do arquivo

Propaganda
Discurso do papa à Civiltà Cattolica:
incompletude no pensamento e
imaginação no discernimento. Artigo
de Andrea Grillo
Hospitalidade
2017
“No discurso à Civiltà Cattolica, Francisco falou aberta e positivamente, com
autoridade e autenticidade, indicando um estilo e uma forma de pensamento católico,
que conserva um espaço precioso para a inquietação no coração, para a incompletude no
pensamento e para a imaginação no discernimento.”
A opinião é do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu
Sant'Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do
Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 12-02-2017. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
A segunda parte do discurso do Papa Francisco ao Colégio dos Escritores da revista
La Civiltà Cattolica se ocupa da segunda e da terceira palavras-chave, depois de ter
ilustrado a primeira – a inquietação – que apresentamos no post anterior.
1. A incompletude: Deus é “sempre maior”
Também dessa segunda palavra, “incompletude”, o ataque é fulminante:
Deus é o Deus semper maior, o Deus que nos surpreende sempre. Por isso, vocês devem
ser escritores e jornalistas de pensamento incompleto, isto é, aberto e não fechado e
rígido. Que a fé de vocês abra o seu pensamento.
A incompletude do pensamento da fé significa abertura e disponibilidade à liberdade
do Espírito de Deus, que contrasta com todo fechamento e rigidez. Essa característica
qualificadora da contribuição intelectual dos cristãos e dos católicos assume um traço
decisivo nas palavras seguintes:
Deixem-se guiar pelo espírito profético do Evangelho para ter uma visão original, vital,
dinâmica, não óbvia.
A profecia não suporta o que é óbvio, estático, convencional. Requer, em vez disso,
uma “visão original”, que se torna vital e dinâmica. Ainda mais urgência tem essa
função intelectual em um mundo descrito com os traços da “cultura do naufrágio” e da
“cultura da lata de lixo”, ou seja, de uma cultura desprovida de mediações, que passa do
relativismo à rigidez com absoluta desenvoltura. Diante desse desafio contemporâneo,
Só um pensamento realmente aberto pode enfrentar a crise e a compreensão de aonde o
mundo está indo, de como são enfrentadas as crises mais complexas e urgentes, a
geopolítica, os desafios da economia e a grave crise humanitária ligada ao drama das
migrações, que é o verdadeiro nó político global dos nossos dias.
Ao lado da palavra “incompletude”, Francisco cita, como padroeiro, o Pe. Matteo
Ricci, do qual recorda a composição de um “mapa-múndi chinês”, em que apareciam
também terras distantes e até mesmo Roma, onde o papa estava. Com base nessa
imagem, olha-se para a tarefa da reflexão católica do futuro com estas belas palavras,
dirigidas ao Colégio dos Escritores:
Eis, com os seus artigos, vocês também são chamados a compor um “mapa-múndi”:
mostrem as descobertas recentes, deem um nome aos lugares, deem a conhecer qual é o
significado da “civilização” católica, mas também deem a conhecer aos católicos que
Deus também está trabalhando fora das fronteiras da Igreja, em cada verdadeira
“civilização”, com o sopro do Espírito.
É evidente que o mapa-múndi a que somos chamados hoje, quando refletimos como
católicos sobre o nosso tempo, responde profeticamente a uma dupla função. De um
lado, mostra as descobertas, “dá nome” aos lugares e ilustra as características da
tradição cristã. Mas, de outro, dá a conhecer aos católicos que “Deus está trabalhando
também fora das fronteiras da Igreja”, onde quer que haja verdadeira civilização.
2. A imaginação: as metáforas como espaço do Espírito
A terceira palavra, “imaginação”, encerra o discurso em “modo maior”. E começa,
talvez com uma certa surpresa, no horizonte do discernimento. Porque, muitas vezes,
consideramos, erroneamente, que o discernimento pode ser a simples “aplicação ao
caso” daquilo que já nos é conhecido. É difícil que o homem – e o cristão – ache que
precisa da imaginação para discernir. Mas esse é o caminho original que Francisco
indica justamente na abertura desta terceira parte do seu discurso:
Este, na Igreja e no mundo, é o tempo do discernimento. O discernimento sempre se
realiza na presença do Senhor, olhando para os sinais, escutando as coisas que
acontecem, o sentimento das pessoas que conhecem a via humilde da obstinação
cotidiana, e especialmente os pobres. A sabedoria do discernimento resgata a
necessária ambiguidade da vida. Mas é preciso penetrar a ambiguidade, é preciso
entrar nela, como fez o Senhor Jesus assumindo a nossa carne.
O discernimento tem a ver com a ambiguidade estrutural da vida e com a “obstinação
cotidiana”. Vive daquela “inquietação” e “incompletude” que nos acompanha sempre e
que podemos enfrentar penetrando a ambiguidade na presença do Senhor, “assumindo a
nossa carne”. Essa assunção da carne se opõe, diametralmente, a toda rigidez, que,
poderíamos dizer, pretende discernir “a priori”, sem atravessar a vida com as suas
ambiguidades. No pensamento rígido, não há espaço para Deus:
O pensamento rígido não é divino, porque Jesus assumiu a nossa carne que não é
rígida, senão no momento da morte.
Essa passagem, de caráter estritamente teológico, abre o caminho para uma profunda e
tocante valorização da “imaginação poética e metafórica”, com a qual o pensamento
cristão e católico pode “estar na carne” e assumir a sua ambiguidade para o
discernimento:
Por isso, eu gosto muito da poesia e, quando é possível, continuo lendo-a. A poesia é
cheia de metáforas. Compreender as metáforas ajuda a tornar o pensamento ágil,
intuitivo, flexível, afiado. Quem tem imaginação não se enrijece, tem senso de humor,
goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior. É capaz de escancarar
visões amplas, mesmo em espaços restritos...
E, depois de indicar Andrea Pozzo como o último “padroeiro” do seu discurso,
Francisco indica à busca do Colégio o horizonte artístico e poético como desafio do
presente e do futuro. E, em um texto conclusivo de alto valor exemplar, faz referência
ao pintor flamengo Memling e ao poeta francês Baudelaire, cujas imagens podem
indicar muito bem a função que a imaginação desempenha na mediação teológica
contemporânea:
Cultivem, portanto, na sua revista o espaço para a arte, a literatura, o cinema, o teatro
e a música. Assim vocês fizeram desde o início, desde 1850. Alguns dias atrás, eu
meditava sobre a pintura de Hans Memling, o pintor flamengo. E pensava sobre como
o milagre de delicadeza que está na sua pintura representa bem as pessoas. Depois, eu
pensei nos versos de Baudelaire sobre Rubens, lá onde ele escreve que “la vie afflue et
s’agite sans cesse, / Comme l’air dans le ciel et la mer dans la mer”. Sim, a vida é fluida
e se agita sem parar, assim como se agitam o ar no céu e o mar no mar. O pensamento
da Igreja deve recuperar a genialidade e entender cada vez melhor como o homem se
compreende hoje, para desenvolver e aprofundar o próprio ensinamento. E essa
genialidade ajuda a entender que a vida não é um quadro em preto e branco. É um
quadro em cores. Algumas claras e outras escuras, algumas tênues e outras vivazes.
Mas, de todos os modos, prevalecem as nuances. E esse é o espaço do discernimento, o
espaço em que o Espírito agita o céu como o ar, e o mar como a água. A tarefa de
vocês – como pediu o Bem-aventurado Paulo VI – é o de viver o debate “entre as
exigências candentes do homem e a perene mensagem do Evangelho” (Discurso por
ocasião da XXXII Congregação Geral da Companhia de Jesus, 3 de dezembro de 1974).
E essas exigências candentes, vocês já trazem dentro de vocês mesmos e na sua vida
espiritual. Deem a esse debate as formas mais adequadas, também novas, como requer
hoje o modo de comunicar, que muda com o passar do tempo.
Desenvolver e aprofundar o ensinamento da Igreja significa recuperar genialidade e
entender cada vez melhor como o homem se compreende hoje. Para fazer isso, é preciso
admitir que a vida nunca é em preto e branco. E que, para representá-la adequadamente,
são necessárias ao pensamento da Igreja “formas mais adequadas, também novas, como
requer hoje o modo de comunicar, que muda com o passar do tempo”.
No discurso à Civiltà Cattolica, Francisco falou aberta e positivamente, com
autoridade e autenticidade, indicando um estilo e uma forma de pensamento católico.
Mas, ao mesmo tempo, também respondeu, indiretamente, àqueles que só sabem
“duvidar” diante de toda forma de pensamento “mais adequada e também nova” de que
precisa urgentemente não só a expressão magisterial da tradição, mas acima de tudo a
experiência autenticamente católica dos homens e das mulheres de hoje. Aquela que
nunca se confunde com uma filosofia e que sabe que só pode enfrentar o “depositum
fidei” conservando um espaço precioso para a inquietação no coração, para a
incompletude no pensamento e para a imaginação no discernimento. Do fim do mundo,
é-nos restituída a esperança em uma teologia realmente aberta e de autoridade.
Leia mais:
o Incompletude,
inquietação e imaginação. Audiência do Papa Francisco à
comunidade da revista La Civiltà Cattolica
o Discurso do papa à Civiltà Cattolica: a audácia e a inquietação como bênção.
Artigo de Andrea Grillo
o Quatro mil números da revista La Civiltà Cattolica: um pouco de história
o La Civiltà Cattolica, nº 4000: "Presente nas mudanças em curso, com um
catolicismo claro, mas não tribal"
o Jesuítas: "O papa nos convida a remar com ele", afirma La Civiltà Cattolica
o “É intolerável não proteger juridicamente os casais gays”, defende Bartolomeo
Sorge, jesuíta, ex-diretor da Civiltà Cattolica
o A atualização das "obras de misericórdia" segundo a Civiltà Cattolica: entre ócio
e tecnoestresse, vence o repouso digno
Av. Unisinos, 950 - São Leopoldo - RS
CEP 93.022-750
Fone: +55 51 3590-8213
[email protected]
Copyright © 2016 - IHU - Todos direitos reservados
Download