência da mais rica fauna de peixes de água doce do mundo. Muitas espécies já estão sob sérias ameaças, devido ao represamento, ao assoreamento, à poluição e à destruição dos ambientes ripários. Estudo recente identifica 819 espécies com área de ocorrência restrita a 540 pequenas bacias hidrográficas, das quais 27% já perderam mais de 70% da cobertura vegetal. Além disso, 220 dessas pequenas bacias abrigam 344 espécies de peixes que sofrem o risco de extinguirem devido à sobreposição de usinas hidroelétricas ou ampla perda de hábitat349. Se nenhuma ação de conservação for implantada perderemos grande parte de nossa fauna aquática, se o homem sofre com a crise hídrica, imagine os animais que nem se quer tem a possibilidade de lutar para mudar o seu destino. Segundo Targore Trajano350 o caminhar em busca da inclusão da proteção da fauna na Constituição “foi fruto, ao mesmo tempo, de questões que estavam relacionadas aos interesses sociais e econômicos do homem”, como por exemplo: a pesquisa e a experimentação, a agricultura e a alimentação; e também, do resultado de um dever indireto relacionado à proteção dos animais351. 346 Biodiversidade ou diversidade biológica (grego bios, vida) é a diversidade da natureza viva. Refere-se à variedade de vida no planeta Terra, incluindo a variedade genética, a variedade de espécies da flora, da fauna, de fungos macroscópicos e de microrganismos, a variedade de funções ecológicas desempenhadas pelos organismos nos ecossistemas; e a variedade de comunidades, habitats e ecossistemas formados pelos organismos. 347 O Brasil é responsável pela gestão do maior patrimônio de biodiversidade do mundo: são mais de 100 mil espécies de invertebrados e aproximadamente 8200 espécies vertebrados (713 mamíferos, 1826 aves, 721 répteis, 875 anfíbios, 2800 peixes continentais e 1300 peixes marinhos), das quais 627 estão listadas como ameaçadas de extinção, sendo uma obrigação do poder público e da sociedade protegê-las. 348 Para mais informações acessar o site do Ministério do Meio Ambiente. Disponível em< http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-brasileira>. 349 SCARIOT, Aldicir. Panorama da biodiversidade brasileira. In: GANEM, Roseli Senna (Org.). Conservação da biodiversidade: legislação e políticas públicas. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010, p. 119. 350 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista. 191 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013, p. 48. 351 Em seu discurso, a Dr.ª Fernanda Colagrossi, representante da Câmara Técnica de acompanhamento da Constituinte do Conselho Nacional do Meio Ambiente de 1988, sintetizou os principais temas da época referentes à temática dos não - humanos, relatando questões referentes ao abate de animais, vivissecção e a farra do boi: “No abate dos equídeos, por exemplo – e eu trouxe aqui uma carta de que existem três abatedouros: um em Minas Gerais, outro no Rio de Janeiro e um outro na Bahia – eles estão usando o seguinte método: eles colocam o cavalo 111 A Assembleia Nacional Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987, iniciou a construção de uma Carta Política pluralista, o que possibilitou englobar a temática da proteção da fauna. O movimento de proteção animal se mobilizou em torno da inclusão da proteção animal na Constituição Federal de 1988, e coube à Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal, representada por sua presidente Edna Cardozo Dias, a defesa do artigo 225, §1º, inciso VII da Constituição Federal, junto ao seu relator, Bernardo Cabral, em cerimônia realizada no auditório Nereu Ramos, em Brasília, no dia 5 de junho de 1987 352. Também foi designado um ecologista de cada região do país para defender os diversos parágrafos e incisos do capítulo sobre meio ambiente perante a assembleia constituinte353. O Capítulo VI, da Constituição Federal de 1988, que trata sobre o meio ambiente, foi aprovado por unanimidade com a seguinte redação: Capítulo VI DO MEIO AMBIENTE num boxe, num pequeno compartimento. O cavalo não pode se deitar, não pode se sentar, e uma serra circular, a trinta centímetros do chão, é utilizada para cortar as quatro patas do cavalo. O cavalo, sentindo uma dor incrível, não pode se deitar e cai em cima dos cotos, em cima do corte, e começa a tremer e a suar enormemente, e isto faz com que o seu couro possa ser utilizado, depois, para sapatos e bolsas, para utensílios finos. [...] Estou citando apenas alguns fatos para mostrar aos senhores a importância de regulamentar, através da Constituição, o uso em relação aos animais não apenas da nossa fauna, mas em relação aos animais que nós usamos. [...] Quanto à vivissecção, a situação é a seguinte: existe uma lei, Lei nº 6.638, de 8 de maio de 1979, publicada já no Diário Oficial, que proíbe as experiências de vivissecção nas escolas de 1º e 2º graus e locais frequentados por menores. Essa lei dava ao Poder Executivo o prazo de 90 dias para regulamentação. Justamente nos biotérios, que são os lugares que podem ser feitas essas experiências, que tivessem um médico veterinário, assistência e fiscalização. Queria dizer aos senhores que no litoral de Santa Catarina existe uma cultura, de origem açoreana, que se chama farra do boi – os senhores devem ter lido nos jornais – que é feita na Semana Santa. [...] Esse boi é dado à população pelos políticos locais, normalmente, sobretudo em época de eleições, e esse boi tem os olhos furados, tocam fogo no rabo, enfiam ferro nas suas cavidades, são cortados lentamente, e quando eles morrem antes do tempo, porque eles devem morrer apenas no Sábado de Aleluia, outros bois são trazidos. [...] Eu só queria pedir, aqui nesta sala, de tanta importância para a Constituição, de tanta importância para as leis que vão nos reger: piedade! Não só aos animais, como também à nossa alimentação. E que seja feita na Constituição alguma coisa muito firme e muito séria em relação à morte dos animais que nos alimentam, dos animais que nos servem e que nós utilizamos. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/7b%20%20SUBCOMISS%C3%83O%20DE%20SA%C3%9ADE,%20SEGURIDADE%20E%20MEIO%20AMBIEN TE.pdf. Acesso em: 12 de janeiro de 2015. 352 DIAS, Edna Cardozo. A Defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no Brasil. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, ano 2, n. 2, p. 149-168, jan/jun 2007, p. 160. 353 DIAS, Edna Cardozo. A Defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no Brasil, p. 161. 112 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º: Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Nota-se que a Constituição sofreu influência tanto da Conferência de Estocolmo de 1972 quanto das Constituições de Portugal, Espanha e Grécia354, como se pode observar diante 354 MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito Ambiental Brasileiro. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 115. 113 da semelhança existente entre suas redações. A Constituição portuguesa de 1976, no artigo 66, estabelece: “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de defende-lo.”; já Constituição espanhola de 1978, institui no artigo 45: “todos têm o direito de desfrutar de um meio ambiente adequado para o desenvolvimento da pessoa, assim como o dever de preservá-lo”355. A Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano apresenta-se como um marco histórico-normativo inicial da proteção ambiental, projetando pela primeira vez no horizonte jurídico, especialmente no âmbito internacional, que buscava viver em um ambiente equilibrado e saudável, tornando a qualidade do ambiente como elemento essencial para uma vida humana digna começa a se difundir a partir desse momento356. Geisa de Assis Rodrigues esclarece que apesar da influência das Constituições europeias no direito brasileiro, o fator preponderante foi sem dúvidas o direito internacional: Não foi a Constituição dos Estados que liderou o processo de tomada de consciência jurídica da existência de um direito humano ao meio ambiente, bem como a necessidade da proteção autônoma dos diversos ecossistemas e dos elementos biológicos, físicos e químicos que os integram. Foi o direito internacional, através de documentos jurídicos como a Declaração de Estocolmo de 1972 e o Informe de Brundtland de 1982, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, que afirmou de forma irrefutável e pioneira a proteção do meio ambiente e a necessidade de que o desenvolvimento humano passasse a ser sustentável.357 Observa-se, então, que a Assembleia Constituinte brasileira se inspirou em várias fontes ao tratar, de forma pioneira no Brasil, da proteção dos animais, e ao afirmar categoricamente pela primeira vez em uma Constituição brasileira que estão proibidas todas as práticas atentatórias a função ecológica da fauna, ou que levem a extinção das espécies e a crueldade contra os animais. 355 KRELL, Andress Joachim. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. (Coord.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2079. 356 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 47. 357 RODRIGUES, Geisa de Assis. In: Bonavides, Paulo Coordenador. Comentários a Constituição Federal do Brasil de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 2345. 114 Assim, fica nítido que cabe ao Poder Público a obrigação de assegurar efetividade ao direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, o qual tem como dever constitucional: preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e proteger a flora e a fauna, vedadas práticas que provoquem extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade358. Devido à preocupação constitucional com o meio ambiente, muitos doutrinadores visualizam um esverdear do direito constitucional. Medeiros359 entende que estamos diante de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito, pois é um Estado Ambiental, calcado em princípios ambientais. Ingo Sarlet360 afirma que a Constituição trouxe um Estado Socioambiental de Direito, não um Estado Mínimo, mas um Estado regulador da atividade econômica, capaz de ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, de forma ambientalmente sustentável. Para Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer o Estado Socioambietal de direito cumpre o seu papel ao promover os direito fundamentais e a tutela do meio ambiente, de modo a compatibilizar o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável. Os autores acreditam que o princípio do Estado Socioambiental assume a condição de princípio constitucional que busca a proteção e promoção do ambiente como tarefa essencial do Estado361. Dito isso, quis se demonstrar que o Estado se coloca como guardião da Natureza, estando todos os poderes estatais vinculados à concretização do direito fundamental a um meio ambiente equilibrado, logo, com a proteção e promoção da fauna, conforme estabelece o artigo 225 da Constituição Federal. A Corte Suprema já firmou a orientação de que é dever do Poder Público e da sociedade a defesa de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as 358 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, pág. 849- 850. 359 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27. 360 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 342. 361 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 34. 115 presentes e futuras gerações. 2. Assim, pode o Poder Judiciário, em situações excepcionais, determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias desse direito, reputado essencial pela Constituição Federal, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 3. A Administração não pode justificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República sob o fundamento da insuficiência orçamentária362. Segundo Ingo Sarlet363, as normas constitucionais em matéria ambiental possuem eficácia plena, não podendo ter sua aplicação condicionada à prévia regulamentação legal. De forma que o judiciário está apto a concretizar os direitos dos animais previstos na Constituição, mesmo que não haja uma lei específica tratando sobre o assunto. Neste contexto ambiental, a Constituição é vista como uma verdadeira normamatriz referente ao meio ambiente, pois estabelece: 1) um direito constitucional fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2) um dever constitucional, geral e positivo, representado por verdadeiras obrigações de fazer, para o Poder Público.364 Em resumo, o artigo 225 da Constituição, além de inovar ao tratar da proteção da fauna também o fez de maneira ampla, ao abranger três vertentes de proteção: a) proibição de práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna; b) proibição de práticas que provoquem a extinção de espécies e c) proibição de toda forma de prática que submeta os animais à crueldade. Frise-se, a proteção constitucional dada à fauna deve ser efetivada de forma imediata, não necessitando de nenhuma lei infraconstitucional para ser aplicada. 362 STF. RE 658171 AgR/ DF. AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 01/04/2014 Órgão Julgador: Primeira Turma 363 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 326. 364 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 189. 116 3.2. A SUPERAÇÃO DO PARADIGMA ANTROPOCÊNTRICO DO DIREITO CONSTITUCIONAL ECOLÓGICO E O PRINCÍPO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS O texto constitucional ampliou seu aspecto de proteção para alcançar também a função ecológica as espécies e ecossistemas. Assim, para Morato Leite, a Constituição afastouse da visão antropocêntrica tradicional e acolheu a visão antropocêntrica alargada, pois além de resguardar a dignidade da pessoa humana, assegura a integridade dos processos ecológicos. Para o autor, o constituinte percebe a interdependência entre o homem e a natureza e o importante papel desempenhado por cada espécie e cada ecossistema na manutenção do equilíbrio ambiental365. Ingo Sarlet também acredita que a Constituição se afastou do antropocentrismo clássico, ao proporcionar uma tutela jurídica autônoma dos bens jurídicos ambientais como os processos ecológicos essências, a fauna e a flora, além de proibir as práticas atentatórias a função ecológica e extinção das espécies. Para ele, a abordagem jurídica antropocêntrica ecológica amplia o quadro de bem estar humano inserindo a variável ecológica, somado à atribuição de valor intrínseco à Natureza366. Fugindo do modelo de suas antecessoras, a Constituição de 1988 inovou e se transformou, não se restringido, é óbvio, a aspectos puramente jurídicos, pois esses se entrelaçam com as dimensões ética e econômica. Em uma época de superação de paradigmas, o constituinte incorporou um regime de direitos de filiação antropocêntrica mitigada, juntamente com conceitos biocêntricos, resultando no hibridismo constitucional que temos hoje. 365 LEITE, José Rubens Morato.. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. (Coord.). Comentários a Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2098. 366 SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, p. 43. 117 Equilibra-se, no artigo 225 da Constituição, o antropocentrismo e o biocentrismo, havendo a preocupação de harmonizar e integrar seres humanos e biota367. Observa-se que ainda não ocorreu uma evolução da constituição para uma visão ecocêntrica do Direito Ambiental, no entanto, alguns autores visualizam normas brasileiras de caráter biocoêntrico. As lições de Benjamim Herman caminham neste sentido: Na perspectiva ética, a norma constitucional, por refletir a marca da transição e do compromisso, incorporou aspectos estritamente antropocêntricos (proteção em favor das ‘presentes e futuras gerações’, p. ex., mencionada no art. 225, caput) e outros com clara filiação biocêntrica (p. ex., a noção de preservação, no caput do art. 225). Esse caráter híbrido, em vez de prejudicar sua aplicação e efetividade, salpica de fertilidade e fascínio o labor exegético. (...) Em outras palavras o constituinte desenhou um regime de direitos de filiação antropocêntrica temporalmente mitigada (com titularidade conferida também às gerações futuras), atrelado, de modo surpreendente, a um feixe de obrigações com beneficiários que vão além, muito além, da reduzida esfera daquilo que se chama de humanidade. Se é certo que não se chega, pela via direta, a atribuir direitos à natureza, o legislador constitucional não hesitou em nela reconhecer valor intrínseco, estatuindo deveres a serem cobrados dos sujeitos-humanos em favor dos elementos bióticos e abióticos que compõem as bases da vida.368. Dito isso, nota-se que já não é mais possível considerar a proteção da natureza como um objetivo decretado pelo homem em benefício do próprio homem. A natureza tem que ser protegida também em função dela mesma, como valor em si, e não apenas como um objeto útil ao homem. É o que se depreende da Constituição brasileira, artigo 225, caput: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo- 367 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 150. 368 BENJAMIM, Antonio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira (art.). In CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p.110. 118 se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. De que “todos” estaria falando a Constituição? O constitucionalismo brasileiro apresenta um novo caminho, ao entender que todos, entendido como todos os seres vivos da Terra, têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (presentes e futuras gerações de vida na Terra), fazendo com que os seus intérpretes apreendam valores éticos até então esquecidos369. Logo, o uso do pronome indefinido todos, aumenta a abrangência da norma jurídica, evitando-se que se excluam os animais não-humanos, embora tal interpretação não seja unânime. Lembrando que o meio ambiente é um bem difuso: É um bem coletivo de desfrute individual e geral ao mesmo tempo. O direito ao meio ambiente é de cada pessoa, mas não só dela, sendo ao mesmo tempo transindividual. Por isso, o direito ao meio ambiente entra na categoria de interesse difuso, não se esgotando numa só pessoa, mas se espraiando para uma coletividade indeterminada.370 Muitas vezes, a condição humana leva à imposição de responsabilidades inclusive em favor da Natureza. Mesmo que antigamente a Natureza não fosse objeto da responsabilidade humana – ela cuidava de si mesma, e com persuasão e insistência necessária, também tomava conta do homem: diante dela eram úteis a inteligência e a inventividade, não a ética. Assim, “a significação ética dizia respeito ao relacionamento de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo, toda ética tradicional é antropocêntrica371”. 369 SILVA, Targore Trajano De Almeida. Teoria da Constituição: direito animal e pós-humanismo. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, Ano 2 (2013), n. 10, p. 11683-11731. 370 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 148. 371 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa e Luis Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006 , p. 33. 119 Tal paradigma ético se perpetuou pelo ordenamento jurídico, até que a Constituição de 1988 rompeu com os dogmas anteriores, representando o anseio social por uma nova ética, preocupada não apenas com o homem, mas também com seu entorno, com a Natureza. Assim, o filósofo alemão Hans Jonas colocou em dúvida a “civilização tecnológica”, com o seu princípio da responsabilidade, propondo uma abordagem ética da ciência, em vista principalmente dos riscos existenciais trazidos pelas novas tecnologias, que expressam o triunfo do homo faber sobre a Natureza e a vocação tecnológica da humanidade. A natureza como responsabilidade humana é uma novidade sobre a qual uma nova teoria ética deve ser pensada. No entanto, enquanto o destino do homem for dependente da situação da natureza, a principal razão para sua manutenção manterá uma orientação antropocêntrica372. Importa tomar consciência que não há mais uma separação entre o que é natural e o que é extranatural, há uma simbiose, uma imbricação tal que os seus fins e destinos estão entrelaçados visceralmente. A fronteira entre o que é fruto da natureza e o que é produto do homem diluiu-se sobremaneira e o artificial tomou conta da totalidade do real. Desse modo, a “transformação da essência do agir humano” é apontada por Jonas como uma alteração qualitativa que a tecnologia moderna operou sobre todas as formas de vida. Assim, a ação especificamente humana não se limita mais às relações interpessoais, nem tampouco se restringe ao aqui e agora, antes ao contrário, o agir humano ampliou sobremaneira o seu raio de influência; o seu poder de interferência transpõe o tempo e o espaço, decididamente estamos todos, a saber, a nossa geração e as gerações futuras sob as influências das decisões que hoje tomarmos e consequentemente sujeito aos efeitos dos acertos ou eventuais descalabros daí decorrentes373. Mas e se um novo agir humano significasse que se devesse levar em consideração mais que somente o interesse “do homem”? Assim, a teoria antropocêntrica antiga não seria mais válida e uma nova consciência ética tomaria o seu lugar, uma que reconhecesse o valor 372 40. 373 44. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. 120 em si da vida. Um imperativo adequado a esse novo tipo de agir humano deveria ser mais ou menos assim: Aja de modo que os efeitos da tua atuação não sejam destrutivo para as vidas futuras374. No tempo que ainda dispomos, as correções ficam cada vez mais difíceis, e a liberdade de realizá-las cada vez menor. Assim, se faz necessário uma consciência responsável do ser humano pela Natureza e pela continuidade da humanidade, pois não é porque nada é sancionado pela natureza, que tudo é permitido, na ilusão lúdica de que é suficiente dominar as regras do jogo, a competência técnica375. O pensamento ético de Jonas chama a atenção ao enfatizar que a responsabilidade ganha um status maior do que de uma simples virtude, ela se torna A virtude por excelência, ou seja, ela atinge o patamar de “sabedoria prática” e que pode ser traduzida por prudência, e que longe de estabelecer limites, a prudência se caracteriza pelo fato de ela se comportar como uma atitude antecipatória. A questão que surge é: podemos confiar o destino do Planeta Terra a declarada falta de reponsabilidade? Exatamente por estar preocupada com a vida na Terra a Constituição brasileira trouxe inúmeros deveres constitucionais de respeito ao meio ambiente, não só no artigo 225, mas também artigo 170, o qual trata da ordem econômica e estabelece que esta deve observar o princípio da defesa do meio ambiente, ou seja, o princípio contido no artigo 170 da carta magna, revela a necessidade de haver um desenvolvimento econômico compatível com o meio ambiente, mantendo-o ecologicamente equilibrado. 374 47. 375 79. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. 121 2.3. A FAUNA NA CONSTITUIÇÃO A fauna consiste no conjunto de animais que vivem em uma determinada região, aqui se incluem os animais domésticos ou não376, conforme o entendimento do STF377. A Constituição “abrigou sob o manto da lei todos os animais indistintamente, vez que todos os seres vivos têm valor, função e importância ecológica, seja como espécie, seja como indivíduo”378. Aceitar que a única fauna a ser tutelada é a silvestre é distanciar-se do comando constitucional, porque, se assim fosse, os animais domésticos não seriam objeto de tutela. Deve-se observar em relação a estes que, embora não possuam função ecológica e não corram risco de extinção (porquanto são domesticados), na condição de integrantes do coletivo fauna, devem ser protegidos contra práticas que lhes sejam cruéis, de acordo com o senso da coletividade.379 É bom lembrar que os animais podem ser classificados de diversas formas de acordo com alguns critérios adotados. Por exemplo, podem ser classificados segundo seu habitat (fauna terrestre, aquática, abissal entre outras) ou ainda segundo a localização geográfica (fauna mediterrânica, ártica, australiana, neotropical e outras). “Quando se fala na fauna, deve-se pensar em seu hábitat, que por sua vez, é o local onde vive o animal”380, por isso a fauna não deve ser analisada isoladamente, a fauna e a flora estão intimamente ligadas em uma relação mútua e continua. Uma não vive sem a outra, fazendo com que ssa interação mantenha a integridade das espécies animais e vegetais381. 376 “Assim, afasta-se desde já a ideia de que a fauna resume-se à silvestre, ou seja, os animais não domesticados, habitantes de áreas onde ocorram formações florestais isentas de interferência humana, sendo que cada qual ocupa seu nicho e desempenha papel fundamental para o equilíbrio das inter-relações naturais das espécies de determinado ecossistema”. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, p. 192. 377 “Ocorre que esta corte já proferiu entendimento no sentido de que a Constituição Federal prevê em seu art. 225, § 1º, inciso VII, a proteção jurídica do equilíbrio ambiental, envolvendo, nesse âmbito, a tutela da flora e da fauna, sendo esta, a de animais silvestres e domésticos”. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 771.944 (674). Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Julgamento: 24 de abril de 2014. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/69847862/stf-06-05-2014-pg-263>. 378 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, p. 192. 379 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 14 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 301. 380 SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 7 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 459. 381 SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental, p. 459. 122 A Constituição estabeleceu que a competência para legislar sobre a fauna, caça e pesca é concorrente da União, Estados e Distrito Federal (artigo 24, VI) e dos Municípios (artigo 30 I e II). A competência é comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger a fauna e a flora. 3.1 A FUNÇÃO ECOLÓGICA DA FAUNA A norma constitucional presente no inciso VII, do artigo 225 da Constituição veda as atividades que põem em risco a função ecológica da fauna, a qual pode ser compreendia como os processos existenciais que são inerentes aos animais dentro de seu habitat382, ou seja, cada pequeno animal tem sua função específica na Natureza e sua ausência acarreta prejuízos incalculáveis para o meio ambiente. Existe na natureza um conjunto de funções e atribuições que contribuem para manter o ambiente ecologicamente equilibrado. Interferir nesta dinâmica impede a manutenção do equilíbrio do ecossistema, o que afronta seriamente os preceitos constitucionais. Em condições naturais os ecossistemas se mantêm dinamicamente equilibrados. Esse equilíbrio é compreendido como um conjunto de interações que buscam o estado menos energético. Tal equilíbrio é dinâmico, compensando entradas e saídas de materiais e energia. Quando há qualquer interferência externa, aumenta-se a quantidade de matéria e energia nesse ecossistema, criando-se uma situação momentânea de desequilíbrio até que a matéria seja processada e a energia consumida383. 382 A Convenção sobre Diversidade Biológica, da qual o Brasil é signatário, define habitat, como sendo o “lugar ou tipo de local onde um organismo ou população ocorre naturalmente.”. Disponível em: <www.mma.gov.br/port/sbf/chm/doc/cdbport.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2015. 383 “Pode-se também diminuir a quantidade de matéria e energia, com uma queimada, por exemplo. Em ambos os casos, quando cessam as perturbações, a tendência é que se estabeleça uma nova condição de equilíbrio. Porém certas ações podem gerar níveis de equilíbrio, desfavoráveis ao nosso bem estar e até à nossa sobrevivência. Isso poderá acontecer, por exemplo, em uma catástrofe nuclear, em que o ambiente poderá encontrar uma condição de equilíbrio onde poderão ser excluídas muitas espécies, inclusive a nossa” Disponível em: <http://ww2.uniderp.br/mestradoMAB/arquivos/formulario/form030620090906094.pdf>. Data de acesso: 13 de janeiro de 2015. 123 É preciso considerar que não somos necessários para o equilíbrio ambiental e que ele ocorrerá independente de nossas ações, no entanto, nós somos a única espécie que pode alterar drasticamente as condições ambientais. Ao se almejar viver em harmonia com outras espécies nesse planeta, é necessário planejar as ações da sociedade384. Como cada espécie contribui de forma independente para preservar a Natureza, qualquer interferência na sua função ecológica tem reflexo em todo ecossistema. Érika Bechara, ressalta a importância do equilíbrio ambiental: Se a harmonia de um ecossistema repousa na interação de todas as espécies, cada qual cumprindo uma função ecológica própria, e se nenhuma espécie pode ser considerada inútil, é natural que a ausência de um elemento só que seja nesse ciclo natural deixará um vazio irreparável, pois dificilmente esse vácuo será preenchido pela espécie “vizinha”, por mais que semelhante385. A extinção de uma determinada espécie gera, na maioria das vezes, uma reação em cadeia. A extinção local de uma espécie-chave afeta o tamanho das populações de outras espécies, levando-as, também, à extinção. Esse efeito fica claro com a perda de um predador ou uma presa específica, o que ocasionará o fim daquela cadeia alimentar. São exemplos de práticas que põe em risco a função ecológica da fauna: a aplicação de pesticidas, o desmatamento, a destruição dos habitats, destruição da fonte de alimento, destruição dos recursos hídricos, desequilíbrio na cadeia alimentar e diminuição da biodiversidade. A perda da biodiversidade é irreversível, pois cada espécie é produto de uma história única. Mesmo que no decorrer de longo períodos de tempo os animais voltem a ter seus habitats restaurados, as espécies extintas jamais voltarão a existir, pois a cadeia evolutivo que 384 Disponível em: <http://ww2.uniderp.br/mestradoMAB/arquivos/formulario/form030620090906094.pdf>. Data de acesso: 13 de janeiro de 2015. 385 BECHARA, Érika. A Proteção da Fauna sob a Ótica Constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 54. 124 tornou possível a surgimento daquele animal não se repetirá. Logo, “é impossível qualquer reversão da situação, uma vez que grande parte da biodiversidade está perdida”.386 Com a pluralidade de fatores que ocasionam prejuízos a fauna surge à obrigação de controlar os riscos ambientais, que faz parte de um mandamento constitucional que impede que a ausência de informação técnica e científica seja utilizada como premissa para agir ou se omitir em face da existência de riscos potencialmente causadores de danos ao meio ambiente. É visível que a preservação da função ecológica da fauna guarda íntima vinculação com a questão da extinção das espécies, que passaremos a analisar. 3.2. A EXTINÇÃO DAS ESPÉCIES A fauna brasileira tem 1.173 espécies ameaçadas de extinção. Um estudo apresentado pelo Ministério do Meio Ambiente mostrou que o número total de espécies ameaçadas aumentou de 627, na lista anterior, de 2003, para 1.173 em 2014, um crescimento de 75%, em 11 anos. De acordo com o levantamento, produzido por 1 383 especialistas de mais de 200 instituições, entre 2010 e 2014. O grupo de espécies de animais que mais entram na lista foi o dos invertebrados terrestres (148), seguido pelas aves (100), répteis (62), mamíferos (55) e anfíbios (30). Com a atualização, as aves são os animais mais ameaçados, com 234 espécies na lista.387 Antunes analisa que a extinção das espécies ocorre há milênios: A percepção de que certos elementos do mundo natural estão desaparecendo em função da atividade humana é um fenômeno social muito antigo e que, praticamente, acompanha a vida do Ser Humano sobre o Planeta Terra. Para o pensamento ocidental, a primeira constatação de mudanças negativas no meio natural que cerca o Homem foi feita por Platão em seu célebre diálogo 386 LOREAU, Michel. Por que devemos nos preocupar com a biodiversidade? O encontro da ecologia com a ética. In: Fazendo as pazes com a Terra: qual o futuro da espécie humana e do Planeta? Editor Jerôme Bindé. Brasília: UNESCO Editora Paulus, 2010, p. 93. 387 VEJA. Fauna brasileira tem 1 173 espécies ameaçadas de extinção. 18/12/2014. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/fauna-brasileira-tem-1-173-especies-ameacadas-de-extincao>. Data de acesso: 27 jan. 2015. 125 Crito, no qual ele lamenta, acidamente, o estado de degradação ambiental do mundo que lhe era contemporâneo. Mesmo sociedades tidas como “primitivas” e paradisíacas foram responsáveis pela extinção de espécies. Paul R. Ehrlich demonstra que os Maori, em menos de 1.000 anos de presença na Nova Zelândia, promoveram a extinção de cerca de 13 espécies de Moa (pássaro sem asas), em função de caça intensiva e da destruição de vegetação. Há suspeitas de que a aparição do Homem no continente americano pode ter contribuído fortemente para a extinção de pelo menos duas espécies de mamíferos. Pesquisas arqueológicas demonstram que mesmo comunidades pré-históricas poderiam ter levado inúmeros animais à extinção. Não seria exagerado dizer que a convivência “natural” do Ser Humano com outros animais é, eminentemente, semelhante à luta pela sobrevivência e evolução natural que se verifica entre todas as espécies.388 A extinção de uma espécie, ou até mesmo a brusca redução de seu nível populacional, pode ser suficiente para causar desequilíbrio em todo um ecossistema. Segundo a WWF, a perda ou extinção de espécies varia entre mil e 10 mil vezes acima da taxa de extinção natural. As altas taxas de extinção provam que a natureza não suporta a pressão que a humanidade está a fazer sobre o ecossistema389. Muitas estimativas projetam resultados preocupantes, indicando que, se o ritmo de destruição dos ecossistemas florestais for mantido, nos próximos anos a taxa de extinção elevarse-á a um patamar de 1000 a 10.000 mil vezes mais do que as médias de extinções naturais esperadas. O que acarretará uma perda de 20 a 50% das espécies do planeta nos próximos anos. E mais, nos próximos 30 anos, um total de 7 milhões de espécies desaparecerão. Mesmo que todas as atividades que agridem o meio ambiente parassem imediatamente, o ciclo de extinção ainda perduraria por, no mínimo, 50 anos. Interromper a perda de diversidade é difícil, talvez seja necessária uma transformação quase religiosa390. As listas de espécies ameaçadas de extinção ou Listas Vermelhas tornaram-se mundialmente conhecidas através da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Inicialmente elaboradas para mamíferos e aves, essas listas foram criadas para chamar 388 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11 Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 325. 389 MILARÉ, Édis. A gestão ambiental em foco: Doutrina. Jurisprudência. Glossário, p. 304-305. 390 MACIEL, Bruno Amorim. Mosaicos de Unidades de Conservação: uma estratégia de conservação para a Mata Atlântica. 182 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) Universidade de Brasília, Brasília, 2007, p. 27. 126 a atenção para a necessidade de agir rápida e efetivamente em prol da conservação das espécies com maior risco de extinção em futuro próximo. Avaliar o estado de conservação nada mais é do que estimar a probabilidade ou risco relativo de extinção de uma espécie ou subespécie. O Instituto Chico Mendes é o responsável pela avaliação do estado de conservação das espécies da fauna brasileira. Este trabalho resulta em um diagnóstico do risco de extinção das espécies, utilizando três ferramentas integradas: 1. Avaliação do risco de extinção das espécies - que permite a atualização das Listas Nacionais Oficiais das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção; 2. Identificação de cenários de perda de biodiversidade - que permite identificar as áreas de maior vulnerabilidade para a perda de espécies ou suas populações; 3. Definição e implementação de Planos de Ação Nacionais - que permitem identificar as ações com mais importância para a conservação das espécies ameaçadas de extinção. Tal levantamento subsidia a revisão da Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção391. As Listas Nacionais de Espécies Ameaçadas de Extinção no Brasil, publicadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) são uma das ferramentas mais importante de conservação porque estabelecem proteção legal imediata para qualquer espécie listada, funcionando como marco legal guarda-chuva com diversas implicações para o país. Por isso, a definição das espécies que constam nas Listas Oficiais é uma decisão de governo que deve estar calçada em três aspectos fundamentais: os aspectos ecológicos, os sociais e os econômicos. [...] Diante de todas as informações disponibilizadas, cabe ao Ministro de Estado de Meio Ambiente publicar a Lista Nacional da Fauna Ameaça de Extinção392. 391 Para mais informações acessar: <http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/faunabrasileira/avaliacao-do-risco-de-extincao.html>. 392 PERES, Monica Brick. VERCILLO, Ugo Eichler. DIAS, Braulio Ferreira de Souza. Avaliação do Estado de Conservação da Fauna Brasileira e a Lista de Espécies Ameaçadas: o que significa, qual sua importância, como fazer? Disponível em: < http://www.icmbio.gov.br/revistaeletronica/index.php/BioBR/article/view/92>. Data de acesso: 13 de janeiro de 2015. 127 Como afirma o Ministério do Meio Ambiente393, o processo de extinção está relacionado ao desaparecimento de espécies ou grupos de espécies em um determinado ambiente ou ecossistema. Semelhante ao surgimento de novas espécies, a extinção é um evento natural: espécies surgem por meio de eventos de especiação (longo isolamento geográfico, seguido de diferenciação genética) e desaparecem devido a eventos de extinção (catástrofes naturais, surgimento de competidores mais eficientes). No entanto, a intensa atividade humana sobre a natureza alterou de forma drástica o cenário de extinção natural da fauna, o que torna o ser humano o principal agente causador da extinção das espécies: Normalmente, porém, o surgimento e a extinção de espécies são eventos extremamente lentos, demandando milhares ou mesmo milhões de anos para ocorrer. [...] Porém, o homem vem acelerando muito a taxa de extinção de espécies, a ponto de ter-se tornado, atualmente, o principal agente do processo de extinção. Em parte, essa situação deve-se ao mau uso dos recursos naturais, o que tem provocado um novo ciclo de extinção de espécies, agora sem precedentes na história geológica da terra394. Diante da crescente exploração predatória da biodiversidade, surgiu a necessidade de um regime jurídico específico que pudesse orientar e incentivar ações domésticas visando à tutela da diversidade biológica do planeta. Foi quando, em 1992 diversos países assinaram a Convenção sobre Diversidade Biológica que, junto com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática e Convenção sobre o Combate a Desertificação, compôs o grupo das chamadas Convenções do Rio395. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) é um tratado da Organização das Nações Unidas e um dos mais importantes instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente. A Convenção está estruturada sobre três bases principais – a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos genéticos – e se refere à biodiversidade em 393 Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/esp%C3%A9cies-amea%C3%A7adas-deextin%C3%A7%C3%A3o>. Data de acesso: 7 de Outubro de 2014. 394 Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/esp%C3%A9cies-amea%C3%A7adas-deextin%C3%A7%C3%A3o>. Data de acesso: 7 de Outubro de 2014. 395 SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Direito Ambiental. 2012. Disponível em: <http://academico.direitorio.fgv.br/ccmw/images/archive/0/00/20110223182402!Direito_Ambiental.pdf>. 128 três níveis: ecossistemas, espécies e recursos genéticos.396 O tratado esclarece já em seu preâmbulo sua preocupação com toda a forma de vida existente na Terra: Conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica e dos valores ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da diversidade biológica e de seus componentes; Conscientes, também, da importância da diversidade biológica para a evolução e para a manutenção dos sistemas necessários à vida da biosfera, Afirmando que a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum à humanidade, [...] Observando igualmente que a exigência fundamental para a conservação da diversidade biológica é a conservação in situ dos ecossistemas e dos hábitats naturais e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies no seu meio natural.397 Assim, o princípio do desenvolvimento sustentável, nascido da Conferência Mundial do Meio Ambiente, realizada em Estocolmo no ano de 1972 e repetido com maior ênfase na ECO-92, no Rio de Janeiro, se tornou primordial na busca a coexistência harmônica entre economia e meio ambiente, permitindo o desenvolvimento planejado de forma que os recursos não se esgotem ou se tornem inócuos. O Brasil adotou este princípio conciliando livre iniciativa, valorização do trabalho humano, justiça social e defesa do meio ambiente no inciso VI do art. 170 do Texto Constitucional: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. Outro ponto importante de destaque na Carta de 1988 é o fato de se considerar a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente como um dos requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural (art. 186). Ainda 396 Disponível em: < http://www.mma.gov.br/biodiversidade/convencao-da-diversidade-biologica>. Data de acesso: 14 jan 2015. 397 Disponível em: < http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_dpg/_arquivos/cdbport.pdf>. Data de acesso: 14 jan 2015. 129 que anteriormente houvesse indicação expressa no texto constitucional da função social da propriedade (1946, 1967 e 1969), não havia um foco na preservação ambiental. Outra convenção de grande relevo para a preservação das espécies ameaçadas de extinção ocorreu no ano de 1973, em Washington. A Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), aprovada pelo Brasil pelo DL nº 54 de 1975. Tal convenção buscou regulamentar o comércio internacional de espécies em extinção, pois o tráfico internacional de animais silvestres perde em faturamento apenas para o comércio de drogas e de armas398. Acredita-se que, anualmente, esta atividade movimenta entre 10 a 20 bilhões de dólares no mundo e o Brasil participa com cerca de 10%. Informações recentes apontam que 38 milhões de animais brasileiros são retirados de seus habitats para abastecer este mercado ilegal399. Apesar desses números não serem exatos, já que o tráfico de animais silvestres é uma atividade ilegal, o que se quer demonstrar é que o Brasil sofre grandes perdas com tais atos criminosos. O autor do tráfico de animais visa unicamente o lucro com seu comércio ilegal, ainda que isso danifique sobremaneira o ecossistema. Assim, se este traficante enviar 1.000 pássaros silvestres escondidos em um caminhão da Bahia para São Paulo e 950 morrerem durante o transporte, os 50 animais restantes já lhe garantirão o seu lucro400. Os colecionadores particulares e zoológicos ilegais são os que mais movimentam recursos e, seguramente, é o mais cruel dos tipos de tráfico da vida selvagem, pois prioriza as espécies mais ameaçadas. Entre elas, estão o mico–leão-dourado (Leontopithecus rosalia) e o papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), que alcançam altos valores no mercado internacional. [...] A indústria química e farmacêutica utiliza a nossa fauna na pesquisa científica e para a produção de medicamentos. É uma modalidade que vem aumentando, 398 GRAZIWRA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 3 ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2014, p. 205. 399 Renctas – Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestre. Vida Silvestre: o estreito limiar entre preservação e destruição Diagnóstico do Tráfico de Animais Silvestres na Mata Atlântica – Corredores Central e Serra do Mar. Coordenação e organização: Angela Maria Branco, 1 ed. Brasília, 2007, p. 44. Disponível em: <http://www.renctas.org.br/wp-content/uploads/2014/10/livro-renctas-final.pdf>. 400 CALHAU, Lélio Braga. Da necessidade de um tipo penal específico para o tráfico de animais: responsabilidade da Política Criminal em defesa da fauna. Revista Juristas. no. 92. João Pessoa, 2006, pág. 58. 130 devido à intensa incursão de pesquisadores ilegais no território brasileiro, em busca de novas substâncias. Só o mercado mundial de hipertensivos movimenta cerca de US$ 500 milhões por ano: um dos princípios ativos é extraído do veneno da jararaca (Bothrops jararaca) e comercializado a US$ 433 o grama. Outras espécies da Mata Atlântica, como besouros, sapos e aranhas, também são alvos deste tráfico que abastece o mercado científico internacional401. Ao levar à morte a vasta vida existente na Terra, a humanidade está aniquilando o inestimável patrimônio que herdou. E aqui não encorajamos uma visão antropocêntrica, voltada exclusivamente para a perda em potencial que o uso dessas espécies poderiam oferecer aos seres humanos, as quais não são poucas: a biodiversidade ocupa lugar importantíssimo na economia nacional: o setor de agroindústria, sozinho, responde por cerca de 40% do PIB brasileiro. Produtos da biodiversidade respondem por 31% das exportações brasileiras402. Quero defender aqui uma visão biocêntica da natureza, baseada em uma ética da vida, em que todo ser vivo, animado ou inanimado, tem valor moral em função das atividades biológicas normais à espécie a que pertence, (incluindo crescimento, sobrevivência e reprodução). Todo ser vivo persegue seu próprio bem conforme a sua própria natureza, o que torna antiético impedir o desenvolvimento de qualquer ser vivo. Plantas e animais merecem respeito moral e temos obrigações éticas para com eles403. Com base nessa filosofia, o homem deixa de ser o centro do Universo e se depara com limites na utilização dos outros seres vivos que compõem a vida terrestre. O respeito a outras formas de vida, passa a figurar como premissa básica na relação do homem com o seu entorno. 401 Renctas – Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestre. Vida Silvestre: o estreito limiar entre preservação e destruição Diagnóstico do Tráfico de Animais Silvestres na Mata Atlântica – Corredores Central e Serra do Mar. Coordenação e organização: Angela Maria Branco, 1 ed. Brasília, 2007, p. 46. 402 Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-brasileira>. Data de acesso: 27 jan 2015. 403 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 64. 131 3.6. A CRUELDADE CONTRA ANIMAIS Mas o que significa a crueldade? É bom lembrar que ao longo dos anos várias legislações tentaram definir ou proibir as práticas cruéis contra a fauna, antes que o tema ganhasse fundamentação constitucional, como será visto. No Brasil, a primeira tentativa legislativa para proteger os animais contra a crueldade e os maus-tratos, foram as Ordenações Manoelinas, em 1521, com a proibição da caça a perdizes, lebres e coelhos, com fios, redes ou quaisquer outros instrumentos que causassem sofrimento na morte dos animais404. Posteriormente ocorreu a promulgação do Decreto n° 14.529, de 9 de dezembro de 1920, que deu origem à primeira lei de âmbito nacional de proteção aos animais no Brasil. Nela, regulava-se o funcionamento das “casas de diversões públicas”. O texto dessa determinação seguia o modelo norte-americano do século anterior, proibindo os combates de animais como forma de divertimento, afirmando: “Art. 5° Não será concedida licença para corridas de touros, garraios [bezerros] e novilhos, nem briga de galos e canários ou quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimentos aos animais”. Em 10 de julho de 1934, deu-se um grande passo em defesa dos animais com o decreto-lei nº. 24.645, que estabeleceu medidas de proteção ao animais, impondo pena restritiva de liberdade a quem lhes impingisse maus-tratos. O artigo 3º, do referido decreto, trouxe um rol exemplificativo de condutas que eram consideradas causadoras de sofrimento aos animais: Art. 3º - Consideram-se maus tratos: I - praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; 404 NOGUEIRA, Alzira Papadimacopoulos. Direito ambiental, direito agrário e gestão ambiental. In: Caça, a celeuma brasileira. Salvador: Anual, 2006, p. 109. 132 III - obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou interesse da ciência; V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VI - não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação; VIII - atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com eqüinos, com muares ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho em conjunto a animais da mesma espécie; IX - atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com arreios incompletos, incômodos ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo; X - utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que este último caso somente se aplica a localidades com ruas calçadas; XI - açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma a um animal caído sob o veículo, ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantarse; XII - descer ladeiras com veículos de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório; XIII - deixar de revestir com o couro ou material com idêntica qualidade de proteção, as correntes atreladas aos animais de tiro; XIV - conduzir veículo de tração animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha boléia fixa e arreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca; XV - prender animais atrás dos veículos ou atados às caudas de outros; XVI - fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas contínuas sem lhe dar água e alimento; XVII - conservar animais embarcados por mais de 12 horas, sem água e alimento, devendo as empresas de transportes providenciar, sobre as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 meses a partir da publicação desta Lei; 133 XVIII - conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de qualquer modo que lhes produza sofrimento; XIX - transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e números de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por uma rede metálica ou idêntica, que impeça a saída de qualquer membro animal; XX - encerrar em curral ou outros lugares animais em número tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou deixá-los sem água e alimento por mais de 12 horas; XXI - deixar sem ordenhar as vacas por mais de 24 horas, quando utilizadas na exploração do leite; XXII - ter animais encerrados juntamente com outros que os aterrorizem ou molestem; XXIII - ter animais destinados à venda em locais que não reúnam as condições de higiene e comodidades relativas; XXIV - expor, nos mercados e outros locais de venda, por mais de 12 horas, aves em gaiolas, sem que se faça nestas a devida limpeza e renovação de água e alimento; XXV - engordar aves mecanicamente; XXVI - despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos a alimentação de outros; XXVII - ministrar ensino a animais com maus tratos físicos; XXVIII - exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem ou sobre pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço deCaça e Pesca; XXIX - realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécies ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado; XXX - arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculos e exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias; XXXI - transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores, e outras aves de pequeno porte, exceção feita das autorizações para fins científicos, consignadas em lei anterior. Posteriormente, em 1941, o Decreto Lei nº 3.688, Lei de Contravenções Penais, proibiu a crueldade contra animais: 134 Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena - prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis. § 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público. Em 1988, o Brasil se tornou um dos poucos países do mundo a vedar, na própria Constituição Federal, a prática de atividades que submetam os animais a crueldade. O artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição inspirou o legislador ambiental a criminalizar, no artigo 32, caput da lei nº 9.605/98 os atos cruéis contra os animais. Diante desta lei, e da Constituição, o repertório legislativo brasileiro é mais do que suficiente para, em tese, proteger os animais contra a crueldade. A Lei de Crimes Ambientais nº 9.605/98 tornou crime os atos que submetam os animais a maus-tratos, logo a crueldade deixou de ser uma mera contravenção penal. No entanto, a lei não trouxe um definição exata do que seria um ato cruel: Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. 135 Assim, independentemente da discussão a respeito da revogação ou não do Decreto nº. 24.645/34, nenhuma das legislações que trataram ou tratam deste tema trouxeram uma conceituação para crueldade, sendo este, portanto, um conceito aberto ou indeterminado405. Mas, o que é ser cruel com os animais? Para Buarque de Holanda cruel é aquele: “1. Que se compraz em fazer mal, em atormentar ou prejudicar; cruento [...]. 2. Duro, insensível, desumano, cruento [...]. 3. Severo, rigoroso, tirano [...]. 4. Que denota crueldade [...]. 5. Pungente, doloroso”406. Rorty considera a crueldade como a pior coisa que podemos praticar407, estabelece, assim, um critério com enorme espaço para a interpretação. Montaigne afirmou que entre os vícios, o que mais detestava era a crueldade408. Esclarece o filósofo que os sanguinários com os animais revelem uma natureza propensa à crueldade, “quando se acostumaram em Roma com os espetáculos de matanças de animais, passaram aos homens e aos gladiadores”409. Os conceitos acima servem de plano de fundo para a construção jurídica do termo crueldade. O aplicador do Direito deve se basear em vários aspectos para interpretar tal termo, sendo que não há uma doutrina preponderante. Fiorillo salienta “que crueldade é um termo jurídico indeterminado, reclamando do intérprete o preenchimento de seu conteúdo”410. Diante de tamanha amplitude, surge um leque de interpretações possíveis, mas aqui queremos ressaltar uma filosofia biocêntrica, mais aberta ao entendimento de respeito à vida em todas as suas formas, mesmo que não tenha plena aceitação por parte de alguns doutrinadores411. 405 BECHARA, Érika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 69. 406 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 155. 407 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Tradução Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Presença, 1994, p. 17. 408 MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 1 ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1972, p. 205. 409 MONTAIGNE, Michel. Ensaios, p. 207. 410 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 12. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 70. 411 Esse é o entendimento de Fiorillo: “a Constituição Federal busca proteger a pessoa humana e não o animal. Isso porque a saúde psíquica da pessoa humana não lhe permite ver, em decorrência de práticas cruéis, um animal sofrendo. Com isso, a tutela da crueldade contra animais fundamenta-se no sentimento humano, sendo esta- a pessoa humana- o sujeito de direitos. Para o autor, “ser cruel significa submeter o animal a um mal além do 136 Aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional, que veem o homem como único destinatário das normas legais, que acreditam ser a crueldade um termo jurídico indeterminado, que defendem a função recreativa da fauna e que põem o ser humano como usufrutuário da natureza, rendem assim uma infeliz homenagem à intolerância, ao egoísmo e à insensatez.412 Neste trabalho utilizaremos um conceito abrangente de crueldade, o qual abarca uma gama de ações que podem causar dor ou sofrimento aos animais, mesmo que psicológica, conforme o entendimento de Helita Barreira Custódio: Crueldade contra animais vivos é, em geral, toda ação ou omissão, dolosa ou culposa (ato ilícito), em locais públicos ou privados, mediante matança cruel pela caça abusiva ou turística), por desmatamentos ou incêndios criminosos, por poluição ambiental, mediante dolorosas experiências diversas (didáticas, científicas, laboratoriais, genéticas, mecânicas, tecnológicas, dentre outras), amargurentas práticas diversas (econômicas, sociais, populares, esportivas como o tiro ao vôo, tiro ao alvo, de trabalhos excessivos ou forçados além dos limites normais, [...] abates atrozes, castigos violentos e tiranos, adestramentos por meios e instrumentos torturantes para fins domésticos, agrícolas ou para exposição, ou quaisquer outras condutas impiedosas resultantes em maustratos contra animais vivos413. A questão mais tormentosa para os cientistas do Direito diz respeito ao discernimento entre atividades praticadas contra os animais considerados cruéis, dentro do conceito jurídico indeterminado de ‘crueldade’ utilizado pela Constituição, e as demais atividades praticadas contra a fauna, mas em nome da sadia qualidade de vida do homem, e que, justamente por isso, não são tomadas por cruéis no sentido que a Lei Maior empresta ao termo414. Dentro desta perspectiva, Bechara traz a seguinte definição: Crueldade, para a Constituição, não é qualquer ato atentatório da integridade físico-psíquica do animal, eis que atosatentatórios de sua integridade físicopsíquica haverão em perfeita consonância com a Lei Maior, quando e desde que eles se façam imprescindíveis para a obtenção e manutenção dos direitos absolutamente necessário”. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 14. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 309 – 313. 412 LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade consentida: crítica à razão antropocêntrica. Revista Brasileira De Direito Animal, Salvador, v. 1, ano 1, jan./dez. 2006, p. 171-190, p. 175. 413 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito Ambiental e Questões Jurídicas Relevantes. Campinas: Millennium editora, 2005, p. 580. 414 BECHARA, Erika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 70. 137 fundamentais da pessoa humana. Tendo em vista que o ato ‘materialmente’ cruel que se ponha (realmente) indispensável para a saúde, bem-estar, dignidade devida – só para citar alguns dos principais direitos humanos – será tolerado pelo ordenamento jurídico, podemos dizer que a “crueldade” a que se refere o art. 225, § 1º, inciso VII do Texto Maior há de ser entendida como a submissão do animal a um mal ALÉM DO ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO. Contrário sensu, submeter o animal a um mal nos estreitos limites do “necessário”, não implicará infração ao citado dispositivo constitucional. (grifo do original)415. Com isso, conclui-se que crueldades fáticas contra animais serão constitucionalmente permitidas quando absolutamente necessárias para a preservação da vida humana. Assim, tratar um animal não-humano de forma cruel quando não se tenha outra opção para salvaguardar a integridade de um homem, não seria uma prática inconstitucional. O problema maior é o abismo jurídico que separa a teoria da prática. Se determinadas condutas humanas não forem questionadas, alertadas, perante o poder Judiciário e a sociedade em geral, dificilmente o estado atual dos fatos será modificado. Nesse sentido, Levai416 defende que no Brasil, em diversos setores (agronegócio, científico e sanitário), a crueldade se torna consentida, ou seja, aceita pelo poder público como “mal necessário”. É penoso constatar que o uso econômico do animal e a chamada finalidade recreativa da fauna, como por exemplo, a pesca esportiva, conta com respaldos permissivos de comportamentos cruéis. Condicionar a crueldade à submissão dos animais ao sofrimento inútil ou desnecessário é, de certa forma, negar à natureza um valor em si, como se tudo o que existe no mundo gravitasse em função do interesse humano. Estar-se-ia, assim, separando o homem da natureza, para torná-lo espécie desfrutadora e consumidora do mundo natural. A noção de crueldade, nesse contexto, acaba se submetendo às regras do utilitarismo, de modo que a conduta cruenta somente se caracterizaria como tal se o homem assim o dispusesse417. 415 BECHARA, Érika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 82-83. 416 LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade consentida: crítica à razão antropocêntrica. Revista Brasileira De Direito Animal, p. 175. 417 LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade consentida: crítica à razão antropocêntrica. Revista Brasileira De Direito Animal, p. 178. 138 No entanto, acima de todas as leis ordinárias, vige a Carta da República, cujo artigo 225 § 1º, VII, obriga o poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade418. A Constituição Federal é dotada de supremacia material e axiológica, é norma fundamental do Estado e possui intensa carga valorativa. Por essa razão, os princípios e comandos contidos na Lei Maior não só deverão prevalecer e orientar a elaboração e aplicação das demais normas, como também obriga que todas as normas infraconstitucionais sejam interpretadas em conformidade com os preceitos constitucionais. Trata-se de um princípio que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental, estende sua tutela a todos os animais, indiscriminadamente e individualmente, sejam eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou aquáticos. Ora, pode-se dizer que a Constituição Brasileira de 1988 atribui aos animais um mínimo direito: o de não os submeter à crueldade. Ou, em outras palavras, o estado brasileiro, em todas as suas dimensões –executivo, legislativo e judiciário- tem a obrigação de impedir as práticas que submetam os animais a crueldade. Para Heron Santana Gordilho, estaria, na Constituição Brasileira de 1988, o fundamento constitucional para a teoria dos direitos animais, no instante em que se reconhece em seu art. 225, §1º, VII, que os animais são dotados de sensibilidade, impõe-se a todos o dever de respeitar a vida, liberdade corporal e integridade física do animal, proibindo expressamente as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provocando a sua extinção ou os submetendo à crueldade. Na defesa dos não-humanos, esta proteção pode acontecer de duas formas, através: 1) da abstenção de comportamento lesivo próprio, ou seja, refere-se à obrigação de não intervenção nas esferas individuais protegidas, e 2) da ação do Estado no intuito de preservar ativamente os direitos fundamentais em face das possíveis inobservâncias de particulares419. 418 A obrigação constitucional do Estado de assegurar a todos os cidadãos o pleno exercício de direitos culturais, promovendo a apreciação e difusão de manifestações culturais, não exime o Estado de observar o dispositivo constitucional que proíbe o tratamento cruel de animais. Recurso Extraordinário nº 153.53, DJ: 13/03/1998. 419 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista. 191 f. Tese (Doutorado em Direito) Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. p. 53 139 Fundamentar o direito animal constitucional é dever então dos operadores do direito (juízes, promotores, doutrinadores, advogados e estudantes), para que se a ultrapasse este momento de abstração formal do ordenamento constitucional brasileiro, com vistas a uma real fundamentação de um direito inter-espécies420. 3.7. A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS NOS TRIBUNAIS Desde 1991 o judiciário demonstra sua preocupação com a fauna. Um dos primeiros casos foi o do “boto cor de rosa”. Tratava-se de um animal que estava fora de seu habitat natural e que, mediante decisão judicial foi devolvido para o Rio Formoso, na Amazônia. PRESERVAÇÃO DA ESPECIE NO SEU HABITAT NATURAL. DEFESA DA FAUNA. A CAPTURA, TRANSPORTE E EXPOSIÇÃO PÚBLICA DOS 'BOTOS', VIOLANDO AS LEIS POSITIVAS E AS LEIS DA NATUREZA, AFETARAM O MEIO AMBIENTE (LEI 6.938/81 E LEI 7.643/87), IMPONDO-SE O PROVIMENTO JUDICIAL PARA A PRESERVAÇÃO E PERPETUAÇÃO DAS ESPECIES. NO CASO, CORRETISSIMA A SENTENÇA QUE MANDOU DEVOLVER O 'BOTO COR-DE-ROSA' SOBREVIVENTE AO SEU NATURAL HABITAT (AMAZONIA: RIO FORMOSO)421. Como se percebe, a decisão privilegiou a função ecológica da espécie e também resguardou a norma constitucional que busca a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, provando que os tribunais não só se preocupam com a natureza, mas também buscam tornar eficaz a norma constitucional ambiental. O conteúdo constitucional422 que trata 420 SILVA, Tagore Trajano de Almeida. FUNDAMENTOS DO DIREITO ANIMAL CONSTITUCIONAL. Disponível em: http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/Fundamentos.pdf. Data de acesso: 23 de fevereiro de 2015. 421 ACP 300593 SP 90.00.300593-0. TRF 3 região. DOE DATA:03/02/1992. 422 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 140 deste tema é autoaplicável e foi um dos fundamentos utilizados neste acordão para a proteção do animal. O Supremo Tribunal Federal julgou, em outra oportunidade, procedente a ação civil pública movida contra o Estado de Santa Catarina para que fosse proibida a festa da farra do boi. Farra do boi – crueldade a animais – alegação de que se trata de manifestação cultural – inadmissibidade – A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da CF, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade - Aplicação do art. 225 § 1o, VII, da CF – Voto vencido.423 O ministro Marco Aurélio afirmou em seu voto que: Se, de um lado (...), a Constituição Federal revela competir ao Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando, incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais – e a Constituição Federal é um grande todo –, de outro lado, no Capítulo VI, sob o título “Do Meio Ambiente”, inciso VII do art. 225, temos uma proibição, um dever atribuído ao Estado: “Art. 225 - VII – protegera fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetamos animais a crueldade.” (...) é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada “farra do boi”, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. (...) Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do art. 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o sacrifício do animal. 423 RE nº 153.531-8 – Santa Catarina, 03.06.1997, RT 753/101. 141 Neste caso, o Supremo deixou claro que o direito fundamental dos animais de não serem tratados de forma cruel prevalece sobre o direito ao pleno exercício de manifestações culturais. Como se sabe, nenhum direito fundamental é absoluto, e agredir os animais é um ato atentatório não só ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, como também ao dever constitucional de proteção da fauna. A natureza perversa dessa atividade não permite sua classificação como atividade meramente cultural ou desportiva. Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, como a “farra do boi” estão abrangidos pelo art. 32 da Lei 9.605/98, e devem ser punidos não só quem os praticam, mas também, em coautoria, os que os incitam, de qual - quer forma. A utilização de instrumentos nos animais, quando da realização de festas ou dos chamados “rodeios” ou “vaquejadas”, tipifica o crime comentado, pois concretiza maus-tratos contra os animais. O emprego do “sedém” - aparelho com tiras e faixas de couro, fortemente amarrado na virilha do animal, com finalidade de comprimir seus órgão genitais e forçá-lo a saltitar e corcovear – caracteriza o crime do art. 32 da Lei 9.605/98. Da mesma forma, e sem qualquer dúvida, todas as atividades que fizerem os animais enfrentar-se em luta ou disputa. As “brigas de galo” são consideradas atos de crueldade contra animais424. Em outra decisão, o Tribunal425 proibiu as rinhas de galos, ao reconhecer a inconstitucionalidade da lei estadual do Rio de Janeiro que permitia tais atrocidades, e concluiu que: As brigas de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. (...) Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”). 424 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 885. 425 ADIN 1.856 RIO DE JANEIRO. 142 O ministro Celso de Melo afirmou que “o respeito pela fauna em geral atua como condição inafastável de subsistência e preservação do meio ambiente em que vivemos, nós, os próprios seres humanos”. Destacou também que devemos reconhecer o impacto altamente negativo que representa para incolumidade do patrimônio ambiental dos seres humanos a prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna, seja colocando em risco a sua função ecológica, seja provocando a extinção de espécies, seja ainda submetendo os animais a atos de crueldade.426 Vale reproduzir, neste ponto, fragmento da manifestação, exarada nos autos da Apelação Cível 479.743/PE (TRF/5ª Região), da lavra do Procurador Regional da República, Dr. Wellington Cabral Saraiva: Da Preparação à Rinha: Por volta de um ano o galo já está preparado para a briga e passará por sessenta e nove dias de trato. No trato, o animal é pelinchado – o que significa ter cortadas as penas de seu pescoço, coxas e debaixo das asas –, tem suas barbelas e pálpebras operadas. Iniciou, pois, uma vida de sofrimento, com o treinamento básico. O treinador, segurando o animal com uma mão no papo e outra no rabo, ou então, segurando o pelas asas, joga-o para cima e deixa-o cair no chão para fortalecer suas pernas. Outro procedimento consiste em puxá-lo pelo rabo, arrastando-o em forma de oito, entre suas pernas separadas. Depois, o galo é suspenso pelo rabo, para que fortaleça suas unhas na areia. Outro exercício consiste em empurrar o animal pelo pescoço, fazendo-o girarem círculo, como um pião. Em seguida, o animal é escovado para desenvolver a musculatura e avivar a cor das penas, é banhado em água fria e colocado ao sol até abrir o bico, de tanto cansaço. Isto é para aumentar a resistência.(...) O galo passa a vida aprisionada em uma gaiola pequena, é privado de sua vida sexual normal, só circulando em espaço maior nas épocas de treinamento (...). Chega a hora do galo ser levado às rinhas. Depois da parelha (escolha dos pares), vem o topo, que é a aposta entre os dois proprietários. São, então, abertas as apostas e as lambujas. Os galos entram no rodo calçados com esporas postiças de metal e bico de prata (o bico de prata serve para machucar mais ou substituir já perdido em luta). A luta dura 1h 15min, com quatro refrescos de 5min. Se o galo é ‘tucado’ (recebe golpe mortal) ou é ‘meio-tucado’ (está nocaute), a plateia histérica aposta lambujas, que são Interessante observar que a rinha de galo já era combatida pelos tribunais: Briga de galos – A briga de galo, embora para os galistas constitua um esporte, é evidentemente um ato de crueldade para com os animais, isto porque os galos, quando levados à rinha, enfrentam-se em duelo mortal, sangrando-se, cegando-se e brigando até que um deles caia prostrado ao chão e mortalmente ferido (TACRIM-SP, Rel. Mendes França, RT 302/448). 426 143 apostas com vantagens para o adversário. Se o galo ficar caído por 1m o juiz autoriza o proprietário a ‘figurar’ o galo (tentar colocá-lo de pé). Se ele conseguir ficar de pé por 1m a briga continua. Se deitar é perdedor. O galo pode ficar de ‘espavorido’ quando leva uma pancada muito dolorosa e abandona a briga. Se a briga durar 1h15m sem um deles cair há empate e topo perde a validade. Fazem-se apostas até sobre o refresco. Galo carreirinha é aquele que percorre o rodo correndo até cansar o outro que está correndo atrás dele para depois abatê-lo Galo canga é aquele que cruza o pescoço dele com o outro, forçando para baixo até que o adversário perca a postura de briga. O galo velhaco é aquele que, no meio da briga, entra por debaixo das pernas do adversário, quando está sendo atacado e depois o pega de emboscada. Tudo isto comprova que as brigas de galos são cruéis e só podem ser apreciadas por indivíduos de personalidade pervertida e sádicos427. A posição do Supremo traz a correta interpretação do dispositivo constitucional que veda a crueldade. Ao não ceder aos mais variados argumentos que tentam por em cheque a dignidade dos animais, a Corte reafirma que os animais têm o direito de não serem mal tratados. Entender que práticas dessa natureza são uma manifestação cultural iria esvaziar o artigo 225, IV, da Constituição Federal. A cultura pressupõe desenvolvimento que contribua para a realização da dignidade da pessoa humana e da cidadania e para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Esses valores não podem estar dissociados dos outros princípios constitucional, como já afirmou a doutrina, a interpretação constitucional deve respeitar sua unidade, sendo certo que “a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição Federal”428. Nota-se que o STF tem sido coerente em proibir e coibir todas as formas de maus tratos contra animais, considerando tais práticas perversas e aviltantes. Nesse contexto, o tribunal impediu que os animais de circo429 fossem impelidos a praticar atos que contradizem a 427 Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoRTJ/anexo/220_1.pdf>, p. 36. Data de acesso: 24 jan 2015. 428 ADIN 2.514/SC, Rel. Ministro EROS GRAU. 429 Abuso em circo– Ação civil pública movida pelo Ministério Público contra companhia circense que pretendia utilizar animais em exibições públicas. Hipótese de abuso, consistente em obrigar tigres, macacos, elefante, urso, lhamas e cães, dentre outros bichos, a perfazer atividades estranhas à sua natureza. Pedido de liminar deferido, 144 sua natureza, como por exemplo, obrigar um elefante a sentar em um banquinho ou um tigre passar por uma argola de fogo. Não se pode esquecer, do árduo treinamento a que esses animais são submetidos, para que os seres humanos tenham momentos efêmeros de prazer: ANIMAIS DE CIRCO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPLEMENTAÇÃO DE OPÇÕES DO LEGISLADOR QUANTO AO TRATO E MANTENÇA DE ANIMAIS. PROIBIÇÃO DE QUALQUER FORMA DE MAUS TRATOS A QUALQUER ANIMAL. ILEGÍTIMA INADEQUAÇÃO DAS AÇÕES PÚBLICAS. A análise do sistema jurídico e a evolução da compreensão científica para o trato da fauna em geral, permitem concluir pela vedação de qualquer mau trato aos animais, não importando se são silvestres, exóticos ou domésticos. Por maus tratos não se entende apenas a imposição de ferimentos, crueldades, afrontas físicas, ao arrancar de garras, cerrilhar de dentes ou enjaular em cubículos. Maus tratos é sinônimo de tratamento inadequado do animal, segundo as necessidades específicas de cada espécie. "A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que são dotados de estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor".(STJ, Resp 1.115.916, Rel. Ministro Humberto Martins) Evoluída a sociedade, cientifica e juridicamente, o tratamento dos animais deve ser conciliado com os avanços dessa compreensão, de modo a impor aos proprietário a adequação do sistema de guarda para respeito, o tanto quanto possível, das necessidades do animal. A propriedade do animal não enseja direito adquirido a mantê-lo inadequadamente, o que impõe a obrigação de se assegurar na custódia de animais circenses, ao menos, as mesmas condições exigíveis do chamados mantenedores de animais silvestres, mediante licenciamento, conforme atualmente previsto na IN 169/2008430. A atuação judicial no sentido de assegurar o bem-estar não apenas do ser humano, mas também dos animais, apreende, a partir da Constituição, os novos valores ecológicos pregados pelos defensores dos direitos dos animais, como Peter Singer, Tom Regan, Targore Trajano da Silva, Fernando Araújo e tantos outros em todos os continentes do globo. Assim, percebe-se que não é a Terra que pertence ao homem, mas o homem que pertence a Terra, ele faz parte da natureza animal, faz parte da vida que habita este Planeta, e com ela deve conviver harmonicamente. vedada a apresentação dos animais no circo. Decisão de natureza satisfativa, extinguindo-se o feito sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC (autos nº 585/03, 3ª Vara Cível de São José dos Campos). 430 TRF 4 região: APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.70.00.009929-0/PR. Relator: Des. Federal VALDEMAR CAPELETTI. 145 Reconhecer que os animais sentem dor, e têm direito a vida é um passo importante para se reconhecer que eles não são apenas coisas, objetos de direito, mas ao contrário, são sujeitos de uma vida, como afirmou Tom Regan431, e por isso merecem ser respeitos, pois possuem valor moral independentemente de qualquer relação que possam ter com os seres humanos. O Superior Tribunal de Justiça432 também busca proteger a fauna, e reconheceu em 2013 que são de interesse da União os crimes contra a fauna, mesmo após a revogação do enunciado da Súmula n.º 91, que tornou competente a Justiça Estadual, para de regra, processar e julgar os feitos que visem à apuração de crimes ambientais. Afirmou que quando presente o interesse da União na lide, no caso as espécies ilegalmente transportadas e comercializadas estão ameaçadas de extinção, evidencia-se a competência da Justiça Federal. O STJ já proibiu a utilização de gás asfixiante no centro de controle de zoonose por ser uma medida de extrema crueldade, que implica em violação do sistema normativo de proteção dos animais. Porém, infelizmente, permitiu que estes sejam mortos, excepcionalmente, quando a medida seja indispensável para a saúde pública, o que reitera a hierarquia existente entre seres humanos e animais, a qual o movimento em defesa dos animais vem combatendo: 3. A meta principal e prioritária dos centros de controles de zoonose é erradicar as doenças que podem ser transmitidas de animais a seres humanos, tais quais a raiva e a leishmaniose. Por esse motivo, medidas de controle da reprodução dos animais, seja por meio da injeção de hormônios ou de esterilização, devem ser prioritárias, até porque, nos termos do 8º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde, são mais eficazes no domínio de zoonoses. 4. Em situações extremas, nas quais a medida se torne imprescindível para o resguardo da saúde humana, o extermínio dos animais deve ser permitido. No entanto, nesses casos, é defeso a utilização de métodos cruéis, sob pena de violação do art. 225 da CF , do art. 3º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, dos arts. 1º e 3º, I e VI do Decreto Federal n. 24.645 e do art. 32 da Lei n. 9.605 /1998. 5. Não se pode aceitar que com base na discricionariedade o administrador realize práticas ilícitas. É possível até haver liberdade na escolha dos métodos a serem utilizados, caso existam meios que se equivalham dentre os menos cruéis, o que não há é a possibilidade do exercício do dever discricionário que implique em violação 431 Sujeito de uma vida é aquele ser que possui um ponto de vista sobre a sua própria vida, independente dos significados ou utilidade para os outros. Sujeitos de vida exigem respeito por razão de justiça, e não por motivos de compaixão. REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 240. 432 STJ, Recurso ordinário em habeas corpus 2012/0076174-2. Relatora Ministra Laurita Vaz. 146 à finalidade legal. 6. In casu, a utilização de gás asfixiante no centro de controle de zoonose é medida de extrema crueldade, que implica em violação do sistema normativo de proteção dos animais, não podendo ser justificada como exercício do dever discricionário do administrador público. Recurso especial improvido....433 É obrigação dos juízes conferir efetividade aos direitos da natureza, nada mais normal em função do dever de cumprimento e realização da Constituição, e assim o fez a Dr.ª Maria Aparecida Blanco de Lima em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado do Paraná, no acórdão nº 862610-8. Esse caso versa sobre a suspensão dos experimentos científicos realizados pela Agravante Universidade Estadual de Maringá com os cães da raça Beagle e qualquer outra raça, bem como, qualquer outro animal até decisão final do mérito da referida ação civil pública. A referida decisão manteve a suspensão da utilização de cães da raça Beagle e de qualquer outro animal, nos protocolos e pesquisas realizados pelo departamento de odontologia da Universidade. A atuação do Ministério Público do Paraná em defesa dos animais, demonstra a sua preocupação na concretização do novo paradigma constitucional, onde o animal não é mais considerado apenas uma propriedade humana. Observa-se o trecho do acórdão nº 862610-8: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. DECISÃO QUE DETERMINOU A SUSPENSÃO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ UEM DA UTILIZAÇÃO DE CÃES (DA RAÇA BEAGLE E QUALQUER OUTRO) E DE QUALQUER OUTRO ANIMAL, NOS PROTOCOLOS MENCIONADOS E EM OUTRAS PESQUISAS LEVADAS A EFEITO OU FUTURAS PELO DEPARTAMENTO DE ODONTOLOGIA, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA. PEDIDO DE REFORMA. ELEMENTOS CONSTANTES NOS AUTOS QUE NÃO EVIDENCIAM A VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES TRAZIDAS PELA AGRAVANTE OU O FUNDADO RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO QUE JUSTIFIQUE A REVOGAÇÃO DA MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA. DECISÃO QUE SE ENCONTRA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA, TENDO SIDO PROFERIDA EM CONFORMIDADE COM OS ELEMENTOS PROBATÓRIOS CONSTANTE NOS AUTOS. QUESTÕES VERSADAS NOS AUTOS QUE RECLAMAM O AMADURECIMENTO 433 STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 1115916 MG 2009/0005385-2 (STJ) . 147 DO PROCESSO, SENDO PRUDENTE A SUSPENSÃO DAS PESQUISAS COM DITOS ANIMAIS ATÉ ULTERIOR DELIBERAÇÃO DO JUÍZO SINGULAR OU TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO ORIGINÁRIA. RECURSO DESPROVIDO.434 No mérito, a premissa utilizada para como base da decisão liminar agravada demonstra que as pesquisas científicas realizadas pela ré já estão sendo empregadas em humanos, circunstância que afasta a conotação de necessidade de utilização de animais para tal fim. Se não são mais necessárias as pesquisas com animais em função da existência de testes já realizados em humanos, para que então realizar tais pesquisas? O Juiz Siladeufo Rodrigues da Silva, da 5ª Vara Cível de Maringá, deferiu a liminar em favor dos animais. Um dos fundamentos da sentença foi: O Legislador pátrio, ao editar a Lei nº 11.794/08, possibilitou que pesquisadores pudessem realizar experimentos científicos em animais desde que não haja outro meio alternativo capaz de obtenção dos mesmos resultados ou melhores resultados com a pesquisa almejada435. Podemos encontrar, no decorrer da história, ações judiciais que operaram verdadeiros efeitos de mudança não-formal no sistema jurídico, mediante processos de interpretação da Constituição436. Mesmo quando esse tipo de litigância não alcança os resultados esperados, ela pode servir de modelo e repercutir positivamente na esfera social, como ocorreu com a impetração do Habeas Corpus em favor da chimpanzé Suíça. Um grupo de promotores de justiça, professores de direito, associações de defesa dos animais e estudantes de direito da Bahia impetraram uma ordem de Habeas Corpus em 434 TJPR - 4ª C. Cível - AI - 862610-8 - Maringá - Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - - J. 03.07.2012. 435 TJPR, Decisão Liminar - Autos n.º 25709-/2011 de Ação Civil Pública. 436 GORDILHO, Heron José de Santana. Darwin e a evolução jurídica: habeas corpus para chimpanzés. Disponível em: < http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/darwin.pdf>. Data de acesso: 14 out. 2014. 148 favor da chimpanzé Suíça, que vivia em uma pequena jaula no Jardim Zoológico da Cidade do Salvador, logo estava privada de sua liberdade de ir e vir. Uns dos argumentos utilizados no HC foi o de Pedro Ynterian, microbiologista e representante do Projeto Grandes Primatas (GAP) no Brasil, o qual afirmou que: Para nós, que conhecemos profundamente o quanto sofre um chimpanzé para viver em um lugar onde é observado, humilhado, controlado em seu horário, ao ir e vir, onde nem sequer tem um cobertor para as noites frias, temos que concluir que chimpanzés e, em geral, qualquer Grande Primata, não poderiam viver em zoológicos437. Em sentença publicada em 2005 o Juiz Edmundo Lúcio da Cruz, da 9ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, julgou o Habeas Corpus nº 833085-3/2005, abrindo um precedente histórico para o mundo jurídico, ao admitir Suiça (uma chimpanzé) como sujeito de direito em uma demanda judicial, já que neste writ constitucional o paciente é o verdadeiro titular do direito reivindicado. Ao receber a inicial o juiz concordou que a ação preenchia os pressupostos processuais e as condições da ação. No entanto, Suíça faleceu, o que determinou a extinção do processo sem julgamento de mérito, por perecimento do objeto, isto é, a coação ilegal da sua liberdade de locomoção. Na sentença, o próprio juiz admite que poderia ter julgado inepta a petição inicial, por impossibilidade jurídica do pedido ou por falta de interesse de agir, no entanto reconhece a constante evolução do direito: Tenho a certeza que, com a aceitação do debate, consegui despertar a atenção de juristas de todo o país, tornando o tema motivo de amplas discussões, mesmo porque é sabido que o Direito Processual Penal não é estático, e sim sujeito a constantes mutações, onde novas decisões têm que se adaptar aos tempos hodiernos. Habeas Corpus nº 833085-3/2005. Para mais informações ver o artigo “HABEAS CORPUS PARA OS GRANDES PRIMATAS” de Heron José de Santana Gordilho e Tagore Trajano de Almeida Silva. Disponível em: < http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2012_04_2077_2114.pdf>. 437 149 Assim, o caso Suíça acabou por se constituir um marco judicial do direito animal no Brasil, ao fazer valer uma das principais reivindicações do movimento abolicionista: o reconhecimento dos animais como sujeitos de direito, dotados de capacidade de reivindicar esses direitos em juízo. No entanto, o resultado foi diferente na Argentina. Em uma sentença histórica para o Movimento Animal, o Supremo Tribunal de Justiça da Argentina, por unanimidade, destacou no dia 18 de dezembro de 2014 que: A partir de uma interpretação jurídica dinâmica e não estática, é preciso reconhecer aos animais o caráter do sujeito de direito, pois os sujeitos nãohumanos (animais) são titulares de direitos, pelo que se impõe sua proteção no âmbito das competências correspondentes438. A Câmara Federal de Decisão Penal (Sala II), integrada pelos juízes Angela E. Ledesma, Pedro R. David e Alejandro W. Slokar, resolveram o Recurso de Decisão apresentado pelo presidente da “Associação de Funcionários e Advogados pelos Direitos Animais” (AFADA), o Dr. Pablo N. Buompadre, com o apoio jurídico do constitucionalista Andrés Gil Dominguez. A ONG havia apresentado no dia 13 de novembro de 2014, em Buenos Aires, um Habeas Corpus a favor da orangotango “Sandra” perante o Juizado da Dra. Monica L. Berdion de Crudo, o qual foi recusado com o único argumento de que “uma interpretação harmônica das previsões contidas nos artigos 30 e 51 do Código Civil Argentino impõe incluir que a orangotango-de-Sumatra “Sandra” não pode ser sujeito de tutela legal…”. A decisão foi consultada também pela Câmara de Apelações do Foro Criminal e esta confirmou a decisão judicial no dia seguinte. A ONG recorreu ao Tribunal de Decisão argentino e saiu vitoriosa, deixando claro que, agora, o “Habeas Corpus constitui uma legítima ferramenta constitucional para questionar a privação ilegal de liberdade dos Grandes Primatas e de outros animais não-humanos quando seus direitos fundamentais são violados. A partir de agora eles serão considerados como verdadeiros “Sujeitos de Direitos”. 438 CANALES, Loren Claire Boppré. Em decisão histórica, Tribunal da Argentina reconhece que animais são sujeitos de direitos. 20/12/2014. Disponível em: < http://www.anda.jor.br/20/12/2014/decisao-historica-tribunalargentina-reconhece-animais-sao-sujeitos-direitos>. Acesso em: 01 mar. 2015. 150 A decisão da SALA II da Câmara Federal de Decisão Penal da Argentina “representa um forte golpe na coluna vertebral do ordenamento jurídico argentino, cuja lei civil considera os animais como “coisas semoventes” (artigo 2318 do Código Civil Argentino) e, ao contrário dos prognósticos esperados, abre o caminho tão sonhado, não só para os Grandes Primatas, mas também para todos os animais aprisionados injusta e arbitrariamente nos zoológicos, circos, centros de pesquisa, parques aquáticos e outros centros de exploração animal”, segundo Pablo Buompadre, presidente da ONG AFADA.439 O caminho legal empreendido e trilhado conseguiu obter o reconhecimento moral e legal dos direitos dos animais e marca um feito histórico muito importante em toda a América Latina, que vê nesse precedente da máxima autoridade judiciária deste país, a mais importante decisão dos últimos dez anos depois do precedente brasileiro ocorrido no caso “Suíça”. Assim fica claro que o fato da personalidade jurídica dos animais não-humanos depender da adoção de adequadas medidas legais não é motivo para que o judiciário deixe de aplicar decisões progressistas nesse sentido. Sendo o direito dos animais uma garantia constitucional cabe ao Ministério Público atuar para resguardar os mesmos de qualquer situação de maus tratos ou crueldade e a Ação Civil Pública é um meio capaz de por fim a um ato danoso ao meio ambiente ou aos animais constitucionalmente tutelados. A Constituição Federal, ao impedir que os animais sejam alvo de atos cruéis, supõe que esses animais tenham sua vida respeitada. O texto constitucional não disse expressamente que os animais têm direito à vida, mas é lógico interpretar que os animais a serem protegidos da crueldade devem estar vivos, e não mortos. A preservação da vida do animal é tarefa constitucional do Poder Público, não se podendo causar sua morte sem uma justificativa explicitada e aceitável. Entendo, dessa maneira, que os princípios e valores da Constituição em vigor apontam no sentido de fazer com que se reconheça a necessidade de se impedirem as práticas, 439 CANALES, Loren Claire Boppré. Em decisão histórica, Tribunal da Argentina reconhece que animais são sujeitos de direitos. 20/12/2014. Disponível em: < http://www.anda.jor.br/20/12/2014/decisao-historicatribunal-argentina-reconhece-animais-sao-sujeitos-direitos>. Acesso em: 01 mar. 2015. 151 não só de danificação ao meio ambiente, de prejuízo à fauna e à flora, mas, também, que provoquem a extinção de espécies ou outras que submetam os animais a crueldade. A Constituição, pela vez primeira, tornou isso preceito constitucional, e, assim, não parece que se possam conciliar determinados procedimentos, certas formas de comportamento social, tal como as denunciadas aqui, com esses princípios, visto que elas estão em evidente conflito, em inequívoco atentado a tais postulados maiores. O STF, enquanto guarda da Constituição cumpre proclamar tal exigência maior e impedir tais práticas horrendas que em nada se parecem com uma expressão de cultura. 152 CAPÍTULO 4: ANIMAIS COMO SUJEITO DE DIREITOS Em conclusão, nós defendemos que os animais de circo... são alojados em jaulas apertadas, sujeitos ao medo, à fome, à dor, isso para não mencionar o modo indigno de vida que eles têm de viver, sem suspensão temporária da execução e a notificação impugnada tenha sido editada em conformidade com os...valores da vida humana, [e] filosofia da Constituição... Embora não homo sapiens [sic], eles também são seres com direito a uma existência digna e tratamento humanitário sem crueldade e tortura... Por essa razão, não apenas um dever fundamental nosso mostrar compaixão por nossos amigos animais, mas também reconhecer e proteger seus direitos... Se os humanos são titulares de direitos fundamentais, por que não os animais?440 4.1. A TEORIA DO DIREITO ANIMAL Será a vida do animal tão insignificante e subordinada à vontade humana para que se justifique a classificação dos mesmos como meras coisas? Seria a natureza jurídica do animal algo intermediário entre as pessoas e as coisas? Mas quem é sujeito de direito? No entender de Fábio Ulhoa Coelho: (...) sujeito de direito é o centro de imputações de direitos e obrigações referido em normas jurídicas com a finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres. Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos441. 440 Nair v. Union of India, Corte Superior de Kerala, junho de 2000, apud NUSSBAUM, Martha C. para além da compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos, p. 86 441 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. 1.vol. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 138. 153 Ou seja, a ordem jurídica admite duas espécies de pessoas: as naturais, também chamadas de pessoas físicas, que são os seres humanos, e as pessoas jurídicas, que são pessoas de existência visível e de existência ideal. Muito embora toda pessoa natural seja considerada sujeito de direito, nem todo sujeito de direito é pessoa física, haja vista que a lei reconhece direitos a determinados agregados patrimoniais, como a massa falida, o espólio, condomínio edilício, conta de participação e sociedade comum442. De acordo com as informações de Umberto Vincenti443, no direito romano os conceitos de “homem” e de “pessoa” não coincidiam totalmente. Enquanto o primeiro designava uma realidade naturalística, o segundo se colocava em uma dimensão mais artificial ou “institucional”. Desta maneira, “pessoa” não designava o homem como tal, mas o homem considerado pelo Direito, o homem pelo ângulo dos poderes jurídicos que podia exercitar. Quem possuía a condição de homem livre e pater familias estava em uma situação privilegiada, acima dos demais seres humanos, exercendo poderes exclusivos garantidos normativamente. Essa repartição normativa tornava um homem plenamente pessoa. Vem daí a origem da palavra latina “persona” que designava a máscara teatral envergada pelos atores444. O Direito, ao atribuir ao pater essa condição de pessoa plena, não sujeita a outrem (diferentemente das mulheres, dos filhos não emancipados e dos escravos), distribuía papéis sociais distintos. A artificialidade do conceito deriva do fato de que a pessoa em sua plenitude não é aquela que é um Ser específico, ou que vale um valor igual, mas aquela que tem ou possui capacidade de ter. Essa capacidade de ser proprietário, de poder dispor do seu patrimônio é o que conferia ao pater a personalidade plena. Por isso se pode dizer, com Yan “São sujeitos, entre outros, as pessoas naturais (homens e mulheres nascidos com vida), os nascituros (homens e mulheres em gestação no útero), as pessoas jurídicas (sociedades empresárias, cooperativas, fundações, etc.), o condomínio edilício, a massa falida e outros. Todos eles são aptos a titularizar direitos e obrigações em variadas medidas e se cumpridas diferentes formalidades.” COELHO, FábioUlhoa. Curso de direito civil, p. 138 – 139. 443 VINCENTI, Umberto. ‘Persona’ e diritto: trasformazioni della categoria giuridica fondamentale. In: BONIOLO, G.; DE ANNA, G.; VINCENTI, U. Individuo e persona. Tre saggi su chi siamo. Milano: Bompiani, 2007, p.139-209. 444 A palavra pessoa advém do latim persona, emprestada à linguagem teatral na antiguidade romana. Primitivamente, significava máscara. Os atores adaptavam ao rosto uma máscara provida de disposição especial, destinada a dar eco às suas palavras. Personare queria dizer, pois, ecoar, fazer ressoar. A máscara era uma persona, porque fazia ressoar a voz da pessoa. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 1994, p. 55. 442 154 Thomas, que no Direito romano a unidade da pessoa designava originalmente “a unidade de um patrimônio”445. Para Washington de Barros Monteiro, pessoa tem três sentidos diferentes: o vulgar, como sinônimo de ente humano; o filosófico, em que a pessoa “realiza seu fim moral e emprega sua atividade de forma consciente” e o jurídico, em que “pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica.”446 Para o Direito Civil brasileiro os animais, porém, não possuem personalidade jurídica. Para a grande maioria dos civilistas, eles não entram na categoria de pessoas, mas na de coisas. São definidos como bens móveis, conforme o art. 82 do Código Civil: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia (...)”. Por isso, os animais podem ser vendidos, locados, trocados ou mortos. Com efeito, o animal, na esfera dos entes naturais, jamais poderia ser sujeito de direito, porque não é indivíduo, não é livre ou não possui existência autônoma; é elemento da espécie, compõe-na, e o dano que se lhe causa é dano à espécie. Se tem proteção, é em razão da consciência do homem, em razão do homem, por ser este racional. Proteção, contudo, não se confunde com direito447. O Código Civil acompanhou a doutrina romana dispondo que: “Art. 1.263. Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei.” No entanto, observa-se que o segmento da doutrina romana que afirma que os animais silvestres seriam propriedade do primeiro que se assenhorasse deles causou um problema jurídico para fundamentar a proibição da caça em terras de domínio privado448. Essa visão tinha inspiração romana que classificava os animais de acordo com os seus interesses econômicos, sendo classificados como res mancipi e res nec mancipi, ou seja, coisas que exigiam ou não o emprego da mancipatio, espécie de processo mais solene. 445 THOMAS, Yan. Le sujet de droit, la personne et la nature: sur la critiquecontemporaine du sujet de droit. Le Débat, v. 100, 1998, p.85-107, p. 100. 446 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 1994, p. 58. 447 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo. Fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 70-71. 448 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, p. 941. 155 Salientando-se que o animal poderia ainda ser considerado uma res nullius como é o caso dos animais silvestres, que seriam aqueles animais sem um “proprietário”449. Para solucionar a questão, a doutrina nacional estabeleceu que a conservação da fauna é de utilidade pública e que a Administração Pública exerce sobre a mesma uma jurisdição inerente. A União reservou para si o domínio eminente da fauna silvestre. Logo, esta não é mais coisa sem dono, e nem propriedade do Estado. A fauna é vista hoje como bem público, mas não como uma propriedade privada, mas sim no sentido de que é protegida pelo Estado no interesse coletivo450. O que se percebe é que o direito civil têm leis com conteúdo filosófico antropocêntrico, no entanto a filosofia moderna apresenta uma forte vertente biocêntrica. Também ficou claro que o modelo dicotômico entre sujeito e objeto já começou a ruir, e não consegue conter o movimento que postula direitos em favor dos animais. Sirvinkas acredita que a fauna é um bem difuso, apesar de não afirmar que a fauna é sujeito de direitos, o autor se afastou do visão antropocêntrica ao esclarecer que os animais pertencem ao meio ambiente equilibrado: A fauna é um bem ambiental e integra o meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no artigo 225 da CF. Trata-se de um bem difuso. Esse bem não é público nem é privado. É de uso comum do povo. A fauna pertence á coletividade. É bem que deve ser protegido para as presentes e futuras gerações451. Muitos civilistas acreditam que a proteção dos animais existe no ordenamento jurídico apenas como forma de impedir que o ser humano se torne cruel, e não porque os animais merecem respeito e consideração moral, como afirma Caio Mário: Se a todo homem, e aos entes morais por ele criados, a ordem jurídica concede personalidade, não a confere, porém, a outros seres vivos. É certo que a lei protege as coisas inanimadas, porém em atenção ao homem que delas desfruta. Certo, também, que os animais são defendidos de maus tratos, que a lei proíbe, como interdiz também a caça na época da cria. Mas não são, por isso, 449 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 940. 450 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, p. 942. 451 SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental, p.464. 156 portadores de personalidade, nem têm um direito a tal ou qual tratamento, o qual lhes é dispensado em razão de sua utilidade para o homem, e ainda com o propósito de amenizar os costumes e impedir brutalidades inúteis452. Esse pensamento antropocentrista tem raiz no pós-Revolução Francesa, que listava a natureza e seus componentes na categoria de coisa ou bem 453. Como afirma o Ministro Benjamin a natureza era vista como “Coisa a serviço direto da pessoa – individualmente considerada -, sem outro atributo que não fosse o de se prestar a satisfazer os desejos humanos, mesmo os mais mesquinhos e egoístas”454. Se a todo homem, e aos entes morais por ele criados, a ordem jurídica concede personalidade, não a confere, porém, a outros seres vivos. É certo que a lei protege as coisas inanimadas, porém em atenção ao homem que delas desfruta. Certo, também, que os animais são defendidos de maus-tratos, que a lei proíbe, como interdiz a caça na época da cria. Mas não são, por isso, portadores de personalidade, nem tem um direito a tal ou qual tratamento, o qual lhes é dispensado em razão de sua utilidade para o homem.455 Mas nunca ninguém imaginou que o direito de propriedade seria limitado a favor da própria coisa. O animal protegido contra maus tratamentos praticados por seu dono, por exemplo, faz com que seja juridicamente difícil continuar a defini-lo como coisa e apresentado ao direito como propriedade. Há uma aparente incompatibilidade entre o direito de propriedade e a limitação no interesse da própria coisa. Reconhecer que os animais possuem direitos obrigaria os civilistas a repensar os conceitos da sua disciplina. É uma aventura da qual nem todos gostariam de participar, pois essa nova percepção trará novos paradigmas a serem levados em conta. É verdade que não se pode convencer aquele que já está convencido, mas a mente do jurista, aberta e acostumada à torrente de opiniões, críticas e pensamentos antagônicos, pode 452 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 181. 453 Para mais informações consultar: BENJAMIN, Antonio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC. Disponível em: <http://mdf.secrel.com.br/dmdocuments/antonio.pdf>. Data de acesso: 06 out. 2014. 454 BENJAMIN, Antonio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso, p. 81. 455 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. I. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 215. 157 renovar sua crença, conforme exige a realidade social e cultural, bem como os interesses que a sociedade quer proteger e pretende salvaguardar. O conceito de direitos foi inventado pelos seres humanos e não é empregado por nenhum outro ser vivo. Por que se fala, então, em direito dos animais? A resposta é simples: os direitos dos animais existem para definir limites aos seres humanos. Podemos chamar direitos dos animais aos direitos que estabelecem os limites das relações dos seres humanos com os animais. O direito dos animais desponta como um novo e fundamental direito, protegendo estes seres vivos, seus direitos fundamentais como a vida, liberdade e o respeito, coibindo atos de violência, crueldade e maus tratos. Os animais não precisam ter personalidade jurídica para serem considerados sujeitos de direitos. O movimento dos direitos dos animais propõe uma modificação do atual significado jurídico e mudança do pensamento de que o direito é uma instituição social destinada exclusivamente para o homem. Sim o direito foi feito pelo homem e para o homem. Mas, e os animais? Também não têm interesse em ter tutelado o seu direito a vida e a liberdade? Por qual motivo somente os seres humanos seriam titulares de direitos? Por que uma leoa, um cachorro, um golfinho ou chimpanzé não seriam sujeitos de direito? Enfim: qual a fundamentação que explica admitir que o ser humano é sujeito de direito e negar o mesmo para cada animal nãohumano? De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, não se pode aprisionar a personalidade jurídica no conceito de sujeito de direito, por ser mais do que isso. Mesmo que não seja disposto personalidade jurídicas à alguns entes, como: ao condomínio edilício e à massa falida, estes entes despersonalizados poderão ser sujeitos de direito, titularizando no polo ativo ou passivo de uma demanda. Manifestam no sentido de que, “titularizar a personalidade jurídica significa, em concreto, ter uma tutela jurídica especial, consistente em reclamar direitos fundamentais, imprescritíveis ao exercício de uma vida digna.” Apesar de se manifestarem no sentido de que os entes despersonalizados podem ser sujeitos de 158 direito, em nenhum momento citam os animais. O que fica claro é que a ideia de personalidade jurídica é própria do ser humano, advinda do princípio da dignidade da pessoa humana456. De acordo com Pablo Stolze, a personalidade jurídica “é a aptidão para se titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito.”457 Rigorosamente, somente as pessoas seriam sujeitos de direito, pois somente as pessoas possuem personalidade, sendo o nascimento de um ser humano elemento do fato jurídico. Todavia, existem direitos que surgem a partir de outros fatos jurídicos, sendo também sujeitos de direito. Em princípio, toda pessoa possui direitos, independentemente de ser capaz de entender o que significa ter direitos. Isso não quer dizer que os indígenas, as crianças e os deficientes mentais possuam, integralmente, todos os direitos que a maioria dos cidadãos possui, dado que não podem votar, possuem liberdade de movimento limitada, e a maioria dos direitos civis e políticos não fazem sentido para eles458. Nos dizeres de Pontes de Miranda: “a personalidade é a possibilidade de se encaixar em suportes fáticos, que, pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto, a possibilidade de ser sujeito de direito.”. Assim, tanto o ente humano quanto as outras entidades têm personalidade jurídica. Essas outras entidades são chamadas de pessoas jurídicas, morais, fictícias ou fingidas. Clóvis Beviláqua explica que: A personalidade jurídica tem por base a personalidade psíquica, somente no sentido de que, sem essa última não se poderia o homem ter elevado até a concepção da primeira. Mas o conceito jurídico e o psicológico não se confundem. Certamente o indivíduo vê na sua personalidade jurídica a projeção de sua personalidade psíquica, ou, antes, um outro campo em que ela se afirma, dilatando-se ou adquirindo novas qualidades. Todavia, na personalidade jurídica intervém um elemento, a ordem jurídica, do qual ela depende essencialmente, do qual recebe a existência, a forma, a extensão e a 456 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2010, p. 132. 457 GAGLIANO, Pablo Stolze. Personalidade jurídica. Nascituro. Pessoa física ou natural. Disponível em: <http://www.novodireitocivil.com.br/>. Acesso em: 22 mar. 2011. 458 CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente e direitos humanos. 2. ed. Curitiba: Juruá. 2011, p. 403. 159 força ativa. Assim, a personalidade jurídica é mais do que um processo superior da atividade psíquica; é uma criação social, exigida pela necessidade de por em movimento o aparelho jurídico, e que, portanto, é modelada pela ordem jurídica459. Para Pereira, “a personalidade é um atributo do ser humano e o acompanha por toda a sua vida. Como a existência da pessoa natural termina com a morte, somente com esta cessa a sua personalidade.”460 Dizer ser sujeito de direito quer dizer ter a titularidade, mas não quer dizer que ele mesmo tenha de exercer o direito, a ação ou a pretensão, pois o sistema jurídico permite que outro o exerça. E a personalidade não é em si direito, mas qualidade de ser sujeito de direito em uma relação jurídica461. Assim concordo com os autores que afiram que apesar dos animais não serem pessoas, podem ser sujeitos de direito, com base na nova ordem constitucional. Pode-se entender então que: Ser pessoa é a possibilidade de ser sujeito de direito. [...] Ter personalidade é a possibilidade de se encaixar em suportes fáticos, que pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto a possibilidade de ser sujeito de direito462. De qualquer modo, o conceito de sujeito de direito tem natureza artificial já que, no primeiro caso, ninguém é originariamente, pessoa por natureza ou por nascimento. Se assim fosse, a escravidão não teria existido463. Ser pessoa é uma obra de personificação que exclusivamente a ordem jurídica pode perpetrar. Tanto as pessoas naturais ou jurídicas são construções do Direito. O estranho disso é 459 BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. São Paulo: RED, 1999, p. 81. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. I. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 221. 461 MIRANDA, Pontes de. Tratados de Direito Privado, p. 215/216. 462 GORDILHO, Heron José de Santana; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Animais em juízo: Direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Revista de Direito Ambiental. RDA 65, 2012. p. 333-363, p. 345. 463 Pessoa, no mundo jurídico, seria uma criação do direito, uma vez que constitui eficácia imputada a fatos jurídicos específicos. Não é um atributo natural do ser humano, menos ainda desses outros entes, mas imposição jurídica. MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: Plano de eficácia. 1. parte. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 140. 460 160 que não se admite a discussão a propósito dessa natureza artificial de quaisquer delas. Esse fato basta para se considerar coerente o conceito filosófico-jurídico de pessoa, o qual confirma que ser pessoa ou sujeito de direito é o mesmo como ser fim-de-si-mesmo. Portanto, ser sujeito de direito ou pessoa é ser um ‘ser’ ou ‘ente’ considerado fim dele próprio pelo ordenamento jurídico464. Paulo Lôbo explica que: A evolução do direito e as exigências do mundo da vida levaram à necessidade de conferir, a certos entes, partes ou parcelas de capacidades para aquisição, exercício e defesa de direitos, dispensando-lhes a personalidade. São entes não personificados. Para a realização dos fins a que estão destinados, ou para sua tutela jurídica, não precisam ser personalizados nem equiparados a pessoas. Para que possam defender seus interesses em juízo basta que se lhes atribua excepcional capacidade processual. [...] Quando se deparou com esses fenômenos, a doutrina tendeu a expandir o conceito de pessoa, de modo que pudesse acolhê-los em seu seio. A consequência foi ou a rejeição, como se tais entes não existissem juridicamente, ou a descaracterização da noção de pessoa, que, de tão expandida, desprendia-se de suas funções prestantes, ou a concepção insustentável de direitos sem sujeitos. A jurisprudência dos tribunais restringe-se a admitir esses entes como partes processuais, com capacidade processual, deixando de lado a capacidade material de que são dotados.465 Assim, para que haja uma alteração de status legal dos animais, passando de objetos de direito para sujeitos de direito, seria necessário que eles fossem considerados um fim em si mesmo. Tanto é que, em Roma, a título exemplificativo, o indivíduo, para ser considerado pessoa, ou melhor, para que lhe fosse ofertado o atributo da personalidade jurídica, tinha que ser livre e ser cidadão romano. “A ascensão legal de entes da categoria dos bens para a de sujeito de direitos opera-se tão episodicamente que os juristas por vezes se esquecem de que esse deslocamento é concretamente possível.”466 464 RODRIGUES, Danielle Tetu. OS ANIMAIS NÃO-HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO SOB ENFOQUE INTERDISCIPLINAR. 119 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 64. 465 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 99. 466 EBERLE, Simone. Deixando a sombra dos homens: Uma nova luz sobre o estatuto jurídico dos animais. 2006. 430 f.Tese (livre docência). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006, p. 287. 161 A busca da personificação do animal e a defesa de seus “direitos” são alegadas por vários filósofos e juristas467 como sendo a única forma de garantir uma tutela efetiva destes seres. Reconhecer os próprios animais por lei como titulares de direitos significaria que eles poderiam demandar em nome próprio e em seu próprio direito. Esses animais teriam o que se chama de legitimidade processual. Guardiões deveriam ser nomeados para falar por esses titulares de direitos que não têm voz468. Em relação ao nascituro, “embora não seja pessoa, ninguém discute que tenha direito à vida, e não mera expectativa.”469 Portanto embora não seja pessoa e não tenha personalidade jurídica, o nascituro é sujeito de direito. “É um ente despersonificado, cuja teoria poderia ser aplicada também aos animais.”470 É o que prevê a teoria dos entes despersonalizados: não é necessário ser qualificado como pessoa para que o ente venha a titularizar direitos subjetivos. Esse é exatamente o ponto: não se trata de argumentar acerca dos direitos concedidos ao nascituro, nem mesmo de questionar a importância dos seres humanos ou dos seres não humanos, mas de repensar a oferta dessa proteção aos animais que, não são considerados pessoas, mas podem ser considerados sujeitos de direitos e entes morais, portanto, detentores de direitos. Quando há certa incapacidade do titular devido à falta de aptidão ao exercício dos direitos e deveres, seja por falta de discernimento ou de juízo necessários para compreender os próprios direitos, interesses ou deveres, estes devem ser representados. Carlos Alberto da Mota Pinto explica: 467 Defendem a atribuição de personalidade jurídica aos animais: Vânia Márcia Damasceno Nogueira, Danielle Tetu Rodrigues, Targore Trajano Almeida da Silva, Fernando Levai, Cesare Goretti e muitos outros citados no decorrer desse trabalho. 468 TRIBE, Laurence H. Dez lições que a nossa experiência constitucional pode nos ensinar a respeito do quebracabeça do direito dos animais: O trabalho de Steve M. Wise. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, ano 4, n.5, p. 111-121, jan. – dez. 2009. 469 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 4ª ed. rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 93. 470 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 314. 162 A representação é a forma de suprimento da incapacidade, traduzida em ser admitida a agir outra pessoa em nome e no interesse do incapaz. Essa pessoa é denominada representante legal, por ser designada pela lei ou em conformidade com ela. Não se trata, pois, de um representante voluntário, isto é, escolhido e legitimado para agir pelo representado – e não se admite aqui um representante voluntário, dada a incapacidade do representado471. A representação transfere à terceiro a delegação de, em nome do titular do direito, exercer atos de gestão ou atos específicos e atua com a possibilidade de reconhecimento do representado por meio das características semelhantes do representante. Portanto, mesmo que determinadas pessoas físicas sejam vistas como incapazes, ainda sim são consideradas como sujeitos de direito. Neste caso, os Animais não-humanos, como também são incapazes, podem ser sujeitos de direitos, mesmo porque a lei permitiu que seus direitos sejam defendidos e representados por órgãos competentes472. Pessoa é o sujeito de direito dotado de capacidade plena ou ilimitada na ordem civil. Os entes não personificados são sujeitos de direito dotados de capacidade civil limitada à sua proteção ou à consecução de seus fins. [...] Sujeitos de direito são todos os seres e entes dotados de capacidade para adquirir ou exercer titularidade de direitos e responder por deveres jurídicos.473 Para o professor italiano Cesare Goretti474 os animais possuem a condição de sujeitos de direito, pois mesmo que eles não tenham uma concepção jurídica do seu status, “nós não podemos negar-lhes o direito mais fundamental e mais humilde de todo ser vivo: o de fugir da dor”. Nesse ponto, a teoria dos entes despersonalizados se encaixa perfeitamente no que diz respeito aos animais, uma vez que pode ser aplicada para caracterizá-los como autênticos sujeitos despersonificados não-humanos, ou seja, “ainda que se entenda que não sejam pessoas, nem por essa razão deixariam de poder usufruir de um patrimônio jurídico que lhes garantisse 471 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 216. RODRIGUES, Danielle Tetu. OS ANIMAIS NÃO-HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO SOB ENFOQUE INTERDISCIPLINAR. 119 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 63. 473 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 99. 474 GORETTI, Cesare. L’animale quale soggetto di diritto. Università di Padova, 1928, p. 9. 472 163 o mínimo existencial.”475 Explica ainda Lourenço que “a vantagem da teoria dos entes despersonalizados se situa justamente na prescindibilidade da adequação típica do animal na categoria de pessoa para que ele venha a titularizar determinados direitos subjetivos fundamentais.”476 O autor entende que dois caminhos poderiam ser percorridos: o primeiro envolve a questão da personificação dos animais, equiparando-os aos absolutamente incapazes. O segundo envolve a despersonificação, ou seja, colocando-os dentro da categoria dos sujeitos de direito. Ele aponta ainda a existência de uma categoria entre pessoas e coisas, como fez a Alemanha, na opinião dele, a menos viável, uma vez que importaria em grandes modificações legislativas e políticas. Ele opta então, pela despersonificação desses seres, deslocando-os da categoria de coisas para a de sujeitos de direitos, uma vez que, “não há sustentação filosófica ou jurídica que possa manter o status a quo.”477 A doutrina a favor dos direitos dos animais não é unânime nesse sentido. Alguns consideram os animais como entes personificados, outros não. E há ainda quem sugira que os animais estão em um patamar intermediário, nem coisas, nem pessoas, tese que não considero bem desenvolvida, pois até hoje, como já foi dito, existem apenas duas categorias: pessoas ou coisas. Criar e desenvolver um terceira categoria seria muito difícil, o que não vejo necessidade, pois existe a possibilidade de considerar os animais como sujeito de direitos. A atribuição de direitos a novas entidades é amplamente considerada como apenas uma ficção jurídica, nós todos sabemos que a corporação não é realmente uma pessoa, mas essa ficção de direitos pode fazer uma grande diferença para a proteção real e não fictícia dos novos titulares de direitos no mundo real. A despeito do enorme preconceito enfrentado pelos animais, é preciso lembrar que o mundo jurídico já é povoado de sujeitos não-humanos, como empresas, municípios e Estados. 475 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Segio Antônio Fabris Ed, 2008, p. 510. 476 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Segio Antônio Fabris Ed, 2008, p. 310. 477 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 315. 164 O animal como sujeito de direitos já é concebido por grande parte de doutrinadores jurídicos de todo o mundo. Um dos argumentos mais comuns para a defesa desta concepção é o de que, assim como as pessoas jurídicas ou morais possuem direitos de personalidade reconhecidos desde o momento em que registram seus atos constitutivos em órgão competente, e podem comparecer em Juízo para pleitear esses direitos, também os animais tornamse sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem. Embora não tenham capacidade de comparecer em Juízo para pleiteá-los, o Poder Público e a coletividade receberam a incumbência constitucional de sua proteção. O Ministério Público recebeu a competência legal expressa para representá-los em Juízo, quando as leis que os protegem forem violadas. Daí poder-se concluir com clareza que os animais são sujeitos de direitos, embora esses tenham que ser pleiteados por representatividade, da mesma forma que ocorre com os seres relativamente incapazes ou os incapazes, que, entretanto, são reconhecidos como pessoas478. Targore Trajano de Almeida Silva479 entende que a Teoria do Direito Animal surge a partir de um processo hermenêutico do artigo 225, § 1º, inciso VII, o qual alarga ainda mais o rol de destinatários da Constituição, agora incluindo os animais. Os direitos dos animais se mostram como uma alternativa viável para a superação do antropocentrismo, abre os horizontes para permitir a aplicação simultânea e coordenada das múltiplas fontes legislativas existentes em prol dos animais. Outra teorização a favor dos animais é a de Cass Sunstein. Ele lembra que a questão dos direitos dos animais, a partir da década de 1990, saiu da periferia dos debates políticos e jurídicos e passou para o centro das discussões, sendo disputada desde então com uma extraordinária intensidade. Sunstein480 pensa que boa parte desse debate é estéril: se o termo “direitos” designa uma “proteção legal contra o mal”, então os animais já possuem direitos, pois muitas são as proteções jurídicas que incidem sobre eles. O mesmo acontece se entendermos por “direitos” certas “exigências morais de proteção”, pois, neste caso, são muitas as reivindicações por maior proteção aos animais. 478 DIAS, Edna Cardozo. Os animais como sujeitos de direito. Revista Brasileira de Direito Animal. Ano 1. Número 1. Jun./dez. 2006, p. 120. 479 SILVA, Targore Trajano De Almeida. Teoria da Constituição: direito animal e pós-humanismo, p. 1168311731. 480 SUNSTEIN, Cass. The rights of animals. In: The University of Chicago Law Review, v. 70, n. 1, 2003, p. 389. 165 Noberto Bobbio já afirmou que chegaria o dia em que os animais seriam reconhecidos como sujeitos de direito, superando a moralidade comum que até então os considerava simples propriedade dos seres humanos: Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos. Decerto, todas essas novas perspectivas fazem parte do que eu chamei, inicialmente, de história profética da humanidade, que a história dos historiadores – os quais se permitem apenas uma ou outra previsão puramente conjuntural, mas recusam, como algo estranho à sua tarefa, fazer profecias – não aceita tomar em consideração481. Vale advertir que a teoria do direito dos animais não é uma concepção filosóficojurídica uníssona, havendo posições divergentes, o que pode ocorrer já que existem várias correntes filosóficas tratando do tema, como Peter Singer, Tom Regan e Gray Francione. Outro ponto que enseja discordância é a amplitude do conjunto de sujeitos de direito, sendo que a postura majoritária não abrange todos os animais e sim apenas os animais sencientes. Oliveira oferece uma lista ilustrativa de quais são os principais pontos defendidos pela teoria do direito animal: Sem adentar detidamente na elaboração doutrinária do Direito dos Animais, pode-se afirmar que há largo consenso sobre os pontos a seguir: 1) animais não são coisas, objetos, e sim sujeitos de direito (ou, na linha utilitarista, seus interesses devem receber igual consideração); 2) em virtude do direito à vida e outros, a dieta humana ética é a vegetariana/vegana, salvo hipótese marginal, unicamente o estado de necessidade; 3) em virtude do direito à liberdade, é antiético confinar animais em gaiolas, jaulas, aquários, zoológicos, salvo hipóteses excepcionais sempre a bem do próprio animal; 4) em virtude da integridade física e psicológica, do direito à vida, à liberdade, animais não podem ser utilizados em experimentos científicos, servir de cobaias, não importando o eventual potencial ganho para a humanidade; 5) não são admitidas vestimentas de pele (couro, por ex.); 6) em virtude da sua dignidade intrínseca, rejeita-se a instrumentalização (coisificação): animais em circo, 481 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 10 reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 59. 166 animais utilizados para tração/transporte, em competições de corrida, rodeios, caça esportiva.482 Como se nota, existem vários aspectos da cultura atual que devem ser repensados para se enquadrarem neste novo direito, o direito dos animais. Mas o que significa dizer que os animais possuem valor inerente? Significa que possuem valor por si mesmos, sem depender dos seres humanos. Essa concepção implica que quando não há justificativa moral para matar, aprisionar ou ferir qualquer agente moral, isso deve ser evitado, caso contrário, haveria a coisificação dos animais. Aprisionar uma animal em uma jaula para ser visto no zoológico é tratá-lo como instrumento para se obtiver a diversão dos seres humanos, matar animais para retirar sua pele é tratá-lo como instrumento do consumismo humano. Dizer que os animais têm direito à vida importa dizer que os seres humanos não podem matá-los a não ser em legítima defesa ou estado de necessidade. Daí porque o Direito dos Animais não vai afirmar que as plantas têm direito à vida, vez que comer uma alface ou uma cenoura não é o mesmo que comer um coelho ou um pato. As plantas não sentem dor, não sofrem ao serem apanhadas para a alimentação humana. Direitos, conforme Regan, ou interesses, conforme Singer são as visões filosóficas que afirmam que devemos tratar os animais com respeito, e que esses não são coisas a disposição da humanidade, ao contrário, tem direito de viver tanto quanto a humanidade. A grande dificuldade em se debater sobre o direito dos animais é que este sofre uma caricaturização por parte das pessoas contrárias à causa. Não raramente, os ativistas dos direitos dos animais são rotulados de extremistas, sentimentalistas, misantropos, ou, simplesmente, pessoas que amam demais e não conhecem a diferença entre os animais e os seres humanos. Tais conceituações são corroboradas com frequência pela mídia que generaliza comportamentos ilegais praticados por meia dúzia de ativistas e por isso diminui a confiança neste movimento. 482 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, p. 11348. 167 Recriar e redefinir o sentido atribuído ao direito é o objetivo do movimento do direito dos animais, já que não se pode conceber uma consciência jurídica indiferente às diversas formas de crueldade praticada contra os animais. Possuir estes direitos é ter um tipo de escudo moral protetor, algo como um sinal vermelho, dizendo que não se deve ultrapassar. Para os animais este sinal vermelho significa que os homens não são moralmente livres para prejudicá-los e que não cabe a outros intervirem nas livres escolhas dos animais. Para os seres humanos, este sinal representa proteger àqueles que têm direitos e a limitar moralmente a liberdade de outros. A falta de legitimidade processual dos animais advém do fato de que nenhuma lei confere a eles titularidade de ação em nome próprio. Todavia, não admitir que os animais possam ir a juízo, é esquecer que o legislativo pode criar pessoas jurídicas que podem ingressar em juízo por direito e em nome próprio. Tradicionalmente, teorias do direito limitam os direitos (morais e legais) aos seres humanos. Deste modo, sustentam que todos os seres humanos têm certos direitos morais por serem dotados de razão, consciência de si e linguagem articulada. As novas teorias dos direitos dos animais nos levam a concluir que eles têm o direito a uma legislação protetiva. Eles possuem interesses que devem estar protegidos por leis levando em consideração as necessidades de sua espécie. Devem ter garantidos direitos fundamentais, que lhe assegurem ser tratados com o mesmo respeito com que se exige que sejam tratados os seres humanos. Os animais possuem seus próprios interesses que devem estar protegidos por leis483 Reconhecendo a necessidade de modificar a distinção básica que fundamenta a atribuição dos direitos subjetivos apenas aos seres humanos, relegando aos animais o papel de objetos da relação jurídica, Levai afirma que o pensamento jurídico tradicional comete o equívoco de pressupor a existência de uma diferença qualitativa entre o homem e o animal, de modo a autorizar a preponderância do poder, da forma e, sobretudo, da capacidade de raciocínio humano. Contudo, a essência ética da tese de que os animais são sujeitos de direito não se restringiria à capacidade de pensar ou de falar, mas à capacidade de sofrer484. 483 DIAS, Edna Cardozo. Os animais como sujeitos de direito. Revista Brasileira de Direito Animal. Belo Horizonte: FDUA, a. 5, n. 23, set. 2005, p. 5. 484 LEVAI, Laerte Fernando. Animais e bioética: uma reflexão filosófica. Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, a. 1, n. 2, jul. 2001, p. 71. 168 Olhe no fundo dos olhos de um animal e, por um momento, troque de lugar com ele. A vida dele se tornará tão preciosa quanto a sua e você se tornará tão vulnerável quanto ele. Agora sorria, se você acredita que todos os animais merecem nosso respeito e nossa proteção, pois em determinado ponto eles são nós e nós somos eles.485 Sob este enfoque, o civilista Antonio Junqueira de Azevedo se posiciona favorável aos direitos dos animais: A vida genericamente considerada consubstancia o valor de tudo que existe na natureza. Esse valor existe por si; ele independe do homem. Do primeiro ser vivo até hoje, há um fluxo vital contínuo; todo ser vivo tem sua própria centelha de vida mas cada centelha individual surge do fogo que, desde então, queima na Terra e, nesse fogo, cada centelha se insere como parte do todo. A vida em geral fundamenta o direito ambiental e o direito dos animais486. Diomar Ackel Filho487 esclarece que efetivamente, os animais já não são perante o direito meramente coisas. Pode-se sustentar que os animais constituem individualidades dotadas de uma personalidade típica à sua condição. Não são pessoas, na acepção do termo, condição reservada aos humanos. Mas são sujeitos de direitos titulares de direitos civis e constitucionais, dotados, pois, de uma espécie de personalidade sui generis, típica e própria à sua condição. Não se trata de reconhecer as criaturas um direito sub-humanos, mas apenas reconhecer que os animais também lutam por sua sobrevivência, liberdade e integridade, e reconhecer que eles são fins em si mesmo, e não meros objetos das relações jurídicas. Para Alfredo Migliore, os símios são sujeitos de direito. O Direito inerente ao ser vivo que intencionalmente luta por seus interesses primordiais é um direito natural, subjetivo, que preexiste à norma, jamais será por ela criado ou concebido. O mesmo se dizia dos direitos dos cativos de se rebelarem contra seus captores e do direito à integridade física e à vida dos prisioneiros de guerra, ainda que os Códigos permitissem a tortura e sua execução sumária. Não, não falos aqui 485 Philip Ochoa apud RODRIGUES, Danielle Tetu. OS ANIMAIS NÃO-HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO SOB ENFOQUE INTERDISCIPLINAR. 119 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 76. 486 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14. 487 ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos Animais. São Paulo: Themis Livraria e Editora, 2001, p. 64. 169 de leis escritas ou direito posto, mas de um direito pressuposto, que inebria e antecede o direito escrito, que torna justa a luta para se libertar do açoite de um capataz. Esse direito íntimo, único, poderoso, primordial e anterior à norma, os grandes primatas também têm488. Pode-se concluir que não somente os seres humanos precisam de tutela, mas também os animais não-humanos. Toda forma de vida merece um mínimo de proteção. A abrangência dos animais protegidos e as formas de tutela seriam os próximos passos a serem discutidos. Mas o que se quer garantir num primeiro momento é que os animais são sujeitos de direitos, e que entre os direitos que devem ser tutelados se encontram seus bens maiores: sua vida, e liberdade. Nos dizeres de Nussbaum alguns princípios políticos fundamentais representam um esboço apropriado dos direitos dos animais, que se passa a expor489: 1- Vida: todos os animais têm direito de dar continuidade a suas vidas, tenham eles ou não tal interesse consciente. “Todos os animais sensíveis têm um direito seguro contra a matança gratuita por esporte. A matança para a obtenção de itens de luxo como pele cai nesta categoria e deve ser banida”. 2- Saúde corporal: Um dos direitos mais básicos dos animais é o direito a uma vida saudável. O que implica leis de banimento ao tratamento cruel, banimento de confinamento, incluído os animais de circo e zoológicos. 3- Integridade corporal: os animais têm titularidades direitas contra violações de sua integridade corporal por violência, abusos, e outras formas de tratamento prejudicial. Desse modo a retirada das garras de animais devem ser banidas, e também a retira das cordas vocais de cães para que esses não incomodem os seres humanos com seus latidos. 4- Sentidos, imaginação e pensamento: garante aos animais o acesso a fontes de prazer, como por exemplo, ao movimento livre em um ambiente que estimule e agrade os seus sentidos. Os animais têm direito a liberdade. 488 MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. A personalidade Jurídica dos grandes primatas. 409 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) Universidade de Direito de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 313. 489 NUSSBAUM, Martha C. para além da compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos, p. 1 170 5- Emoções: todos ou quase todos os animais sentem medo, raiva, ressentimento, gratidão e alegria. Logo, eles têm direito a ter a oportunidade de conviver com outros animais, amar, cuidar e ser cuidado. Assim, o isolamento forçado de animais estaria banido. 6- Racionalidade prática: temos que pensar até que ponto as criaturas vivas têm capacidade de planejar suas vidas e estabelece objetivos. 7- Associação: os animais têm o direito de formar vínculos e engajar-se em formar relacionamentos, com humanos ou não. “eles têm direito a viver em uma cultura pública mundial que os respeite e os trate como seres dignos.” 8- Outras espécies: demanda a formação gradual de um mundo interdependente no qual todas as espécies desfrutarão de relações cooperativas e de apoio mútuo entre si. 9- Participar de atividades lúdicas: reques muitas das mesmas atividades já discutidas, como espaço, estimulação sensorial, e acima de tudo convivência com outros animais de sua espécie. 10- Controle sobre o ambiente individual: para os animais não humanos é importante ter uma concepção política comprometida em tratar-lhes de maneira justa, é importante que tenham direitos diretamente, de modo que um guardião humano tenha interesse jurídico para ir em juízo vindicar tais direitos. Os animais têm direito a ter seus habitats respeitados, e sua integridade territorial. Como foi visto, quase todas as concepções éticas a respeito do direito dos animais sustentam que há distinções moralmente relevantes entre as formas de vida. Matar um ser senciente é diferente de matar um ser vivo que não sente dor ou angustia, como apontado por Peter Singer. O abismo que sempre existiu entre homens e animais, no entender de Singer, foi destruído pela teoria darwiniana e pela consequente perda de credibilidade da criação divina do homem. Desde então, aproximações antes impensáveis entre a nossa e as demais espécies têm sido feitas por cientistas de diversas especialidades, que mostraram que os animais possuem formas de linguagem, de compreensão temporal e que alguns deles, como os grandes símios (gorilas, orangotangos e chimpanzés) são capazes de aprender sinais próprios da linguagem humana e de terem uma ideia de si mesmos (autoconsciência). 171 Semelhantemente, Tom Regan defendeu os animais que são sujeitos de uma vida490, termo desenvolvido pelo autor, são sujeitos morais e logo, tutelados pelo direito. No entanto, Gray Francione não viu razão para limitar a classe dos animais protegidos àqueles que Regan descreve como sujeitos de uma vida491. O filósofo desenvolveu a teoria de que os animais são pessoas. “Mas devemos ser cuidadosos quanto ao que queremos dizer com esse termo. Tendemos a usar a palavra pessoas como sinônimos de ‘humanos’, mas esse uso é incorreto”492. Dizer que um ser é uma pessoa é meramente dizer que esse ser tem seus interesses moralmente significativos, que o princípio da igual consideração de interesses se aplica a esse ser, que esse ser não é uma coisa, pois sua condição de propriedade impediu que sua personalidade fosse concretizada. O que fica evidente é que reconhecemos que existem dois tipos de seres: pessoas e coisas493. As quase pessoas, ou algo mais que coisas necessariamente correrão o risco de ser tratadas como coisas porque o princípio da igual consideração não pode ser aplicada a elas. Assim, ou os animais são coisas, ou são pessoas com os quais temos obrigações morais diretas494. O respeito pelas oportunidade de prosperidade de outras espécies sugere, assim, que a legislação humana deva incluir robustos compromissos políticos positivos para com a proteção dos animais, mesmo se, não tivessem os humanos interferido de modo tão disseminado nas formas de vida dos animais, a conduta mais respeitosa poderia ter sido simplesmente deixa-los em paz, vivendo as vidas que eles constroem para si próprios495. Hoje, os animais são representados em juízo, mas além do direito material, pleiteiam o direito processual de serem reconhecidos como sujeitos de direito, o que 490 Todos os mamíferos normais, e alguns outros animais como as aves que sejam sencientes. FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 37. 492 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 180. 493 Apesar de alguns doutrinadores e legislações sustentarem que os animais têm um status diferenciado, seriam sui generis, um misto, algo que não é coisa, mas também não é pessoa. Uma invenção filosófica difícil de definir. 494 FRANCIONE, Gray L. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?, p. 181-183. 495 NUSSBAUM, Martha C. Para além da compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos, p. 116122.. 491 172 possibilitaria demandarem em nome próprio, tal qual foi requerido no famoso caso tratado nesse trabalho da chimpanzé Suíça. Não é preciso saber ao certo o que são os animais para lhes reconhecer dignidade e um tratamento justo. “Dispensar um tratamento jurídico de propriedade a seres vivos é desmoralizar o sistema”496. Do exposto, nota-se que são as condições sociais e o momento histórico que definem, no direito, quem possui ou não personalidade jurídica. Não é um atributo natural do ser humano, mas, sim, uma imputação jurídica. E mais, ser pessoa humana não constitui condição essencial para ser sujeito de direitos, ter personalidade jurídica reconhecida. É uma potencialidade, um ato do legislador.497 A busca pelo reconhecimento dos animais como sujeitos de direito enfim logrou êxito na Argentina, que no dia 18 de dezembro de 2014 reconheceu que a orangotango Sandra, que viveu 20 anos no zoológico de Buenos Aires, foi beneficiada pela decisão que lhe reconhece direitos como “sujeito não-humano”498. Em uma sentença histórica para o Movimento Animalista Argentino, a Sala II da Câmara Federal de Decisão Penal, por unanimidade, destacou que: “A partir de uma interpretação jurídica dinâmica e não estática, é preciso reconhecer aos animais o caráter do sujeito de direito, pois os sujeitos não-humanos (animais) são titulares de direitos, pelo que se impõe sua proteção no âmbito das competências correspondentes”. A ONG AFADA havia apresentado no dia 13 de novembro de 2014, em Buenos Aires, um Habeas Corpus a favor da orangotango “Sandra” perante o Juizado da Dra. Monica L. Berdion de Crudo, o qual foi recusado no mesmo dia com o único argumento de que “uma interpretação harmônica das previsões contidas nos artigos 30 e 51 do Código Civil Argentino impõe incluir que a orangotango-de-Sumatra “Sandra” não pode ser sujeito de tutela legal…”. 496 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos, p. 316. 497 NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos, p. 318. 498 Para mais informações acessar:< http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/12/1565726-macaco-do-zootambem-tem-direitos-humanos-declara-corte-argentina.shtml>. Data de acesso: 28 fev. 2015. 173 No recurso da decisão para a Câmara de Apelações do Foro Criminal, esta confirmou a decisão judicial. Mas, corajosamente, o Supremo Tribunal de Justiça argentino reformou a decisão. A justiça argentina acolheu o HC, reconhecendo que Sandra estava confinada injustificadamente. Agora ela poderá viver em um santuário para animais, em condição de semiliberdade499. 4.2. DIGNIDADE PARA ALÉM DA VIDA HUMANA É de conhecimento de todos que a matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana tem sido conduzida essencialmente pelo pensamento de Immanuel Kant. Suas ideias servem de base para a grande maioria das conceituações jurídicas constitucionais da dignidade humana500. Para Kant501 o ser humano não pode ser empregado como simples meio (não é um objeto), mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, é o sujeito) em qualquer relação. Isso se deve ao fato que o ser humano possui valor intrínseco. Já que a ideia de fim em si mesmo está diretamente vinculada às ideias de autônima, de liberdade, de racionalidade e de autodeterminação inerentes à condição humana502. No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade.503 499 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/12/1565726-macaco-do-zoo-tambem-temdireitos-humanos-declara-corte-argentina.shtml>. Data de acesso: 04 de março de 2013. 500 Como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. 501 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo; Abril Cultural, 1974, p. 229. 502 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessário. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 175-205. 503 FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A dignidade e o animal não-humano. In: Molinaro, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 127-144, p. 128. 174 Assim, a dignidade da pessoa humana encontra-se como pedra basilar da edificação constitucional do Estado Democrático de Direito. Em suma, todo um leque de posições jurídicas subjetivas e objetivas, com a função de tutelar a condição existencial humana contra quaisquer violações do seu âmbito de proteção, assegurando o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada ser humano. Mas o que significa a dignidade da pessoa humana? Para Sarlet seria: A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos504. Neste momento, a reflexão que se propõe é a necessidade do reconhecimento da dignidade da vida em geral, através da superação do paradigma teórico Kantiano, pois é possível questionar o excessivo antrocêntrismo que informa tanto o pensamento kantiano505, quanto a tradição filosófica ocidental de um modo geral. Ressalta-se que este tema é complexo e existem as mais diversas posições sobre o assunto, tanto a favor, como contra506. 504 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62. 505 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. A. Pinto de Carvalho. São Paulo: Editora Nacional, 1964. p. 436. A razão refere assim toda máxima da vontade, concebida como legisladora universal, a toda outra vontade, e também a toda ação que o homem ponha para consigo: procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela ideia da dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele próprio. No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade. [...] Ora, a moralidade é a única condição capaz de fazer com que um ser racional seja um fim em si, pois só mediante ela é possível ser um membro legislador no reino dos fins. Pelo que, a moralidade, bem como a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que possuem dignidade. 506 “Tendo em vista o exposto, é melhor evitar o uso da expressão “dignidade animal” para expressar o valor que os animais inegavelmente possuem. Primeiro porque esse valor não é intrínseco, como pretendido pelos animalistas, pois os animais não o compreendem; somente nós o percebemos, e mesmo assim em níveis tão variados que um consenso humano sobre a disponibilidade de suas vidas e os termos de sua utilização parece bastante improvável. Segundo porque a expressão carrega consigo uma carga axiológica indelevelmente ligada à situação existencial dos seres humanos, cujas possibilidades vitais são qualitativamente superiores às dos animais, porque sempre biográficas e abertas à liberdade. Ademais, é impróprio pretender que alguns animais são pessoas. 175 Barroso acredita que o valor intrínseco é o elemento ontológico da dignidade humana e se opõe a valores atribuídos ou instrumentais. A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de se comunicar são as características que conferem singularidade à espécie humana e dão aos humanos um status especial no mundo, distinto de outras espécies.507 Além disso, é, também, a origem de um grupo de direitos fundamentais, no qual se encontram: o direito à vida; o direito à igualdade perante e sob a lei; e o direito à integridade física e mental. A autonomia, segundo o autor, é o elemento ético da dignidade humana e é tida como base da vontade livre dos indivíduos, no sentido de autodeterminação. São condições da existência de autonomia: razão (capacidade mental de fazer decisões informadas); independência (ausência de coação, manipulação e carência severa); e escolha (a real existência de alternativas). Assim, é a capacidade de tomar decisões pessoais e escolhas na vida, baseadas na concepção de “bom” do próprio sujeito, sem influências externas indevidas. A dignidade vista sob os preceitos clássicos deixa à parte sua dimensão ecológica e, por isso, cria-se uma dificuldade de concretização dos fundamentos da vida. Registra-se, dessa forma, a ponderação de Bittencourt: O progresso material e o avanço tecnológico característicos da era moderna não foram acompanhados de sua contraparte ética. Com efeito, adquirimos um extraordinário índice de desenvolvimento técnico, mas nem por isso conseguimos desenvolver um padrão de organização social que efetivamente possa ser adjetivada como ‘civilizada’: tal padrão se realizaria, a rigor, somente a partir do estabelecimento da qualidade de vida, da convivência harmoniosa entre os indivíduos e a realização pessoal no mundo do trabalho e da própria existência privada.508 Ao contrário do que sustentam certos bioeticistas, a pessoa é uma aquisição axiológica e não apenas um condensado de características racionais que culminam na autoconsciência. De modo que, mesmo que alguns animais possuam autoconsciência e que alguns humanos não, é o reconhecimento que ofertamos aos segundos como seres de igual valor que os converte em pessoas, reconhecimento que, negado aos primeiros (inclusive pelos animalistas), os afasta de uma dimensão propriamente pessoal da existência”. LACERDA, Bruno Amaro. Animais como pessoas e “dignidade animal”. Scientia Iuris, Londrina, v.17, n.1, p.49-64, jul.2013. 507 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012. p. 32. 508 BITTENCOURT, Renato Nunes. Homem e natureza: um divórcio ético. Revista Filosofia, São Paulo, ano V, ed. 62, p. 14-21, ago. 2011, p. 21. 176 Nesse contexto, a dignidade (da pessoa) humana constitui um conceito submetido a um permanente processo de reconstrução, cuidando-se de uma noção histórico-cultural em permanente transformação quanto ao sentido e alcance, o que implica sua permanente abertura aos desafios postos pela vida social, econômica, política e cultural, ainda mais em virtude do impacto da sociedade tecnológica e da informação.509 Mas, quando se fala em dignidade humana, também é possível se falar em dignidade animal, conferindo-os um valor inerente, ou seja, a fauna deixa de ser objeto ou um bem e passa a ser sujeito de direitos. A atribuição de dignidade aos outros seres vivos transporta a ideia de respeito e responsabilidade que deve pautar o relacionamento humano com as demais espécies animais510. Se a dignidade consiste em um valor próprio e distintivo que nós atribuímos a determinada manifestação existencial – no caso da dignidade da pessoa humana, a nós mesmos -, é possível o reconhecimento do valor “dignidade” como inerente a outras formas de vida não-humanas511. A dimensão ecológica da dignidade impõe restrições ao exercício de outros direitos fundamentais, fato que Canotilho denomina de “sentido jurídico-constitucional dos direitos fundamentais ecológicos”.512 Em uma obra recente, por exemplo, Luís Roberto Barroso admite a possibilidade de que os animais tenham dignidade: O que poderia ter sido suscitado, isso sim, seria o reconhecimento de dignidade aos animais. Uma dignidade que, naturalmente, não é humana nem deve ser aferida por seu reflexo sobre as pessoas humanas, mas pelo fato de os animais, como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria513. 509 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a Constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 38. 510 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral, p. 191. 511 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral., p. 194-195. 512 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. In: FERREIRA, Helinie Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (Orgs.). Estado de direito ambiental: tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 31-46, p. 37. 513 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 118. 177 Para Barroso “há uma percepção crescente (...) de que a posição especial da humanidade não autoriza arrogância e indiferença frente à natureza em geral, incluindo os animais não-racionais, que têm seu próprio tipo de dignidade.”514 (...) porque tem o valor intrínseco em seu núcleo, a dignidade humana é, em primeiro lugar, um valor objetivo que não depende de nenhum evento ou experiência, e, assim, não necessita ser concedido nem pode ser perdido, mesmo em face do comportamento mais reprovável. Também, como consequência, a dignidade humana não depende da razão, estando presente no recém-nascido, na pessoa senil ou em pessoas incompetentes em geral515. A adoção pelo antropocentrismo alargado pela Constituição Brasileira de 1988 pode ser o primeiro rumo à mudança de paradigma. Caminha-se para que seja reconhecido a todos os seres vivos um valor intrínseco conforme uma leitura mais ecológica do caput do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil. Borges e Oliveira ressaltam que “a vida humana continua sendo o critério ético fundamental, mas é preciso reconhecer que ela não existe isoladamente, e mais: que ela se inter-relaciona com todas as outras formas de vida do planeta”516. Os juristas complementam o posicionamento acerca da crueldade contra os animais afirmando que a concepção de ampliação da dignidade humana para a dignidade ecológica reside na: [...] ideia de dever moral de um tratamento não-cruel dos animais que deve buscar o seu fundamento não mais na dignidade humana ou na compaixão humana, mas sim na própria dignidade inerente às existências dos animais não-humanos. Tal reflexão pode ser ampliada para a vida em termos gerais, não se limitando à esfera animal.517 514 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012, p. 38. 515 BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the transnacional discourse. Boston College International and Comparative Law Review, vol. 35, nº 2. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1945741>. Acesso em: 28 de abril de 2012. 516 BORGES e OLIVEIRA apud BITTENCOURT, Renato Nunes. Homem e natureza: um divórcio ético. Revista Filosofia, São Paulo, ano V, ed. 62, p. 14-21, ago. 2011. 517 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 176-205, p. 191. 178 Seguindo essa mesma linha argumentativa, é possível afirmar que ao proibir as práticas cruéis ou que possam levar os animais à extinção a Constituição Federal vislumbra nessas condutas um conteúdo de indignidade. E mais, esse enunciado revela que ao se proteger a fauna inclusive contra a ação humana, a Constituição reconhece que os animais merecem uma tutela, o que vai muito além de uma visão meramente instrumental da vida animal. Ao reconhecer que os animais e a flora possuem uma função ecológica, a ordem constitucional reconhece a vida animal como fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo kantiano. Nesse sentido, Morato Leite discorre com uma visível esperança de novas possibilidades hermenêuticas: Mas como a interpretação da norma reflete muito do que se colhe da realidade cultural, incubadora dos nossos valores éticos, quem sabe um dia se verá no ‘todos’ do artigo 225, caput, uma categoria mais ampla e menos solitária do que apenas os próprios humanos.518 Mesmo diante do não reconhecimento de titularidade de direitos aos animais, seja a partir de uma concepção civilista – que por ora parece em descompasso com o Estado Socioambiental –, ou seja, derivada dos próprios fundamentos dessa espécie de Estado, não é possível negar a proteção aos animais, principalmente, em virtude do valor da vida que esses detêm. O fundamento desta proteção encontra sede na adoção do antropocentrismo alargado pela Constituição de 1988, o qual rejeita a visão puramente econômica e instrumental dos bens ambientais. Passa a imperar a ideia de interdependência entre homens e natureza, um dos objetos de análise da Ética Ambiental. Para Trajano “ser cruel é tomado como uma violação da própria dignidade, cristalizando progressivamente uma fórmula da personalidade desses seres a informar que existe uma proibição direta ao tratamento insuficiente ou excessivo dirigido aos animais”519. 518 LEITE, José Rubens Morato et al. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 77-458, p. 125. 519 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista, p. 56. 179 O autor ainda continua: a diferença e constatação de que os não-humanos têm um valor e não meramente é algo valorado molda a Carta de 1988 como um documento ímpar no cenário mundial, a figurar como um verdadeiro Estatuto Jurídico em favor de direitos para os animais520. Evidencia-se que os seres humanos partilham uma relação moral comum com os demais seres do planeta, tendo deveres morais com eles, uma vez que conscientes de sua dignidade e de sua consideração, têm a obrigação de tratar os outros seres através do mesmo status que almejam. A dignidade animal renova a relação entre o sistema de normas e o sistema de valores sociais, direcionando uma obrigação moral direta para com os animais, um dever de pós-humanidade, em que aqueles que o sentem não são os principais responsáveis por tal sofrimento, não sendo certo tratá-los indignamente, visto terem direitos, um crédito moral de não serem tratados de tal modo. Há um verdadeiro reconhecimento do valor inerente dos animais não-humanos, asseverando seu status de sujeito-de-uma-vida521. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978 refere-se à dignidade animal em seu artigo 10º, embora não conceitue a palavra: “1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem. 2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal”. Para que a dignidade seja possível de ser dada a outros seres vivos precisa ser conceituada de forma subjetiva, sendo ampliada através da aceitação do binômio dignidade/respeito. Dizendo que algo é digno de respeito estaremos outorgando dignidade àquilo que merece ser respeitado. O conceito subjetivo de dignidade pode assim ser atrelado ao animal não-humano, entendendo-o como partícipe da biosfera, como ser passível de respeito pelo papel que exerce nesse sistema global devendo ter sua integridade respeitada e defendida522. Assim, pode-se dizer que em relação aos animais não humanos a dignidade residiria no fato do animal ser portador de valor inerente, em razão disso, ter interesse em não ser 520 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista, p. 57. 521 SILVA, Targore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista, p. 57. 522 FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A dignidade e o animal não-humano, p. 142. 180 agredido. Tratar bem os animais e respeitas seus direitos amplia a consciência e a esfera de consideração moral humana.523 O que se buscou demonstrar é que estabelecer regras jurídicas em favor dos animais envolve muito mais a moral e a ética do que propriamente o direito. E mais, a “aplicação do princípio da dignidade para além da vida humana representa um mínimo de cuidado para com os demais seres vivos, cuidado esse que extrapola a existência de interesse ou utilidade desses animais não humanos, mas sencientes em relação ao ser humano”524. Quanto a Ingo Sarlet, pode-se concluir de forma resumida que, não obstante o conteúdo multidimensional da dignidade, segundo o autor, a dignidade da pessoa humana funda-se eminentemente na autonomia do ser humano, decorrente da sua racionalidade. Barroso, por sua vez, além da autonomia introduz outro componente da dignidade, o de valor intrínseco, que, como visto, demanda inteligência, sensibilidade e capacidade para se comunicar. Os dois autores reconhecem que os animais possuem dignidade. Recentemente um grupo de destacados cientistas emitiu a “Cambridge Declaration on Consciousness”, como resultado da Francis Crick Memorial Conference on Consciousness in Human and non-Human Animals, na Churchill College, da Universidade de Cambridge, onde se lê: (...) evidências convergentes indicam que animais não-humanos possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados conscientes assim como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que humanos não são singulares na posse de substratos neurológicos que geram consciência. Animais não-humanos, incluindo mamíferos e aves, e muitos outros, inclusive polvos, também possuem esses substratos neurológicos.525 523 FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A dignidade e o animal não-humano, p. 143. MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais: proteção ou legitimidade do comércio da vida?. In: Molinaro, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago (Orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 286. 525 “Convergent evidence indicates that non-human animals have the neuroanatomical, neurochemical, and neurophysiological substrates of conscious states along with the capacity to exhibit intentional behaviors. Consequently, the weight of evidence indicates that humans are not unique in possessing the neurological substrates that generate consciousness. Nonhuman animals, including all mammals and birds, and many other creatures, including octopuses, also possess these neurological substrates”. LOW, Philip et. al. The Cambridge Declaration on Consciousness. Cambridge, 2012. Disponível em: <http://fcmconference.org/img/Cambridge DeclarationOnConsciousness.pdf>. Acesso em 26 de agosto de 2012. 524 181 O importante a se observar de tudo isso, é que não é possível afirmar que os animais que são frequentemente explorados em laboratórios, e de tantas outras formas, não se encaixam no critério de valor intrínseco de Barroso. Para além disso, a única característica que distingue todos os seres humanos de todos os outros animais, além de questões religiosas, é a própria espécie. Porém, essa característica é manifestamente arbitrária e similar a outras igualmente reprováveis que sustentam diversas formas de preconceito. Se todos os seres humanos são possuidores de dignidade e, portanto, de direitos dela decorrentes, como à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica, não há justificativa razoável para negar dignidade para animais não-humanos, iguais a muitos desses humanos em tudo que é moralmente relevante. 4.3. A PROTEÇÃO DA FAUNA NO DIREITO COMPARADO Nas constituições mais recentes, o ambientalismo passou a ter elevada importância, e nelas foi introduzido “deliberadamente como direito fundamental da pessoa humana, não como simples aspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituições mais antigas”526. A Alemanha se tornou, em 21 de junho de 2002, a primeira nação da União Europeia a garantir, em sua Lei Fundamental, direitos para os animais527. Após uma longa discussão no parlamento alemão, 542 deputados votaram a favor da inclusão da proteção estatal dos aos animais na Constituição Alemã. O parágrafo 20 da Lei Fundamental passou a ter três palavras a mais e o seguinte teor: “O Estado protege os fundamentos naturais da vida e os animais”. O direito dos animais ganhou uma posição importante no sistema jurídico alemão, visto que esta norma passa a ser uma obrigação estatal de desenvolver políticas de proteção aos 526SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43. 527Artigo 20 a “[Proteção dos recursos naturais vitais e dos animais] Tendo em conta também a sua responsabilidade frente às gerações futuras, o Estado protege os recursos naturais vitais e os animais, dentro do âmbito da ordem constitucional, através da legislação e de acordo com a lei e o direito, por meio dos poderes executivo e judiciário”. 182 animais. Assim, a Constituição alemã pode ser vista como um modelo para outras constituições em todo o mundo. A Suíça protege constitucionalmente os animais desde 1893, ao proibir, em sua constituição, o abate de animais sem anestésico. No artigo 80º da Constituição deste Estado, é conferido ao Parlamento o dever de fazer uma legislação de proteção animal e se estabelece no artigo 120º, nº 2, a “dignidade das criaturas”, conferindo um valor inerente a todos os seres vivos não-humanos. Art. 120º Engenharia genética no âmbito não-humano. 1 O homem e seu ambiente são protegidos dos abusos da engenharia genética. 2 A Confederação prescreve disposições sobre a manipulação com material embrionário e genético de animais, plantas e outros organismos. Para isto, leva em conta a dignidade da criatura, assim como a segurança do homem, dos animais e do meio-ambiente e protege a variedade genética das espécies de animais e vegetais. A Áustria também trouxe uma norma de proteção em sua Constituição. Estabeleceu no artigo 11, §1º da sua Constituição que deve o Estado austríaco se empenhar na elaboração de normas de proteção aos animais. Nesse sentido, em 2004, foi aprovada a nova lei de Proteção Animal (Austrian animal Welfare law) que cria padrões para a proteção animal no país. Em 1988, a Áustria já avia aprovado a Lei federal sobre o estatuto jurídico do animal no direito civil. Desde então, o Código Civil austríaco, asseverou que os animais não são coisas528. Esta afirmação teve implicações práticas, já que alterou o regime jurídico da obrigação de indemnizar, relativa às despesas de tratamento do animal ferido529. Agora o dono do animal pode ser reembolsado por todas as despesas do tratamento veterinário, mesmo que sejam em valor superior ao valor patrimonial do animal. Observa-se que a indenização não se limita ao valor do animal, como simples objeto, mas sim ao valor 528 § 285 a: “Os animais não são coisas; estes são protegidos mediante leis especiais. As normas relativas às coisas são aplicáveis aos animais, na medida em que não existam disposições divergentes.” 529 o § 1332a ABGB. “No caso de um animal ser ferido, são reembolsáveis as despesas efetivas com o seu tratamento mesmo que excedam o valor do animal, na medida em que um dono de animal razoável, colocado na situação do lesado, também tivesse realizado essas despesas.” 183 razoável do tratamento para a recuperação de sua saúde e bem estar, o que possibilitou melhores cuidados veterinários aos animais feridos. Assim, nota-se que os códigos civis da Alemanha, Suíça e Áustria, foram alterados e passaram a prever expressamente que os animais não são coisas. Embora não tenham dito que são sujeitos de direito, em que pese a dicotomia girar entre sujeito e objeto, há uma terceira via a sustentar que, se os animais não são coisas, também não são sujeitos, são sui generis/tertium genus530. A leitura do texto constitucional equatoriano não deixa dúvida quanto à sua filiação ao ecocentrismo. Em nenhuma passagem assenta que indivíduos não-humanos são sujeitos de direito. Tão somente a natureza é titular de direitos. O que se busca proteger são seus ciclos vitais, estrutura, função e processos evolutivos.531 Ressalte-se que a atenção está voltada para a natureza, enquanto complexo ecológico da manutenção da vida coletiva do planeta, assim apesar da evolução do reconhecimento da natureza como sujeito de direito, isso não quer dizer que os animais também foram. Mas, reconhecer que a natureza é titular de direitos beneficia todos os seres vivos, logo os animais, pois a manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação dos seus habitats é fundamental para sua sobrevivência. Em 2008, a Constituição do Equador532 reconheceu a natureza como sujeito de direitos. O art. 10 da Constituição equatoriana afirma que: “La naturaleza será sujeto de aquellos derechos que le reconozca la Constitución.” Mais adiante, a prescrição vem do art. 71: “La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y rege-neración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.” 530 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, Ano 2 (2013), n. 10, p. 11325 – 11370. 531 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento, p. 11339. 532 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento. 184 Em 2010, na Bolívia533, no mesmo sentido da Lei Constitucional do Equador, foi publicada a Ley de Derechos de la Ma-dre Tierra. A constituição define o seu art. 3º: “La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un des-tino común.” Entre os direitos listados da Mãe Terra: direito à vida, à diversidade da vida, ao equilíbrio, à restauração. Para a sociedade é mais fácil aceitar, por exemplo, que a Floresta Amazônica tem direito ao seu ciclo natural, ao seu bioma, do que aceitar que os animais têm direito a vida e a liberdade. Com menor resistência se depara a assertiva de que não se deve derrubar mais árvores de pau-brasil do que a assertiva de que não se deve continuar a matar animais para alimentação, salvo estado de necessidade. Sem dúvida, a pauta dos direitos da natureza é menos exótica, menos conflituosa com a cultura humana tradicional, seus interesses, do que os direitos dos animais534. Neste ano de 2015, a França, após um ano de debates na Assembleia Nacional, passou a ter uma lei que reconhece os animais como seres sencientes. O projeto de lei foi idealizado pela ONG Fondation 30 Milion Amis. O texto altera o status jurídico dos animais no país, atualizando a legislação penal vigente e reconhecendo os animais como seres sencientes, novo artigo 515-14 do Código Civil: “Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité. Sous réserve des lois qui les protègent, les animaux sont soumis au régime des biens corporels.” e não como propriedade pessoal como o antigo artigo (artigo 528). Assim, os animais não são mais definidos por valor de mercado ou de patrimônio, mas sim pelo seu valor intrínseco como sujeito de direito. O Código rural francês também protege os animais, no artigo L.214-1 que dispõe: “tout animal étant un être sensible doit être placé par son propriétaire dans des conditions compatibles avec les impératifs biologiques de son espèce”. O Código Penal francês criminaliza os maus tratos contra animais, com 2 anos de prisão ou 533 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento, p. 11331. 534 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direito dos animais: um enquadramento, p. 11364. 185 multa de 30.000 mil euros, artigo 521-1: “d’exercer des sévices graves, ou de nature sexuelle, ou de commettre un acte de cruauté envers un animal domestique, ou apprivoisé, ou tenu en captivité”. A vitória abre importante precedente para a vida dos animais no território francês, que incorporou o termo filosófico senciência à suas leis jurícas. Vale lembrar que senciência é a capacidade de sentir, atribuição dada pelos especialistas há muito tempo aos animais. O parlamento francês finalmente percebeu algo que muitas pessoas já sabiam: os animais são capazes de vivenciar seus próprios sentimentos, a diferença agora é que este direito é reconhecido de forma legal no código civil do país. Em 11 de março de 2013, a União Europeia, através da Diretiva 2003/15/CE, colocou fim a realização de testes em animais para todos os produtos cosméticos comercializados na União Europeia. A Diretiva foi considerada um avanço por banir a experimentação animal, mesmo que restrita ao setor de cosméticos. Em 2010 já havia proibido qualquer tipo de experiência nos primatas. No entanto, na prática, já havia 8 anos que os grandes primatas não eram utilizados pelo grande repercussão da opinião pública sobre o tema. No dia 15 de maio de 2015 foi a vez da Nova Zelândia. A partir deste dia os animais passaram a ser reconhecidos como seres sencientes, como foi longamente debatido nesse trabalho, o país concordou com os inúmeros dados científicos que afirmam que os animais possuem sentimentos. A lei também proíbe a realização de testes cosméticos em animais. Como se observa, a todo momento são publicadas leis em defesa dos animais, mesmo que o movimento seja tímido, não se pode negar que em todo mundo normas protetoras dos animais vêm ganhando espaço tanto jurídico, quanto social. A sociedade está consciente da necessidade de mudança, no entanto, o sistema jurídico brasileiro ainda está relutante em reconhecer os animais como seres sencientes e como sujeitos de direito. 186 4.4. O MODELO ECONÔMICO ATUAL: UMA BARREIRA A SER ROMPIDA EM DEFESA DOS ANIMAIS Apesar de os recursos naturais disponíveis terem uma utilidade praticamente vital para os agentes econômicos, e de estarem cada vez mais escassos, eles estão sujeitos a uma tal intensidade de exploração pelo Homem que se aproximam a passos largos da extinção. Esta situação absurda reflete uma miopia dos agentes econômicos, que, incapazes de ver ao longe, não se apercebem de que, tomando decisões económicas com base em dados de curto prazo, estão a cavar a sua própria sepultura alheios às consequências futuras que, a médio ou longo prazo, decorrerão das suas decisões de hoje. Enrique Rojas ressalta que ao viver numa cultura hedonista e individualista em que reina o consumismo, “o homem moderno não tem referenciais, vive num grande vazio moral, não é feliz, embora tenha materialmente quase tudo, e isto é o mais grave”535. Viver bem a qualquer custo é o código de comportamento daqueles que rompem com os ideais e se encontram no vazio e na ausência de sentidos. Com efeito, o mercado rejeita qualquer consideração capaz de evitar a livre circulação da mercadoria e procura fabricar o ser humano despojado de seu poder julgador, instigado a usufruir o máximo possível dos bens de consumo e disposto às dependências comerciais. O enfoque do homo economicus na proteção do meio ambiente enfatiza o modelo econômico em que vivemos. Para essa corrente de pensamento, integrada fundamentalmente por economistas, tudo o que fazemos, e toda a organização da sociedade moderna, tem uma orientação econômica. Assim, se queremos preservar nossas florestas e ecossistemas é preciso, antes de tudo, tornar isso economicamente interessante536. Passíveis de monetarização (são atributos econômicos, afinal de contas), os danos ambientais e o ataque aos animais ensejariam apenas responsabilidade civil. 535 536 ROJAS, Enrique. O homem moderno. São Paulo: Mandarim, 1996, p.11. BENJAMIN, Antonio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso, p. 13. 187 A ética ambiental, veio aproximar a sociedade de uma visão biocentrica, preocupada com a vida em todas as suas formas, mesmo no atual cenário, onde a homogeneização cultural força um consumo desenfreado, como se os bens fossem infinitos, e seu consumo desmensurado não gerasse nenhum impacto ambiental. Assim, surgirá um conflito de interesses, pois se de um lado, a ética existe para fixar limites à nossa liberdade e desejo, por outro, é evidente que o uso dos animais nos dá um padrão de vida bem mais alto daquele que teríamos sem esse uso537. Romper com o modelo ético e econômico atual irá gerar uma preocupação com o que esta por vir, e é normal que a sociedade leve tempo para evoluir, assim como demorou milênios para abolir a escravidão. A transformação do atual cenário em prol dos animais pode ser analisada através da produção de chinchilas no país. O Brasil é o segundo maior produtor do animal, atrás apenas da Argentina. Além de ser um animal de estimação, a chinchila também é usada para a produção de peles. Uma chinchila pode ser morta aos 10 meses, ao custo de US$ 20. Sua pele é vendida para a exportação, em média, por US$ 40. As peles consideras excelentes, no entanto, podem chegar ao valor de US$ 100538. Em 2011 a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável aprovou, por unanimidade, o projeto de lei 5956/09 que proíbe o abate da chinchila para o comércio de sua pele no Brasil. No Estado de São Paulo, o projeto de lei 616 proíbe a manutenção e criação de animais para a venda de peles. Apesar dos projetos ainda não terem sidos aprovados, muitos criadores estão abatendo os animais e estocando suas peles, como ocorreu em Sorocaba quando foram mortas 1.500 fêmeas539. Observa-se que a criação chinchila objetiva unicamente a pele, pois não a outro uso humano para o animal. Tal atitude mostra o pensamento mercantilista em relação aos animais. Os proprietários em vez de doarem os animais para pessoas que os protegessem, preferiram abater 537 NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 16. 538 Brasil é 2º criador de chinchilas, diz veterinário na Expointer no RS. G1, 03 set. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/campo-e-lavoura/noticia/2014/09/brasil-e-2-criadorde-chinchilas-diz-veterinario-na-expointer-no-rs.html>. Data de acesso: 19 out. 2014. 539 Criadores dizem que matarão 30 mil chinchilas por causa da lei contra pele. Folha UOL, 14 out. 2014. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/10/1530445-criadores-dizem-quematarao-30-mil-chinchilas-por-causa-de-lei-contra-pele.shtml>. Data de acesso: 19 out. 2014. 188 o maior número possível, pensando na elevação do preço das peles, já que a proibição levará a escassez do produto e consequentemente a alta dos preços. Para Fritjof Capra “a meta central da teoria e da prática econômicas atuais - a busca de um crescimento econômico contínuo e indiferenciado - é claramente insustentável, pois a expansão ilimitada num planeta finito só pode levar à catástrofe”540. Com efeito, as atividades econômicas estão prejudicando a biosfera e a vida humana de tal modo que, em pouco tempo, os danos poderão tornar-se irreversíveis. Nessa precária situação, é essencial que a humanidade reduza sistematicamente o impacto das suas atividades sobre o meio ambiente natural. Como declarou o senador americano Al Gore em 1992, “Precisamos fazer do resgate do meio ambiente o princípio organizador central da civilização”. Outro caso que ilustra o embate entre o modelo econômico atual e a proteção da fauna ocorreu no Rio Grande do Sul. O Ministério Público ajuizou ação civil pública em face de um avicultor especializado na produção de ovos de galinha, do município de Pelotas, Rio Grande do Sul. A ação foi tombada sob o nº 022/1.08.0006517-5. Nos termos do relatório do juiz prolator da sentença de primeira instância, as pretensões do Ministério Público foram: Alega que o ciclo de vida dos animais criados pelo método do réu otimiza os lucros, mantendo as galinhas vivas apenas para produção. Diz que as aves são mantidas aglomeradas dentro de pequenas gaiolas, onde são submetidas a tratamentos cruéis como mutilação e “muda forçada”, procedimento que, segundo o autor, consiste em manter as aves sem alimentação para que a produção de ovos aumente. Afirma que os animais são privados daquilo que seria o seu comportamento natural. Aduz inconstitucionalidade, imoralidade e ilegalidade neste sistema produtivo. Invoca o Decreto nº 24.645/34, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, a Lei Federal nº 9.605/98 e a Constituição Federal. Pede a procedência da ação, com a condenação do réu à obrigação de não fazer, consistindo na não utilização deste método de criação. Juntou documentos (fls. 21/128). A ação, todavia, foi julgada improcedente, nos dois graus de jurisdição. Decidiu‑se pela inaplicabilidade de toda esta legislação protetiva às galinhas poedeiras. A argumentação utilizada pelo relator do acórdão é crucial para se entender o motivo da ineficácia das leis protetivas aos animais no Brasil: 540 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 157. 189 A ação tem por objeto a condenação do demandado às obrigações de “não submeter as aves de postura ao sistema de criação em baterias de gaiolas, ou a qualquer outro que lhes impeça o exercício de seu comportamento natural, bem como a não realizar debicagem e muda forçada.” (fls. 20). A concepção antropocêntrica fez ou faz do homem o centro do universo, referência máxima e absoluta de valores de sorte que a seu redor gravitem todos os demais seres. Afinal, “crescei e multiplicaivos e enchei a Terra, e subjugai, e dominai”, a missão que lhe foi dada por Deus (Versículo 28 do capítulo 2º do Gênesis). Para Aristóteles (348-322 a.C), encampado por Santo Tomas de Aquino (1225--‑‑1274), o homem está no vértice de uma pirâmide natural, em que os minerais (na base) servem aos vegetais, os vegetais servem aos animais que, por sua vez, e em conjunto com os demais seres, servem ao homem. Verdade, de tempos para cá a visão monista vem cedendo espaço para a proteção do ecossistema e, ficando no caso, para o reconhecimento da dignidade dos animais, com exageros, por suposto. A presente demanda pública se volta para uma das atividades da maior importância – a produção de aves –, posto figure entre os itens de relevo na balança comercial brasileira. Critica e condena métodos e práticas criativas e de exploração da atividade avícola que diz cruéis, o que não se compraz com a prova. (...) Importante salientar, ainda, que, no caso, tem-se produção agroindustrial de aves, a qual segue métodos para melhorar a produtividade e, como colocou a sentença, trazer alimento à mesa da população. Os métodos utilizados pelo requerido, saliente-se, mais uma vez, não são ilegais e nem abusivos. O demandado realiza, sim, o confinamento de aves, mas não permite, como frisado nos autos, que as aves biquem umas às outras até a morte por mero deleite (como é o caso daqueles que criavam galos de rinha). O confinamento, saliente-se, mostra-se necessário, tendo em vista os altos índices populacionais. Ademais, como coloca a decisão recorrida, embora haja estudos sobre outros métodos de debicagem menos agressivos, o autor da ação não logrou demonstrar qual é aquele efetivamente utilizado pelo requerido. No mais, a produção em larga escala do alimento, através de métodos indolores aos animais, mostra-se, ainda, um desafio tecnológico. Frisese que a legislação ambiental surgiu para proteger os animais e impedir abusos praticados pelo ser humano. Contudo, tal legislação não diferencia casos, como o da produção agroindustrial em análise. Verifica-se, da leitura do acórdão de nº 70039307459, julgado pela 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que a legislação que objetiva resguardar os animais de abusos e maus tratos não pode ser aplicada no caso de ‘produção agroindustrial’ porque se choca com interesses econômicos do explorador da atividade. Ou seja, o Direito pode proteger os animais não-humanos, desde que não atrapalhe os interesses capitalistas do animal 190 humano: os interesses – vida e integridade – da galinha perdem para o interesse – lucro – do homem541. O aumento da destruição ambiental na esteira do crescimento econômico é ilustrado pelos exemplos da Coréia do Sul e de Taiwan. Na década de 1990, ambos os países alcançaram taxas impressionantes de crescimento e foram apresentados pelo Banco Mundial como modelos a serem seguidos pelos países do Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, os danos ambientais por eles sofridos foram devastadores. Em Taiwan, por exemplo, os venenos usados na agricultura e na indústria poluíram gravemente quase todos os grandes rios. Em alguns lugares, a água, além de não ter peixes e não servir para beber, chega a pegar fogo. O nível de poluição do ar é o dobro do considerado inadmissível nos Estados Unidos; o número de casos de câncer por segmento de população dobrou desde 1965, e o país apresenta a maior incidência de hepatite do mundo. Em princípio, Taiwan poderia usar a sua nova riqueza para limpar o seu meio ambiente, mas a competitividade da economia global é tão grande que a 157.a fim de fazer baixar os custos da produção industrial542. À medida que os programas da televisão e as agências multinacionais de propaganda veiculam imagens glamorosas de modernidade para bilhões de pessoas em todo o mundo, sem deixar claro que esse estilo de vida do consumo material infinito é totalmente insustentável, aumenta a escassez dos recursos naturais, como a falta de água, por exemplo. Esgotando os recursos naturais e reduzindo a biodiversidade do planeta, rompe-se a própria teia da vida da qual depende o bem-estar do planeta; prejudicamos, entre outras coisas, os serviços ecossistêmicos como o processamento de resíduos, a regulação do clima e a regeneração da atmosfera, entre tantos outros543. Tudo isso deixa claro que há uma diferença crucial entre as redes ecológicas da natureza e as redes empresariais da sociedade humana. 541 CARDOSO, Waleska Mendes e TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Por que os animais não são efetivamente protegidos: estudo sobre o antropocentrismo vigente a partir de um julgado emblemático. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v 18, n.13, p. 201-214, jan. – dez. 2013. 542 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 157. 543 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 217. 191 Num ecossistema, nenhum ser é excluído da rede. Todas as espécies, até mesmo as menores dentre as bactérias, contribuem para a sustentabilidade do todo. Já no mundo humano da riqueza e do poder, grandes segmentos da população são excluídos das redes globais e se tornam insignificantes do ponto de vista econômico544. Com o exemplo da natureza, podemos aprender a cooperar e viver em harmonia dentro da casa compartilhada por todos os seres vivos, o Planeta Terra. Pose-se assim, evoluir de forma sustentável, juntamente com todos os outros animais e formas de vida do Planeta. O homem e a natureza tem um vinculo que não se pode ser negado. Faz-se necessário não apenas um direito ambiental, mas a ecologização do direito545. Com o reconhecimento da importância da natureza para o ser humano, o Direito dos animais terá uma chance de ser incorporado ao sistema jurídico atual. Os animais tem o direito de ter seu estatuto moral reconhecido, tem o direito de não ser tratado como propriedade, tem direito ao respeito. Com a progressiva transformação da moral coletiva, e a preocupação cada vez mais intensa com os animais, vários municípios criaram Secretarias especiais dos Direitos Animais (SEDA), com o objetivo de estabelecer e executar políticas públicas destinadas à saúde, proteção, defesa e bem-estar animal. Entre as cidades que criaram esse órgão de defesa animal encontram-se, Porto Alegre, Recife e Franca. Em outros municípios também existem secretarias, mas com outro nome como no Rio de Janeiro, no qual foi criada a Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais, possibilitando que a causa animal ganhasse destaque junto às Políticas de Governo. Mesmo que o direito mostre-se como um instrumento de dominação do homem sobre os demais seres vivos, existem oportunidades em que as normas legais reconhecem o valor inerente dos animais e sua dignidade, trazendo a esperança que a sociedade possa evoluir para um Estado de Direito Ecológico, em que a vida será amplamente defendida. Vamos aplicar os conceitos estudados até o momento em dois casos peculiares trazidos por Michael Sandel em seu livro “O que o dinheiro não compra: os limites morais do 544 545 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 163. OST, François. A natureza à margem da lei: A ecologia à prova do Direito, p. 19. 192 mercado”. Sandel546 conta inicialmente que entre 1970 e 1992, a população de rinocerontes negros na África caiu de 65.000 para menos de 2.500, embora a caça dessa espécie seja ilegal. Mas a proteção desses animais é difícil, pois seus chifres são vendidos a autos valores na Ásia e no Oriente Médio, uma vez que existe uma cultura local de que esses animais possuem propriedades medicinais, e afrodisíacas. Na década de 1990 e início dos anos 2000, grupos ambientalistas pensaram em uma forma de incentivo para proteger esses animais. Assim pensaram que se os caçadores tivessem o direito de abater uma quantidade determinada de animais, os fazendeiros, ao lucrar com a venda da caça teriam um incentivo para cria-los, cuidar deles e afastar os caçadores ilegais. Em 2004 o governo sul africano autorizou a caça dos rinocerontes negros, pela quantia de US$ 150.000 dólares, este safari seria uma versão capitalista do ecoturismo. Esta solução utilitarista parece estar funcionando, pois no Quênia, onde a caça é proibida, a população de rinocerontes negros caiu de 20.000 para seiscentos, mas na África do Sul a população de rinocerontes começou a se recompor547. Outro exemplo trazido por Sandel é a caça da morsa no Ártico. Este mamífero vive na região ártica do Canadá, e é apreciado por sua carne, pele, gordura e presas de marfim. No entanto, é um animal indefeso, de grande tamanho, presa fácil para os caçadores. Em 1928 o Canadá proibiu a caça da morsa, com exceção dos indígenas locais que poderiam matá-la para sobreviver, como faziam por mais de 4 mil anos. Diante das dificuldades da tribo, foi proposto ao governo canadense a possibilidade de vender o direito de abate local a caçadores, porém a população indígena ficaria com a carne e com a pele. Assim foi feito e hoje o abate da morsa custa US$ 6. 500 dólares548. O interesse neste tipo de caça é estranho, pois a morsa não oferece nenhuma resistência. Os caçadores param a uma distância de 15 metros do animal, e atiram com seu rifle. A morsa morre sem saber do perigo que corria, e o caçador vai embora orgulhoso de ter matado 546 SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 80. 547 SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado, p. 81. 548 SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado, p. 83. 193 um animal indefeso. Tal espetáculo sempre me pareceu muito degradável, subjugar um animal apenas pelo prazer do esporte é cruel. Do ponto de vista da lógica de mercado a solução foi vitoriosa, mas e do ponto de vista moral? Quem sabe, pode depender do prestígio moral da caça esportiva. Seria condenável matar animais selvagens por esporte? Seria imoral matar rinocerontes, leões, veados, onças para sentir aquele momento de adrenalina, momento em que se observa a vida se esvaindo de um grande mamífero que tenta sobreviver em seu habitat cada vez mais reduzido pelas grandes cidades? Ficou provado que a lógica de mercado fica incompleta sem uma perspectiva moral. É se analisando as perspectivas existentes, e os argumentos ambientais e econômicos, que a população poderá se decidir, e assumir as consequências de seu posicionamento. Este trabalho quis deixar claro que o homem não é o senhor absoluto da Terra, e que já existem diversas teorias preocupadas em respaldar o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, mesmo com os obstáculos impostos pela política econômica atual que visa apenas o lucro, sem se preocupar com a teia da vida existente no planeta. O homem já tratou o próprio homem como hoje trata os chimpanzés, gorilas, orangotangos, e outros animais não-humanos. Escravizamos nossos congêneres. Lotamos porões de milhares de navios-negreiros para fornecer gente para as plantations. Criamos senzalas, pelourinhos e açoites. Não se quer ou pretende contrariar primados da biologia para defender a ideia de que somos todos iguais aos animais. Há muitas diferenças entre nós e os grandes primatas, como existem entre babuínos e micos, lêmures e gibões. Mas, somos todos primatas, nessa condição partilhamos, não se pode negar, de muitas similitudes, inclusive, segundo Charles Darwin, as nossas próprias origens... 194 5. CONCLUSÃO Atualmente, vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora e ecossistemas), sob uma diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico intrínseco ou próprio, exigindo, por força de profundos argumentos éticos e ecológicos, proteção independentemente de sua utilidade para o homem, tentando enquadrá-la na concepção clássica de sujeito de direito. Tal concepção surgiu em resposta ao desequilíbrio ambiental e ao alarmante número de extinção das espécies que encontramos hoje, a qual associada a postura filosófica dominante: o antrocetrismo, que foi incorporado em nossas práticas cotidianas, de dominação do ser humano em face do mundo natural, de inspiração cartesiana. No entanto, a Constituição de 1988 trouxe o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado o que possibilitou reconhecer que os animais possuem alguns direitos, entre eles, o de não serem submetidos a crueldade. Não só no Brasil, mas no mundo todo, muitas leis estão sendo criadas na defesa da fauna, proibindo a realização de experimentos científicos e reconhecendo que os animais são sencientes, e como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria. A pressão da sociedade também têm levado a juízo muitas questões em defesa da fauna. Enquanto não se alcançar o devido respeito a todos os seres sencientes, não se poderá afirmar que a norma constitucional respeita todas as formas de vida capazes de sentir dor e sofrer. Os direitos constitucionais não são exclusivos de sujeitos humanos, podendo ser estendidos aos animais, mesmo que eles não sejam pessoas. 195 REFERÊNCIAS ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 11° edição. Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 1999. ARAÚJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Livraria Almeida. 2003. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Torrieri Guimarães, 4.ed. São Paulo: Martins Claret, 2010. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens, 5.ed. São Paulo: Martins Claret, 2009. AZKOUL, Marco Antônio. Crueldade contra animais. São Paulo: Plêiade, 1995. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 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